Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul,
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica!
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros,
como máquinas verdes;
As paisagens também não se transformam!
Não cai neve vermelha!
Não há flores que voem!
A lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua!
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são homens!
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação!
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos;
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigaram-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano,
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte!
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer, com teu sorriso
onde há um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã!
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela!»
E virias, depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a morte, ainda menina, no meu colo!
Maio, 1931
José Gomes Ferreira in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 312/13
sábado, 15 de março de 2014
quinta-feira, 13 de março de 2014
Passei a vida a amar e a esquecer...
Florbela Espanca. Antologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 164
(...)
«E eu oiço a Noite imensa soluçar!
E eu oiço soluçar a Noite escura!
Porque és assim tão escura, assim tão
[triste?!
É que, talvez, ó Noite, em ti existe
Uma saudade igual à que eu contenho!
Saudade que eu nem sei donde me vem...
Talvez de ti, ó Noite!...Ou de ninguém!...
Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!!»
Florbela Espanca. Antologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 162
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As lágrimas interiores choradas
Irene Lisboa. Antologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 159
barregã
nome feminino
antiquado pessoa que mantém uma relação amorosa com outra com a qual não é casada; amante, concubina, amásia
«E isto é a Conde Redondo em dia de todo o ano: uma rua empinada que leva à cadeia e ao manicómio Miguel Bombarda, a casas de passe, a quartéis e ao mais que há e não se vê. Boa merda tudo aquilo. O mundo é um grandessíssimo cadáver com moscas de vaivém para abrilhantar.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 34
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«(...) Um padre é pai, é Deus, é pecado, tudo duma assentada. Há gajas que não querem outro petisco.
Otero: Você, Covas, só lê livros depravados.
Elias: É.
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 20
Otero: Você, Covas, só lê livros depravados.
Elias: É.
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 20
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quarta-feira, 12 de março de 2014
OLHAR
Límpidas serenidades de águas claras
com algas verdes, flutuantes, lentas,
em ondulações tenuíssimas e raras...
Desmaios da manhã, em claridade,
roçando, leve, a prata silenciosa
de um lago
vago....
Dormência funda; serena eternidade
como um sonho de esfinge misteriosa...
Ondas revoltas do mar
com cadáveres de naufrágios a boiar
de bruços, olhos mergulhados
e perdidos
na busca dos abismos desejados
e nunca conseguidos...
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 292
com algas verdes, flutuantes, lentas,
em ondulações tenuíssimas e raras...
Desmaios da manhã, em claridade,
roçando, leve, a prata silenciosa
de um lago
vago....
Dormência funda; serena eternidade
como um sonho de esfinge misteriosa...
Ondas revoltas do mar
com cadáveres de naufrágios a boiar
de bruços, olhos mergulhados
e perdidos
na busca dos abismos desejados
e nunca conseguidos...
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 292
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o sabor entre os dentes dos sabores todos da noite
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 287
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verso solto
Os cafés estão abertos nas casas como olhos que não podem ter sono
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 286
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MUNDO REMOTO
Noite opaca e impenetrável
noite que parece conter todos os caminhos
a possibilidade de todas as vitórias
os segredos de todas as interrogações
noite
afinal pasmada e morta
inerte e gelada
noite enganosa
esfinge vazia que dá a treva como um sinal que parece
esperar-nos e é só indiferença
noite
flexível como um corpo de prostituta a estrear
dando-se como ela de sentidos ausentes
de sentidos fechados e fingindo
opaca e impenetrável
opaca e insensível
derramando névoas que empapam os olhos de sonho
afinal porta falsa para qualquer parte
varanda irreal sem Ocidente nem Oriente sem Norte nem
Sul
afinal como um cenário pintado
muda e distante
alheia...
(...)
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 283
noite que parece conter todos os caminhos
a possibilidade de todas as vitórias
os segredos de todas as interrogações
noite
afinal pasmada e morta
inerte e gelada
noite enganosa
esfinge vazia que dá a treva como um sinal que parece
esperar-nos e é só indiferença
noite
flexível como um corpo de prostituta a estrear
dando-se como ela de sentidos ausentes
de sentidos fechados e fingindo
opaca e impenetrável
opaca e insensível
derramando névoas que empapam os olhos de sonho
afinal porta falsa para qualquer parte
varanda irreal sem Ocidente nem Oriente sem Norte nem
Sul
afinal como um cenário pintado
muda e distante
alheia...
(...)
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 283
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INOCÊNCIA
Eu que procuro a paz e a detesto
que sonho as Babilónias, já sabendo
o cansaço que delas hei-de ter,
eu que tudo amo...e nada quero,
embora sempre em busca doutra coisa,
donde tiro ainda a força dos meus braços?
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 277
que sonho as Babilónias, já sabendo
o cansaço que delas hei-de ter,
eu que tudo amo...e nada quero,
embora sempre em busca doutra coisa,
donde tiro ainda a força dos meus braços?
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 277
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terça-feira, 11 de março de 2014
« (...); o mais, animus conspirandi ou anus conspirandi, mais cu, menos cu, soa a conversa de um empata para jornais amestrados se rirem. Elias lá para ele sabe apenas que: houve intenção, mais nada. Alguém segredou à imprensa que desviasse o caso para crime comum, apresentando o major De Cuju como um viciado de rabo para a lua a ser estraçalhado por uma matilha de arrebenta-cus.»
José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 20
a agonia lenta duma alma não minha.
Adolfo Casais Monteiro in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 277
«Sim;
Mordi bocas que choravam
Para de novo as morder;
Depois, um dia, casei
Pra mais vida conhecer.»
António Botto in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 270
Mordi bocas que choravam
Para de novo as morder;
Depois, um dia, casei
Pra mais vida conhecer.»
António Botto in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 270
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« - Numa lágrima
Dizia
O meu passado e o meu presente.»
António Botto in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 269
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(...)
Anoitece nos meus olhos.
- Se vens falar-me d'amor,
vê lá bem se isso é verdade.»
António Botto in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 265
Anoitece nos meus olhos.
- Se vens falar-me d'amor,
vê lá bem se isso é verdade.»
António Botto in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 265
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OBSCURA PALAVRA DO DESERTO
"Em cada um de nós, dizia ele, há um livro que nos transforma em vocábulos, como o sangue se reforma no sangue. A cada palavra, a cada vocábulo corresponde um baque de coração.
O preço do livro é o preço de uma aliança."
Edmond Jabés. A Obscura Palavra do Deserto.
O preço do livro é o preço de uma aliança."
Edmond Jabés. A Obscura Palavra do Deserto.
segunda-feira, 10 de março de 2014
PAÍS DA MAGIA #2
"Até neste país de magia será necessário as cidades que realmente me atraem mostrarem-se insuportáveis? Eu irritava-me, ficava como doido, lamentava já não ser criança para ter o direito de gritar, chorar, bater o pé, queixar-me a alguém. O que fazer?
Só ouvia reclamações:
Telefonaram-te. Acabam de te telefonar (ou devo dizer telecomunicar?). Obrigaram-te a voltar a telefonar... Isto o que significa?... Por que não respondeste?
Porque não podem conceber que se não entendam as mensagens ocultas, não leiam nas paredes palavras em maiúsculas, três vezes sublinhadas."
"No País da Magia"
Henri Michaux
«De facto, a minha aparência é algo medonha, mas censurar-me é censurar a Deus. Pudesse eu recriar-me novamente, não te decepcionaria. Pudesse eu abarcar o mundo de pólo a pólo ou abraçar o oceano num amplexo, seria medido pela minha alma, a base da mente do homem.» |
Coração, ó coração, por males sem remédio derrubado,
ergue-te! Defende-te dos inimigos, opondo-lhes um peito
adverso, firme suportando as ciladas dos que te são hostis!
Se venceres, em demasia não rejubiles,
nem, vencido, em casa te deites em pranto.
Alegra-te antes com as alegrias, dói-te com as tristezas,
sem exagero. Aprende bem o ritmo que domina os homens.
Arquíloco, (frg. 128 W.)
ergue-te! Defende-te dos inimigos, opondo-lhes um peito
adverso, firme suportando as ciladas dos que te são hostis!
Se venceres, em demasia não rejubiles,
nem, vencido, em casa te deites em pranto.
Alegra-te antes com as alegrias, dói-te com as tristezas,
sem exagero. Aprende bem o ritmo que domina os homens.
Arquíloco, (frg. 128 W.)
carpe diem
«A solução única reservada aos homens é a fruição do momento – que Horácio haveria de formular magistralmente na máxima do carpe diem –, seja pelo envolvimento amoroso, pelo degustar de um bom vinho ou mesmo pelo prazer de uma borracheira menos contida.»
Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice
me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram.
Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas,
em tempos ligeiras na dança, como pequenas corças.
Isso lamento a toda a hora; mas que fazer?
alguém que não envelhece é algo que não pode existir.
Safo
me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram.
Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas,
em tempos ligeiras na dança, como pequenas corças.
Isso lamento a toda a hora; mas que fazer?
alguém que não envelhece é algo que não pode existir.
Safo
Nós somos como as folhas que cria a florida estação
da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol.
Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores
da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom
nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão
ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice;
a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve
quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra.
Porém quando passa este fim de estação,
melhor do que ficar vivo é morrer logo.
Mimnermo
da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol.
Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores
da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom
nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão
ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice;
a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve
quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra.
Porém quando passa este fim de estação,
melhor do que ficar vivo é morrer logo.
Mimnermo
«Num epodo de Arquíloco, publicado apenas em 1973 (frg. 196a W.)7 o sujeito seduz uma jovem, comparada a uma cerva, em campos verdejantes e odoríferos, terminando por sossegá-la e quase consumar o acto sexual (vv. 42-53):
Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela
e num leito de flores
a estendi. Com sedoso manto
a cobri e o seu colo rodeei com meus braços,
acalmando o seu sobressalto,
tal como uma cerva ...
Os seus seios gentis com as mãos acariciei:
tenra brilhava a sua pele,
feitiço da sua juventude .
Todo o seu belo corpo percorri
e então libertei o branco vigor,
ao toque dos seus louros cabelos?
Tais foram as minhas palavras. Tomei então a donzela
e num leito de flores
a estendi. Com sedoso manto
a cobri e o seu colo rodeei com meus braços,
acalmando o seu sobressalto,
tal como uma cerva ...
Os seus seios gentis com as mãos acariciei:
tenra brilhava a sua pele,
feitiço da sua juventude .
Todo o seu belo corpo percorri
e então libertei o branco vigor,
ao toque dos seus louros cabelos?
Cântico dos Cânticos (II. 8-13)
«Na literatura grega, a imagem mais comum é a do homem (identificado com o poeta) que persegue a sua presa por campos verdejantes, desejando tão só a consumação do amor. Ela foge, mas sabem ambos que a própria fuga é um esquema para aumentar o desejo e dar mais prazer ao encontro, que no fim se revelará inevitável.»
J. Tolentino Mendonça 21999: 12 refere já o paralelo com os textos do Papiro Harris 500 e do Papiro Chester Beatty I.
J. Tolentino Mendonça 21999: 12 refere já o paralelo com os textos do Papiro Harris 500 e do Papiro Chester Beatty I.
Imortal Afrodite do trono variegado,
filha de Zeus, urdidora de enganos, suplico-te:
com sofrimentos e angústias não subjugues,
ó rainha, o meu coração
(...)
Vem até mim, agora também! Salva-me da aflitiva
ansiedade; e para mim faz cumprir tudo o que
meu coração deseja ver cumprido; e tu própria
combate a meu lado.
filha de Zeus, urdidora de enganos, suplico-te:
com sofrimentos e angústias não subjugues,
ó rainha, o meu coração
(...)
Vem até mim, agora também! Salva-me da aflitiva
ansiedade; e para mim faz cumprir tudo o que
meu coração deseja ver cumprido; e tu própria
combate a meu lado.
BUCÓLICA
Venho de dentro, abriu-se a porta:
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.
Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo.
De só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra.
Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã.
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvalação do corpo.
"A Lume"
Luiza Neto Jorge
nem todas as horas do dia e da noite
me darão para olhar de nascente
a poente e pelo meio as ilhas.
Há um jogo de relâmpagos sobre o mundo.
De só imaginá-la a luz fulmina-me,
na outra face ainda é sombra.
Banhos de sol
nas primeiras areias da manhã.
Mansidões na pele e do labirinto só
a convulsa circunvalação do corpo.
"A Lume"
Luiza Neto Jorge
domingo, 9 de março de 2014
«Vira tudo isso tantas vezes, entusiasmos e desalentos, e de tal modo misturados, que compreendera de uma vez para sempre que o marido só poderia sentir-se feliz com uma existência em que esses sentimentos se alternassem. Ela já evitava acompanhá-lo nas miragens e nos fracassos.»
Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 38
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O BELO VERSO
Apetecia-me escrever um belo verso.
Sonoro, elegante, correcto, de mármore!
Nele pôr o que outros me inspirassem.
O que ali aquele poeta estava cantando.
Ele o cantava e eu o repetia.
Acrescentava, desdobrava, acrescia da minha
[ansiedade.
Mas verso bem feito!
Cheio do que se sonha, não do que se sente.
Parece-me pobre o que sinto.
E vulgar.
Estes olhos que sem querer se envidraçam,
[fúteis, sem recato, infantis, esta
[voz insegura, enfim, tudo isto...
Que figura iriam fazer dentro de um verso ele-
[gante, lapidar?
Belo verso, trair-te-iam, roubar-te-iam toda a
[graça e até a ressonância, o êxtase
[e aquela espécie de embalo que ao
[espírito sempre dás.
Mas sinceramente me apetecia escrever um
[verso de mármore belo!
Tudo, tudo por causa daquele poema...»
Irene Lisboa. Antologia da Poesia Feminina Portuguesa - António Salvado., p. 157
ESTRELA
Legenda
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 192
para aquela estrela
azul
e fria
que me apontaste
já de madrugada:
amar
é entristecer
sem corrompermos
nada.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 192
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LÁGRIMA
A cada hora
o frio
que o sangue leva ao coração
nos gela como o rio
do tempo aos derradeiros glaciares
quando a espuma dos mares
se transformar em pedra.
Ah no deserto
do próprio céu gelado
pudesses tu suster ao menos na descida
uma estrela qualquer
e ao seu calor fundir a neve que bastasse
à lágrima pedida
pela nossa morte.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 179
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O FUNDO DAS ÁGUAS
(...)
«O que me espanta é a aceitação de cada dia. E desta angústia vou tecendo as palavras, desta água salgada e doce como as lágrimas e o sangue. Tecendo escuramente as palavras.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 163
«O que me espanta é a aceitação de cada dia. E desta angústia vou tecendo as palavras, desta água salgada e doce como as lágrimas e o sangue. Tecendo escuramente as palavras.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 163
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«Eis o que torna o amor mais forte:
amar quem está tão próximo da morte.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 153
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VILANCETE CASTELHANO DE GIL VICENTE
Por mais que nos doa a vida
nunca se perca a esperança;
a falta de confiança
só da morte é conhecida.
Se a lágrimas for cumprida
a sorte, sentindo-a bem,
vereis que todo o mal vem
achar remédio na vida.
E pois que outro preço tem
depois do mal a bonança,
nunca se perca a esperança
enquanto a morte não vem.
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 143
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o desenho do voo antes das asas
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 99
«Andam os mortos enfeitando-se ao frio,
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 99
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cilício
nome masculino
1. vestido tosco de pele de cabra proveniente da Cilícia
2. peça de vestuário incómoda
3. cinto áspero de corda ou arame outrora usado sobre a pele para mortificação e penitência
4. figurado mortificação voluntária
(Do latim cilicĭu-, «pano da Cilícia, fabricado com pêlo de cabra»)
sábado, 8 de março de 2014
De mágoa eu tinha lágrimas em fio,
Edmundo de Bettencourt in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 198
TRINUFO
O acrobata pairava sobre um silêncio de morte. Ele suspenso por dois fios de seda vermelha e uma vara de bambu; a multidão suspensa pelo prazer doloroso de gozar o perigo que ele sofria.
De repente um grito e o acrobata caindo... Desceu num voo, tombou: e toda a gente se ergueu, gritou, a-cla-mooou!!
Agora, mesmo aqueles que só o tinham condenado, todos sorriam de completa satisfação e diziam: Que belo! Aqueles saltos no ar, aquelas idas e vindas com os braços a voar!...
Mas isto era o que ele fazia todas as noites e que raros apreciavam. Hoje, a mais, só tinha feito o cair, trabalhar mal e cair.
Quando a multidão serenou e de novo olhou a pista, então viu: as pessoas que tinham acudido levando nos braços o corpo quebrado e morto do acrobata que tinha conseguido fazer compreender o seu valor.
Branquinho da Fonseca in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 196
De repente um grito e o acrobata caindo... Desceu num voo, tombou: e toda a gente se ergueu, gritou, a-cla-mooou!!
Agora, mesmo aqueles que só o tinham condenado, todos sorriam de completa satisfação e diziam: Que belo! Aqueles saltos no ar, aquelas idas e vindas com os braços a voar!...
Mas isto era o que ele fazia todas as noites e que raros apreciavam. Hoje, a mais, só tinha feito o cair, trabalhar mal e cair.
Quando a multidão serenou e de novo olhou a pista, então viu: as pessoas que tinham acudido levando nos braços o corpo quebrado e morto do acrobata que tinha conseguido fazer compreender o seu valor.
Branquinho da Fonseca in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 196
Agnus Dei
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POEMA DA CARNE-ESPÍRITO
Em noite de furor, julgo que és tu.
Atiro os braços para te abraçar!
Abraço o meu corpo nu;
Beijo os meus lábios e o ar...
Todo o corpo me dói de tais desejos
Que minha carne flagelada e moça
Já só exige quaisquer beijos:
Basta-lhe a água, já, de qualquer poça.
Eis como tu ficas distante,
E assim a fera triste em mim desperta.
E eu vou-me em busca de qualquer amante,
Pedir esmola a qualquer porta aberta...
Se isto é pecado, e se é mesquinha
Esta sede sem escolha,
Por que não vens tu dar-me, Eva só minha,
A única flor que eu sem miséria colha?
Por que não vens, nos oiros-rosas da manhã
Que eu inventei para te receber,
Minha mãe! minha amante! minha irmã!,
(Divina e animal...) minha mulher...?
Sei que não vens. (Como virias,
Se não és corpo, embora eu t'o imagine?)
Vou-me, a desoras, por vielas tortuosas e sombrias,
Como em busca de alguém que me assassine...
As que do amor fizeram ganha-pão
Somem-se e reaparecem-me às esquinas.
E acobertado pela escuridão,
Deliro, então, misérias peregrinas.
Por que não vens, tu que não chegas,
Meu terrível fantasma real e vago!
E sonho...sim! que vens - Sim!, que te entregas
Na pobre carne que pago...
Sonho, quando os espasmos me agoniam,
Teu corpo de camélias e açucenas,
Sobre o qual os meus beijos passeariam
Como um roçar ou um flutuar de penas...
Sonho-te, para te humilhar,
E me vingar da tua ausência,
Nesse instante supremo, estrídulo...e vulgar,
Em que o prazer atinge o cúmulo da urgência.
Mas ante mim,
Levita-se o teu espectro:
E esse instante já no fim
É um infinito em que penetro...
E por virtude tua, amo-as, em tais momentos,
As que se prestam ao meu vício!
Assim, no meu espasmo, há comprometimentos,
Auréolas, angústia e sacrifício.
E assim de algum mau leito de aluguer
O altar se eleva em que me é grave e doce,
Comemorar, gozar e padecer
O mistério da Posse.
Nus! sós e nus!, os corpos rolarão
Nessa vertigem dum não sei que Mais...
E os leitos podres se transformarão
Em deliciosos abismos de ânsia e ais.
Evadir-me-ei, então, por sei bem que espaços,
Cego de raiva e de ternuras loucas,
Tenho duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,
E uma só língua em duas bocas!
Todas as forças brutas que suporto
Desencadearão, em mim, o seu poder,
Até que vergue para o lado, morto,
A soluçar e a tremer...
Para outro lado, outra metade, como um trapo,
Caíu...ficou assim horas sem fim.
Mudo, olharei, então, esse farrapo
Que despeguei de mim:
Mudo, olharei aqueles seios esmagados,
Aquele ventre aberto, como um vaso que parti,
Aquele sexo negro, e esses cabelos desgrenhados,
E essa garganta que mordi...
E subtilmente, como um anjo em prece
Descendo à luz duma estrela,
Minha inocência incorruptível desce...
Desce até mim, ou rapta-me até ela.
Sem dar por isso, choro e rezo, como quando
Rezava às avé marias,
E ouvia os anjos entoando
Que longínquas melodias...!
«...E eis que posso dar-te!» - penso,
Ante esse corpo cúmplice do meu;
Quando, súbito, leio em seu olhar imenso
Que ela interroga como eu.
Ai!, se eu pudesse dizer tudo! E calo
Coisas íntimas, novas, insondáveis e subtis,
Todo um mundo que desminto quando falo
Que eu valho..., mas pelo que a voz não diz.
E arrumado a um cantinho, ali me fico
Ruminando, na sombra, um sonho estranho.
E é então que eu sou eu! (eu livre e rico...)
Meu fantasma estelar! porque te tenho.
Foi em ti que saciei o meu desejo:
Em qualquer meretriz te prostituis...
E mais: És tu que as beijas se eu as beijo,
Porque eu dou-te o aguilhão com que as possuis.
E se é loucura desejar-te, pois tu és
Um hálito, uma auréola, uma sombra, ou uma graça,
Pois não tens mãos, não tens cabeça, não tens sexo, não tens pés,
Sendo, embora, qualquer mulher que passa,
O não te desejar é impossível
Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,
Pairar, virgem suprema, inatingível e intangível,
Prostituída a cada instante.
José Régio in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 176- 17
Atiro os braços para te abraçar!
Abraço o meu corpo nu;
Beijo os meus lábios e o ar...
Todo o corpo me dói de tais desejos
Que minha carne flagelada e moça
Já só exige quaisquer beijos:
Basta-lhe a água, já, de qualquer poça.
Eis como tu ficas distante,
E assim a fera triste em mim desperta.
E eu vou-me em busca de qualquer amante,
Pedir esmola a qualquer porta aberta...
Se isto é pecado, e se é mesquinha
Esta sede sem escolha,
Por que não vens tu dar-me, Eva só minha,
A única flor que eu sem miséria colha?
Por que não vens, nos oiros-rosas da manhã
Que eu inventei para te receber,
Minha mãe! minha amante! minha irmã!,
(Divina e animal...) minha mulher...?
Sei que não vens. (Como virias,
Se não és corpo, embora eu t'o imagine?)
Vou-me, a desoras, por vielas tortuosas e sombrias,
Como em busca de alguém que me assassine...
As que do amor fizeram ganha-pão
Somem-se e reaparecem-me às esquinas.
E acobertado pela escuridão,
Deliro, então, misérias peregrinas.
Por que não vens, tu que não chegas,
Meu terrível fantasma real e vago!
E sonho...sim! que vens - Sim!, que te entregas
Na pobre carne que pago...
Sonho, quando os espasmos me agoniam,
Teu corpo de camélias e açucenas,
Sobre o qual os meus beijos passeariam
Como um roçar ou um flutuar de penas...
Sonho-te, para te humilhar,
E me vingar da tua ausência,
Nesse instante supremo, estrídulo...e vulgar,
Em que o prazer atinge o cúmulo da urgência.
Mas ante mim,
Levita-se o teu espectro:
E esse instante já no fim
É um infinito em que penetro...
E por virtude tua, amo-as, em tais momentos,
As que se prestam ao meu vício!
Assim, no meu espasmo, há comprometimentos,
Auréolas, angústia e sacrifício.
E assim de algum mau leito de aluguer
O altar se eleva em que me é grave e doce,
Comemorar, gozar e padecer
O mistério da Posse.
Nus! sós e nus!, os corpos rolarão
Nessa vertigem dum não sei que Mais...
E os leitos podres se transformarão
Em deliciosos abismos de ânsia e ais.
Evadir-me-ei, então, por sei bem que espaços,
Cego de raiva e de ternuras loucas,
Tenho duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,
E uma só língua em duas bocas!
Todas as forças brutas que suporto
Desencadearão, em mim, o seu poder,
Até que vergue para o lado, morto,
A soluçar e a tremer...
Para outro lado, outra metade, como um trapo,
Caíu...ficou assim horas sem fim.
Mudo, olharei, então, esse farrapo
Que despeguei de mim:
Mudo, olharei aqueles seios esmagados,
Aquele ventre aberto, como um vaso que parti,
Aquele sexo negro, e esses cabelos desgrenhados,
E essa garganta que mordi...
E subtilmente, como um anjo em prece
Descendo à luz duma estrela,
Minha inocência incorruptível desce...
Desce até mim, ou rapta-me até ela.
Sem dar por isso, choro e rezo, como quando
Rezava às avé marias,
E ouvia os anjos entoando
Que longínquas melodias...!
«...E eis que posso dar-te!» - penso,
Ante esse corpo cúmplice do meu;
Quando, súbito, leio em seu olhar imenso
Que ela interroga como eu.
Ai!, se eu pudesse dizer tudo! E calo
Coisas íntimas, novas, insondáveis e subtis,
Todo um mundo que desminto quando falo
Que eu valho..., mas pelo que a voz não diz.
E arrumado a um cantinho, ali me fico
Ruminando, na sombra, um sonho estranho.
E é então que eu sou eu! (eu livre e rico...)
Meu fantasma estelar! porque te tenho.
Foi em ti que saciei o meu desejo:
Em qualquer meretriz te prostituis...
E mais: És tu que as beijas se eu as beijo,
Porque eu dou-te o aguilhão com que as possuis.
E se é loucura desejar-te, pois tu és
Um hálito, uma auréola, uma sombra, ou uma graça,
Pois não tens mãos, não tens cabeça, não tens sexo, não tens pés,
Sendo, embora, qualquer mulher que passa,
O não te desejar é impossível
Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,
Pairar, virgem suprema, inatingível e intangível,
Prostituída a cada instante.
José Régio in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 176- 17
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sexta-feira, 7 de março de 2014
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