Havia uma casa com raízes numa montanha de granito. Uma casa sem vizinhos, meia perdida entre o caminho que corta por entre urzes e o riacho. Por detrás dessa casa, havia um estábulo de madeira; era aí criado um menino - que fora trazido pela época das chuvas -, como um animal.
Os caseiros, ambos já velhos, eram avessos a ter uma criança sentada à mesma mesa que eles. Não suportavam ter o encargo de a educar. Por não a conseguirem deixar ao abandono, à espera da morte, colocaram-na perto dos animais, e passados uns meses, esse menino de olhos negros como a sombra, viria a estar no mesmo espaço onde se movia a vaca, os bois, e as galinhas.
O velho, um homem de feições rudes e de maldade crepitante nos cantos da boca, traz ao nascer do sol, comida para abastecer o gado. Depois de colocada uma braçada de feno, que empilha na manjedoura, revira os olhos para aquele corpo petiz sem nome.
-Vá, come! - resmunga o velho.
Atira-lhe feno para o rosto e pão duro para o chão, que este, se apressa a agarrar para trincar. Com o tempo, como que, uma propensão para o mal puxa ainda pela raíz mais funda, deixou de lhe dar comida. O menino, dormia em cima do feno, esperneando-se todas as noites com dor: dor de fome, que queimava como ferro no estômago. Horas e horas de sede e para a boca encontrou na erva fresca vinda dos pastos, o engano para a fome; começou como o boi, a ruminar.
Alguns dias depois, em que, não aguentava na barriga o sentimento vivo desse azedume - enquanto a mão levava à boca o verde das ervas -, o menino, fixou os olhos da vaca - tristes, como que gravados numa escultura - e, dela veio a permissão, o chamamento; moveu-se a criança esfaimada até às tetas - aí pôs-se a beber o leite, agarrando-as com sofreguidão, para as sugar . A caseira, uma velhota, ainda que, mais afável que o homem, quando começou a dar pela falta do leite, levou abóboras e frutas para o estábulo. Elas chegavam, tão frescas na cor, que era vê-lo atirar-se para roer o que houvesse. A isto, tudo assistiam, as aranhas recolhidas entre as grandes névoas de teia, que cobriam o tecto de madeira podre.
O velho, num dia de tédio, em que o suor lhe escorria da fronte e, uma inquietante e contínua impressão na artéria do peito, se lhe apertava cada vez mais, perdeu as estribeiras, ao olhar aquela criatura, ali, tão obediente e passiva, ao lado dos animais.
- Meu grandessíssimo filho da puta! - berrou, e a seguir atirou-lhe com um balde de água à cabeça. Seguiram-se pontapés na barriga e, pegando numa correia dum chicote pendurado ao pé das forquilhas, deixou-o com o corpo e a alma marcada, como se, por ali tivesse passado o diabo. Foi a vaca, que lhe lambeu o sangue das feridas abertas, bebeu-lhe a infecção - o pus -,enxotando as moscas com o movimento incessante do rabo. No dia seguinte, o velho ao confrontar-se com o menino todo batido, fruto das suas mãos loucas, não abrandou, e desceu mais fundo: chicoteou-o ainda com mais força. De instinto animalesco, o menino agora educado como uma fera, agarrou-se-lhe à perna, e, só alimentado de sementes e pasto, cravou os dentes na carne, até a rasgar, até correr sangue no estábulo cheio de esterco. Os gritos do velho, trouxeram a caseira, e com ela, a súbita consciência, de que eram responsáveis pelo comportamento desse animal que criaram.
-Santo Deus! - disse, sem quase haver ar no peito para respirar.
O menino ao vê-la, parou, subitamente assustadiço. Afastou-se para um canto. Agarrou em folhas de milho e pôs-se a trincá-las para tirar da boca, o sabor do sangue humano. A mulher arrastou o velho, dali para fora, e ele nunca mais voltou. Passou a vir sempre ela, com passo lento, na sujidade do chão de pedra. Deitava o milho às galinhas, ordenhava a vaca, e deixava latas de conserva de feijão e carne para o menino. Com os meses, deu-lhe um nome. Chamava-o e quando o menino deixava que o tocasse, dáva-lhe sementes de abóbora, o seu banquete preferido. Depois começou a cantar-lhe canções, que só do coração lhe tinham saído, quando criara as suas crias - agora ausentes, lá nas cidades de fumo negro. Ensinou-lhe depois as palavras, a este ser, que aprendera a imitar os grunhidos dos animais; e, quando se sentou na escada da casa na colina, e o céu se abriu entre as nuvens de Inverno, ela, a mulher do caseiro matou a maldade, e sentou o menimo à mesa.
Os caseiros, ambos já velhos, eram avessos a ter uma criança sentada à mesma mesa que eles. Não suportavam ter o encargo de a educar. Por não a conseguirem deixar ao abandono, à espera da morte, colocaram-na perto dos animais, e passados uns meses, esse menino de olhos negros como a sombra, viria a estar no mesmo espaço onde se movia a vaca, os bois, e as galinhas.
O velho, um homem de feições rudes e de maldade crepitante nos cantos da boca, traz ao nascer do sol, comida para abastecer o gado. Depois de colocada uma braçada de feno, que empilha na manjedoura, revira os olhos para aquele corpo petiz sem nome.
-Vá, come! - resmunga o velho.
Atira-lhe feno para o rosto e pão duro para o chão, que este, se apressa a agarrar para trincar. Com o tempo, como que, uma propensão para o mal puxa ainda pela raíz mais funda, deixou de lhe dar comida. O menino, dormia em cima do feno, esperneando-se todas as noites com dor: dor de fome, que queimava como ferro no estômago. Horas e horas de sede e para a boca encontrou na erva fresca vinda dos pastos, o engano para a fome; começou como o boi, a ruminar.
Alguns dias depois, em que, não aguentava na barriga o sentimento vivo desse azedume - enquanto a mão levava à boca o verde das ervas -, o menino, fixou os olhos da vaca - tristes, como que gravados numa escultura - e, dela veio a permissão, o chamamento; moveu-se a criança esfaimada até às tetas - aí pôs-se a beber o leite, agarrando-as com sofreguidão, para as sugar . A caseira, uma velhota, ainda que, mais afável que o homem, quando começou a dar pela falta do leite, levou abóboras e frutas para o estábulo. Elas chegavam, tão frescas na cor, que era vê-lo atirar-se para roer o que houvesse. A isto, tudo assistiam, as aranhas recolhidas entre as grandes névoas de teia, que cobriam o tecto de madeira podre.
O velho, num dia de tédio, em que o suor lhe escorria da fronte e, uma inquietante e contínua impressão na artéria do peito, se lhe apertava cada vez mais, perdeu as estribeiras, ao olhar aquela criatura, ali, tão obediente e passiva, ao lado dos animais.
- Meu grandessíssimo filho da puta! - berrou, e a seguir atirou-lhe com um balde de água à cabeça. Seguiram-se pontapés na barriga e, pegando numa correia dum chicote pendurado ao pé das forquilhas, deixou-o com o corpo e a alma marcada, como se, por ali tivesse passado o diabo. Foi a vaca, que lhe lambeu o sangue das feridas abertas, bebeu-lhe a infecção - o pus -,enxotando as moscas com o movimento incessante do rabo. No dia seguinte, o velho ao confrontar-se com o menino todo batido, fruto das suas mãos loucas, não abrandou, e desceu mais fundo: chicoteou-o ainda com mais força. De instinto animalesco, o menino agora educado como uma fera, agarrou-se-lhe à perna, e, só alimentado de sementes e pasto, cravou os dentes na carne, até a rasgar, até correr sangue no estábulo cheio de esterco. Os gritos do velho, trouxeram a caseira, e com ela, a súbita consciência, de que eram responsáveis pelo comportamento desse animal que criaram.
-Santo Deus! - disse, sem quase haver ar no peito para respirar.
O menino ao vê-la, parou, subitamente assustadiço. Afastou-se para um canto. Agarrou em folhas de milho e pôs-se a trincá-las para tirar da boca, o sabor do sangue humano. A mulher arrastou o velho, dali para fora, e ele nunca mais voltou. Passou a vir sempre ela, com passo lento, na sujidade do chão de pedra. Deitava o milho às galinhas, ordenhava a vaca, e deixava latas de conserva de feijão e carne para o menino. Com os meses, deu-lhe um nome. Chamava-o e quando o menino deixava que o tocasse, dáva-lhe sementes de abóbora, o seu banquete preferido. Depois começou a cantar-lhe canções, que só do coração lhe tinham saído, quando criara as suas crias - agora ausentes, lá nas cidades de fumo negro. Ensinou-lhe depois as palavras, a este ser, que aprendera a imitar os grunhidos dos animais; e, quando se sentou na escada da casa na colina, e o céu se abriu entre as nuvens de Inverno, ela, a mulher do caseiro matou a maldade, e sentou o menimo à mesa.
Bom ensaio ;)
ResponderEliminarBoa tarde, Lee.
ResponderEliminarA água primordial, na medição do tempo, foi aqui bebida em concha ao sabor cristal da sua transparência. Defronte à fonte, queda-se o leitor como aroma em curso que aos rios se junta, o que à nascente se forma, o que o oceano reúne e ao que o Tempo transpira.
Tal como pela clepsidra se oculta a essência em movimento, também neste conto frio, por vezes atroz, se encontra a história de um menino, que bem podia ser Zeus. É a vaca uma das ninfas da fonte, ou pasto, que o amamenta e lambe as feridas (Itome ou Neda), depois de resgatado pela mão de deuses da fúria atávica de seu pai, velho dos velhos, deus dos tempos e dos seus tempos, lavado e purificado, renascido para ser deus dos deuses, deus mártir, a quem tudo deve à sua mãe.
Bom... mas se calhar, não é nada disto! :) Foi apenas o que de imediato se me suscitou enquanto em surpresa reunia entre as passadas das palavras e o desenrolar da história.
Gostei muito, Lee.
Belíssimo registo, com prosa até ao fim.
As maiores saudações!
Um abraço!