domingo, 28 de março de 2010

«O primeiro pormenor que me despertou a atenção, quando avançava lentamente por uma clareira do bosque, foi um enorme besouro a debater-se de pernas para o ar, o que me levou a pousar um joelho no chão para ajudar o pobrezinho a voltar de novo à sua posição normal. De certo modo, sabe que não pode ter a certeza daquilo que um insecto deseja; por exemplo, eu nunca fui totalmente capaz de determinar, caso fosse uma borboleta nocturna, se preferia que me afastassem da candeia ou me deixassem voar directamente para ela e queimar-me... ou então, se fosse uma aranha, não sei bem se ficaria muito satisfeito ao ver a minha teia destruída e a mosca em liberdade... Mas tenho a certeza de que, se fosse um besouro que tivesse rolado e ficado de costas, sentir-me-ia feliz quando me ajudassem a endireitar.»



Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.157
«Em primeiro lugar, quero saber - meu querido e tão jovem leitor - por que razão as Fadas têm sempre de nos estar a ensinar o nosso dever e de nos censurar quando erramos, e nós nunca lhes ensinamos coisa alguma?Não me quer convencer que as Fadas nunca são ambiciosas, egoístas, falsas, mal-humoradas, porque isso seria um disparate, como sabe. Bem, não acha que se sentiriam melhor se se lhes ralhasse ou fossem castigadas de vez em quando?
Na verdade não vejo por que não se há-de experimentar e tenho quase a certeza que se pelo menos conseguisse agarrar uma Fada, -la a um canto e dar-lhe só pão e água durante um dia ou dois, descobriria nelas um melhor carácter - pelo menos, deitar-lhe-ia abaixo um pouco da sua vaidade.»


Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.156
(...)


Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os
[mandasse.

21 de Maio de 1964


excerto da dedicácia Epístola a Álvaro Salema, publicada na revista Hífen, Porto, nº6, Fevereiro de 1991.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.31/2

Sua Putidade o Crimertídaco

Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,
persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe
sempre ao meu lado, e nos lugares aonde
julga que eu passei. Filho, como é,
do que nem pode chamar-se bem
uma puta, vive de cuspir, de arrepelar
de arranhar, de perseguir as sombras
que ele julga serem as de quem não passa
nos becos onde a mãe o deu à luz,
depois de untada a vida com lubrificante
que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,
e a mãe, logo que o viu, lhe calçou
meias verdes e lhe comeu o imbigo.
Filho do que, de puta, nem por prenha basta
para gerar um esterco assim tão penteado,
tão crítico, tão de meias verdes,
tão arrotantemente porco nas regueifas que
do cachaço ascendem ao tutano encefálico,
julga suinamente que não há lugares,
nem seres humanos, livres de presença
de Sua Putidade. Há.
Exactamente as pessoas e os lugares aonde
ser filho da puta é ser filho da puta,
com ou sem regueifas nas ideias
ou verdura nas meias,
ou brilhantina uterina
de quem lambido foi em sua mãe
antes de nascer para cri-mer--da-co.

3 de Agosto de 1962
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.29

quinta-feira, 25 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

«Rilke não procura dar conselhos sobre composição poética e evita o papel de crítico que, ao contrário de Virginia Woolf, considera inútil ou nefasto, pois as obras de arte « são de uma solidão infinita». Em termos práticos, limita-se a sugerir que evite o caminho demasiado percorrido da poesia de amor, até porque «num único pensamento criativo revivem mil noites de amor esquecidas».Rainer Maria Rilke defende a poesia como expressão de uma realização interior; a arte como forma de vida, vê na busca das profundezas de si, nas recordações de infância, na depuração dos sentimentos pela solidão, a espera e o sofrimento, a garantia da autenticidade»

Excerto do Prefácio de Francisco Vale ao livro:
Rainer Maria Rilke e Virginia Woolf in Cartas a Jovens Poetas. Relógio D'Água Editores, 2003., pp 19

Cartas a Um Jovem Poeta

« (...)é bom estar só, pois a solidão é difícil, mas o facto de uma coisa ser difícil é mais uma razão para que a façamos.
Também amar é bom, pois o amor é difícil. Amor de um ser humano por outro: isso é talvez o mais difícil que nos está destinado, o extremo, a prova e o exame final, a obra para a qual toda as outras são apenas preparação. É por isso que os jovens, novos em todas as coisas, ainda não sabem amar: têm de aprender primeiro. Têm de aprender a amar, com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas no coração que bate inquieto e ansioso. Mas o tempo de aprender é sempre prolongado e fechado, e assim é o amor por muito tempo e pela vida fora; a solidão é para aquele que ama um isolamento intenso e profundo. Amar não é, antes de mais, nada adquirido que se designa por abrir-se, entregar-se e unir-se a outra pessoa (pois o que seria uma união do ainda impreciso, do ainda por ordenar - ?) mas é um ensejo sublime para o indivíduo amadurecer - tornar-se algo dentro de si próprio, tornar-se mundo, mundo para si por amor a outra pessoa, é uma grande e ambiciosa exigência para ele, algo que o torna eleito e o destina à grandeza. Só neste sentido, como obrigação assumida de se trabalharem a si próprios («escutar e martelar noite e dia»), é que os jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é oferecido. A perda no outro e a entrega a qualquer espécie de comunhão não é para eles (que ainda terão de poupar e juntar durante muito tempo, muito tempo) - é a finalização, é talvez aquilo para que as vidas quase já não chegam.

Rainer Maria Rilke in Cartas a Jovens Poetas. Trad. de Lino Marques Relógio D'Água Editores, 2003., pp 68/69

segunda-feira, 22 de março de 2010

92

Eu não sou eu.
Sou este
que vai a meu lado sem eu vê-lo;
que, por vezes, vou ver,
e que, às vezes, esqueço.
O que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde estou ausente,
o que ficará de pé quando eu morrer.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.96

domingo, 21 de março de 2010

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar Ítaca
Verde e humilde, A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.63-65
(...)

Está sozinho, sonhando-se. (Que a glória
É uma das maneiras do olvido.)

Pelos vidros a iluminação
Duma tarde mais toca o livro de couro
E outra vez arde outra se gasta o ouro
Que envaidece a encardenação.

Na solitária sala o silencioso
Livro viaja no tempo. As auroras
Ficam p'ra trás e as nocturnas horas
E a minha vida, sonho pressuroso.


(excerto do poema Ariosto e os árabes)


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.57

Viajar é muito útil, faz trabalhar a
imaginação. O resto não passa de
decepções e fadigas. A nossa viagem é
inteiramente imaginária. Daí a sua
força.

Vai da vida até à morte. Homens,
animais, cidades e coisas, é tudo
imaginado. Um romance, apenas uma
história fictícia. Di-lo Littré, que nunca
se engana.

Aliás, à primeira vista todos podem
fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.

É do outro lado da vida.


Louis-Ferdinand Céline in Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Biblioteca Angelica, Rome, Italy

A partir do deserto

Abre-se o espaço uma corola se abre
a partir do deserto
um silêncio se apaga outro silêncio de água

Desce a dançarina exacta
até ao extremo da brancura

A noite é verde
na distância dos cabelos
nenhuma imagem subsiste
nenhuma gota de sangue
o sol repousa numa obscura nuvem

Absoluta a suavidade sem espera
um aroma sem aroma
o silêncio entre os corpos


António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.20

Não dissemos as palavras mais simples

Não dissemos as palavras mais simples
a caligrafia das águas sobre a pedra uma pedra vacila
verde
as árvores despertam dormem apertadas na concavidade
do rumor
não dissemos ainda as pálpebras longínquas do horizonte
o trémulo deslumbramento da água jorrando lisa da terra
não dissemos a progressão das formigas em torno da árvore
de claras malhas como um leopardo
não dissemos as vagas sombras imóveis as folhas verdes
as altas e negras flores nas varandas suspensas
não dissemos sequer o nascimento da terra e do cavalo
as manhãs a meia-noite o turbilhão
do ventre o arranque para a primeira explosão no mar e o muro
onde o tempo se condensa como um navio suspenso sobre
o mar vertical

António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.11

quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma mulher estranha

«Temos que voltar para casa. Os trenós rangem no gelo. Uma brisa suave atira-nos ao rosto com pequenos flocos de neve, e vemos então a luz das lâmpadas eléctricas como que através de um prisma. No cais, as casas iluminadas parecem enormes. Estreito levemente Natália pela cintura; mas não me atrevo a apertá-la mais. Sinto um milhão de sensações finas, subtis - mas as palavras não me ocorrem e não sei que lhe hei-de dizer. Em que está pensando a sua linda cabeça pequenita, que ela protegeu com o regalo? E forço-me por me lembrar do seu rosto, que agora não vejo e de que me esqueci completamente. Tenho junto de mim uma mulher que não conheço e que quero conhecer. Para quê? Para uma pequena e vulgar aventura amorosa? Não, não! Nada d'isso!
-Voltemos para casa.
-Sim, minha querida. Se me vierem à cabeça ideias vis a seu respeito, matar-me-ei.
Vejo que sofre, que é um ser que mal começou a viver e já tem o coração despedaçado. Lá em casa espera-a o marido moribundo. E um drama - e não se sabe qual dos dois sofre mais.»



N. Garin in Uma Mulher Estranha. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.128/129

segunda-feira, 15 de março de 2010

66/ Solidão

(1 de Fevereiro)


Estás todo em ti, mar,e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.82

(Oberón a Titania)
Deixo correr meu sangue,
para que te persiga...
Não esperes que derrame
a última gota, pra fazer-te minha!




Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.69

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade
Os santos) que na ponte duma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p'ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pôde ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47

Daqui
"The girl and the woman, in their new, their own unfolding, will but in passing be imitators of masculine ways, good and bad, and repeaters of masculine professions. After the uncertainty of such transition it will become apparent that women were only going through the profusion and the vicissitude of those (often ridiculous) disguises in order to cleanse their most characteristic nature of the distorting influences of the other sex...

This humanity of woman, borne its full time in suffering and humiliation, will come to light when she will have stripped off the conventions of mere femininity in the mutations of her outward status...

Some day there will be girls and women whose name will no longer signify merely an opposite of the masculine, but something in itself, something that makes one think, not of any complement and limit, but only of life and existence: the feminine human being."
Rainer Maria Rilke

sábado, 13 de março de 2010

Alice in wonderland

Limites

Destas ruas que afundam o poente
Uma (mas qual?) já tenho percorrido
Pela última vez, indiferente
E sem adivinhá-lo, submetido

A Quem prefixa omnipotentes normas
E uma secreta e rígida medida
Às sombras e aos sonhos e às formas
Que destecem e tecem esta vida.

Se para tudo há um termo e há medida,
Última vez e nunca mais e olvido,
Nesta casa de que pessoa querida
Nos despedimos sem ter sabido?

A noite cessa p'ra lá da vidraça
E da pilha dos livros que truncada
Sombra pela indecisa mesa espaça
Há-de havê-los dos quais não lemos nada.

No Sul ao menos um portão arruinado
Existe com jarrões de alvenaria
E nopais dentro, que me está vedado
Como se fosse uma litografia.

Fechaste alguma porta pela certa
E para sempre. Um espelho em vão te aguarda.
Julgavas a encruzilhada aberta
E Jano quadrifonte está de guarda.

Entre as tuas memórias uma existe
Que sem remédio se veio a perder;
Àquela fonte não te hão-de ver
Descer o branco sol, a lua triste.

Não volta a tua voz a quanto o persa
Disse em língua de aves e de rosas,
Quando ao sol-pôr, perante a luz dispersa,
Quiseres dizer inolvidáveis cousas.

E o incessante Ródano e o lago,
Esse ontem, sobre o qual hoje me inclino,
Tão perdido estará como Cartago,
Sepulta em fogo e sal pelo latino?

Parece-me na alva que soou
Vivo rumor de gente. Assim vos vais,
(Foi tudo quem me quis e me olvidou)
Espaço e tempo e Borges já deixais.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.31-33

domingo, 7 de março de 2010

30 / Mãos

Ai, tuas mãos carregadas de rosas! São mais puras
tuas mãos do que as rosas. E entre as folhas brancas,
surgem como se fossem estilhaços de estrelas,
asas de mariposas alvas, sedas cândidas.

Caíram-te da Lua? Ou acaso brincaram
numa Primavera celestial? São da alma?
...Têm vago esplendor de lírios de outro mundo;
deslumbram o que sonham, refrescam o que cantam.

Minha fronte serena-se, como um céu vespertino,
quando tu com tuas mãos entre suas nuvens andas;
se as beijo, a púrpura de brasa desta boca
empalidece do seu brancor de pedra de água.

Tuas mãos entre sonhos! Atravessam, quais pombas
de fogo branco, minhas visões turbadas,
e, na aurora, abrem-me, como com luz de ti,
a claridade suave do oriente de prata.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.53/54

sábado, 6 de março de 2010

13

A lua dourava o rio
- tão fresco da magrugada! -
Pelo mar vinham as ondas
tingidas da luz da alva.

O campo débil e triste
acendia-se. Ficava
o canto gasto de um grilo,
a queixa escura de uma água.

Fugia o vento à sua gruta,
o horror à sua cabana;
no verde dos pinheirais
entreabriam-se as asas.

Iam morrendo as estrelas,
roseava-se a montanha;
além no poço do horto,
uma andorinha cantava.

Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.39

Elegia V - Retrato Dele

Aqui está, toma o meu retrato; embora de ti me despeça
O teu no meu coração, onde habita a minha alma, habitará.
É como eu agora, mas se eu morrer, será mais,
Quando formos ambos sombras,do que era antes.
Quando eu voltar gasto das intempéries, as mãos
Talvez rasgadas pelos remos rudes, ou curtidas dos raios do Sol
A minha face e o peito de silício, e a cabeça semeada
Com os eczemas dos cuidados das tempestades súbitas,
O corpo num saco de ossos, quebrado por dentro,
E as manchas azuis da pólvora espalhadas na pele;
Se rivais loucos te acusarem de ter amado um homem
Tão imundo e rude como, ah! então poderei parecer,
Isto deverá mostrar o que eu era, e tu deverás dizer,
Será que as dores dele me atingem? Arruínam o meu valor?
Ou atingem-lhe a mente pensante, e ele agora
Amará menos o que tanto gostava de ver?
Aquilo que foi nele belo e delicado,
Era apenas o leite no estado infantil do amor
O alimentava; o qual agora cresceu forte o bastante
Para se alimentar do que, a gostos desusados, parece rude.



John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

Elegia I - CIÚME

Mulher carinhosa, que verteu marido morto desejas
E de seus grandes ciúmes ainda te queixas.
Se inchado de veneno jazesse no seu último leito,
O corpo coberto por uma crosta cauterizada,
Aspirando o ar, tão rouco e rápido, como pode
Cravejar o mais ágil músico;
Com repugnante vomitado, pronto a expelir
A alma para fora de um Inferno, adentro de novo,
Feito surdo pelos urros uivantes dos parentes pobres
A implorar, com poucas e falsas lágrimas, grandes legados,
Não chorarias, mas alegre e prazenteira estarias
Como um escravo, que amanhã fosse libertado.
Porém tu choras, quando o vês engolir avidamente
A sua própria morte, o ciúme que envenena o coração.
Oh, agradece-lhe muito, ele é bem-educado,
Pois suspeitando, amavelmente nos avisou
Que não devemos, como usávamos, troçar abertamente
Da sua deformidade com enigmas de escárnio;
Nem estando juntos à sua mesa sentados,
Com palavras, toques, ou olhares de viés, adulterar;
Nem quando ele, inchado e satisfeito pela comezaina
Se senta, e ressona, enjaulando-se na cadeira de verga,
Deveremos nós outra vez usurpar-lhe a cama,
Nem beijarmo-nos e brincar na casa dele, como dantes.
Agora vejo grandes perigos; porque aquele é
O seu reino, o seu castelo, a sua diocese.
Mas - como os homens invejosos que insultariam
O seu Príncipe, ou lhe cunhariam o ouro, para outro país
A si próprios se exilam, e aí o fazem - ,
Se brincarmos noutra casa, que teremos a temer?
Ali zombaremos dos comportamentos caseiros,
Das suas intrigas cegas, e espiões a soldo,
Como o fazem os habitantes da margem direita do Tamisa
Ao Mayor de Londres, ou os alemães ao orgulho do Papa.


John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

quinta-feira, 4 de março de 2010

Os murmúrios da floresta

Enfim, um belo dia Romão viu-se casado. Trouxe a sua jovem esposa para a cabana da floresta. Nos primeiros dias não fez senão ralhar com ela, atirando-lhe ao rosto as vergastadas que tinha apanhado por sua causa.
-Não vale a pena martirizarem assim por ti um bom cristão.
Quando voltava da floresta, começava a querer expulsá-la de casa.
-Vai-te. Não quero mulheres em minha casa. Não gosto de dormir com mulheres, porque cheiram mal.
Dizia ele isto.
Mas, depois, foi-se acostumando a pouco e pouco. Oxana arrumava-lhe a casa, varria, lavava, tudo estava muito limpo e arranjado. Romão sentia-se contente e já se ria. Não só fez as pazes, como começou a gostar dela.
Palavra de honra, até ele mesmo se admirava!
Devo dar graças ao senhor, que me ensinou a ser razoável - dizia ele depois. Meu Deus, que parvo que eu era! Apanhar tantas vergastadas, para quê?! Agora vejo bem que fazia mal, recusando-me a casar. Estou muito contente com Oxana, mesmo muito contente.
Passaram-se as semanas e os meses. Um dia, reparei que Oxana se deitou num banco e começou a gemer. Durante a noite piorou. No dia seguinte, ouvi, com grande surpresa minha, o choro de uma criança.
«Toma! Há um menino cá em casa, disse eu para comigo. E não me enganava.
O menino não viveu muito tempo: apenas até à noite. Quando anoiteceu, já se não ouvia. Oxana pôs-se a chorar. Romão disse-lhe:
-Pronto, acabou-se. Já não temos menino. Não vale a pena chamar o pope; nós próprios o enterraremos debaixo de um pinheiro.
Romão atreveu-se a dizer isto. E não só o disse, como o fez: - abriu um buraco e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco, acolá? São os restos de um pinheiro fulminado por um raio. Foi ali precisamente que Romão enterrou o menino. Ouve o que te vou dizer, meu rapaz: quando o sol se põe e a primeira estrela aparece no céu, um passarinho voa por cima desse sítio, soltando gritos de aflição. O coração despedaça-se-me ao ouvi-lo. O passarinho é a alma do menino que foi enterrado sem os Sacramentos, e suplica que lhe ponham uma cruz. Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos poderá salvar essa alma penada.
Oxana esteve muito tempo doente. Logo que melhorou um bocado, começou a passear horas inteiras sobre a campa do filho. O que ela chorava, meu Deus! Os seus lamentos ouviam-se em toda a floresta. A pobre não se podia consolar.
A Romão era-lhe indiferente a morte da criança; mas tinha dó de Oxana.
Ao vê-la chorar, dizia:
-Cala-te, minha estúpida. Não há de que chorar. Aquele menino morreu; mas pode ser que tenhamos outros, e até talvez melhores do que ele. Porque pode ser que o menino morte não fosse meu...Não sei nada, mas as pessoas murmuram...E o novo com certeza que será meu.

Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp. 104/105

terça-feira, 2 de março de 2010

BORGES E EU

É ao outro, a Borges, que acontecem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, a olhar o arco de um alpendre e o guarda-vento; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num grupo de professores ou num dicionário biográfico. Gostos dos relógios de areia, dos mapas, da tipografia do século XVIII, do sabor do café e da prosa de Stevenson; o outro compartilha dessas preferências, mas de um modo vaidoso, que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que as nossas relações são hostis; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa tecer a sua literatura e essa literatura justifica-me. Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar,talvez porque o que é bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, mas sim da linguagem ou da tradição. Além do mais, eu estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante meu poderá sobreviver no outro. A pouco e pouco vou cedendo-lhe tudo, embora não desconheça o seu perverso costume de falsear e de magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar no seu ser; a pedra quer eternamente ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros que em muitos outros ou que no laborioso zangarreio de uma viola. Há anos procurei libertar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idealizar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e perco tudo e tudo é do esquecimento ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.

Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.99

Nirvana: Paper Cuts

O murmúrio da floresta tornou-se mais forte. O velho levantou a cabeça e escutou.
-O furacão aproxima-se, diz ele. Conheço-o bem. Quando ele começa a rosnar, a puxar pelos pinheiros, a arrancá-los da terra, é uma coisa que faz calafrios. É o demónio da floresta que se enfurece - acrescentou ele, mais baixo.
-Como é que o sabes, avô?
-Ora essa, sei-o muito bem! Compreendo a linguagem das árvores. Vês tu? As árvores também têm medo. O álamo alpino, por exemplo, essa árvore maldita, está sempre a gemer. Mesmo quando não há vento, treme. O pinheiro também. Quando está bom tempo, canta docemente; mas logo que o vento começa a soprar, põe-se a gemer de angústia. Escuta. Eu vejo mal, mas tenho bom ouvido. Agora é a azinheira que começa a queixar-se. O demónio da floresta ataca as azinheiras. É sempre assim antes do furacão.


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.98

Alentejo: entardecer invernal


- Bons dias, avô. Não está ninguém em casa?
- Eh! - e o velho fez um gesto negativo com a cabeça. Nem Zakar nem Máximo cá estão. Motria também partiu para a floresta, em busca da vaca. A vaca, provavelmente, extraviou-se. Talvez tenha sido devorada pelos ursos...Não, não está cá ninguém.
-Não faz mal, esperarei; e, enquanto espero, faço-lhe companhia.
-Como queiras.
Enquanto prendo o cavalo a uma azinheira, o velho olha-me com os seus olhos débeis e apagados. É muito, muito velho. Não vê quase nada, e as suas mãos são trémulas.
-Quem és tu, meu rapaz? -pergunta-me ele, depois de eu me ter sentado ao seu lado.
De cada vez que apareço faz idêntica pergunta.
-Ah! Agora caio em mim. É verdade, já me recordo, diz ele, contente, enquanto vai consertando uma velha bota rota - A minha velha cabeça já não conserva memória de nada. É como um crivo: dos que morreram há muito, recordo-me bem, mesmo muito bem; mas da gente nova esqueço-me sempre. Já se vê, como vivo neste mundo há tanto tempo...
-Vive nele assim há tanto tempo?
-Vamos, vamos, que há bastante. Já cá andava quando os franceses aqui vieram para batalhar com o nosso imperador.
-Então já tem visto muito, e já pode contar muita coisa.
O velho olha para mim com estranheza.
-Eu? Que tenho eu visto? Apenas a floresta, sempre rumorosa, seja de noite ou de dia, seja de inverno ou de verão. Tenho passado aqui toda a minha vida com estas árvores, e não tenho dado conta disso. Estou quase à hora da morte; mas às vezes, quando começo a pensar, pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente ou não. Talvez nunca tenha vivido...


Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.96/97

segunda-feira, 1 de março de 2010

«Por agora, pode voltar para o seu castelo, que é como quem diz: para o silêncio.»




Tasin in Nas Garras da Morte. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.77

Memórias De Um Louco

Levai-me para longe deste mundo! Avante Avante! Que nada se veja...
Já não vejo diante de mim o céu formoso. Uma estrela brilha ao longe. Sob a lua, passam bosques com as suas alamedas umbrosas, debaixo de uma neblina azulada. Dum lado, o mar; do outro, a Itália...
Eis as cabanas russas. É a minha casa que se vê à distância? Não é a minha mãi que está à janela? Mãi, mãi! Salva o teu pobre filho. Derrama uma lágrima sobre a sua pobre cabeça doente...Tu vês como o martirizam? Aperta ao teu peito o pobre órfão. Não há no mundo lugar para ele; expulsam-no de toda a parte. _ Mamã, mamã! Tem piedade do teu pobre filho doente...
Sabem que o Bey da Argélia tem uma verruga por baixo do nariz?...


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.50

domingo, 28 de fevereiro de 2010


Memórias De Um Louco

Não me lembro da data. Não havia
data. Não havia mês. Só havia o
diabo!


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.45

O Grande Inquisidor

O homem, acredita, é mais fraco e mais vil do que tu pensavas. Acaso pode ele fazer o que tu fizeste? Estima-lo demais e tens por ele muito pouca piedade. Exigiste-lhe demasiado, tu que o amas mais que a ti próprio. Devias amá-lo menos e exigir-lhe menos. Ele é fraco e cobarde. O facto de hoje se sublevar, por toda a parte, contra a nossa autoridade, e de se orgulhar com isso, nada significa. As suas bravatas são filhas de uma vaidade de caloiros. Os homens são sempre umas criancinhas: - revoltam-se contra o professor, abandonam a aula; mas a revolta acabará depressa, custar-lhes-à cara.


Dostoiévski in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.26

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Por tão pouco
saí das minhas cinzas o que sou:
O Homem do Bem e do Mal
que nunca pôde valer
ao espelho descarnado
que está no chão desenhado
a apodrecer



Miguel Torga in O Outro livro de Job, 5ª edição revista. Coimbra, 1986., pp.32
'Depressa se vai a primavera
Choram os pássaros e há lágrimas
nos olhos dos peixes' (pp.31)


'As cigarras cantam
sem saberem que é a morte
que as escuta' (pp.40)


'Crepúsculo:
as ervas parecem seguir
os rebanhos que recolhem. (pp.48)



Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética.
Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Poema Conjectural

O doutor Francisco Laprida, assassinado no dia
22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de
Aldao, pensa antes de morrer:
Zumbem as balas pela tarde última
Há vento e há cinzas sobre o vento,
dispersam-se o dia e a batalha
disforme, e a vitória é dos outros.
Triunfam os bárbaros, os gaúchos.
Eu, que estudei as leis e mais os cânones,
eu, Francisco Narciso de Laprida,
cuja voz declarou a independência
destas cruéis províncias, derrotado,
de sangue e de suor manchado o rosto,
sem esperança nem medo e perdido,
vou para Sul por arrabaldes últimos.
Como aquele capitão do Purgatórioque,
debandando a pé e ensanguentado
o plaino, a morte fez cegar, tombar
lá onde um rio obscuro perde o nome,
assim hei-de eu cair. Hoje é o termo.
A noite lateral de infindos pântanos
espia-me e demora-me. Oiço os cascos
da minha quente morte que me busca
com ginetes, com belfos e com lanças.
Eu que ansiei ser outro, ser um homem
de sentenças, de livros, de ditames,
sob o céu jazerei entre lameiros;
mas endeusa-me o peito inexplicável
um júbilo secreto. Entretanto enfim
o meu destino sul-americano.
A esta fatal tarde me levava
o labirinto múltiplo de passos
que meus dias teceram desde um dia
da meninice. Descobri por fim
a recôndita chave dos meus anos,
a sorte de Francisco de Laprida,
a letra que faltava, essa perfeita
forma que soube Deus desde o princípio.
No espelho desta noite recupero
o meu insuspeitado rosto eterno.
Vai-se fechar o círculo e aguardo.
Pisam meus pés a sombra dessas lanças
que me buscam. A mofa já da morte,
os ginetes, as crinas, os cavalos
adejam sobre mim...Já o primeiro
golpe me fende o peito, o duro ferro,
a faca interior sobre a garganta.
Jorge Luis Borges in Poemas Ecolhidos. Edição bilingue. Trad. e
selecção de Ruy Belo. Dom Quixote, 2003., pp.17/19

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

É então a nossa vida um sonho apenas
tenuemente visto numa luz dourada
através do irresistível e negro curso do Tempo?

Sobre a terra curvados por uma cruel mágoa
ou a rir em espectáculos de qualquer feira,
agitamo-nos ociosos de um lado para o outro.

O curto Dia do Homem passamo-lo apressadamente
e, do seu alegre meio-dia, não enviámos
sequer um rápido olhar para o fim silencioso.



Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003
Lewis Carroll, ao visitar um escultor seu amigo, encontrou uma criança e começou a mostrar-lhe as vantagens que ela teria se substituísse a sua cabeça por uma de mármore. Uma dessas vantagens era aliciante. Residia no facto de não ser necessário pentear-se. A criança mostrou-se efectivamente convencida, acolhendo da melhor maneira aquela justificação.
(notas de Fernando Guimarães)
Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prisoners:Claude Hankins


CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. Tu,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.


É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.



Paul Celan in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio.
Trad. João Barrento. Edição Bilingue. Edições Cotovia, Lisboa, 1998., pp.37

A Morte

Para Yvan Goll
A morte é uma flor que só se abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora de estação.
E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes
Deixar-me ser o caule forte da sua alegria.

Paul Celan in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio.
Trad. João Barrento. Edição Bilingue. Edições Cotovia, Lisboa, 1998., pp.15

Funkadelic: Maggot Brain

Sensação de vazio
Ao despedir-me colhi
uma espiga de trigo (pp.39)


Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago (pp.51)


Tendo adoecido em viagem
em sonhos vagueio agora
na planície deserta


Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986
Nós, que tanto nos amávamos, nunca tínhamos trocado uma palavra afectuosa.


Nikos Kazantzakis, in Zorba, O Grego., pp.8

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lava and Shore


Vem-me à lembrança, e choro este meu
pranto de crocodilo sincero...
Eu sou determinado, e Satanaz bem sabe
que não sei fazer o bem
e faço o mal que não quero...


Miguel Torga in O Outro livro de Job, 5ª edição revista. Coimbra, 1986., pp.52
Aquele que faz injustiça, faça-a ainda:
e aquele que está sujo, suje-se ainda:
e aquele que é justo, justifique-se ainda:
e aquele que é santo, santifique-se ainda.

Apocalipse
Cultivemos a planta
do silêncio: negro-musgo.
Dizer o nome
é perturbar o sono...


...a memória
a pulsação que dói...


Yvette K. Centeno, Entre Silêncios

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

'Uma simples palavra fez-me perceber que nada se modificou em mim no que a isto respeita, que é e continuará a ser uma ferida: que a trago comigo, tão funda que nunca sarará; ao fim de vários anos há-de continuar a ser exactamente o que era no primeiro dia'.

Van Gogh

The good reputation, sleeping, 1938


Há, na obra de um autor, palavras obsessivas, repetitivas, que são mais reveladoras que todos os factos recolhidos pela paciência dos biógrafos. Eis algumas que aparecem em Rimbaud: éternité, infini, charité, solitude, angoisse, lumiére, aube, soleil, amour, beauté, inouî, pitié, démon, ange, ivresse, paradis, enfer, ennui...

Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.34
Para compreender toda a importância da Estação no Inferno de Rimbaud, que se prolongou por dezoito anos, é preciso ler as suas cartas. Grande parte deste período foi passado na Costa da Somália e alguns anos em Aden. Vejamos uma descrição desse inferno terreno, contida numa carta dirigida à mãe: 'Não se pode imaginar o lugar: não há uma árvore, nem sequer ressequida, não há um tufo de erva. Aden é a cratera de um vulcão extinto cheia de areia do mar. Apenas se vê a lava e areia por todo o lado, incapazes de produzir o mais pequeno vestígio de vegetação. Em volta, areias desérticas. Os lados da cratera do nosso vulcão extinto impedem o ar de entrar e somos assados como num forno de cal'.

Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.16/17
Hoje, o poeta é obrigado a renunciar à sua vocação porque se lhe evidenciou já o seu desespero, porque já reconheceu a sua incapacidade de comunicar. Tempo houve em que ser-se poeta era a mais elevada das vocações; hoje é a mais fútil. E é assim, não porque o mundo se tenha tornado imune à voz do poeta, mas porque ele próprio já não acredita na sua missão divina. Há mais de um século que os poetas andam a cantar fora de tom; chegámos finalmente ao ponto em que ninguém os consegue acompanhar. O berro da bomba continua a fazer sentido, mas os delírios do poeta parecem uma algaraviada. Parecem e são, se, dois biliões de pessoas que há no mundo, só alguns milhares fazem de conta que entendem o que um determinado poeta diz. O culto da arte chega ao fim no momento em que só existe um punhado de eleitos. Nesse momento já não se trata de arte, mas sim da linguagem cifrada duma sociedade secreta devotada à divulgação de um individualismo desprovido de sentido.
Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.38

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Para uma metáfora ter vida necessita de duas condições essenciais: forma e raio de acção.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende.
Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 131

domingo, 31 de janeiro de 2010

Bill Fay - Time Of The Last Persecution - 1971


I must stand by the side of the mountain
I must be where I know I must be
When you stand and face the gas masks and truncheons
You must know what it all really means

It is the time of the last persecution
And Caesar shall be raised
He will ask for his feet to be kissed by your sister
And your children will fear at his name

Do not avenge these deaths do not avenge them
You must know what it all really means
It is the time of the Anti-Christ know what I say
Make for your own secret place

And others will join you there
And you wait for the ships in the air
And you wait for a sign like a trumpet sounding
And you go out and walk to the Christ
And you go out and walk to the Christ

vídeo aqui

sábado, 30 de janeiro de 2010

Sabes que eu compreendo a carne mínima do mundo
Para poder expressá-lo.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 95 ;do poema Lua e Panorama dos Insectos (O poeta pede ajuda à Virgem).

David Lynch and Isabella Rossellini


Matei-a para não lhe dar um desgosto.


Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ontem, até à hora dos pássaros ficavas comigo
e todos os falcões são agora corvos!

Marina Tsvetáieva in Poetas Russos. Trad. Manuel Seabra. Relógio D'Água Editores, 1995., pp. 141
Escorreguei e caí, por causa de uma casca de laranja. Estava muita gente. Desataram todos a rir. Principalmente a vendedeira do lugar, que me agradava. Levou com a pedra em cheio, mesmo entre os olhos: sempre tive boa pontaria. Caiu com as quatro patas para o ar, com a flor à mostra.
Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.103)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010



Rita Nunes, 1997, curta-metragem Menos 9

Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava, empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio era ordinário e a colher estava gasta, viscosa de tanto ser usada). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite dava voltas e mais voltas, com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu estava sentado mesmo em frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de se explicar:
-O açúcar ainda não se desfez todo.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberragem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem descanso, e o ruído da colher na borda do vidro. Trum, trum, trum. Incessante, incessante, sem descanso, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E olhava para mim, sorrindo. Então puxei pela pistola e disparei.

Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.24)

booktrailer dos 'Crimes Exemplares' de Max Aub




visto aqui
Quem pode dizer que não lhe caíram as asas? Acobardando-se até os virtuosos, que pretendem os que não alardeiam? Nunca estivemos tão perto desta terra que nos engolirá sem deixar da nossa passagem o mínimo rasto. Não deitemos as culpas para cima de ninguém; perdeu-se a semente, talvez devido ao mau tempo.

Max Aub Mohrenwitz, México, 1956
No ar deserto há uma dor de ausências
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!


Frederico García Lorca in Anjo e Duende., (pp.77)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A Galinha (Conto para crianças malucas)

Havia uma menina que era idiota. Disse idiota. Mas ainda é pouco dizer idiota. Picava-lhe um mosquito e desatava a correr. Picava-lhe uma vespa e desatava a correr. Picava-lhe um morcego e desatava a correr.
Todas as galinhas temem as raposas. Mas esta galinha queria que elas a devorassem. E portanto a galinha era uma idiota. Não era uma galinha. Era uma idiota.
Nas noites de Inverno, a lua das aldeias dá grandes bofetadas às galinhas. Umas bofetadas que se ouvem nas ruas. Dá muita vontade de rir. Os padres nunca serão capazes de compreender o porquê destas bofetadas, mas Deus sim. E as galinhas também.
Todos vós precisais de saber que Deus é um grande monte VIVO. Tem uma pele de moscas, e por cima uma pele de vespas, e por cima uma pele de andorinhas, e por cima uma pele de lagartos, e por cima uma pele de lombrigas, e por cima uma pele de homens, e por cima uma pele de leopardos,e tudo. Tudo, estais a ver? Por conseguinte tudo, e além disso uma pele de galinhas. Era isto o que a nossa amiga não sabia.
Dá vontade de rir, repararmos como as galinhas são simpáticas! Todas têm crista. Todas têm cu. Todas põem ovos. O que dizeis a isto?
A galinha idiota odiava os ovos. Gostava de galos, é certo, como as mãos direitas das pessoas gostam das picadas das silvas ou da iniciação da alfinetada. Mas ela odiava o seu próprio ovo. No entanto, nada é mais bonito do que um ovo.
Recém-tirado das espigas, ainda quente, é a perfeição da boca, da pálpebra e do lóbulo da orelha. A face quente daquela que acaba de morrer. É o rosto. Não estais a compreender? Eu compreendo. Dizem-no os contos japoneses, e também o sabem algumas mulheres ignorantes.
Não quero defender a beleza sem defeito do ovo, mas como toda a gente louva a pulcritude do espelho e a alegria dos que se espojam na relva, bem está que eu defenda um ovo contra uma galinha idiota.
Vou dizê-lo: uma galinha amiga dos homens.
Uma noite, a lua estava a repartir bofetadas pelas galinhas. O mar e os telhados e as carvoeiras tinham uma luz idêntica. Uma luz onde o besouro teria sido atingido pelas flechas de toda a gente. Ninguém dormia. As galinhas não podiam mais. Tinham as cristas cheias de orvalho e os piolhos tocavam as suas campainhas eléctricas no intervalo das bofetadas.
Por fim um galo decidiu-se.
A galinha idiota defendia-se.
O galo dançou três vezes, mas os galos não sabem enfiar bem as agulhas.
Os sinos das torres tocaram porque tinham que tocar, e os canais de rega, e os corredores, e os que jogam golfe três vezes ficaram cor de amora e a tilintar. A luta começou.
Galo preparado. Galinha idiota. Galinha preparada. Galo idiota. Ambos preparados. Ambos idiotas. Galo preparado. Galinha idiota.
Lutavam. Lutavam. Lutavam. Toda a noite nisto. E dez. E vinte. E um ano. E dez. E sempre.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 52/53

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Goldfrapp: eat yourself




Eat yourself

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
You could longer life
Seen it on this town

You went south on the train
She wore plastic boots for rain
And you crawl along exhausted
When you dream in tears, call on me

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
If you don't eat yourself
You will explode instead

Cause I love and love you so
When I know you don't love me
You wanted life, stay alone
Get wicked, anymore

Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life

José Boldt: 'Leitura'


Degolação dos Inocentes


Tris trás. Zigue zague, rigue rague, milgue malgue. A pele era tão recente que saía íntegra. Crianças e nozes de casca recém-formada.
Os guerreiros tinham raízes milenárias e o céu cabeleiras embaladas pelo hálito dos anfíbios. Era preciso fechar as portas. Pepito. Manolito. Enriquito. Jaimito. Emilito.
Quando ficarem loucas, as mães hão-de querer construir uma fábrica de chapéus de pórfiro, mas com esta crueldade nunca poderão atenuar a ternura dos seus peitos derramados.
Os tapetes eram enrolados. O ferrão da abelha tornava possível o manejo de espada,
Era necessário o ranger de ossos e o rebentar dos açudes dos rios. Uma bacia e basta. Mas uma bacia que não se assume com o jacto interminável que há-de soar durante três dias.
Subiam às torres e desciam até aos búzios. Por fim, uma luz de clínica venceu a untosa luz do hospital. Já era possível operar com todas as garantias, Iodofórmio e violeta, algodão e prata de ouro mundo.Vão entrando! Há pessoas que se atiram das torres para os pátios e outras, desesperadas, que espetam tachas nos joelhos. A luz da manhã era cortante e o vento oleoso tornava possível a ferida menos esperada.
Jorgito. Alvarito. Guilhermito. Leopoldito. Julito. Joseíto. Luisito. Inocentes. O aço precisa de calores para criar as nebulosas, e lá vamos à incansável lâmina! É melhor ser medusa e flutuar, do que ser criança. Alegríssima degolação! Função lógica do sangue sem luz, que sangra as suas paredes.
Chegavam das ruas mais distantes. Todos os cães levavam um pezinho na boca. O pianista louca apanhava unhas rosadas para construir um piano sem emoção, e os rebanhos baliam com os pescoços partidos.
É preciso ter duzentos filhos e entregá-los à degolação. Só desta forma seria possível a autonomia do lírio silvestre.
Vinde! Vinde! Aqui está o meu filho tão macio, o meu filho de pescoço fácil. Poderás degolá-lo facilmente no patamar da escada.
Dizem que está a ser inventada a navalha eléctrica, para reanimar a operação.
Recordais-vos do rouxinol com as duas patas partidas? Estava entre os insectos criadores dos frémitos e das cuspidelas. Pontas de agulha. E teias de aranha sobre as constelações. Dá vontade de um verdadeiro riso pensarmos como a água está fria. Água fria nas areias, nos céus frios e nos dorsos de caimão. Aqui, nas ruas, corre o mais escondido, o mais saboroso, o que bate os dentes e faz empalidecer as unhas. Sangue. Com toda a força do seu g.
Se medirmos e estivermos cheios de piedade verdadeira, a degolação parecer-nos-á uma das grandes obras de misericórdia. Misericórdia do sangue cego que, seguindo a lei da sua natureza, quer desaguar no mar. Nem sequer houve uma voz. O chefe dos hebreus atravessou a praça para acalmar a multidão.
Às seis da tarde não restavam mais de seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas as feridas já estavam todas secas.
Já todo o sangue cristalizara quando as lanternas começaram a aparecer. Nunca haverá no mundo outra noite igual àquela. Noite de vidros e mãozinhas geladas.
Os seios enchiam-se de leito inútil.
O leite materno e a lua travaram a batalha dos mármores e lá deixava espetadas as suas últimas raízes enlouquecidas.


Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 38/40

sábado, 23 de janeiro de 2010

Atmosphere - Joy Division

História deste galo

«Na mesma manhã em que foi aprovado o projecto de abrir a Gran Vía, que tanto contribuiu para deformar o carácter dos actuais granadinos, don Alhambro morreu.
Quatro velas. Four candles.
Ninguém no seu enterro. Sim. As andorinhas. The Swallows. Uma pena.
A seguir ao enterro, o galo saiu pela janela e atirou-se ao perigo da rua e à má vida. Chegou a pedir esmola aos ingleses na Porta do Vinho, e fez-se amigo de dois anões que tocavam flauta e vendiam touros de doce. Um verdadeiro vadio. E depois desapareceu. » (pp.36)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

Fatalidade

O rosto que mereces está sempre noutro espelho.


José Mário Silva in Efeito Borboleta e outras histórias. Oficina do Livro, 2008

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A Aia

«Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!...Então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar, aquele lento mover da sua mão aberta. Que jóia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis, ia ela escolher?
A ama estendia a mão - e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.
Agarrada ao punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios de Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:
-Salvei o meu príncipe - e agora vou dar de mamar ao meu filho!
E cravou o punhal no coração. (pp.162)

Eça de Queiroz in Contos. Edição «Livros do Brasil», Lisboa.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

«Desenhado com lâmpadas eléctricas, não custava nada lermos no escuro: Estação de São Lázaro.
São Lázaro nasceu muito pálido. Deitava um cheiro a ovelha molhada. Quando lhe davam açoites, lançava pela boca torrões de açúcar. Ouvia os menores ruídos. Uma vez confessou à mãe que podia, pelas batidas, contar de madrugada todos os corações que havia na aldeia.» (pp.27)


Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007

domingo, 17 de janeiro de 2010

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