I
por caminhos de lavanda e urze: raso,
o sangue sob a plaina dos dedos,
enquanto a mão aprende
toda a beatitude do mundo
a mão alçada sobre a lua dos olhos,
o gesto é conciso
como uma imagem impossível
II
depois, ameias entre os venenos,
os versos:
carótida, laringe, fuligem, falange
os versos: um secreto combate, os versos
tantas vezes não mais que sombras
entre a luz nocturna da lâmina
e a doçura da pálpebra
III
em verdade falo apenas do que há
dentro dos nomes
o que há dentro de um nome?
em verdade falo apenas de um imóvel caminho
um lentíssimo modo de rumar
ao silêncio
Luís Felício
segunda-feira, 10 de maio de 2010
«Se ao menos eu tivesse tido tempo! Mas já não tinha. E agora já nada havia para roubar! Que bom seria estar numa prisão aconchegada, dizia para comigo, onde as balas não passam! Onde nunca passam! Eu conhecia uma pronta a servir, ao sol, ao calor! Como num sonho, a de Saint-Germain precisamente, tão perto da floresta, eu conhecia-a bem, antigamente passava muitas vezes por lá. Como nós mudamos! Nessa altura eu era uma criança e fazia-me medo, a prisão. É que ainda não conhecia os homens. Nunca mais vou acreditar no que eles dizem, no que eles pensam. Dos homens e só dos homens devemos ter sempre medo. »
Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.28
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«Há bastantes maneiras de sermos condenados à morte.»
Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.28
Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.28
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O Pinhal
Fábrica alpina de escovas rodeada por espelhos
De cabos de madeira púrpura com frondosos pêlos verdes
Na tua penumbra quente manchada de sol
Veio pentear-se Vénus ao sair da banheira
Marinha ou lacustre fumegante na parte inferior...
Daí a espessura no solo elástico e vermelho
Dos ganchos de cabelo odoríferos
Para ali sacudidos por tantos cimos negligentes
-E o meu prazer também de aí saborear o sono
Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 33
De cabos de madeira púrpura com frondosos pêlos verdes
Na tua penumbra quente manchada de sol
Veio pentear-se Vénus ao sair da banheira
Marinha ou lacustre fumegante na parte inferior...
Daí a espessura no solo elástico e vermelho
Dos ganchos de cabelo odoríferos
Para ali sacudidos por tantos cimos negligentes
-E o meu prazer também de aí saborear o sono
Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 33
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domingo, 9 de maio de 2010
Em Agosto: É, totalmente rodeada por espelhos, uma praça de ganchos de cabelos odoríferos, por vezes soerguidos pela curiosidade doentia e prudente dos cogumelos; uma fábrica de escovas de longos cabos de madeira púrpura esculpidos, com pêlos verdes, escolhida pela ruiva nobre e selvagem que sai da banheira lacustre ou marinha fumegante na parte inferior.
Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 29
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«Viver rodeado por outros, abriga o pinheiro a libertar-se de todos os seus desenvolvimentos laterais, dos primeiros rebentos: Ponge elabora então, antropomorficamente, e em termos de obrigatoriedade social, (o que a tornaria perfeita), uma utópica felicidade: «a permissão de esquecer...o peso de todos os seus gestos desde a infância».
Nota introdutória de Leonor Nazaré ao livro:
Francis Ponge. O Caderno do Pinhal. Trad. Leonor Nazaré. Hiena Editora. Lisboa, 1986., p. 9
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quinta-feira, 6 de maio de 2010
«Numa história destas não há nada a fazer, só pormo-nos a cavar», dizia a mim próprio, apesar disso...
Por cima das nossas cabeças, a dois milímetros, talvez a um milímetro das têmporas, um após outro vinham vibrar esses longos fios de aço traçados pelas balas que nos queriam matar no ar quente do Verão. Nunca eu me sentira tão inútil por entre essas balas todas e as luzes daquele sol. Uma imensa, uma universal zombaria.
Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010., p.25
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quarta-feira, 5 de maio de 2010
Si l'on devait citer le poète qui a exercé l'influence la plus profonde sur la poésie du début du xx siècle, il fraudait nommer Rimbaud. Avec plus de hardiesse encore que Baudelaire, il a étendu le champ d'exploration de la poésie. [...] C'est qu'il n'a pas hésité à se mettre en communication avec la part inconnaissable de lui-même. Il y a découvert un grand jeu d'images, fleurs éclatées, filles à lèvres d'orange, déluges et miracles, un jeu dont chaque figure ressemble à un message marqué d'un sceau incompréhensible et sacré.
Kléber Haedens. Rimbaud Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche.
Kléber Haedens. Rimbaud Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche.
domingo, 2 de maio de 2010
excerto do texto: 'Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira)'
« (...)na poesia de Luís Miguel Nava o movimento consiste, exactamente, em aproximar de tal modo o corpo do olhar, que doravante só é possível uma visão parcelar que reduz o todo a imagens fragmentadas. Assim tratado como objecto, o corpo evocado pela escrita despoja-se da sua espiritualidade. O olhar é aqui desfigurador porque irremediavelmente próximo (ou à distância, mas como se estivesse próximo por meio de uma poderosa lente de ampliação). Talvez esta distância tão próxima seja também tão íntima que não se pode ser observador sem se tomar simultaneamente observado. A desfiguração atinge, assim, o sujeito poético e a ferida aberta propaga-se ao espírito, ou talvez aconteça exactamente o contrário: é a desfiguração do espírito que contagia o corpo e se estende à pele.
Em Vulcão podemos ler:
O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…
De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.
Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]
Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:
Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior
e ainda:
graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..
Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele
Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.
No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]
Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]
A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.
Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:
Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…
Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:
Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…
Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:
…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.
Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:
…Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!
O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:
A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.
Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.
Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler
Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..
É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.
Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:
Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…
Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:
…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,
Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:
O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.
E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:
O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,
Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:
ir imitando o céu assim como podia.
No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.
Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.
Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:
pois no teu corpo existe o mundo todo.
Em Vulcão podemos ler:
O réptil de que somos as entranhas / abertas na consciência / emerge-nos da terra…
De facto, a desfiguração, a fragmentação do corpo, é sobretudo no espírito que reside, como podemos sentir pela leitura de um poema de O Céu sob as Entranhas:
A roupa dói-nos porque, embora
nos cubra a pele, é dentro
do espírito que estão os tecidos amarrados.
Há no espírito uma «cegueira dos tecidos» - eis o insustentável, eis a razão pela qual o corpo se des(-)natura.
Erwin Straus evidencia a transformação da comunicação operada pela palpação médica, em que o corpo-objecto é sujeito a uma exploração manual, apresentando e abandonando ao médico o corpo nu. A natureza radical desta transformação é, segundo o autor, posta em relevo na cirurgia em que o médico procede à incisão dolorosa, por um motivo estritamente profissional que, em princípio, tem como objectivo a cura do paciente. Como Erwin Straus não deixa de notar, a modificação não afecta apenas o modo de comunicação, mas implica sempre uma modificação nos sujeitos. [2]
Assim, na poesia de Luís Miguel Nava o corpo é o que resta de uma cirurgia que permite o acesso ao interior, mas justamente, esta é uma operação de irradicação da interioridade: tornar aqui visível o interior corresponde a expô-lo, torná-lo duplamente exterior: visível e descoberto. Em O Céu sobre as Entranhas o próprio Nava tematiza a relação entre exterior e interior, associando a escuridão do quarto à escuridão das entranhas:
Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior e o interior
e ainda:
graças à assimilação que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior e exterior,..
Na poética de David Mourão-Ferreira, a pele é um invólucro totalizante que se amplia no amor como um manto estendido:
Quem foi que à tua pele conferiu esse papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele
Em Luís Miguel Nava a pele deixa de ser o invólucro totalizante que evidencia a gestalt corporal para tomar mesmo, por vezes, o lugar interior, afundado, soterrado. Como se não bastasse, a pele, agora afundada, é ainda sujeita a uma ferida suplementar: no poema «Estacas» é dito:
A pele foi entretanto soterrada, há quem já tenha caminhado em cima dela.
No limite, o olhar que desfigura o corpo em objecto seria também abjecto no sentido proposto por Julia Kristeva, do entre-deux, do ambíguo, do misto, daquilo que «perturba uma identidade, um sistema, uma ordem» e em que a parte esvaziada de toda a vida perde o contorno e é arrastada para o peso do sem sentido. [3]
Encontramos esta ideia de pulverização do corpo pelo olhar em Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes: as partes do corpo são examinadas como se desmontássemos um objecto para ver como é feito por dentro. O olhar que observa é frio, calmo, distante; é o olhar de quem olha sem medo para um insecto. Às vezes basta um movimento no corpo do outro e «o meu desejo deixa de ser perverso, torna-se imaginário, regresso a uma Imagem, a um Todo: amo novamente». [4]
A imagem do insecto aparece, no mesmo contexto, na Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, como originada por um olhar inumano. [5] Como se, fosse a que distância fosse, a insustentável proximidade do olhar do outro operasse uma distorção inevitável no corpo olhado, incapacitando-o de se dar a ver como gestalt e desvelar a diferença de cada mínimo detalhe.
Vê-se pois que, por um lado, o olhar cerrado, o olhar míope, possui uma maior apetência para tornar abjecto o objecto olhado. Por outro, o corpo transfigurado pela escrita poética é também um corpo ritual; escreve David:
Na penumbra do teu corpo é que tudo começa…
Se assim é, concomitantemente a transfiguração do olhar deve, olhando, descobrir como se encobrisse. Deste modo, o trabalho poético de transfiguração procede a um jogo entre o perto e o longe (dimensão espacial e temporal do corpo), e é mercê deste jogo que nunca chega a deflagrar a impureza microscópica, pois em nenhum momento se perde a imagem, o que significa que nunca a figurabilidade do pormenor anula a figurabilidade do todo:
Como os teus ombros ontem estavam longe,
como os teus seios hoje ficam perto!
O desejo é uma lente que te acerca,
a ternura é um filtro que te esconde…
Então, não são tanto os movimentos do olhar que são determinados pela relação entre o próximo e o distante, mas a própria relação entre proximidade e distanciação é que é determinada pelo sentimento que desencadeia o olhar, pelo desejo e pela ternura, pela indiferença, ou pelo sofrimento. Por exemplo, o desejo determina uma orientação para a proximidade que, em David Mourão-Ferreira aparece como equilibrado pelo movimento de velação. A figura da lente, cuja função é de acercar aparece pois em David contrabalançada pela figura do filtro da ternura, pelo que o olhar deve revelar como se escondesse. Em Luís Miguel Nava não existe véu ou filtro, mas apenas uma obsessiva lente de aumento, de aproximação progressiva, pelo que as «paisagens» do corpo se desintegram no próprio acto de olhar:
…Paisagens / às quais a nossa pele serve de lente / estão feitas com ele, que as desintegra.
Assim, se o corpo em Nava é sempre menos do que corpo, na poética de David o corpo é sempre mais do que corpo:
…Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo /…/ pois no teu corpo existe o mundo todo!
O processo de desfiguração do corpo na poética de Luís Miguel Nava é-nos revelado pelo poeta ao escrever:
A nossa anatomia é uma terra enigmática e longínqua sob cujo mapa jamais pensámos debruçar-nos.
Ora a poética de Nava é a propria operação cirúrgica em que se faz, justamente, aquilo que ele diz jamais ter pensado fazer: debruça-se sob o mapa da anatomia escavando a própria intimidade, já que o órgão mais íntimo é, exactamente, a pele; assim. O a frase «sentir na pele» ganha aqui todo o relevo.
Mas onde pode agora residir o eu, se o corpo e o espírito são apenas fragmentos pulverizados? A resposta de Nava é que não existe tal lugar. No poema «O último reduto» podemos ler
Naquilo a que chamamos eu há sempre um espaço inocupado,..
É que dentro de nós existe um mecanismo cuja função é repelir-nos, escorraçar-nos e frequentemente «ocupa toda a nossa identidade». Então, esta abolição do eu que é escorraçado para fora de si próprio provoca uma idêntica abolição da identidade do corpo e como a identidade essencial do corpo reside na sua organicidade desfazem-se as envolvências e os órgãos dispersam-se como se fossem elementos inorgânicos.
Podemos agora saber porque é que Luís Miguel Nava se debruçou sob o mapa anatómico: é que não bastava despir-se, desnudar-se, porque a pele não deixa que fiquemos verdadeiramente a nu. Como escreve em Rebentação:
Desnudarmo-nos é pouco, há que mostrar as vísceras,…
Lembremo-nos de que, sistematicamente, ao longo da sua obra incompleta, encontramos afundados e mesmo perfeitamente soterrados, tanto a pele - o elemento do nosso corpo que serve de charneira entre o interior e o exterior, mas que significa a nossa exterioridade - como os elementos mais marcantes de uma cosmologia: o céu, o sol, o mar. Assim, as próprias vísceras são iluminadas, na condição de serem expostas:
…expor todas as vísceras, os orgãos sobre os quais a luz do coração incide,
Escondido, afundado no interior do corpo, há um outro mundo análogo ao que é objecto do nosso olhar; em «Neste mundo», o próprio olhar é subterrâneo:
O sol subterrâneo, aquele a que eu / me quero hoje estender / é o do meu espírito, é preciso / cavar bem fundo até o fazer surgir.
E acerca do céu escreve Luís Miguel Nava:
O céu, agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos,
Porém, é no poema «Retrato», em O Céu sob as Entranhas que ficamos a saber o papel essencial que cabe à pequena e solitária pele, uma pele tímida e metida consigo mesma, lá no fundo de si; o seu papel é:
ir imitando o céu assim como podia.
No próprio seio das trevas, das entranhas, há pois um céu. Para ter acesso a essa luz é necessário proceder à incisão mais dolorosa, abrir a ferida. Poderá, assim, a pele ir imitando o céu na medida da sua humana (im)perfeição.
Todo o percurso que até aqui tinha sido pensado como trabalho desfigurador aparece a esta luz como um trabalho redentor em que assistimos à mais espantosa, e também a mais profunda, transfiguração: escavar uma luz no abismo das trevas.
Podemos agora dizer que na poética de Nava o corpo é, sobretudo, muito mais do que corpo: é um mundo todo. E então, como David Mourão-Fereira, diremos a Luís Miguel Nava:
pois no teu corpo existe o mundo todo.
Rosa Alice Branco. Operação cirúrgica e cirurgia plástica (O corpo na poética de Luís Miguel Nava e David Mourão-Ferreira) - texto publicado na Agulha,revista de cultura # 38 - fortaleza, são paulo - abril de 2004 .
Sem outro intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.
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A noite
A noite veio de dentro, começou a surgir do interior
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.
Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.
de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las
crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-
pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,
apesar de a noite também se desprender das coisas, havia
nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-
tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama
do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,
num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das
coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer
pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que
dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz
e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos
olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo
a treva nasalada.
Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.
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* «Porventura com a consciência de que se tratava de uma obra de interesse universal - parece ter Fernando Pessoa encarado a hipótese de traduzir ou reescrever em francês O Marinheiro. Entre os seus manuscritos inéditos encontrou-se um fragmento - encabeçado com a indicação «O Marinheiro-drama estático n'um quadro» e datado de 20- XI-24 - que se afigura dever pertencer a uma das veladoras (provavelmente a segunda):
Aussi loin que possible de la vie
je vis ma vie
Et je m'emerveille aux [changements]
De mes instants.
Quel est l'enfant que tu aportes
Par la main; et qui pleure
Comme si tout le monde [n'allait] pas
Vers sa demeure?
Oh, l'automne s'en ira peut-être
Et ce sera l'aube
Fernando Pessoa. Poemas Dramáticos. Edições Ática., p.61
Aussi loin que possible de la vie
je vis ma vie
Et je m'emerveille aux [changements]
De mes instants.
Quel est l'enfant que tu aportes
Par la main; et qui pleure
Comme si tout le monde [n'allait] pas
Vers sa demeure?
Oh, l'automne s'en ira peut-être
Et ce sera l'aube
Fernando Pessoa. Poemas Dramáticos. Edições Ática., p.61
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sábado, 1 de maio de 2010
Os Adeuses
«E, tal como as estações, também vós, no vosso inverno, negais a vossa
primavera, no entanto, a primavera que repousa em vós, sorri meio adormecida e
não fica ofendida.
(...)
Os vossos pensamentos e as minhas palavras são ondas de uma memória
selada que mantém registados os nossos ontens, e os dias antigos quando a terra
não nos conhecia nem se conhecia a si própria, e as noites em que a terra estava
mergulhada em caos. »
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.70
primavera, no entanto, a primavera que repousa em vós, sorri meio adormecida e
não fica ofendida.
(...)
Os vossos pensamentos e as minhas palavras são ondas de uma memória
selada que mantém registados os nossos ontens, e os dias antigos quando a terra
não nos conhecia nem se conhecia a si própria, e as noites em que a terra estava
mergulhada em caos. »
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.70
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quinta-feira, 29 de abril de 2010
Sobre o Bem e o Mal
«Vós sois bons de inúmeras formas e não sois maus quando não sois bons.
Sois apenas vagabundos e ociosos.
É pena que o veado não possa ensinar a rapidez à tartaruga.
Mas o vosso desejo pelo vosso eu gigante reside na vossa bondade: e essa
bondade está no todo de vós.
Mas em alguns de vós esse desejo é uma corrente que se dirige para o mar,
levando os segredos das encostas e as canções da floresta.
E noutros é um ribeiro sereno que se perde nos ângulos e nas curvas antes de
chegar à costa.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.53
Sois apenas vagabundos e ociosos.
É pena que o veado não possa ensinar a rapidez à tartaruga.
Mas o vosso desejo pelo vosso eu gigante reside na vossa bondade: e essa
bondade está no todo de vós.
Mas em alguns de vós esse desejo é uma corrente que se dirige para o mar,
levando os segredos das encostas e as canções da floresta.
E noutros é um ribeiro sereno que se perde nos ângulos e nas curvas antes de
chegar à costa.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923 ,. p.53
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Gibran Khalil Gibran
«Pois se fizerdes o pão com indiferença, estareis a fazer um pão tão amargo
que só saciará metade da fome.
E se esmagardes as uvas de má vontade, essa má vontade contaminará o
vinho com veneno.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
que só saciará metade da fome.
E se esmagardes as uvas de má vontade, essa má vontade contaminará o
vinho com veneno.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
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Gibran Khalil Gibran
Sobre o Amor
Quando o amor vier ter convosco,
Seguros embora os seus caminhos sejam árduos e sinuosos.
E quando as suas asas vos envolverem, abraçai-o, embora a espada oculta sob
as asas vos possa ferir.
E quando ele falar convosco, acreditai,
Embora a sua voz possa abalar os vossos sonhos como o vento do norte
devasta o jardim.
Pois o amor, coroando-vos, também vos sacrificará. Assim como é para o
vosso crescimento também é para a vossa decadência.
Mesmo que ele suba até vós e acaricie os mais ternos ramos que tremem ao
sol,
Também até às raízes ele descerá e abaná-las-à
Enquanto elas se agarram à terra.
Como molhos de trigo ele vos junta a si.
Vos amanha para vos pôr a nu.
Vos peneira para vos libertar das impurezas.
Vos mói até à alvura.
Vos amassa até vos tomardes moldáveis;
E depois entrega-vos ao seu fogo sagrado, para que vos tomeis pão sagrado
para a sagrada festa de Deus.
Toda estas coisas vos fará o amor até que conheçais os segredos do vosso
coração, e, com esse conhecimento, vos tomeis um fragmento do coração da
Vida.
Mas se, receosos, procurardes só a paz do amor e o prazer do amor,
Então é melhor que oculteis a vossa nudez e saiais do amor,
Para o mundo sem sentido onde rireis, mas não com todo o vosso riso, e
chorareis mas não com todas as vossas lágrimas.
O amor só se dá a si e não tira nada senão de si.
O amor não possui nem é possuído;
Pois o amor basta-se a si próprio.
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
Seguros embora os seus caminhos sejam árduos e sinuosos.
E quando as suas asas vos envolverem, abraçai-o, embora a espada oculta sob
as asas vos possa ferir.
E quando ele falar convosco, acreditai,
Embora a sua voz possa abalar os vossos sonhos como o vento do norte
devasta o jardim.
Pois o amor, coroando-vos, também vos sacrificará. Assim como é para o
vosso crescimento também é para a vossa decadência.
Mesmo que ele suba até vós e acaricie os mais ternos ramos que tremem ao
sol,
Também até às raízes ele descerá e abaná-las-à
Enquanto elas se agarram à terra.
Como molhos de trigo ele vos junta a si.
Vos amanha para vos pôr a nu.
Vos peneira para vos libertar das impurezas.
Vos mói até à alvura.
Vos amassa até vos tomardes moldáveis;
E depois entrega-vos ao seu fogo sagrado, para que vos tomeis pão sagrado
para a sagrada festa de Deus.
Toda estas coisas vos fará o amor até que conheçais os segredos do vosso
coração, e, com esse conhecimento, vos tomeis um fragmento do coração da
Vida.
Mas se, receosos, procurardes só a paz do amor e o prazer do amor,
Então é melhor que oculteis a vossa nudez e saiais do amor,
Para o mundo sem sentido onde rireis, mas não com todo o vosso riso, e
chorareis mas não com todas as vossas lágrimas.
O amor só se dá a si e não tira nada senão de si.
O amor não possui nem é possuído;
Pois o amor basta-se a si próprio.
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
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Gibran Khalil Gibran
A chegada do Navio
«Muitos foram os dias de dor que passei dentro das suas muralhas, e muitas
foram as noites de solidão; e quem pode separar-se da dor e da solidão sem
mágoa?
Espalhei demasiados fragmentos do espírito por estas ruas, e muitos são os
filhos da nostalgia que caminham nus por estas colinas, e não posso afastar-me
deles sem peso nem dor.
Não é a roupa que hoje dispo, mas uma pele que arranco com as minhas
próprias mãos.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
foram as noites de solidão; e quem pode separar-se da dor e da solidão sem
mágoa?
Espalhei demasiados fragmentos do espírito por estas ruas, e muitos são os
filhos da nostalgia que caminham nus por estas colinas, e não posso afastar-me
deles sem peso nem dor.
Não é a roupa que hoje dispo, mas uma pele que arranco com as minhas
próprias mãos.»
Gibran Khalil Gibran in O Profeta, 1923
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Gibran Khalil Gibran
*
J´étais un foetus.
Ma mère me réveillat quand il lui arrivait de penser à M. de Riez.
En même temps, parfois se trouvaient éveillés d´autres foetus, soit de
mères battues ou qui buvaient de l´alcool ou occupées au confessional.
Nous étions ainsi, un soir, soixante-dix foetus qui causions de ventre à
ventre, je ne sais trop par quel mode, et à distance.
Plus tard nous ne sommes jamais retrouvés.
J´étais une parole qui tentait d´avancer à la vitesse de la pensée.
Les camarades de la pensée assistaient.
Pas une ne voulut sur moi tenir le moindre pari, et elles étaient bien là
six cent mille qui me regardaient en riant.
Eu era um feto.
Minha mãe me despertava quando chegava a pensar no Senhor de Riez.
Ao mesmo tempo, às vezes outros fetos acordavam, filhos de
mães espancadas ou que bebiam álcool ou ocupadas no confessionário.
Uma noite, éramos em torno de setenta fetos que conversavam de ventre a ventre, e à distância, não sei muito bem de que maneira.
Nunca mais voltamos a nos encontrar.
Eu era uma palavra que tentava avançar à velocidade do pensamento.
As companheiras do pensamento assistiam.
Nenhuma quis fazer a menor aposta em mim, e elas eram mais
de seiscentas mil, que me observavam, rindo.
Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.
J´étais un foetus.
Ma mère me réveillat quand il lui arrivait de penser à M. de Riez.
En même temps, parfois se trouvaient éveillés d´autres foetus, soit de
mères battues ou qui buvaient de l´alcool ou occupées au confessional.
Nous étions ainsi, un soir, soixante-dix foetus qui causions de ventre à
ventre, je ne sais trop par quel mode, et à distance.
Plus tard nous ne sommes jamais retrouvés.
J´étais une parole qui tentait d´avancer à la vitesse de la pensée.
Les camarades de la pensée assistaient.
Pas une ne voulut sur moi tenir le moindre pari, et elles étaient bien là
six cent mille qui me regardaient en riant.
Eu era um feto.
Minha mãe me despertava quando chegava a pensar no Senhor de Riez.
Ao mesmo tempo, às vezes outros fetos acordavam, filhos de
mães espancadas ou que bebiam álcool ou ocupadas no confessionário.
Uma noite, éramos em torno de setenta fetos que conversavam de ventre a ventre, e à distância, não sei muito bem de que maneira.
Nunca mais voltamos a nos encontrar.
Eu era uma palavra que tentava avançar à velocidade do pensamento.
As companheiras do pensamento assistiam.
Nenhuma quis fazer a menor aposta em mim, e elas eram mais
de seiscentas mil, que me observavam, rindo.
Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.
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poeta belga
Le temps plus propice pour naître
n´était pas
n´est pas aujourd´hui
La Tour de la Mort s´élève
se voit déjà de partout
n´aura pas sa pareille
En un cercle, un cercle immensément large
des cycles s´achèvent
Des victimes sans tarder, seront là, présents.
Simultanéité toujours si remarquable
des sacrifiés et des armés.
*
O tempo mais propício para nascer
não era
não é hoje
A Torre da Morte se ergue
já se vê de todos os lugares
não haverá semelhante
Em um círculo, um círculo imensamente amplo
os ciclos acabam
As vítimas estarão lá, sem tardar, presentes.
Simultaneidade sempre tão notável
dos sacrificados e dos armados.
Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.
n´était pas
n´est pas aujourd´hui
La Tour de la Mort s´élève
se voit déjà de partout
n´aura pas sa pareille
En un cercle, un cercle immensément large
des cycles s´achèvent
Des victimes sans tarder, seront là, présents.
Simultanéité toujours si remarquable
des sacrifiés et des armés.
*
O tempo mais propício para nascer
não era
não é hoje
A Torre da Morte se ergue
já se vê de todos os lugares
não haverá semelhante
Em um círculo, um círculo imensamente amplo
os ciclos acabam
As vítimas estarão lá, sem tardar, presentes.
Simultaneidade sempre tão notável
dos sacrificados e dos armados.
Henri Michaux. Publicação na ZUNÁI - Revista de poesia & debates. Trad. Daniela Osvald Ramos.
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terça-feira, 27 de abril de 2010
Violentíssimo degrau alto que espera pelo pezinho pequeno. Quando crescerá o homem?
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(pendant la nuit),
Beatriz Agulha
Pavana Impura:
1. Tu cabello en sus manos; arde en las manos del vigilante
de la nieve.
Son las cebadas, la siesta de las serpientes y tu cabello en el
pasado.
Abre tus ojos para que yo vea las cebadas blancas: tu cabeza
en las manos del vigilante de la nieve.
* * *
2. Todos los árboles se han puesto a gemir dentro de mi espíritu
al recordar tus bragas en la oscuridad, la luz debajo de tu piel,
tus pétalos vivientes.
Atravesando los aniversarios, a veces viajan las palomas ebrias.
Venga desnuda tu misericordia, ah paloma mortal, hija del
campo.
* * *
3. El mirlo en la incandescencia de tus labios se extingue.
Yo siento en ti grandes heridas y te desnudas en mis fuentes.
Se extingue el mirlo en las alcobas blancas donde soy ciego,
donde, algunas veces, suenan en ti grandes campanas.
* * *
4. Busco tu piel inconfesable, tu piel ungida por la tristeza de las
serpientes; distingo tus asuntos invisibles, el rastro frío del
corazón.
Hubiera visto tu cinta ensangrentada, tu llanto entre cristales
y no tu llaga amarilla,
pero mi sueño vive debajo de tus párpados.
* * *
5. La inexistencia es hueca como las máscaras y su visión es
lívida, pero tú oyes el grito de las madres del agua y acaricias
los ojos que vieron la inexistencia.
* * *
6. Nuestros cuerpos se comprenden cada vez más tristemente,
pero yo amo esta púrpura desolada.
Ah la flor negra de los dormitorios, ah las pastillas del amanecer.
* * *
7. Entra otra vez en las alcobas blancas.
Grandes son las jarras de la tristeza en las manos mortales.
Entra otra vez en las alcobas blancas.
* * *
8. Amor que duras en mis labios:
Hay una miel sin esperanza bajo las hélices y las sombras de las
grandes mujeres y en la agonía del verano baja como mercurio
hasta la llaga azul del corazón.
Amor que duras: llora entre mis piernas,
come la miel sin esperanza.
* * *
9. Ha venido tu lengua; está en mi boca
como una fruta en la melancolía.
Ten piedad en mi boca: liba, lame,
amor mío, la sombra.
* * *
10.Llegan los animales del silencio, pero debajo de tu piel arde la
amapola amarilla, la flor del mar ante los muros calcinados
por el viento y el llanto.
Es la impureza y la piedad, el alimento de los cuerpos
abandonados por la esperanza.
* * *
11. He envejecido dentro de tus ojos; eras la dulzura y el exterminio
y yo amé tu cuerpo en sus frutos nocturnos.
Tu inocencia es como un cuchillo delante de mi rostro,
pero tú pesas en mi corazón y, como una miel oscura, yo te
siento en mis labios al ir hacia la muerte.
* * *
12. Eres como la flor de los agonizantes
que es invisible mas su aroma entra
en la sombra nasal y es la delicia,
todo en la vida, durante algún tiempo.
* * *
13. En la humedad me amas
y eres azul en tus pezones. hablas
suavemente en mis labios y regresas
a tu prisión en la melancolía.
* * *
14. Tu cabello encanece entre mis manos y, como aguas silenciosas,
nos abandonan los recuerdos. siento la frialdad de la existencia
pero tu olor se extiende en las habitaciones y tu lascivia vive en
mi corazón y entra mi pensamiento en tus heridas.
* * *
15. Existe el mar en las ciudades blancas,
coágulos en el aire dulcemente sangriento,
sábanas en la serenidad.
Existen los perfumes inguinales, lenguas en las heridas femeninas
y el corazón está cansado.
Entra con tus campanas en mi casa, pastora ciega, sin embargo,
como si no tuviera la dulzura su fin aún en las ciudades blancas.
De "Libro del frío" 1992.
Antonio Gamoneda
de la nieve.
Son las cebadas, la siesta de las serpientes y tu cabello en el
pasado.
Abre tus ojos para que yo vea las cebadas blancas: tu cabeza
en las manos del vigilante de la nieve.
* * *
2. Todos los árboles se han puesto a gemir dentro de mi espíritu
al recordar tus bragas en la oscuridad, la luz debajo de tu piel,
tus pétalos vivientes.
Atravesando los aniversarios, a veces viajan las palomas ebrias.
Venga desnuda tu misericordia, ah paloma mortal, hija del
campo.
* * *
3. El mirlo en la incandescencia de tus labios se extingue.
Yo siento en ti grandes heridas y te desnudas en mis fuentes.
Se extingue el mirlo en las alcobas blancas donde soy ciego,
donde, algunas veces, suenan en ti grandes campanas.
* * *
4. Busco tu piel inconfesable, tu piel ungida por la tristeza de las
serpientes; distingo tus asuntos invisibles, el rastro frío del
corazón.
Hubiera visto tu cinta ensangrentada, tu llanto entre cristales
y no tu llaga amarilla,
pero mi sueño vive debajo de tus párpados.
* * *
5. La inexistencia es hueca como las máscaras y su visión es
lívida, pero tú oyes el grito de las madres del agua y acaricias
los ojos que vieron la inexistencia.
* * *
6. Nuestros cuerpos se comprenden cada vez más tristemente,
pero yo amo esta púrpura desolada.
Ah la flor negra de los dormitorios, ah las pastillas del amanecer.
* * *
7. Entra otra vez en las alcobas blancas.
Grandes son las jarras de la tristeza en las manos mortales.
Entra otra vez en las alcobas blancas.
* * *
8. Amor que duras en mis labios:
Hay una miel sin esperanza bajo las hélices y las sombras de las
grandes mujeres y en la agonía del verano baja como mercurio
hasta la llaga azul del corazón.
Amor que duras: llora entre mis piernas,
come la miel sin esperanza.
* * *
9. Ha venido tu lengua; está en mi boca
como una fruta en la melancolía.
Ten piedad en mi boca: liba, lame,
amor mío, la sombra.
* * *
10.Llegan los animales del silencio, pero debajo de tu piel arde la
amapola amarilla, la flor del mar ante los muros calcinados
por el viento y el llanto.
Es la impureza y la piedad, el alimento de los cuerpos
abandonados por la esperanza.
* * *
11. He envejecido dentro de tus ojos; eras la dulzura y el exterminio
y yo amé tu cuerpo en sus frutos nocturnos.
Tu inocencia es como un cuchillo delante de mi rostro,
pero tú pesas en mi corazón y, como una miel oscura, yo te
siento en mis labios al ir hacia la muerte.
* * *
12. Eres como la flor de los agonizantes
que es invisible mas su aroma entra
en la sombra nasal y es la delicia,
todo en la vida, durante algún tiempo.
* * *
13. En la humedad me amas
y eres azul en tus pezones. hablas
suavemente en mis labios y regresas
a tu prisión en la melancolía.
* * *
14. Tu cabello encanece entre mis manos y, como aguas silenciosas,
nos abandonan los recuerdos. siento la frialdad de la existencia
pero tu olor se extiende en las habitaciones y tu lascivia vive en
mi corazón y entra mi pensamiento en tus heridas.
* * *
15. Existe el mar en las ciudades blancas,
coágulos en el aire dulcemente sangriento,
sábanas en la serenidad.
Existen los perfumes inguinales, lenguas en las heridas femeninas
y el corazón está cansado.
Entra con tus campanas en mi casa, pastora ciega, sin embargo,
como si no tuviera la dulzura su fin aún en las ciudades blancas.
De "Libro del frío" 1992.
Antonio Gamoneda
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poetas espanhóis
Mas quem da dor jamais o zelo agarrou, quão pouco
saberia ele agarrar ainda com firmeza
do tempo sereno a sua parte? Ele, a quem um deus
corta os bocados da refeição
que o alimenta consumindo. Que ele sofra, tenha...
[Veneza, princípios do Verão de 1912.]
Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Editorial Inova Limitada., pp. 148
saberia ele agarrar ainda com firmeza
do tempo sereno a sua parte? Ele, a quem um deus
corta os bocados da refeição
que o alimenta consumindo. Que ele sofra, tenha...
[Veneza, princípios do Verão de 1912.]
Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Editorial Inova Limitada., pp. 148
Drama Estático Em Um Quadro
O Marinheiro
«Segunda - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar...A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas...Eu era pequena e bárbara...Hoje tenho medo de ter sido...O presente parece-me que durmo...Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém...O mar era grande de mais para fazer pensar nelas...Na vida aquece ser pequeno...Éreis feliz, minha irmã?»
(...)
Terceira - Tenho horror a de aqui a pouco já o dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais...Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura através do mistério de falar...E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...»
Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos 1º Volume. Edições Ática pp 42/43
«Segunda - Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar...A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas...Eu era pequena e bárbara...Hoje tenho medo de ter sido...O presente parece-me que durmo...Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém...O mar era grande de mais para fazer pensar nelas...Na vida aquece ser pequeno...Éreis feliz, minha irmã?»
(...)
Terceira - Tenho horror a de aqui a pouco já o dito o que vos vou dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais...Falo, e penso nisto na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente...Tenho um medo maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta escura através do mistério de falar...E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é isto sem dúvida que sinto?...»
Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos 1º Volume. Edições Ática pp 42/43
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Fernando Pessoa / heterónimos
segunda-feira, 26 de abril de 2010
O poeta dramático
Munido desta chave [...] pode abrir lentamente todas as fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que, como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de sentir.
Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética, Lisboa, s/d, p. 226/227
Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética, Lisboa, s/d, p. 226/227
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Fernando Pessoa / heterónimos
domingo, 25 de abril de 2010
sábado, 24 de abril de 2010
«Lembra-te de como recebeste e ouviste a palavra; guarda-a e arrepende-te.»
«Eu repreendo o castigo aos que amo; sê, pois, zeloso e arrepende-te.»
in Apocalipse (p. 1613; 1614)
«Eu repreendo o castigo aos que amo; sê, pois, zeloso e arrepende-te.»
in Apocalipse (p. 1613; 1614)
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«Nada temas das coisas que hás-de padecer.»
in Apocalipse (p. 1612)
in Apocalipse (p. 1612)
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En soledad. No se siente
En soledad. No se siente
el mundo, que un muro sella;
la lámpara abre su huella
sobre el diván indolente.
Acogida está la frente
al regazo del hastío.
¿Qué ausencia, qué desvarío
a la belleza hizo ajena?
Tu juventud nula, en pena
el blanco papel vacío.
Luis Cernuda
el mundo, que un muro sella;
la lámpara abre su huella
sobre el diván indolente.
Acogida está la frente
al regazo del hastío.
¿Qué ausencia, qué desvarío
a la belleza hizo ajena?
Tu juventud nula, en pena
el blanco papel vacío.
Luis Cernuda
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A UN POETA MUERTO (F.G.L.)
Así como en la roca nunca vemos
La clara flor abrirse,
Entre un pueblo hosco y duro
No brilla hermosamente
El fresco y alto ornato de la vida.
Por esto te mataron, porque eras
Verdor en nuestra tierra árida
Y azul en nuestro oscuro aire.
Leve es la parte de la vida
Que como dioses rescatan los poetas.
El odio y destrucción perduran siempre
Sordamente en la entraña
Toda hiel sempiterna del español terrible,
Que acecha lo cimero
Con su piedra en la mano.
Triste sino nacer
Con algún don ilustre
Aquí, donde los hombres
En su miseria sólo saben
El insulto, la mofa, el recelo profundo
Ante aquel que ilumina las palabras opacas
Por el oculto fuego originario.
La sal de nuestro mundo eras,
Vivo estabas como un rayo de sol,
Y ya es tan sólo tu recuerdo
Quien yerra y pasa, acariciando
El muro de los cuerpos
Con el dejo de las adormideras
Que nuestros predecesores ingirieron
A orillas del olvido.
Si tu ángel acude a la memoria,
Sombras son estos hombres
Que aún palpitan tras las malezas de la tierra;
La muerte se diría
Más viva que la vida
Porque tú estás con ella,
Pasado el arco de tu vasto imperio,
Poblándola de pájaros y hojas
Con tu gracia y tu juventud incomparables.
Aquí la primavera luce ahora.
Mira los radiantes mancebos
Que vivo tanto amaste
Efímeros pasar junto al fulgor del mar.
Desnudos cuerpos bellos que se llevan
Tras de sí los deseos
Con su exquisita forma, y sólo encierran
Amargo zumo, que no alberga su espíritu
Un destello de amor ni de alto pensamiento.
Igual todo prosigue,
Como entonces, tan mágico,
Que parece imposible
La sombra en que has caído.
Mas un inmenso afán oculto advierte
Que su ignoto aguijón tan sólo puede
Aplacarse en nosotros con la muerte,
Como el afán del agua,
A quien no basta esculpirse en las olas,
Sino perderse anónima
En los limbos del mar.
Pero antes no sabías
La realidad más honda de este mundo:
El odio, el triste odio de los hombres,
Que en ti señalar quiso
Por el acero horrible su victoria,
Con tu angustia postrera
Bajo la luz tranquila de Granada,
Distante entre cipreses y laureles,
Y entre tus propias gentes
Y por las mismas manos
Que un día servilmente te halagaran.
Para el poeta la muerte es la victoria;
Un viento demoníaco le impulsa por la vida,
Y si una fuerza ciega
Sin comprensión de amor
Transforma por un crimen
A ti, cantor, en héroe,
Contempla en cambio, hermano,
Cómo entre la tristeza y el desdén
Un poder más magnánimo permite a tus amigos
En un rincón pudrirse libremente.
Tenga tu sombra paz,
Busque otros valles,
Un río donde del viento
Se lleve los sonidos entre juncos
Y lirios y el encanto
Tan viejo de las aguas elocuentes,
En donde el eco como la gloria humana ruede,
Como ella de remoto,
Ajeno como ella y tan estéril.
Halle tu gran afán enajenado
El puro amor de un dios adolescente
Entre el verdor de las rosas eternas;
Porque este ansia divina, perdida aquí en la tierra,
Tras de tanto dolor y dejamiento,
Con su propia grandeza nos advierte
De alguna mente creadora inmensa,
Que concibe al poeta cual lengua de su gloria
Y luego le consuela a través de la muerte.
Luis Cernuda
La clara flor abrirse,
Entre un pueblo hosco y duro
No brilla hermosamente
El fresco y alto ornato de la vida.
Por esto te mataron, porque eras
Verdor en nuestra tierra árida
Y azul en nuestro oscuro aire.
Leve es la parte de la vida
Que como dioses rescatan los poetas.
El odio y destrucción perduran siempre
Sordamente en la entraña
Toda hiel sempiterna del español terrible,
Que acecha lo cimero
Con su piedra en la mano.
Triste sino nacer
Con algún don ilustre
Aquí, donde los hombres
En su miseria sólo saben
El insulto, la mofa, el recelo profundo
Ante aquel que ilumina las palabras opacas
Por el oculto fuego originario.
La sal de nuestro mundo eras,
Vivo estabas como un rayo de sol,
Y ya es tan sólo tu recuerdo
Quien yerra y pasa, acariciando
El muro de los cuerpos
Con el dejo de las adormideras
Que nuestros predecesores ingirieron
A orillas del olvido.
Si tu ángel acude a la memoria,
Sombras son estos hombres
Que aún palpitan tras las malezas de la tierra;
La muerte se diría
Más viva que la vida
Porque tú estás con ella,
Pasado el arco de tu vasto imperio,
Poblándola de pájaros y hojas
Con tu gracia y tu juventud incomparables.
Aquí la primavera luce ahora.
Mira los radiantes mancebos
Que vivo tanto amaste
Efímeros pasar junto al fulgor del mar.
Desnudos cuerpos bellos que se llevan
Tras de sí los deseos
Con su exquisita forma, y sólo encierran
Amargo zumo, que no alberga su espíritu
Un destello de amor ni de alto pensamiento.
Igual todo prosigue,
Como entonces, tan mágico,
Que parece imposible
La sombra en que has caído.
Mas un inmenso afán oculto advierte
Que su ignoto aguijón tan sólo puede
Aplacarse en nosotros con la muerte,
Como el afán del agua,
A quien no basta esculpirse en las olas,
Sino perderse anónima
En los limbos del mar.
Pero antes no sabías
La realidad más honda de este mundo:
El odio, el triste odio de los hombres,
Que en ti señalar quiso
Por el acero horrible su victoria,
Con tu angustia postrera
Bajo la luz tranquila de Granada,
Distante entre cipreses y laureles,
Y entre tus propias gentes
Y por las mismas manos
Que un día servilmente te halagaran.
Para el poeta la muerte es la victoria;
Un viento demoníaco le impulsa por la vida,
Y si una fuerza ciega
Sin comprensión de amor
Transforma por un crimen
A ti, cantor, en héroe,
Contempla en cambio, hermano,
Cómo entre la tristeza y el desdén
Un poder más magnánimo permite a tus amigos
En un rincón pudrirse libremente.
Tenga tu sombra paz,
Busque otros valles,
Un río donde del viento
Se lleve los sonidos entre juncos
Y lirios y el encanto
Tan viejo de las aguas elocuentes,
En donde el eco como la gloria humana ruede,
Como ella de remoto,
Ajeno como ella y tan estéril.
Halle tu gran afán enajenado
El puro amor de un dios adolescente
Entre el verdor de las rosas eternas;
Porque este ansia divina, perdida aquí en la tierra,
Tras de tanto dolor y dejamiento,
Con su propia grandeza nos advierte
De alguna mente creadora inmensa,
Que concibe al poeta cual lengua de su gloria
Y luego le consuela a través de la muerte.
Luis Cernuda
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Dans l'abri-caverne
Je me jette vers toi et il me semble aussi que tu te jettes vers moi
Une force part de nous qui est un feu solide qui nous soude
Et puis il y a aussi une contradiction qui fait que nous ne pouvons nous apercevoir
En face de moi la paroi de craie s'effrite
Il y a des cassures
De longues traces d'outils traces lisses et qui semblent être faites dans de la stéarine
Des coins de cassures sont arrachés par le passage des types de ma pièce
Moi j'ai ce soir une âme qui s'est creusée qui est vide
On dirait qu'on y tombe sans cesse et sans trouver de fond
Et qu'il n'y a rien pour se raccrocher
Ce qui y tombe et qui y vit c'est une sorte d'êtres laids qui me font mal et qui viennent de je ne sais où
Oui je crois qu'ils viennent de la vie d'une sorte de vie qui est dans l'avenir dans l'avenir brut qu'on n'a pu encore cultiver ou élever ou humaniser
Dans ce grand vide de mon âme il manque un soleil il manque ce qui éclaire
C'est aujourd'hui c'est ce soir et non toujours
Heureusement que ce n'est que ce soir
Les autres jours je me rattache à toi
Les autres jours je me console de la solitude et de toutes les horreurs
En imaginant ta beauté
Pour l'élever au-dessus de l'univers extasié
Puis je pense que je l'imagine en vain
Je ne la connais par aucun sens
Ni même par les mots
Et mon goût de la beauté est-il donc aussi vain
Existes-tu mon amour
Ou n'es-tu qu'une entité que j'ai créée sans le vouloir
Pour peupler la solitude
Es-tu une de ces déesses comme celles que les Grecs avaient douées pour moins s'ennuyer
Je t'adore ô ma déesse exquise même si tu n'es que dans mon imagination
Guillaume Apollinaire (1880 - 1918)
Une force part de nous qui est un feu solide qui nous soude
Et puis il y a aussi une contradiction qui fait que nous ne pouvons nous apercevoir
En face de moi la paroi de craie s'effrite
Il y a des cassures
De longues traces d'outils traces lisses et qui semblent être faites dans de la stéarine
Des coins de cassures sont arrachés par le passage des types de ma pièce
Moi j'ai ce soir une âme qui s'est creusée qui est vide
On dirait qu'on y tombe sans cesse et sans trouver de fond
Et qu'il n'y a rien pour se raccrocher
Ce qui y tombe et qui y vit c'est une sorte d'êtres laids qui me font mal et qui viennent de je ne sais où
Oui je crois qu'ils viennent de la vie d'une sorte de vie qui est dans l'avenir dans l'avenir brut qu'on n'a pu encore cultiver ou élever ou humaniser
Dans ce grand vide de mon âme il manque un soleil il manque ce qui éclaire
C'est aujourd'hui c'est ce soir et non toujours
Heureusement que ce n'est que ce soir
Les autres jours je me rattache à toi
Les autres jours je me console de la solitude et de toutes les horreurs
En imaginant ta beauté
Pour l'élever au-dessus de l'univers extasié
Puis je pense que je l'imagine en vain
Je ne la connais par aucun sens
Ni même par les mots
Et mon goût de la beauté est-il donc aussi vain
Existes-tu mon amour
Ou n'es-tu qu'une entité que j'ai créée sans le vouloir
Pour peupler la solitude
Es-tu une de ces déesses comme celles que les Grecs avaient douées pour moins s'ennuyer
Je t'adore ô ma déesse exquise même si tu n'es que dans mon imagination
Guillaume Apollinaire (1880 - 1918)
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Arbre
À Frédéric Boutet.
Tu chantes avec les autres tandis que les phonographes galopent
Où sont les aveugles où s'en sont-ils allés
La seule feuille que j'aie cueillie s'est changée en plusieurs mirages
Ne m'abandonnez pas parmi cette foule de femmes au marché
Ispahan s'est fait un ciel de carreaux émaillés de bleu
Et je remonte avec vous une route aux environs de Lyon
Je n'ai pas oublié le son de la clochette d'un marchand de coco d'autrefois
J'entends déjà le son aigre de cette voix à venir
Du camarade qui se promènera avec toi en Europe
Tout en restant en Amérique
Un enfant
Un veau dépouillé pendu à l'étal
Un enfant
Et cette banlieue de sable autour d'une pauvre ville au fond de l'est
Un douanier se tenait là comme un ange
À la porte d'un misérable paradis
Et ce voyageur épileptique écumait dans la salle d'attente des premières
Engoulevent Blaireau
Et la Taupe-Ariane
Nous avions loué deux coupés dans le transsibérien
Tour à tour nous dormions le voyageur en bijouterie et moi
Mais celui qui veillait ne cachait point un revolver armé
Tu t'es promené à Leipzig avec une femme mince déguisée en homme
Intelligence car voilà ce que c'est qu'une femme intelligente
Et il ne faudrait pas oublier les légendes
Dame-Abonde dans un tramway la nuit au fond d'un quartier désert
Je voyais une chasse tandis que je montais
Et l'ascenseur s'arrêtait à chaque étage
Entre les pierres
Entre les vêtements multicolores de la vitrine
Entre les charbons ardents du marchand de marrons
Entre deux vaisseaux norvégiens amarrés à Rouen
Il y a ton image
Elle pousse entre les bouleaux de la Finlande
Ce beau nègre en acier
La plus grande tristesse
C'est quand tu reçus une carte postale de La Corogne
Le vent vient du couchant
Le métal des caroubiers
Tout est plus triste qu'autrefois
Tous les dieux terrestres vieillissent
L'univers se plaint par ta voix
Et des êtres nouveaux surgissent
Trois par trois
Guillaume Apollinaire (1880 - 1918)
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quinta-feira, 22 de abril de 2010
Três Sonetos
I
[A Raul de Campos]
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concedo.
Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002 ., p.18
[A Raul de Campos]
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concedo.
Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002 ., p.18
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Sensation
Par les soirs bleus d´été, j'irai dans les sentiers,
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l'amour infini me montera dans l'âme,
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - heureux comme avec une femme.
Mars 1870
Arthur Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche., p.108
Picoté par les blés, fouler l'herbe menue:
Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds.
Je laisserai le vent baigner ma tête nue.
Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:
Mais l'amour infini me montera dans l'âme,
Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,
Par la Nature, - heureux comme avec une femme.
Mars 1870
Arthur Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche., p.108
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Carnaval
d
Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa
Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
Tenho máscara carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002., pp.33/4
Aquela falsa e triste semelhança
Entre quem julgo ser e quem eu sou.
Sou a máscara que volve a ser criança,
Mas reconheço, adulto, aonde estou,
Isto não é o Carnaval, nem eu.
Tenho vontade de dormir, e ando.
O que passa, ondeando, em torno meu,
Passa
Dormir, despir-me deste mundo ultraje,
Como quem despe um dominó roubado.
Despir a alma postiça como a um traje.
Tenho máscara carnal do meu destino.
Quase me cansa me cansar. E vou,
Anónimo, menino,
Por meu ser fora à busca de quem sou
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002., pp.33/4
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Depois a trágica retirada para o jazigo ou cova,
E depois o princípio de morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando que faz anos que
morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002
E depois o princípio de morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando que faz anos que
morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002
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quarta-feira, 21 de abril de 2010
A Maria Lionça
«O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via sacra começou na loja do correio.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
Miguel Torga in Contos da Montanha. 7ª. Edição. Gráfica de Coimbra. pp 21-23.
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terça-feira, 20 de abril de 2010
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Era uma vez dois irmãos que partiram para conquistar um lugar no mundo.
No meio do caminho deram com uma grande casa e no letreiro estava escrito que era uma casa de educação e deviam ficar lá sete anos, com a garantia de ficarem educados como deve ser.
«Quero ver o mundo» diz um dos irmãos e seguiu viagem.
«E eu vou para a casa de educação» diz o outro.
«Aqui deve primeiro aprender a estar nas pernas como deve ser. Primeira Posição!» e ele ficou na primeira posição.
«A Palavra é de Prata e o Silêncio é de Ouro» disseram, e ele calou-se para sempre.
«Não deve pensar em si próprio da maneira que se veja. Os olhos só devem olhar para a frente!» e então os olhos passaram só a olhar para a frente.
«Não ponha as pernas assim quando anda» - «É melhor atá-las com uma corda» diz ele e imediatamente foram atadas com cordas.
«Nem os braços devem mover-se assim!» disseram «umas cordas neles também!»
Puxaram então as cordas e ele moveu-se como foi ensinado.
Agora estava educado.
A Educação é aprender a ficar como uma marioneta - parte de uma peça teatral de Hans Christian Andersen.
No meio do caminho deram com uma grande casa e no letreiro estava escrito que era uma casa de educação e deviam ficar lá sete anos, com a garantia de ficarem educados como deve ser.
«Quero ver o mundo» diz um dos irmãos e seguiu viagem.
«E eu vou para a casa de educação» diz o outro.
«Aqui deve primeiro aprender a estar nas pernas como deve ser. Primeira Posição!» e ele ficou na primeira posição.
«A Palavra é de Prata e o Silêncio é de Ouro» disseram, e ele calou-se para sempre.
«Não deve pensar em si próprio da maneira que se veja. Os olhos só devem olhar para a frente!» e então os olhos passaram só a olhar para a frente.
«Não ponha as pernas assim quando anda» - «É melhor atá-las com uma corda» diz ele e imediatamente foram atadas com cordas.
«Nem os braços devem mover-se assim!» disseram «umas cordas neles também!»
Puxaram então as cordas e ele moveu-se como foi ensinado.
Agora estava educado.
A Educação é aprender a ficar como uma marioneta - parte de uma peça teatral de Hans Christian Andersen.
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«Deixa-me ser quem sou», implorou Hans Christian Andersen repetidamente em criança, jovem e adulto.
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Hans Christian Andersen
Tudo Dança
Toca alegremente o Violino.
Tudo Dança! Dou a minha Palavra!
Olha, a Terra gira à volta do Sol,
E a Lua à volta da Terra;
Dançamos todos, uns com os outros,
Até o coração anseia avançar.
E, se o Vinho sobe à cabeça,
Temos a Sala, também, a dançar.
Hans Christian Andersen, 1832
Tudo Dança! Dou a minha Palavra!
Olha, a Terra gira à volta do Sol,
E a Lua à volta da Terra;
Dançamos todos, uns com os outros,
Até o coração anseia avançar.
E, se o Vinho sobe à cabeça,
Temos a Sala, também, a dançar.
Hans Christian Andersen, 1832
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Les poètes
Au siècle qui s'en vient hommes et femmes fortes
Nous lutterons sans maîtres au loin des cités mortes
Sur nous tous les jours le guillotiné d'en haut
Laissera le sang pleuvoir sur nos fronts plus beaux.
Les poètes vont chantant Noël sur les chemins
Célébrant la justice et l'attendant demain
Les fleurs d'antan se sont fanées et l'on n'y pense plus
Et la fleur d'aujourd'hui demain aura vécu.
Mais sur nos cœurs des fleurs séchées fleurs de jadis
Sont toujours là immarcescibles à nos cœurs tristes
Je marcherai paisible vers les pays fameux
Où des gens s'en allaient aux horizons fumeux
Et je verrai les plaines où les canons tonnèrent
Je bercerai mes rêves sur les vastes mers
Et la vie hermétique sera mon désespoir
Et tendre je dirai me penchant vers Elle un soir
Dans le jardin les fleurs attendent que tu les cueilles
Et est-ce pas ? ta bouche attend que je la veuille ?
Ah ! mes lèvres ! sur combien de bouches mes lèvres ont posé
Ne m'en souviendrai plus puisque j'aurai les siennes
Les siennes Vanité ! Les miennes et les siennes
Ah ! sur combien de bouches les lèvres ont posé
Jamais jamais heureux toujours toujours partir
Nos pauvres yeux bornés par les grandes montagnes
Par les chemins pierreux nos pauvres pieds blessés
Là-bas trop [près] du but notre bâton brisé
Et la gourde tarie et la nuit dans les bois
Les effrois et les lèvres l'insomnie et les voix
La voix d'Hérodiade en rut et amoureuse
Mordant les pâles lèvres du Baptiste décollé
Et la voix des hiboux nichés au fond des yeuses
Et l'écho qui rit la voix la voix des en allés
Et la voix de folie et de sang le rire triste
De Macbeth quand il voit au loin la forêt marcher
Et ne songe pas à s'apercevoir des reflets d'or
Soleil des grandes lances des dendrophores
Guillaume Apollinaire
Nous lutterons sans maîtres au loin des cités mortes
Sur nous tous les jours le guillotiné d'en haut
Laissera le sang pleuvoir sur nos fronts plus beaux.
Les poètes vont chantant Noël sur les chemins
Célébrant la justice et l'attendant demain
Les fleurs d'antan se sont fanées et l'on n'y pense plus
Et la fleur d'aujourd'hui demain aura vécu.
Mais sur nos cœurs des fleurs séchées fleurs de jadis
Sont toujours là immarcescibles à nos cœurs tristes
Je marcherai paisible vers les pays fameux
Où des gens s'en allaient aux horizons fumeux
Et je verrai les plaines où les canons tonnèrent
Je bercerai mes rêves sur les vastes mers
Et la vie hermétique sera mon désespoir
Et tendre je dirai me penchant vers Elle un soir
Dans le jardin les fleurs attendent que tu les cueilles
Et est-ce pas ? ta bouche attend que je la veuille ?
Ah ! mes lèvres ! sur combien de bouches mes lèvres ont posé
Ne m'en souviendrai plus puisque j'aurai les siennes
Les siennes Vanité ! Les miennes et les siennes
Ah ! sur combien de bouches les lèvres ont posé
Jamais jamais heureux toujours toujours partir
Nos pauvres yeux bornés par les grandes montagnes
Par les chemins pierreux nos pauvres pieds blessés
Là-bas trop [près] du but notre bâton brisé
Et la gourde tarie et la nuit dans les bois
Les effrois et les lèvres l'insomnie et les voix
La voix d'Hérodiade en rut et amoureuse
Mordant les pâles lèvres du Baptiste décollé
Et la voix des hiboux nichés au fond des yeuses
Et l'écho qui rit la voix la voix des en allés
Et la voix de folie et de sang le rire triste
De Macbeth quand il voit au loin la forêt marcher
Et ne songe pas à s'apercevoir des reflets d'or
Soleil des grandes lances des dendrophores
Guillaume Apollinaire
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Tristesse d'une étoile
Une belle Minerve est l'enfant de ma tête
Une étoile de sang me couronne à jamais
La raison est au fond et le ciel est au faîte
Du chef où dès longtemps Déesse tu t'armais
C'est pourquoi de mes maux ce n'était pas le pire
Ce trou presque mortel et qui s'est étoilé
Mais le secret malheur qui nourrit mon délire
Est bien plus grand qu'aucune âme ait jamais celé
Et je porte avec moi cette ardente souffrance
Comme le ver luisant tient son corps enflammé
Comme au cœur du soldat il palpite la France
Et comme au cœur du lys le pollen parfumé
Guillaume Apollinaire
Une étoile de sang me couronne à jamais
La raison est au fond et le ciel est au faîte
Du chef où dès longtemps Déesse tu t'armais
C'est pourquoi de mes maux ce n'était pas le pire
Ce trou presque mortel et qui s'est étoilé
Mais le secret malheur qui nourrit mon délire
Est bien plus grand qu'aucune âme ait jamais celé
Et je porte avec moi cette ardente souffrance
Comme le ver luisant tient son corps enflammé
Comme au cœur du soldat il palpite la France
Et comme au cœur du lys le pollen parfumé
Guillaume Apollinaire
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quarta-feira, 14 de abril de 2010
136
Eu não serei eu, morte,
até que te unas com a minha vida
e assim me completes todo;
até que a minha metade de luz se feche
com minha metade de sombra
- e eu seja equilíbrio eterno
no espírito do mundo:
umas vezes, meu meio eu, radiante;
outras, meu outro meio eu, no esquecimento.-
Eu não serei eu, morte,
até que tu, em teu labor, vistas
de ossos pálidos minha alma.
Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 122
até que te unas com a minha vida
e assim me completes todo;
até que a minha metade de luz se feche
com minha metade de sombra
- e eu seja equilíbrio eterno
no espírito do mundo:
umas vezes, meu meio eu, radiante;
outras, meu outro meio eu, no esquecimento.-
Eu não serei eu, morte,
até que tu, em teu labor, vistas
de ossos pálidos minha alma.
Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 122
133
Quero dormir, esta noite
que tu estás morto; dormir;
dormir, dormir paralela-
mente ao teu sono completo;
a ver se te alcanço assim!
Dormir, aurora da tarde;
fonte do rio, dormir;
dois dias que brilhem juntos
no nada, duas correntes
que cheguem juntas ao fim;
dois todos, se é algo isto;
dois nadas, se tudo é nada...
Quero dormir teu morrer!
Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 120
que tu estás morto; dormir;
dormir, dormir paralela-
mente ao teu sono completo;
a ver se te alcanço assim!
Dormir, aurora da tarde;
fonte do rio, dormir;
dois dias que brilhem juntos
no nada, duas correntes
que cheguem juntas ao fim;
dois todos, se é algo isto;
dois nadas, se tudo é nada...
Quero dormir teu morrer!
Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 120
terça-feira, 13 de abril de 2010
Dois Sonetos Morais à Crítica Lusitana de Poesia e à Mesma Poesia em Relação com aquela Crítica, e referentes ao ano de 1970 da Salvação do Mundo
1
Surdos a versos, só do tururum
da banza pinicada vos sentis
molhados entre as pernas. Ou fingis
que imagens e metáforas zunzuns
sem pés e sem cabeça ou piço algum
vos dão na verborreia o que o nariz
de música não saber ser juiz.
E delicados logo uivais se algum
verso mais limpo do que as vossas cuecas,
mais nu de inventos do que de existência,
mais nobre que cantiga de pilecas,
se encrava abrupto na flatulência
de vossas tão francesas bibliotecas.
Ou vos descobre o horror de haver consciência.
2
De cu pró ar contando os sons concretos,
ou co'a mão esquerda em realistas pívias,
ou de tutu e em pontas académicas,
ou boca aberta língua e lábios prontos
a provocar na goela surrealista
toda a tesão dos deuses palavrosos,
os lusos da poesia se preparam
sob as visitas simpáticas da PIDE
que já PIDE não é no nome apenas.
E porque os prelos como putas abrem
a quem lhes paga mesmo mal, as pernas,
às vezes parem livros que os Gaspões
e os outros muitos à semana lambem,
buscando com ardor a esporra seca neles.
Dezembro de 1970
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; pp. 71/2
Surdos a versos, só do tururum
da banza pinicada vos sentis
molhados entre as pernas. Ou fingis
que imagens e metáforas zunzuns
sem pés e sem cabeça ou piço algum
vos dão na verborreia o que o nariz
de música não saber ser juiz.
E delicados logo uivais se algum
verso mais limpo do que as vossas cuecas,
mais nu de inventos do que de existência,
mais nobre que cantiga de pilecas,
se encrava abrupto na flatulência
de vossas tão francesas bibliotecas.
Ou vos descobre o horror de haver consciência.
2
De cu pró ar contando os sons concretos,
ou co'a mão esquerda em realistas pívias,
ou de tutu e em pontas académicas,
ou boca aberta língua e lábios prontos
a provocar na goela surrealista
toda a tesão dos deuses palavrosos,
os lusos da poesia se preparam
sob as visitas simpáticas da PIDE
que já PIDE não é no nome apenas.
E porque os prelos como putas abrem
a quem lhes paga mesmo mal, as pernas,
às vezes parem livros que os Gaspões
e os outros muitos à semana lambem,
buscando com ardor a esporra seca neles.
Dezembro de 1970
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; pp. 71/2
O poeta delicado de ascendência humilde
foi sempre um cão batido e se não fosse
viveria mais infeliz ainda por não ser
o cão batido. É bom no fundo, amigo, leal, o dedicado.
Mas, nas entrelinhas dos sorrisos dele,
há sempre um rosnar doce de contida inveja:
é que outros a quem batem são leões ou alifantes,
porém não cães batidos. E não nasceram
nas palhas da província, embora se não escolha
onde se nasce para cão batido.
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.97
foi sempre um cão batido e se não fosse
viveria mais infeliz ainda por não ser
o cão batido. É bom no fundo, amigo, leal, o dedicado.
Mas, nas entrelinhas dos sorrisos dele,
há sempre um rosnar doce de contida inveja:
é que outros a quem batem são leões ou alifantes,
porém não cães batidos. E não nasceram
nas palhas da província, embora se não escolha
onde se nasce para cão batido.
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.97
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Comédie de la Soif / 1. Les Parents
Nous sommes tes Grand-Parents
Les Grands!
Couverts des froides sueurs
De la lune et des verdures.
Nos vins secs avaient du coeur!
Au soleil sans imposture
Que faut-il à l'homme? boire.
Moi - Mourrir aux fleuves barbares.
Nous sommes tes Grand-Parents
Des champs.
L'eau est au fond des osiers:
Vois le courant du fossé
Autour du Château mouillé.
Descendons en nos celliers;
Après, le cidre et le lait.
Moi - Aller où boivent les vaches
Nous sommes tes Grand-Parents;
Tiens, prends
Les liqueurs dans nos armoires
Le Thé, le Café, si rares,
Frémissent dans les bouilloires.
- Vois les images, les fleus.
Nous rentrons du cimetière.
Moi - Ah! tarir toutes les urnes!
Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche. pp. 232.
Les Grands!
Couverts des froides sueurs
De la lune et des verdures.
Nos vins secs avaient du coeur!
Au soleil sans imposture
Que faut-il à l'homme? boire.
Moi - Mourrir aux fleuves barbares.
Nous sommes tes Grand-Parents
Des champs.
L'eau est au fond des osiers:
Vois le courant du fossé
Autour du Château mouillé.
Descendons en nos celliers;
Après, le cidre et le lait.
Moi - Aller où boivent les vaches
Nous sommes tes Grand-Parents;
Tiens, prends
Les liqueurs dans nos armoires
Le Thé, le Café, si rares,
Frémissent dans les bouilloires.
- Vois les images, les fleus.
Nous rentrons du cimetière.
Moi - Ah! tarir toutes les urnes!
Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche. pp. 232.
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domingo, 11 de abril de 2010
A Dama do Unicórnio, por Rafael
Julgou Saint-Simon ver neste quadro uma confissão herética. O unicórnio, o narval, a pérola obscena do medalhão que parece ser uma fera, e o olhar terrivelmente fixo de Madalena Strozzi num ponto em que se desenrolariam cenas lascivas ou de flagelação: Rafael Sanzio mentiu aqui a sua mais terrível verdade.
A intensa cor verde do rosto da personagem atribuiu-se durante muito tempo a gangrena ou ao solstício da Primavera. Animal fálico, o unicórnio tê-la-ia contaminado: no seu corpo dormem os pecados do mundo. Viu-se depois que bastava levantar as falsas camadas de tinta colocadas por três acérrimos inimigos de Rafael: Carlos Hog, Vincent Grosjean, dito o Mármore, e Ruben o Velho. A primeira camada era verde, verde a segunda, era branca a terceira. Não é difícil vislumbrar aqui o tríplice símbolo da mortal falena, que une ao corpo cadavérico umas asas que a confundem com as folhas de uma rosa. Quantas vezes Madalena Strozzi cortou uma rosa branca, sentiu-a gemer entre os dedos, retorcer-se e gemer debilmente como uma pequena borboleta ou um daqueles lagartos que cantam como as liras quando se lhes mostra um espelho. Já era tarde, a falena tê-la-ia picado: Rafael soube, sentiu que ela estava a morrer. Para poder pintá-la com veracidade, agregou o unicórnio, símbolo de castidade, simultaneamente cordeiro e narval, que bebe pela mão de uma virgem. Mas pintava a falena na sua imagem, e este unicórnio mata a senhora, penetra no seu seio majestoso com o corno ornado de impudicícia, repete a operação de todos os princípios. O que esta mulher sustém nas mãos é a misteriosa taça de que sem saber bebemos, a sede que acalmamos noutras bocas, o vinho vermelho e lácteo donde saem as estrelas, os vermes e as estações ferroviárias.
Julio Cortázar in Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.18
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diante do mar
diante do mar
antevejo as planícies místicas de outubro,
quando o vento trás o travo das gaivotas
à boca semeada das papoilas da primavera
é verdade, há um caminho secreto que conduz,
através dos verdes campos de maio,
à casa que, regada do incêndio do verão
mostra em outubro que, depois da bucólica infância
das imagens, vem sempre o espaço do poema:
o olhar que distende o movimento da mão conduz
à casa a casa a casa a casa
a conciliação dos trabalhos da mão
com o perfume do silêncio
então, antevejo:
o poema é a mão que corrige o olho,
que antecipa a eternidade
sou o caminho dessa mão
que antevê o cálculo
do marinheiro que manobra
o astrolábio da canção
essa mão é todo o corpo do poema
a mão que distende o travo das manhãs pela paisagem
e mantém sempre todo o silêncio junto ao peito,
a mão que escreve as marés as marés as marés
e trás a lua a lua a lua para o olho,
e trás a lua condenada pela carne e pelo sal
à degustação das parábolas
entretanto,
o gosto progride, como um segredo
a mão promove uma lenta infância que se alarga,
um caminho através do poema, que
não teme a derrocada das casas, que
promove o anseio salubre que
as planícies infundem no rosto da criança
adormecida
sabe-se que
diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio
Luís Felício
antevejo as planícies místicas de outubro,
quando o vento trás o travo das gaivotas
à boca semeada das papoilas da primavera
é verdade, há um caminho secreto que conduz,
através dos verdes campos de maio,
à casa que, regada do incêndio do verão
mostra em outubro que, depois da bucólica infância
das imagens, vem sempre o espaço do poema:
o olhar que distende o movimento da mão conduz
à casa a casa a casa a casa
a conciliação dos trabalhos da mão
com o perfume do silêncio
então, antevejo:
o poema é a mão que corrige o olho,
que antecipa a eternidade
sou o caminho dessa mão
que antevê o cálculo
do marinheiro que manobra
o astrolábio da canção
essa mão é todo o corpo do poema
a mão que distende o travo das manhãs pela paisagem
e mantém sempre todo o silêncio junto ao peito,
a mão que escreve as marés as marés as marés
e trás a lua a lua a lua para o olho,
e trás a lua condenada pela carne e pelo sal
à degustação das parábolas
entretanto,
o gosto progride, como um segredo
a mão promove uma lenta infância que se alarga,
um caminho através do poema, que
não teme a derrocada das casas, que
promove o anseio salubre que
as planícies infundem no rosto da criança
adormecida
sabe-se que
diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio
Luís Felício
campânulas
I
campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro
as mãos de vidro
e a infância,
(dentro das casas
de vidro os meus lábios)
o vento norte entre
a espada e a parede
e a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio
e, de vidro a boca pouca louca
para tanta água
de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue/
do texto
o palimpsesto das mãos
enredadas no odor
no poema, isto é
, a pele à tangente do perfume
e os lábios postos
sobre, muros, a letra a lâmina
tão precisas na melodia
a voz tangida no leito da pedra
de vidro
o poeta, isto é
, ser um rio
e ver tudo a partir
do interior do sangue
e também depois o gesto de acompanhar as sebes
à transparência de um eco
hermes olhando os quintais
hermes caído sobre olhos de barro dos animais
todo o rubro desaire do epifonema, a canção
a boca sempre tão próxima do silêncio
(o lábio dedilhado o cume dos ulmeiros
em noites)
II
campânulas, os poemas, lentíssimas casas de ar
essa mínima raiz do inverno
transparente ciência infusa,
o gesto puro e simples de tocar
alguém com um nome, assim
e brilha também ao alto
o sangue a linfa a lava
nos coágulos silábicos do texto
enquanto na extremidade mais porosa da memória
um anjo estremece dentro da madeira
uma ave-campânula semeada em chão de página
é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica
toda a sintaxe erguida
a partir
do mármore, do sal, da prata
ciência sonora do sangue
o fundo poder de adivinhar e dizer
por palavra
o eco dos olhos na pureza do leito
e gesto de respirar a prumo
o aprumo
dos nomes
quero as suas vogais de silêncio
o modo como são de vidro
quando tocados,
(como os teus lábios,- agora)
III
campânulas,
os nomes
o som que fazem,-
a face que dão
e como me comovem os dedos-
ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo, todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso,-pele a pele-
os nomes o oculto labor de adivinhar
por gesto
o oculto gesto de escrever
o eco dos olhos sobre o vidro
e, de vidro, depois, de vidro a música; / duvido
de vidro, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica
não há outra forma
senão (com) a mão
lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico
IV
os (pro)nomes agora
como (?)
espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens
(porque) é uma confiança cega, o ritmo, o coração
é assim que se perde finalmente um rosto
e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"
e senta-se (-se) assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento
(os pronomes, também o gesto
de te dar os meus lábios à distância
de um eco)
o gesto de te dar um nome sem nome
(o gesto de te dar o nome com te olho)
V
são gestos as palavras
(e como eu amo esses rostos de estanho)
os nomes, por eles
convoca-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo
e entrou solícito no leito do perfume
os nomes
escreve-se o leito do odor o peso da mão
o eco do rosto contíguo a muros
escreve-se e não se lamenta nenhum espelho
os nomes
atravessa-se sempre a água só de a respirar
e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso
"do mundo", pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó
pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer
acredita-se no puro movimento das palavras,
como se
incêndios de aves rodeassem
in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano
e, mente o tímpano que ouve a/à distância
"todo o anjo é terrível"
a mão no perímetro órfico
os nomes: todo o amor por fazer
e descobre-se subitamente que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas
para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar a mão, os lábios
rumo à cega floração do sal
é no centro da mão que vejo nos nomes
a cegueira começando a florescer,
(mas não hermeneuicamente)
VI
campânulas os poemas assim escritos
no contágio de
lume ave âmbar ar
o movimento da boca nos nomes
o sucinto peso lúbrico
e depois o seráfico olhar dos nomes,
como se não fossem já
a boca já antes do gesto dentro
do leito da pedra
e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor
sim, corpos, gestos: o odor deslocado no sopro
mãos depois, mãos: o odor colhido nos leitos
sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos
vidro escrito sobre vidro,escrito
apesar de tudo e de nada
"no mundo"
VII
começa-se sempre por querer
sem saber
eco e narciso ( é a única verdadeira
história de amor)
(peito repetindo as ondas do mar)
o impossível
as mãos aflitas
sobre a roupa
(des)atentas ao perfume
a semente desatada no gesto de te tocar os olhos
por detrás do vidro
(os teus, que são tão belos)
e no poema, a louca lunação dos nomes
a boca sempre debruçada sobre o aroma
nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som
(a forma como o ar oferece o seu corpo
hoc est enim corpus meum)
nunca houve outra palavra.
Luís Felício
campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro
as mãos de vidro
e a infância,
(dentro das casas
de vidro os meus lábios)
o vento norte entre
a espada e a parede
e a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio
e, de vidro a boca pouca louca
para tanta água
de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue/
do texto
o palimpsesto das mãos
enredadas no odor
no poema, isto é
, a pele à tangente do perfume
e os lábios postos
sobre, muros, a letra a lâmina
tão precisas na melodia
a voz tangida no leito da pedra
de vidro
o poeta, isto é
, ser um rio
e ver tudo a partir
do interior do sangue
e também depois o gesto de acompanhar as sebes
à transparência de um eco
hermes olhando os quintais
hermes caído sobre olhos de barro dos animais
todo o rubro desaire do epifonema, a canção
a boca sempre tão próxima do silêncio
(o lábio dedilhado o cume dos ulmeiros
em noites)
II
campânulas, os poemas, lentíssimas casas de ar
essa mínima raiz do inverno
transparente ciência infusa,
o gesto puro e simples de tocar
alguém com um nome, assim
e brilha também ao alto
o sangue a linfa a lava
nos coágulos silábicos do texto
enquanto na extremidade mais porosa da memória
um anjo estremece dentro da madeira
uma ave-campânula semeada em chão de página
é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica
toda a sintaxe erguida
a partir
do mármore, do sal, da prata
ciência sonora do sangue
o fundo poder de adivinhar e dizer
por palavra
o eco dos olhos na pureza do leito
e gesto de respirar a prumo
o aprumo
dos nomes
quero as suas vogais de silêncio
o modo como são de vidro
quando tocados,
(como os teus lábios,- agora)
III
campânulas,
os nomes
o som que fazem,-
a face que dão
e como me comovem os dedos-
ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo, todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso,-pele a pele-
os nomes o oculto labor de adivinhar
por gesto
o oculto gesto de escrever
o eco dos olhos sobre o vidro
e, de vidro, depois, de vidro a música; / duvido
de vidro, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica
não há outra forma
senão (com) a mão
lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico
IV
os (pro)nomes agora
como (?)
espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens
(porque) é uma confiança cega, o ritmo, o coração
é assim que se perde finalmente um rosto
e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"
e senta-se (-se) assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento
(os pronomes, também o gesto
de te dar os meus lábios à distância
de um eco)
o gesto de te dar um nome sem nome
(o gesto de te dar o nome com te olho)
V
são gestos as palavras
(e como eu amo esses rostos de estanho)
os nomes, por eles
convoca-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo
e entrou solícito no leito do perfume
os nomes
escreve-se o leito do odor o peso da mão
o eco do rosto contíguo a muros
escreve-se e não se lamenta nenhum espelho
os nomes
atravessa-se sempre a água só de a respirar
e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso
"do mundo", pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó
pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer
acredita-se no puro movimento das palavras,
como se
incêndios de aves rodeassem
in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano
e, mente o tímpano que ouve a/à distância
"todo o anjo é terrível"
a mão no perímetro órfico
os nomes: todo o amor por fazer
e descobre-se subitamente que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas
para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar a mão, os lábios
rumo à cega floração do sal
é no centro da mão que vejo nos nomes
a cegueira começando a florescer,
(mas não hermeneuicamente)
VI
campânulas os poemas assim escritos
no contágio de
lume ave âmbar ar
o movimento da boca nos nomes
o sucinto peso lúbrico
e depois o seráfico olhar dos nomes,
como se não fossem já
a boca já antes do gesto dentro
do leito da pedra
e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor
sim, corpos, gestos: o odor deslocado no sopro
mãos depois, mãos: o odor colhido nos leitos
sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos
vidro escrito sobre vidro,escrito
apesar de tudo e de nada
"no mundo"
VII
começa-se sempre por querer
sem saber
eco e narciso ( é a única verdadeira
história de amor)
(peito repetindo as ondas do mar)
o impossível
as mãos aflitas
sobre a roupa
(des)atentas ao perfume
a semente desatada no gesto de te tocar os olhos
por detrás do vidro
(os teus, que são tão belos)
e no poema, a louca lunação dos nomes
a boca sempre debruçada sobre o aroma
nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som
(a forma como o ar oferece o seu corpo
hoc est enim corpus meum)
nunca houve outra palavra.
Luís Felício
«-Explique-me só, nosso cabo, o que quer isto dizer! O que é que o homem bebeu?
Ninguém respondia.
-Quem costuma dormir na caserna dele?
-Eu, messargento!Eu, Blemaque François do Terceiro! Nunca o vi assim...Há dois anos que está na minha esquadra...Para mais e não para menos. Nunca o vi assim...
-Muito bem! Belíssima resposta, ó Blemaque.
Vai daí levanta-se toda tesa, a sentinela, ainda a franzir os olhos, olha para nós e dá um grito de verdadeiro susto, um rasgar de todo o corpo que nunca mais acaba...E volta a cair, desaba no tabique e recomeça com mais gemidos, aos solavancos.
Todo o posto se junta à volta, por cima dela, a discutir.
O Rancotte impõe silêncio.
- Olhem-me só estas caretas! Mas este urso imundo o que é que me bebeu? É lá possível que seja do bagaço! Só vinagre, só uma mistela! Só um veneno! Ainda se me fina, a alimária!
Realmente não era nada agradável ver a sentinela, não tranquilizava nada a maneira de ela se crispar, de sufocar na palha. Era medonho.
Já ninguém se atrevia a tocar-lhe.
Mas o Rancotte, esse chateou-se.
-É só comédia! Merda! Quero lá saber! A minha garrafa, ó porco! Que fizeste dela? Estás-me a ouvir, vadio?
Fazia-lhe a pergunta mas o outro continuava em convulsões e a estertorar, cada vez mais bravio.
-Costuma dar-lhe a epiléptica, o «mal-sagrado»? - pergunta assim o Lambelluch. E depois mete-se em pormenores, em raciocínios.
-O Bastien, que era alfaiate no Três...Aquele Arthur que esteve no P.H.R., depois...dava-lhe a coisa dentro da língua...era aqui dois anos mais velho que eu...e quando aquilo lhe dava...Mordia-a toda, à dentada...até lhe vi bocados soltos...Tenho que a pôr de fora, dizia-me ele...Quando me dá, tenho de pô-la cá fora!...E eu punha-la, com ajuda de um garfo...O Arthur Bastien...Desatava a andar à volta, todo zonzo...Chupava-me, aquela língua...Enfiava-a toda até ao fundo.»
Louis-Ferdinand Céline in De Três Em Pipa. Trad. de Aníbal Fernandes. Colecção Gato Maltês. Assírio&Alvim, 1985., pp. 86/7
Ninguém respondia.
-Quem costuma dormir na caserna dele?
-Eu, messargento!Eu, Blemaque François do Terceiro! Nunca o vi assim...Há dois anos que está na minha esquadra...Para mais e não para menos. Nunca o vi assim...
-Muito bem! Belíssima resposta, ó Blemaque.
Vai daí levanta-se toda tesa, a sentinela, ainda a franzir os olhos, olha para nós e dá um grito de verdadeiro susto, um rasgar de todo o corpo que nunca mais acaba...E volta a cair, desaba no tabique e recomeça com mais gemidos, aos solavancos.
Todo o posto se junta à volta, por cima dela, a discutir.
O Rancotte impõe silêncio.
- Olhem-me só estas caretas! Mas este urso imundo o que é que me bebeu? É lá possível que seja do bagaço! Só vinagre, só uma mistela! Só um veneno! Ainda se me fina, a alimária!
Realmente não era nada agradável ver a sentinela, não tranquilizava nada a maneira de ela se crispar, de sufocar na palha. Era medonho.
Já ninguém se atrevia a tocar-lhe.
Mas o Rancotte, esse chateou-se.
-É só comédia! Merda! Quero lá saber! A minha garrafa, ó porco! Que fizeste dela? Estás-me a ouvir, vadio?
Fazia-lhe a pergunta mas o outro continuava em convulsões e a estertorar, cada vez mais bravio.
-Costuma dar-lhe a epiléptica, o «mal-sagrado»? - pergunta assim o Lambelluch. E depois mete-se em pormenores, em raciocínios.
-O Bastien, que era alfaiate no Três...Aquele Arthur que esteve no P.H.R., depois...dava-lhe a coisa dentro da língua...era aqui dois anos mais velho que eu...e quando aquilo lhe dava...Mordia-a toda, à dentada...até lhe vi bocados soltos...Tenho que a pôr de fora, dizia-me ele...Quando me dá, tenho de pô-la cá fora!...E eu punha-la, com ajuda de um garfo...O Arthur Bastien...Desatava a andar à volta, todo zonzo...Chupava-me, aquela língua...Enfiava-a toda até ao fundo.»
Louis-Ferdinand Céline in De Três Em Pipa. Trad. de Aníbal Fernandes. Colecção Gato Maltês. Assírio&Alvim, 1985., pp. 86/7
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quarta-feira, 7 de abril de 2010
Casi juicio final
Mi callejero no hacer nada vive y se suelta por la variedad de la noche.
La noche es una fiesta larga y sola.
En mi secreto corazón yo me justifico y ensalzo:
He atestiguado el mundo; he confesado la rareza del mundo.
He cantado lo eterno: clara luna volvedora y las mejillas que apetece el amor.
He conmemorado con versos las ciudad que me ciñe y los arrabales que me desgarran.
He dicho asombro donde otros dicen solamente costumbre.
A los antepasados de mi sangre y a los antepasados de mis sueños he exaltado y
cantado.
He sido y soy.
He trabado en firmes palabras mi sentimiento que pudo haberse disipado en ternura.
El recuerdo de una antigua vileza vuelve a mi corazón.
Como el caballo muerto que la marea inflige en la playa, vuelve a mi corazón.
Aún están a mi lado, sin embargo, las calles y la luna.
El agua sigue siendo dulce en mi boca y las estrofas no me niegan su gracia.
Siento el pavor de la belleza; ¿quién se atreverá a condenarme si esta gran luna de mi
soledad me perdona?
Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p. 19.
La noche es una fiesta larga y sola.
En mi secreto corazón yo me justifico y ensalzo:
He atestiguado el mundo; he confesado la rareza del mundo.
He cantado lo eterno: clara luna volvedora y las mejillas que apetece el amor.
He conmemorado con versos las ciudad que me ciñe y los arrabales que me desgarran.
He dicho asombro donde otros dicen solamente costumbre.
A los antepasados de mi sangre y a los antepasados de mis sueños he exaltado y
cantado.
He sido y soy.
He trabado en firmes palabras mi sentimiento que pudo haberse disipado en ternura.
El recuerdo de una antigua vileza vuelve a mi corazón.
Como el caballo muerto que la marea inflige en la playa, vuelve a mi corazón.
Aún están a mi lado, sin embargo, las calles y la luna.
El agua sigue siendo dulce en mi boca y las estrofas no me niegan su gracia.
Siento el pavor de la belleza; ¿quién se atreverá a condenarme si esta gran luna de mi
soledad me perdona?
Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p. 19.
Calle con almacén rosado
Ya se le van los ojos a la noche en cada bocacalle
y es como una sequía husmeando lluvia.
Ya todos los caminos están cerca,
y hasta el camino del milagro.
El viento trae el alba entorpecida.
El alba es nuestro miedo de hacer cosas distintas y se nos viene encima.
Toda la santa noche he caminado
y su inquietud me deja
en esta calle que es cualquiera.
Aquí otra vez la seguridad de la llanura
en el horizonte
y el terreno baldío que se deshace en yuyos y alambres
y el almacén tan claro como la luna nueva de ayer tarde.
Es familiar como un recuerdo la esquina
con esos largos zócalos y la promesa de un patio.
¡Qué lindo atestiguarte, calle de siempre, ya que te miraron tan pocas cosas mis días!
Ya la luz raya el aire.
Mis años recorrieron los caminos de la tierra y del agua
y sólo a vos te siento, calle dura y rosada.
Pienso si tus paredes concibieron la aurora,
almacén que en la punta de la noche eres claro.
Pienso y se me hace voz ante las casas
la confesión de mi pobreza:
no he mirado los ríos ni la mar ni la sierra,
pero intimó conmigo la luz de Buenos Aires
y yo forjo los versos de mi vida y mi muerte con esa luz de calle.
Calle grande y sufrida,
eres la única música de que sabe mi vida.
Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p.7
y es como una sequía husmeando lluvia.
Ya todos los caminos están cerca,
y hasta el camino del milagro.
El viento trae el alba entorpecida.
El alba es nuestro miedo de hacer cosas distintas y se nos viene encima.
Toda la santa noche he caminado
y su inquietud me deja
en esta calle que es cualquiera.
Aquí otra vez la seguridad de la llanura
en el horizonte
y el terreno baldío que se deshace en yuyos y alambres
y el almacén tan claro como la luna nueva de ayer tarde.
Es familiar como un recuerdo la esquina
con esos largos zócalos y la promesa de un patio.
¡Qué lindo atestiguarte, calle de siempre, ya que te miraron tan pocas cosas mis días!
Ya la luz raya el aire.
Mis años recorrieron los caminos de la tierra y del agua
y sólo a vos te siento, calle dura y rosada.
Pienso si tus paredes concibieron la aurora,
almacén que en la punta de la noche eres claro.
Pienso y se me hace voz ante las casas
la confesión de mi pobreza:
no he mirado los ríos ni la mar ni la sierra,
pero intimó conmigo la luz de Buenos Aires
y yo forjo los versos de mi vida y mi muerte con esa luz de calle.
Calle grande y sufrida,
eres la única música de que sabe mi vida.
Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p.7
O Papalagui tornou Deus mais pobre
«O Papalagui tem uma maneira de pensar particularmente confusa. Está sempre a ver como é isto ou aquilo lhe poderá ser útil ou dar-lhe certos direitos. Não se preocupa em pensar nos homens em geral, mas apenas num, o qual acaba sempre por ser ele próprio.
Quando um homem diz: «A minha cabeça é minha e de mais ninguém!» tem razão, tem muita razão, e contra isso ninguém terá nada a objectar. Aquele a quem uma mão pertence, será quem mais direitos tem sobre ela. Até aqui estou de acordo com o Papalagui. Mas ele também diz: « A palmeira é minha!», só porque ela cresce, por acaso, diante a sua cabana. Como se tivesse sido ele a fazê-la crescer! Nunca a palmeira poderá pertencer-lhe, nunca! A palmeira é a mão que Deus nos estende, através da terra; Deus tem muitas mãos. Cada árvore, cada erva, o mar, o céu e as nuvens são outras tantas mãos de Deus. Podemos tocar-lhes e regozijar-nos com isso, mas lá por isso não temos o direito de dizer: «A mão de Deus é a minha mão!» No entanto é isso o que o Papalagui faz.»
O Papalagui. Discursos de Tuiavii Chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Recolhidos por Erich Scheurmann. Trad. Luiza Neto Jorge. 2ª. edição. Edições Antígona. Lisboa, 1983., pp.71
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