Em noite de furor, julgo que és tu.
Atiro os braços para te abraçar!
Abraço o meu corpo nu;
Beijo os meus lábios e o ar...
Todo o corpo me dói de tais desejos
Que minha carne flagelada e moça
Já só exige quaisquer beijos:
Basta-lhe a água, já, de qualquer poça.
Eis como tu ficas distante,
E assim a fera triste em mim desperta.
E eu vou-me em busca de qualquer amante,
Pedir esmola a qualquer porta aberta...
Se isto é pecado, e se é mesquinha
Esta sede sem escolha,
Por que não vens tu dar-me, Eva só minha,
A única flor que eu sem miséria colha?
Por que não vens, nos oiros-rosas da manhã
Que eu inventei para te receber,
Minha mãe! minha amante! minha irmã!,
(Divina e animal...) minha mulher...?
Sei que não vens. (Como virias,
Se não és corpo, embora eu t'o imagine?)
Vou-me, a desoras, por vielas tortuosas e sombrias,
Como em busca de alguém que me assassine...
As que do amor fizeram ganha-pão
Somem-se e reaparecem-me às esquinas.
E acobertado pela escuridão,
Deliro, então, misérias peregrinas.
Por que não vens, tu que não chegas,
Meu terrível fantasma real e vago!
E sonho...sim! que vens - Sim!, que te entregas
Na pobre carne que pago...
Sonho, quando os espasmos me agoniam,
Teu corpo de camélias e açucenas,
Sobre o qual os meus beijos passeariam
Como um roçar ou um flutuar de penas...
Sonho-te, para te humilhar,
E me vingar da tua ausência,
Nesse instante supremo, estrídulo...e vulgar,
Em que o prazer atinge o cúmulo da urgência.
Mas ante mim,
Levita-se o teu espectro:
E esse instante já no fim
É um infinito em que penetro...
E por virtude tua, amo-as, em tais momentos,
As que se prestam ao meu vício!
Assim, no meu espasmo, há comprometimentos,
Auréolas, angústia e sacrifício.
E assim de algum mau leito de aluguer
O altar se eleva em que me é grave e doce,
Comemorar, gozar e padecer
O mistério da Posse.
Nus! sós e nus!, os corpos rolarão
Nessa vertigem dum não sei que Mais...
E os leitos podres se transformarão
Em deliciosos abismos de ânsia e ais.
Evadir-me-ei, então, por sei bem que espaços,
Cego de raiva e de ternuras loucas,
Tenho duas cabeças, quatro pernas, quatro braços,
E uma só língua em duas bocas!
Todas as forças brutas que suporto
Desencadearão, em mim, o seu poder,
Até que vergue para o lado, morto,
A soluçar e a tremer...
Para outro lado, outra metade, como um trapo,
Caíu...ficou assim horas sem fim.
Mudo, olharei, então, esse farrapo
Que despeguei de mim:
Mudo, olharei aqueles seios esmagados,
Aquele ventre aberto, como um vaso que parti,
Aquele sexo negro, e esses cabelos desgrenhados,
E essa garganta que mordi...
E subtilmente, como um anjo em prece
Descendo à luz duma estrela,
Minha inocência incorruptível desce...
Desce até mim, ou rapta-me até ela.
Sem dar por isso, choro e rezo, como quando
Rezava às avé marias,
E ouvia os anjos entoando
Que longínquas melodias...!
«...E eis que posso dar-te!» - penso,
Ante esse corpo cúmplice do meu;
Quando, súbito, leio em seu olhar imenso
Que ela interroga como eu.
Ai!, se eu pudesse dizer tudo! E calo
Coisas íntimas, novas, insondáveis e subtis,
Todo um mundo que desminto quando falo
Que eu valho..., mas pelo que a voz não diz.
E arrumado a um cantinho, ali me fico
Ruminando, na sombra, um sonho estranho.
E é então que eu sou eu! (eu livre e rico...)
Meu fantasma estelar! porque te tenho.
Foi em ti que saciei o meu desejo:
Em qualquer meretriz te prostituis...
E mais: És tu que as beijas se eu as beijo,
Porque eu dou-te o aguilhão com que as possuis.
E se é loucura desejar-te, pois tu és
Um hálito, uma auréola, uma sombra, ou uma graça,
Pois não tens mãos, não tens cabeça, não tens sexo, não tens pés,
Sendo, embora, qualquer mulher que passa,
O não te desejar é impossível
Porque tu sabes, sempre moça e eterna amante,
Pairar, virgem suprema, inatingível e intangível,
Prostituída a cada instante.
José Régio in Adolfo Casais Monteiro. A Poesia da ''Presença''. Círculo de Poesia. Moraes Editores, Lisboa, 1972., p. 176- 17