«Diz-se que são olhos de mar, tão profundos que o seu fundo tem comunicação com o Mar Negro.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 64
domingo, 12 de janeiro de 2014
«Se mastigássemos bem, o caroço ficava muito liso e quente na língua. Estas ginjas nocturnas eram uma felicidade, mas aumentavam ainda mais a fome.
(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.
(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
(...)Na viagem de regresso, a noite era de breu.
(...) Então, a gente nada mais tinha, a não ser aquela longa noite vazia em companhia dos piolhos.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 62
Madeira e Algodão
« Havia dois tipos de sapatos. As galochas de borracha eram um luxo. Os sapatos de madeira, uma catástrofe: só a sola era de madeira, uma tabuazinha da grossura de dois dedos. A parte de cima era de serapilheira, com uma tira estreita de couro à volta. O pano era pregado à sola, ao longo da tira de couro. Como a serapilheira era demasiado fraca para os pregos, rasgava-se sempre, a começar pelos calcanhares. Os sapatos de madeira eram altos, tinham ilhoses para apertar, mas não havia atacadores. A gente metia-lhes arame fino por dentro e apertava-o nas pontas, retorcendo em espiral. A serapilheira esfarrapava-se também à volta dos ilhoses ao fim de poucos dias.
Com sapatos de madeira não se consegue dobrar os dedos. Não se levantam os pés do chão, arrastam-se as pernas. De tanto arrastar, estas ficam rígidas nos joelhos. Era um alívio quando as solas de madeira rasgavam pelo calcanhar, os dedos dos pés ficavam um pouco livres e conseguia-se dobrar melhor o joelho.
Nos sapatos de madeira, não havia direito nem esquerdo e só três tamanhos: minúsculo, enorme e, muito raramente, médio. Na rouparia, a gente procurava dois sapatos do mesmo tamanho, no monte de madeira com lona. »
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 49
«Havia muitos dias em que tinha de rir para dentro de mim. Havia muitos outros em que o hotel desabava redondo por dentro, quer dizer, por dentro de mim, e vinham-me as lágrimas aos olhos. Queria voltar a erguer-me, mas já não me reconhecia.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 48
«O barbeiro estava a aparar-lhe os pêlos do nariz com uma tesoura enferrujada. Terminada que foi também a segunda narina, escovou-lhe os pelinhos que ficaram no queixo, como formigas, e voltou-se um pouco de costas para o espelho, para o Prikulitsch não o ver piscar o olho. Estás satisfeito, perguntou ele. Disse o Tur: Com o meu nariz, sim.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 45
«Para mim, nesse dia, o importante foi ter tocado no único assunto que te punha fora de ti, te obrigava a sair da tua indiferença e a dares-me atenção, embora só para me odiares. »
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 50
...Sim, nesse ano conheci o amor.
«...Sim, nesse ano conheci o amor. Foi a minha insaciabilidade que deitou tudo a perder. Não me bastou tê-la na penúria, quase na miséria. Queria que estivesse sempre à minha disposição, sem ver ninguém. Tinha de estar presa, ou livre, conforme os meus caprichos ou os momentos de disponibilidade. Era minha. O meu gosto de possuir, usar e abusar estende-se aos seres humanos. Gostaria de ter tido escravos. Desta vez, pensei ter encontrado uma vítima à medida das minhas exigências. Vigiava-lhe até os olhares...Mas...lá estou a esquecer a promessa de não falar nisto. Ela partiu para Paris, não aguentou.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48
Eu esperei
Eu esperei
Mas o dia não se fez melhor
E o sujo não se quis limpar,
Inventou mais flores em meu redor
Como se eu não fosse olhar!
Enfeitou as ruas para cobrir
Terra seca de não semear
Deram-me água turva a beber
Dizem cura e força e solução
Como se eu não fosse olhar!
Eu esperei
Mas o fumo não saiu da estrada
Arde o sonho em troca de nada
Dizem festa, mas é solidão
Como se eu não fosse olhar!
A mentira não se fez verdade
E a justiça não se fez mulher
A revolta não se fez vontade
Braços novos sem educação
Sangue velho chora de saudade!
Eu esperei
Dizem luta mas não há destino
Dão-me luzes mas não é caminho
Dizem corre mas não é batalha
Como quem não quer mudar!
Esta corda não nos sai das mãos
Esta lama não nos sai do chão
Esta venda não deixa alcançar.
Cantam "armas" mas não é amor
Mão no peito mas não é amar
Fato justo mas sem lealdade
Cavaleiro mas já sem moral
Braços sujos que se vão esconder
Braços fracos não são de lutar
Braços baixos não se querem ver
Como se eu não fosse olhar!
Eu esperei
Pelo tempo transparente em nós
Pelo fruto puro de escolher
Pela força feita de alegria
Mas o povo dorme na ilusão!
E a tristeza é forma de sinal
Liberdade pode ser prisão...
Meu deus, livra-nos do mal
E acorda portugal...
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«Tornei-me perito na arte de destruir os sentimentos na altura exacta em que a vontade desempenha papel decisivo no amor; no momento em que, à beira da paixão, ainda estamos livres e conscientes para retrocedermos ou nos abandonarmos.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 48
«...Mas eu perdi a fé nas pessoas, ou, antes, na possibilidade de agradar a alguém.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 47
sábado, 11 de janeiro de 2014
“Perhaps I really regard myself as an intelligent man only because throughout my entire life I've never been able to start or finish anything.”
Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground
domingo, 5 de janeiro de 2014
«sente-se a solidão, o peso,
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 173
minarem cada gesto; e antes
do gesto, a ideia de o fazer;»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 173
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III
Para haver rio
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo: antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 157
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo: antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite,
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 157
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Sobre o lado esquerdo
«De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: « o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 101
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Fruto
«Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 99
«Escrevo na madrugada as últimas palavras deste livro: e tenho o coração tranquilo, sei que a alegria se reconstrói e continua.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 72
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Sonetos de Shakespeare
reescritos em português
II
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Estes dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas;
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
III
Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer de um ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 64/65
reescritos em português
II
Como voltar feliz ao meu trabalho
se a noite me não deu nenhum sossego?
A noite, o dia, cartas dum baralho
sempre trocadas neste jogo cego.
Estes dois, inimigos de mãos dadas,
me torturam, envolvem no seu cerco
de fadiga, de dúbias madrugadas;
e tu, quanto mais sofro mais te perco.
Digo ao dia que brilhas para ele,
que desfazes as nuvens do seu rosto;
digo à noite sem estrelas que és o mel
na sua pele escura: o oiro, o gosto.
Mas dia a dia alonga-se a jornada
e cada noite a noite é mais fechada.
III
Foi tal e qual o inverno a minha ausência
de ti, prazer de um ano fugitivo:
dias nocturnos, gelos, inclemência;
que nudez de dezembro o frio vivo.
E esse tempo de exílio era o do verão;
era a excessiva gravidez do outono
com a volúpia de maio em cada grão:
um seio viúvo, sem senhor nem dono.
Essa posteridade em seu esplendor
uma esperança de órfãos me parecia:
contigo ausente, o verão teu servidor
emudeceu as aves todo o dia.
Ou tanto as deprimiu, que a folha arfava
e no temor do inverno desmaiava.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 64/65
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William Shakespeare
«Andam os mortos enfeitando-se ao frio,
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 40
servindo-se das árvores para ter cabelos;
deslizam ao fulgor das estrelas, loiros, amarelos,
e fitam-se no tempo, ou no espelho dum rio?»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 40
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sexta-feira, 3 de janeiro de 2014
Quatro Poemas de Samuel Beckett
1. Dieppe
torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz
2.
o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo
a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha
3.
que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha
que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil
4.
Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor
Four Poems by Samuel Beckett
1. Dieppe
again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town
2.
my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end
my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts
3.
what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust
what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness
4.
I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me
Four Poems by Samuel Beckett, translated from the French by the author Hugo Pinto Santos
torna derradeira maré vaza
morto seixo
a volta logo os passos
rumo à vila sob a luz
2.
o meu curso é na areia fluida
entre seixo e duna
chuva de verão chove-me na vida
em mim vida que me segue me foge
até ao cabo até ao rabo
a minha paz ali está na névoa a recuar
onde eu possa não mais dar estes passos longos em limiares fugidios
e viva o espaço de tempo de uma porta
que se abre e se fecha
3.
que faria eu sem este mundo sem rosto sem curar de nada
onde ser não dura mais que um instante onde cada instante
verte no vazio a ignorância de ter sido
sem esta vaga onde por fim
corpo e sombra juntos se engolfam
que faria eu sem este silêncio onde murmúrios morrem
ofegando fremindo rumo ao auxílio rumo ao amor
sem este céu que se eleva
acima do pó da sua gravilha
que faria eu que fiz ontem e antes
espreitando da minha escotilha buscando outrem
vagando como eu na corrente alheio a toda a vida
num espaço convulso
por entre as vozes afásicas
que se aglomeram no meu covil
4.
Queria que o meu amor morresse
e chovesse sobre as campas e
sobre mim cruzando as ruas de
luto pelo primeiro o derradeiro amor
Four Poems by Samuel Beckett
1. Dieppe
again the last ebb
the dead shingle
the turning then the steps
toward the lighted town
2.
my way is in the sand flowing
between the shingle and the dune
the summer rain rains on my life
on me my life harrying fleeing
to its beginning to its end
my peace is there in the receding mist
when I may cease from treading these long shifting thresholds
and live the space of a door
that opens and shuts
3.
what would I do without this world faceless incurious
where to be lasts but an instant where every instant
spills in the void the ignorance of having been
without this wave where in the end
body and shadow together are engulfed
what would I do without this silence where the murmurs die
the pantings the frenzies toward succour towards love
without this sky that soars
above its ballast dust
what would I do what I did yesterday and the day before
peering out of my deadlight looking for another
wandering like me eddying far from all the living
in a convulsive space
among the voices voiceless
that throng my hiddenness
4.
I would like my love to die
and the rain to be falling on the graveyard
and on me walking the streets
mourning the first and last to love me
Four Poems by Samuel Beckett, translated from the French by the author Hugo Pinto Santos
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quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Já escuro e denso o rio da memória
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 36
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 36
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«E quanto mais estendo as mãos urgentes,
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 35
mais um dúbio fulgor acende o vento:
podes descer silenciosamente
sobre os meus versos, luz do esquecimento.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 35
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«Quando as pedras estalam a gritar
e os cardos sonham as margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 34
e os cardos sonham as margens de altos rios;
quando a sede põe a água num altar
e ajoelha como a um deus de lábios frios.»
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 34
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Mais do que penso, sonho; donde vim?
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 33
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Janine
«Janine será, até morrer, o tipo da mulher que sabe tudo, repete o que ouve só para parecer distinta, dá opiniões sobre todos os assuntos, sem compreender nenhum.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 39
«Então, começaram os anos de gestações, de acidentes, de partos, que me forneciam mais pretextos que os necessários para me afastar de ti. Afundei-me numa vida de desordens secretas. Muito secretas, porque começava a ser conhecido como advogado. «O negócio corria bem», como dizia minha mãe, e a mim interessava-me salvar as aparências. Adquiri os meus hábitos; tinha as minhas horas. O devasso, numa cidade da província, acaba por adquirir a astúcia e o instinto dos animais de caça. Descansa, Isa, evitarei tudo quanto te faça sofrer. Não tenhas receio que te descreva o inferno onde quase todos os dias eu descia. Foste tu que para lá me atiraste; tu, que dele me tinhas salvo.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37
Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.
«A meio da noite, o meu sofrimento despertava-me. Estava preso a ti, como a raposa na armadilha. (...) Eu não era um monstro. A primeira rapariga que me conhecesse e me tivesse amado teria feito de mim tudo quanto quisesse.» Às vezes, gemia na escuridão e tu não acordavas.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 37
«Tu estavas à janela, de cabeça inclinada. Com uma das mãos seguravas o cabelo; com a outra, escovava-lo. Não me viste. Olhei-te um instante, possuído de um ódio cujo sabor amargo ainda hoje sinto na boca, passados tantos anos.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36
Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.
«O meu coração (choca-te, eu falar no meu coração?), pois o meu coração esteve prestes a estalar. Só me vieram aos lábios palavras hesitantes...Por onde começar? Sucumbo sempre à facilidade do silêncio.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 36
«O que eu pretendia ouvir da tua boca não o sabia já?»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 35
«Nem de longe pressentiste quão profunda era a minha dor, mas preocupou-te o meu silêncio.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 34
Não amava, deixava-se amar.
«Repetiste-me várias vezes que não estavas arrependida. Contendo a respiração, deixei-te falar. Garantiste-me que não terias sido feliz com esse Rodolfo. Era bonito de mais. Não amava, deixava-se amar. Qualquer outra mulher ter-to-ia roubado facilmente.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 33
terça-feira, 31 de dezembro de 2013
A pátria é a viagem
Rui Nunes e a viagem: “Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar”
A pátria é a viagem de Rui Nunes
06.06.2012
Por: Maria da Conceição Caleiro
Por: Maria da Conceição Caleiro
É um escritor que se subtraiu sempre das luzes da ribalta. Por princípio e por pudor. Todavia é um imenso escritor, um dos melhores
Recebeu em 1992 o Prémio PEN Clube Português de ficção e em 1998 o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Sauromaquia (1976) é o seu primeiro livro. Barro, que acaba de sair, o último.
Quando perguntaram a Hélia Correia que medidas tomaria para uma maior divulgação das obras de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu intempestivamente: "Nenhumas, quem sentir a falta que leia". E se a mesma pergunta fosse colocada a Rui Nunes sobre Rui Nunes?
Não calculo. Nada, possivelmente, como disse Hélia Correia. "Quem quiser que leia" é uma belíssima resposta. Não há muito a fazer. A publicidade destrói completamente aquilo que escrevo, é uma sombra que se projecta. Esse tipo de mostração torna pornográfico aquilo que o não é. Cada livro vai conseguindo os leitores que merece. Se, por publicidade, o livro chegar aos leitores que não são os leitores dele, eles não ficam, vão-se embora.
No seu novo livro, Barro, subtrai até ao osso a matéria ficcional que comummente se espera. Parte-se de referências autobiográficas - a infância, a exposição The Porn Identity na Kunsthalle de Viena em 2009, o desejo, a constelação de autores que o marcaram (Celan, Tolstói, Victor Hugo, O Conde de Monte Cristo...)
São elementos autobiográficos, mas o livro não é uma autobiografia. Tentei reunir os elementos da minha vida que contribuíram para a construção da minha escrita, que estão na génese dela. No seguimento de A Mão do Oleiro, há uma presença do texto bíblico. Logo no começo deste, o que Deus disse a Jeremias: "E Deus disse: faça-se / do lixo, um rosto". Em Barro, as primeiras duas palavras são as do Génesis: "No princípio". Não sou católico, nem crente propriamente, mas o texto bíblico está inscrito na minha matriz, sobretudo o Antigo Testamento. Tem uma força, uma violência, uma beleza que o Novo Testamento não tem, está mais perto de nós.
Falemos então de Deus, presença disseminada no livro.
Será que falamos de outra coisa? No fundo, Deus é esse nada que leva a falar. É todos os sentidos e não é sentido nenhum. Mas preenchemos essa falta com a malignidade das próprias palavras.
Em Barro repete-se várias vezes um poema: "Estão sempre a recomeçar/ as palavras de qualquer fome./ Anónimas. Tornam anónimas todas as bocas. Todas as mãos./ Todos os gestos./ As palavras só prolongam palavras./ Até ao tumulto. De um rosto". Quer comentar?
Isso diz o meu fascínio pela palavra. Ao mesmo tempo, a palavra só é verdadeira quando acaba num rosto. Que a pára. Não é que a elimina, mas que a recebe e cala.
E a última palavra é o nome de Deus?
A última palavra é um rosto imensamente esperado. Falta sempre uma palavra a qualquer livro.
A espera mantém-se?
É essa espera de um rosto que vai alimentando a escrita. Escrevendo, mantém-se a espera. E como a única coisa que interessa é essa espera, escreve-se unicamente para a manter.
E aí irrompe a questão do tempo?
Exacto.
No limite a interrupção é o rosto?
É o rosto. O rosto é que é. O rosto é. Aliás a importância do rosto está em Levinas.
É uma responsabilidade a que não se pode virar a cara?
Por isso, como diz Hölderlin, "no rosto está o dialogo". O Levinas é profundamente hölderliniano, na consciência de que é no rosto que está o dialogo e de que as palavras são um bem perigoso.
No que escreve há uma violência e uma beleza às vezes sufocante.
O elemento autobiográfico cria violência porque a relação com esse elemento - que quer entrar no texto - é uma relação violenta, e são os acontecimentos violentos que marcam. A felicidade não marca, a felicidade apaga o texto, só a violência o faz nascer. Na minha vida também, eu penso até que o Antigo Testamento seja uma presença inapagável em todas as vidas. Está lá, como está na origem do ser que nós somos, como origem, como olhar, como conceito.
Tem muitas pátrias?
Quanto mais tempo estou, mais estrangeiro me sinto porque vou perdendo a minha coesão, vou perdendo a minha identidade, vou-me dissolvendo, de modo que é melhor não estar muito tempo nos sítios.
Como a palavra que, repetida, se esvai completamente?
É isso, uma palavra repetida perde o sentido, chega a uma altura em que é unicamente um som. Tal como um país repetido vai perdendo todo o sentido. A viagem é exactamente o contrário, a viagem é a pátria, é a grande pátria. Porque é na viagem que eu ganho coesão, não é na paragem; na paragem eu perco. A vida devia ser um durante com muito poucas paragens.
Portanto, a chegada nunca.
A partida é sempre exaltante, a chegada é pobre. Acontece-me prolongar as viagens. Quer dizer, pequenas viagens que podia fazer nuns minutos, eu faço o possível para que elas durem duas, três horas. Posso apanhar um comboio directo de enorme velocidade entre Sankt Pölten e Viena, mas prefiro apanhar o comboio vagaroso que pára em todas as estações e apeadeiros. Portanto estou sempre a partir. E gosto muito de escrever durante a viagem, no comboio. Já a minha mãe era assim. Isso está nos genes.
Assim como noutras figuras da sua infância.
Eu só falo de um, mas os meus dois avós fugiram de casa antes dos dez anos. O meu avô materno, que nós chamávamos o avô do mar, nunca mais voltou. E o meu avô paterno voltou à terra dele à volta dos 20 anos. Isso marca a pessoa. O meu avô materno fez uma viagem do Algarve a Setúbal a pé, atravessou o Alentejo todo a pé, teve febres porque na altura havia malária na região do Sado. Eu tenho esse movimento inscrito nos genes, não consigo estar parado, não consigo estar em Lisboa, aliás não gosto da cidade. De Lisboa para o Algarve, do Algarve para a Beira.... Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar. O problema é o regresso, qualquer regresso é uma tragédia. A vida devia ter sido feita de partidas.
São várias as casas de que fala...
Eu nunca tive uma casa minha, minha. Vivi sempre na casa dos outros. Aos nove meses fui para casa da minha tia Amélia, dos meus avós da Beira, depois estive fora, a casa de minha mãe, depois a casa de amigos. A ideia de casa também não está inscrita em mim, a casa é sempre precária...
Infamiliar?
Infamiliar, ou familiar no pior sentido. São a expressão do poder, de uma ordem à qual eu sou sempre estranho.
A viagem desordena tudo isso?
Exacto, a viagem é uma espécie de sintaxe. Liga, mas é a única - e eu digo isso muito - que não tem a dimensão do poder, pelo contrário, é a única que dissolve o poder, que o destrói. Todas as outras constroem, mantêm-no, reproduzem-no.
Retomemos O Barro. Várias são as figuras que se desenham e insistem. O pai, sobretudo os avós.
Os meus avós deram-me todas as palavras do mundo. Um deu-me as palavras do mar, outro deu-me as palavras da terra,
Os barcos e as sementes...
Exacto, eu recebi todos os nomes como uma espécie de dádiva, fiquei com todos os nomes. O meu avô do mar tentou dar-me a história, mas ele sabia que a história não deve acabar. Eu pedia-lhe para contar O Conde de Monte Cristo e ele todas as noites inventava uma história diferente do Conde de Monte Cristo. Ainda hoje não sei como é que aquilo acaba, não quero saber.
Acaba por ser tudo uma espécie de emblema do viajar, anda-se à volta disso sempre?
Os meus avós eram viajantes, mas é estranho, o meu pai não. Via-se que tinha um prazer espantoso na História, nessa fixação do tempo, das coisas, das personagens, e a ele devo muitas das leituras que fiz em criança. O ter lido o Guerra e Paz, que foi para mim um livro matricial, Ele deu-me a fixidez da história, os meus avós deram-me a errância dos nomes.
Mas o nome fixa.
O nome amarra, mas de uma maneira diferente da frase. Amarra uma coisa a um solo e nunca mais o larga, como uma carraça se agarra a um cão e nunca mais o larga, desloca-se com ele. Por isso é que as palavras são impressionantes, as palavras têm essa ambiguidade de se moverem, de frase em frase, de texto em texto, mas carregando um sentido, um significado do qual não se conseguem libertar, às vezes ganhando novos significados, mas nunca perdendo os outros; acumulando significados.
Há palavras que insistem: barro é uma delas, Celan outra; ou Schnee (neve, em alemão)... Porquê?
Aquilo que me impressiona no Celan é um profundo e inultrapassável contencioso com todas as línguas, as que dominava, onde vivia, por onde andava. Não é só o alemão que é a palavra do carrasco, são todas as línguas. O português é, e vê-se o medo que as pessoas têm quando falam da língua, vêem-na como qualquer coisa de sagrado. Não entendo, o respeito por ela é precisamente o afastamento dela. Uma língua precisa de ser macerada, precisa de ser cortada, destruída, para libertar.
E é isso que faz?
Só assim eu a entendo, só assim consigo usá-la. Porque se não não sou eu quem a está a mostrar, é a língua, com o seu poder denunciante, a mostrar-me, e eu tornei-me numa vítima. Eu só não me torno numa vitima quando a consigo macerar. Se não, cada vez que falo digo que sou culpado não sei bem de quê.
De uma teia?
É, de uma teia. Uma mosca, o insecto que cai na teia, cai numa lógica da aranha.
Porque escreve barro em português e neve em alemão?
Eu só posso escrever assim porque é a neve do Celan, é aquela neve. O barro é um termo brutal e lindíssimo que eu estou a ver, e só pode ser aquele, aquela bola que o oleiro põe na roda e começa a moldar. A maior parte das pessoas nunca viu aparecer um cântaro, e realmente, se se pode imaginar a criação, é isso. E a água que se tem de pôr, amniótica... É um parto..
A luz é uma presença subliminar no que escreve. As coisas que a luz recorta e que, ao fazê-lo, traz para a morte. Gostava que falasse do fenómeno.
A luz é a morte, a luz conduz. Há um momento em que a luz não se vê, vêem-se as coisas. Esse tal momento da madrugada em que tudo está nítido e não há sombra é o momento não maligno da luz; depois, quando o tempo passa, a luz maligniza-se e o processo de malignização da luz vê-se na sombra que vai saindo dos objectos. A primeira sombra é imensa e pouco concentrada, com o tempo a sombra reduz-se e concentra-se, e assim dá espaço ao clarão. Portanto a luz vai-se tornando mortal, não se consegue ver nada: é quando o sol está no zénite. O mundo mostra-se pacificado nesse momento em que as coisas não produzem sombra, porque são vistas limpamente.
É o momento da coincidência.
É isso. Aquela nostalgia que eu penso que existe em todas as pessoas da coincidência do nome e da coisa realiza-se nesse momento: ‘Olha, aquilo não é uma árvore, é um sobreiro, é uma azinheira, é uma oliveira'. As coisas ganham não um nome abstracto, mas o seu nome. E, realmente, quando Deus disse ‘faça-se a luz', não foi o grande clarão, foi com certeza esse momento único em que é possível nomear.
E foi bom!
E foi bom (risos)!
E o livro próximo?
Um título que dê a ideia de um cântaro partido. La Potière Jalouse seria um grande título, mas já existe no Lévi-Strauss.
Recebeu em 1992 o Prémio PEN Clube Português de ficção e em 1998 o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Sauromaquia (1976) é o seu primeiro livro. Barro, que acaba de sair, o último.
Quando perguntaram a Hélia Correia que medidas tomaria para uma maior divulgação das obras de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu intempestivamente: "Nenhumas, quem sentir a falta que leia". E se a mesma pergunta fosse colocada a Rui Nunes sobre Rui Nunes?
Não calculo. Nada, possivelmente, como disse Hélia Correia. "Quem quiser que leia" é uma belíssima resposta. Não há muito a fazer. A publicidade destrói completamente aquilo que escrevo, é uma sombra que se projecta. Esse tipo de mostração torna pornográfico aquilo que o não é. Cada livro vai conseguindo os leitores que merece. Se, por publicidade, o livro chegar aos leitores que não são os leitores dele, eles não ficam, vão-se embora.
No seu novo livro, Barro, subtrai até ao osso a matéria ficcional que comummente se espera. Parte-se de referências autobiográficas - a infância, a exposição The Porn Identity na Kunsthalle de Viena em 2009, o desejo, a constelação de autores que o marcaram (Celan, Tolstói, Victor Hugo, O Conde de Monte Cristo...)
São elementos autobiográficos, mas o livro não é uma autobiografia. Tentei reunir os elementos da minha vida que contribuíram para a construção da minha escrita, que estão na génese dela. No seguimento de A Mão do Oleiro, há uma presença do texto bíblico. Logo no começo deste, o que Deus disse a Jeremias: "E Deus disse: faça-se / do lixo, um rosto". Em Barro, as primeiras duas palavras são as do Génesis: "No princípio". Não sou católico, nem crente propriamente, mas o texto bíblico está inscrito na minha matriz, sobretudo o Antigo Testamento. Tem uma força, uma violência, uma beleza que o Novo Testamento não tem, está mais perto de nós.
Falemos então de Deus, presença disseminada no livro.
Será que falamos de outra coisa? No fundo, Deus é esse nada que leva a falar. É todos os sentidos e não é sentido nenhum. Mas preenchemos essa falta com a malignidade das próprias palavras.
Em Barro repete-se várias vezes um poema: "Estão sempre a recomeçar/ as palavras de qualquer fome./ Anónimas. Tornam anónimas todas as bocas. Todas as mãos./ Todos os gestos./ As palavras só prolongam palavras./ Até ao tumulto. De um rosto". Quer comentar?
Isso diz o meu fascínio pela palavra. Ao mesmo tempo, a palavra só é verdadeira quando acaba num rosto. Que a pára. Não é que a elimina, mas que a recebe e cala.
E a última palavra é o nome de Deus?
A última palavra é um rosto imensamente esperado. Falta sempre uma palavra a qualquer livro.
A espera mantém-se?
É essa espera de um rosto que vai alimentando a escrita. Escrevendo, mantém-se a espera. E como a única coisa que interessa é essa espera, escreve-se unicamente para a manter.
E aí irrompe a questão do tempo?
Exacto.
No limite a interrupção é o rosto?
É o rosto. O rosto é que é. O rosto é. Aliás a importância do rosto está em Levinas.
É uma responsabilidade a que não se pode virar a cara?
Por isso, como diz Hölderlin, "no rosto está o dialogo". O Levinas é profundamente hölderliniano, na consciência de que é no rosto que está o dialogo e de que as palavras são um bem perigoso.
No que escreve há uma violência e uma beleza às vezes sufocante.
O elemento autobiográfico cria violência porque a relação com esse elemento - que quer entrar no texto - é uma relação violenta, e são os acontecimentos violentos que marcam. A felicidade não marca, a felicidade apaga o texto, só a violência o faz nascer. Na minha vida também, eu penso até que o Antigo Testamento seja uma presença inapagável em todas as vidas. Está lá, como está na origem do ser que nós somos, como origem, como olhar, como conceito.
Tem muitas pátrias?
Quanto mais tempo estou, mais estrangeiro me sinto porque vou perdendo a minha coesão, vou perdendo a minha identidade, vou-me dissolvendo, de modo que é melhor não estar muito tempo nos sítios.
Como a palavra que, repetida, se esvai completamente?
É isso, uma palavra repetida perde o sentido, chega a uma altura em que é unicamente um som. Tal como um país repetido vai perdendo todo o sentido. A viagem é exactamente o contrário, a viagem é a pátria, é a grande pátria. Porque é na viagem que eu ganho coesão, não é na paragem; na paragem eu perco. A vida devia ser um durante com muito poucas paragens.
Portanto, a chegada nunca.
A partida é sempre exaltante, a chegada é pobre. Acontece-me prolongar as viagens. Quer dizer, pequenas viagens que podia fazer nuns minutos, eu faço o possível para que elas durem duas, três horas. Posso apanhar um comboio directo de enorme velocidade entre Sankt Pölten e Viena, mas prefiro apanhar o comboio vagaroso que pára em todas as estações e apeadeiros. Portanto estou sempre a partir. E gosto muito de escrever durante a viagem, no comboio. Já a minha mãe era assim. Isso está nos genes.
Assim como noutras figuras da sua infância.
Eu só falo de um, mas os meus dois avós fugiram de casa antes dos dez anos. O meu avô materno, que nós chamávamos o avô do mar, nunca mais voltou. E o meu avô paterno voltou à terra dele à volta dos 20 anos. Isso marca a pessoa. O meu avô materno fez uma viagem do Algarve a Setúbal a pé, atravessou o Alentejo todo a pé, teve febres porque na altura havia malária na região do Sado. Eu tenho esse movimento inscrito nos genes, não consigo estar parado, não consigo estar em Lisboa, aliás não gosto da cidade. De Lisboa para o Algarve, do Algarve para a Beira.... Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar. O problema é o regresso, qualquer regresso é uma tragédia. A vida devia ter sido feita de partidas.
São várias as casas de que fala...
Eu nunca tive uma casa minha, minha. Vivi sempre na casa dos outros. Aos nove meses fui para casa da minha tia Amélia, dos meus avós da Beira, depois estive fora, a casa de minha mãe, depois a casa de amigos. A ideia de casa também não está inscrita em mim, a casa é sempre precária...
Infamiliar?
Infamiliar, ou familiar no pior sentido. São a expressão do poder, de uma ordem à qual eu sou sempre estranho.
A viagem desordena tudo isso?
Exacto, a viagem é uma espécie de sintaxe. Liga, mas é a única - e eu digo isso muito - que não tem a dimensão do poder, pelo contrário, é a única que dissolve o poder, que o destrói. Todas as outras constroem, mantêm-no, reproduzem-no.
Retomemos O Barro. Várias são as figuras que se desenham e insistem. O pai, sobretudo os avós.
Os meus avós deram-me todas as palavras do mundo. Um deu-me as palavras do mar, outro deu-me as palavras da terra,
Os barcos e as sementes...
Exacto, eu recebi todos os nomes como uma espécie de dádiva, fiquei com todos os nomes. O meu avô do mar tentou dar-me a história, mas ele sabia que a história não deve acabar. Eu pedia-lhe para contar O Conde de Monte Cristo e ele todas as noites inventava uma história diferente do Conde de Monte Cristo. Ainda hoje não sei como é que aquilo acaba, não quero saber.
Acaba por ser tudo uma espécie de emblema do viajar, anda-se à volta disso sempre?
Os meus avós eram viajantes, mas é estranho, o meu pai não. Via-se que tinha um prazer espantoso na História, nessa fixação do tempo, das coisas, das personagens, e a ele devo muitas das leituras que fiz em criança. O ter lido o Guerra e Paz, que foi para mim um livro matricial, Ele deu-me a fixidez da história, os meus avós deram-me a errância dos nomes.
Mas o nome fixa.
O nome amarra, mas de uma maneira diferente da frase. Amarra uma coisa a um solo e nunca mais o larga, como uma carraça se agarra a um cão e nunca mais o larga, desloca-se com ele. Por isso é que as palavras são impressionantes, as palavras têm essa ambiguidade de se moverem, de frase em frase, de texto em texto, mas carregando um sentido, um significado do qual não se conseguem libertar, às vezes ganhando novos significados, mas nunca perdendo os outros; acumulando significados.
Há palavras que insistem: barro é uma delas, Celan outra; ou Schnee (neve, em alemão)... Porquê?
Aquilo que me impressiona no Celan é um profundo e inultrapassável contencioso com todas as línguas, as que dominava, onde vivia, por onde andava. Não é só o alemão que é a palavra do carrasco, são todas as línguas. O português é, e vê-se o medo que as pessoas têm quando falam da língua, vêem-na como qualquer coisa de sagrado. Não entendo, o respeito por ela é precisamente o afastamento dela. Uma língua precisa de ser macerada, precisa de ser cortada, destruída, para libertar.
E é isso que faz?
Só assim eu a entendo, só assim consigo usá-la. Porque se não não sou eu quem a está a mostrar, é a língua, com o seu poder denunciante, a mostrar-me, e eu tornei-me numa vítima. Eu só não me torno numa vitima quando a consigo macerar. Se não, cada vez que falo digo que sou culpado não sei bem de quê.
De uma teia?
É, de uma teia. Uma mosca, o insecto que cai na teia, cai numa lógica da aranha.
Porque escreve barro em português e neve em alemão?
Eu só posso escrever assim porque é a neve do Celan, é aquela neve. O barro é um termo brutal e lindíssimo que eu estou a ver, e só pode ser aquele, aquela bola que o oleiro põe na roda e começa a moldar. A maior parte das pessoas nunca viu aparecer um cântaro, e realmente, se se pode imaginar a criação, é isso. E a água que se tem de pôr, amniótica... É um parto..
A luz é uma presença subliminar no que escreve. As coisas que a luz recorta e que, ao fazê-lo, traz para a morte. Gostava que falasse do fenómeno.
A luz é a morte, a luz conduz. Há um momento em que a luz não se vê, vêem-se as coisas. Esse tal momento da madrugada em que tudo está nítido e não há sombra é o momento não maligno da luz; depois, quando o tempo passa, a luz maligniza-se e o processo de malignização da luz vê-se na sombra que vai saindo dos objectos. A primeira sombra é imensa e pouco concentrada, com o tempo a sombra reduz-se e concentra-se, e assim dá espaço ao clarão. Portanto a luz vai-se tornando mortal, não se consegue ver nada: é quando o sol está no zénite. O mundo mostra-se pacificado nesse momento em que as coisas não produzem sombra, porque são vistas limpamente.
É o momento da coincidência.
É isso. Aquela nostalgia que eu penso que existe em todas as pessoas da coincidência do nome e da coisa realiza-se nesse momento: ‘Olha, aquilo não é uma árvore, é um sobreiro, é uma azinheira, é uma oliveira'. As coisas ganham não um nome abstracto, mas o seu nome. E, realmente, quando Deus disse ‘faça-se a luz', não foi o grande clarão, foi com certeza esse momento único em que é possível nomear.
E foi bom!
E foi bom (risos)!
E o livro próximo?
Um título que dê a ideia de um cântaro partido. La Potière Jalouse seria um grande título, mas já existe no Lévi-Strauss.
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Tudo era silêncio.
«Fujo sempre à narração daquela noite. Estava tão quente que, apesar de detestares os morcegos, tínhamos as persianas abertas. Embora soubéssemos que era o agitar das folhas da tília no muro da casa, parecia-nos ouvir alguém respirar ao fundo do quarto. Às vezes, o vento imitava o barulho de um aguaceiro a cair sobre a folhagem. A Lua, quase a desaparecer, iluminava o chão e os pálidos fantasmas da nossa roupa espalhada pelo quarto. Já não se ouvia o murmúrio dos prados. Tudo era silêncio.
Tu dizias: «Vamos dormir...É preciso dormir...» Contudo, uma sombra rondava a nossa lassidão. Não vínhamos sozinhos do fundo do abismo. Logo que eu te apertava nos meus braços, acordava no teu coração esse Rodolfo desconhecido.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31
«Nesse tempo vivias agarrada a preconceitos!»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31
«Mas, porque nesta confissão pretendo mostrar-me tal como sou, não posso dissimular estes traços do meu carácter: a independência, a inflexibilidade. Não vergo diante de ninguém, sou fiel às minhas ideias.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 29/30
«No entanto, houve na verdade alguns indícios da realidade, mas que interpretei mal. Lembras-te de uma noite em que estávamos sentados num banco da alameda ziguezagueante que fica atrás das Termas? De súbito, sem motivo aparente, desataste a soluçar. Recordo o perfume das tuas faces molhadas, o perfume dessa tristeza incógnita. Julguei serem lágrimas de felicidade. Muito novo, e ainda inexperiente, desconhecia as subtilezas desses soluços e dessas opressões. Tu dizias-me : «Não é nada, é por estar ao pé de ti...»
E não mentias, mentirosa. Era, de facto, por estares ao pé de mim que choravas - ao pé de mim e não de outro cujo nome acabarias por me revelar alguns meses mais tarde, neste mesmo quarto onde hoje escrevo, velho, e quase a morrer, rodeado por um grupo de espiões que aguardam o momento propício para o assalto.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23
«Mata a sede de uma vez para sempre, pois nunca mais beberás.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23
«Como às vezes olhavas para mim de soslaio, a recordação dessas missas ficou ligada à maravilhosa descoberta que se apoderava de mim: ser capaz de interessar, de agradar, de impressionar. O amor que eu sentia confundia-se com o que eu inspirava, ou supunha inspirar. Os meus sentimentos nada tinham de real. O que contava era a minha fé no amor que sentias por mim. Reflectia-se noutro ser, e a minha imagem assim reflectida não era repelente. Expandia-me numa descontracção deliciosa. Nunca mais esqueci a felicidade de sentir o degelo de todo o meu ser sob o teu olhar, sob as emoções que brotavam das fontes libertadas. Os gestos de ternura mais vulgares, um aperto de mão, uma flor guardada num livro - tudo para mim era novo, tudo me encantava.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 22
segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
História de Inverno
A mulher de água
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.
Traz musgo sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.
Mas não lhe sei o nome.
Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.
Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.
Mas não lhe sei o nome.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 27
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.
Traz musgo sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.
Mas não lhe sei o nome.
Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.
Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.
Mas não lhe sei o nome.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 27
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estro
nome masculino
1. entusiasmo artístico; veia poética; riqueza de imaginação
2. época do cio
3. ZOOLOGIA gusano
(Do grego oĩstros, «tavão», pelo latim oestru-, «estro poético»)
espúrio
adjetivo
1. antiquado diz-se de filho de uma relação extraconjugal; bastardo; ilegítimo
2. que não segue as leis; ilegítimo
3. diz-se da obra que não pertence ao autor a quem é atribuída
4. adulterado; falsificado
5. que não pertence ao vernáculo
6. não autêntico; não genuíno
7. regionalismo avarento e de aspeto pouco agradável
(Do latim spurĭu-, «bastardo; espúrio»)
Elegia de Coimbra
Gela a lua de março nos telhados
e à luz adormecida
choram as casas e os homens
nas colinas da vida.
Correm as lágrimas ao rio,
a esse vale das dores passadas,
mas choram as paredes e as almas
outras dores que não foram perdoadas.
Aos que virão depois de mim
caiba em sorte outra herança:
o oiro depositado
nas margens da lembrança.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 20
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domingo, 29 de dezembro de 2013
Ama, tens frio;
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 18
Cantiga do ódio
O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 15
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O viandante
Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o golpe do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 14
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o golpe do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 14
4
Canta a noite, sentimento da terra,
ou morreste, flor estranha?
Há tanto já que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.
Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.
Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 13
ou morreste, flor estranha?
Há tanto já que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.
Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.
Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.
Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 13
«De forma tão incompreensível como o cimento desaparece, crescem também as paredes. A gente recebe ordens para aqui e para ali, começa uma coisa e é enxotada do lugar. Apanha bofetadas e pontapés. Torna-se teimosa e melancólica por dentro e por fora servil e cobarde. O cimento carcome as gengivas até fazer ferida. Quando se abre a boca, os lábios rasgam como papel dos sacos de cimento. A gente cala a boca e obedece.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 38
«Com geada ou calor de abrasar, passaram-se noites inteiras sem sentido. Só os piolhos em nós tinham permissão de movimento. Durante a interminável contagem, podiam encher-se até rebentar e desfilar em parada pelos nossos corpos miseráveis, rastejar horas a fio desde a cabeça até aos pelos da púbis. Na maior parte das vezes, os piolhos já se tinham enchido e deitado a dormir nas costuras dos casacos enchumaçados e nós continuávamos em sentido. O comandante de campo Chichtvanionov ainda continuava a gritar. O seu nome próprio nós não sabíamos. Chamava-se só tavarichtch Chichtvanionov. Era suficientemente longo para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. Ao ouvir o nome tavarichtch Chichtvanionov, vinha-se sempre à memória o ruído da locomotiva de deportação. E o nicho branco lá na terra, na igreja, O CÉU PÕE O TEMPO EM MOVIMENTO. Com certeza fomos obrigados s ficar em sentido contra o nicho branco, horas sem conta. Os ossos ficaram emperrados como ferro. Quando a carne desaparece no corpo, é o carrego dos ossos que se transforma num fardo, empurrando-te pelo chão dentro.»
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 28-29
«O que é que se pode dizer da fome crónica. Pode-se dizer que há uma fome que te põe doente de fome. Que se vem juntar sempre mais faminta à fome que já se tem. A fome sempre nova, que cresce insaciável e se lança em salto mortal para dentro da fome eternamente velha, a custo dominada. Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue pensar noutra coisa. O céu-da-boca é maior que a cabeça. alto e de ouvido aguçado até ao cocuruto do crânio, uma cúpula. Quando já não se aguenta a fome, o céu-da-boca retesa-se como se nos estivessem esticado atrás da cara uma pele de lebre recente a secar. As faces murcham e cobrem-se de pálida penugem.
Nunca soube, será que deve acusar-se a erva-armola azeda de já não a podermos comer, porque fica lenhosa e se nos recusa. Saberá a erva que já não nos serve a nós e à fome, mas ao anjo da fome. »
Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 26-27
The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions
Just this side of motel's end
At suicide ocean
Just this side of motel's end
At suicide ocean
Just this side of motel's end
At suicide ocean
Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions
Just this side of motel's end
At suicide ocean
Just this side of motel's end
At suicide ocean
Just this side of motel's end
At suicide ocean
The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions
Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions
«Sim, eu era terrível. Na pequena sala de jantar da nossa vivenda, sob o candeeiro que nos iluminava durante as refeições, eu respondia por monossílabos às suas perguntas tímidas. Outras vezes, encolerizava-me ao mínimo pretexto, ou até sem qualquer motivo.
Ela nem tentava compreender-me. Nem perscrutava as causas dos meus acessos de fúria: suportava-os como se da cólera de um deus se tratasse. «É a doença», dizia ela.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15
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. A minha juventude não passou de um suicídio lento.
«Em compensação, quando pretendia gracejar, descarregava sobre os outros, mesmo sem querer, golpes que eles nunca mais me perdoavam. Ia direito aos pontos fracos, aos defeitos, que nenhum de nós gosta que nos apontem. Por timidez e por orgulho, falava com as mulheres no tom superior e doutoral que elas detestam. Era incapaz de lhes elogiar os vestidos. Quanto mais sentia que lhes desagradava, mais se acentuava tudo o que as afastava de mim. A minha juventude não passou de um suicídio lento. Receando desagradar involuntariamente, passei a ser desagradável de propósito.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15
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«Eu, que mais tarde sofri tanto por me sentir doente e ninguém se importar com a minha doença, reconheço que fui justamente castigado pela minha dureza e pelo meu carácter implacável de rapaz mimado.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 14
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Fui cruel para com os que pretendiam amar-me.
«Lembro-me de que o prestígio dos meus sucessos, apesar do meu temperamento irritável, atraía certas índoles. Fui cruel para com os que pretendiam amar-me. Fugia dos «sentimentos.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 13
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«Não me sentia preocupado e nada fiz para provocar as tuas confissões. Mas tu prodigalizaste-mas com tal complacência que, apanhado de surpresa, me senti perturbado. Na verdade, não eram os escrúpulos que te obrigava a falar, nem sequer um sentimento de delicadeza para comigo, como me disseste e no qual, aliás, acreditavas.
Não, tu sentias prazer em lembrar uma recordação feliz que não podias esconder por mais tempo. Talvez pressentisses a ameaça que isso representava para a nossa felicidade, mas, como se costuma dizer, foi mais forte do que tu. Não podias evitar que a sombra de Rodolfo vagueasse à nossa volta. O que sentias por ele ultrapassava-te.
Porém, não imagines que foi o ciúme a causa da nossa desunião. Eu, que mais tarde me tornei um ciumento obcecado, não senti nada de semelhante naquela noite de Verão, a noite do ano de 85 em que me confessaste que estiveras, durante umas férias passadas em Aix, noiva desse rapaz desconhecido.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 10
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«Sinto-me feliz por poder morrer no único lugar do mundo onde tudo está tal e qual as recordações gravadas na minha memória.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
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«A característica dominante do meu carácter, que teria cativado qualquer outra mulher que não tu, é de uma lucidez impressionante.
Essa capacidade de se iludirem a si próprios, que ajuda a viver a maior parte dos homens, nunca eu a possuí. Tive sempre plena consciência de tudo quanto de abjecto senti e pratiquei...»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
Essa capacidade de se iludirem a si próprios, que ajuda a viver a maior parte dos homens, nunca eu a possuí. Tive sempre plena consciência de tudo quanto de abjecto senti e pratiquei...»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
«(...) Quanto mais necessidade eu sentia de acreditar no meu valor, mais tu te empenhavas em provar a minha nulidade...Mas esse aspecto pouco importa. É de um outro silêncio que eu queria vingar-me; o silêncio em que te obstinaste quanto à nossa vida a dois, quanto à nossa desunião profunda. Quantas vezes, quando assistia a peças de teatro, ou lia romances, perguntei a mim mesmo se, na vida real, existirão amantes e esposas que fazem «cenas», que se explicam de coração aberto e que sentem alívio nesses desabafos.
Durante estes quarenta anos em que sofremos lado a lado tiveste sempre a coragem de evitar toda e qualquer conversa mais profunda, matava-las à nascença.
Cheguei a pensar que o fazias de propósito, por algum motivo que me escapava. Porém, certo dia percebi que a verdade era outra: o assunto não te interessava. Eu andava tão longe do teu pensamento que te furtavas, não por medo, mas porque te aborrecia. Eras hábil a pressentir os momentos de perigo; descobrias-me ainda longe. E, se te apanhava de surpresa, arranjavas facilmente pretextos para me dares um beijo e saíres pela porta.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 7/8
sábado, 28 de dezembro de 2013
LOVBORG
HEDDA
Acredita que houvesse um poder tão grande, em mim?
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 128
É verdade, Hedda! E quando eu lhe fazia as minhas confidências! Quando lhe contava os meus próprios problemas! Assuntos que nunca ninguém suspeitou que pudessem servir de tema das nossas conversas. Sentava-me lá e confessava que andava quase todos os dias e também as noites perdido de bêbado. Por fim, era mesmo todos os dias e todas as noites. Oh, Hedda! Que extraordinário poder havia em si para me obrigar a confessar coisas como essas!
HEDDA
Acredita que houvesse um poder tão grande, em mim?
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 128
BRACK
Por que não há-de ter, como a maior parte das outras mulheres, uma dádiva, pela vocação que...?
HEDDA
Esteja calado! Às vezes quer-me parecer que somente tenho uma coisa como presente!
BRACK (Aproximando-se)
E qual é ela, sem me permite a pergunta?
HEDDA (Mantendo o olhar vago)
É aborrecer-me de morte. Agora já fica a saber. (Voltando-se e olhando na direcção da sala interior, com um sorriso ) É assim mesmo! Aí vem o nosso professor.
BRACK
Cuidado agora, minha senhora Hedda!
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 106
Por que não há-de ter, como a maior parte das outras mulheres, uma dádiva, pela vocação que...?
HEDDA
Esteja calado! Às vezes quer-me parecer que somente tenho uma coisa como presente!
BRACK (Aproximando-se)
E qual é ela, sem me permite a pergunta?
HEDDA (Mantendo o olhar vago)
É aborrecer-me de morte. Agora já fica a saber. (Voltando-se e olhando na direcção da sala interior, com um sorriso ) É assim mesmo! Aí vem o nosso professor.
BRACK
Cuidado agora, minha senhora Hedda!
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 106
sempiterno
adjetivo
1. que não teve princípio nem há de ter fim; que dura muito
2. figurado perpétuo; incessante
(Do latim sempiternu-, «idem»)
HEDDA
Como é realmente o seu marido, Thea? Percebe o que digo... no trato diário? É amável para si?
SENHORA ELVSTED (Evasivamente)
É tão senhor do seu próprio valor, que julga que faz tudo melhor do que os outros.
HEDDA
Mas diga-me, não será velho de mais para si? Mais de vinte anos, não é?
SENHORA ELVSTED
Sim. É velho de mais. Em diversos aspectos, a minha vida com ele é miserável. Não temos nenhum ponto de contacto, eu e ele. Nem um bocadinho.
HEDDA
Mas ele não a estima? Quero dizer...mesmo fazendo-o à sua maneira?
SENHORA ELVSTED
Ora! Nunca soube qual é a maneira dele sentir. Julgo que lhe sou útil apenas. Apesar de tudo, não lhe saio cara. Sou fácil de contentar.
HEDDA
Isso é idiota da sua parte.
SENHORA ELVSTED (Abanando a cabeça)
Não consigo ser diferente. Pelo menos, com ele. Efectivamente, não gosta de ninguém a não ser dele próprio. Talvez um pouco, dos filhos...um pouco.
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 57/58
Como é realmente o seu marido, Thea? Percebe o que digo... no trato diário? É amável para si?
SENHORA ELVSTED (Evasivamente)
É tão senhor do seu próprio valor, que julga que faz tudo melhor do que os outros.
HEDDA
Mas diga-me, não será velho de mais para si? Mais de vinte anos, não é?
SENHORA ELVSTED
Sim. É velho de mais. Em diversos aspectos, a minha vida com ele é miserável. Não temos nenhum ponto de contacto, eu e ele. Nem um bocadinho.
HEDDA
Mas ele não a estima? Quero dizer...mesmo fazendo-o à sua maneira?
SENHORA ELVSTED
Ora! Nunca soube qual é a maneira dele sentir. Julgo que lhe sou útil apenas. Apesar de tudo, não lhe saio cara. Sou fácil de contentar.
HEDDA
Isso é idiota da sua parte.
SENHORA ELVSTED (Abanando a cabeça)
Não consigo ser diferente. Pelo menos, com ele. Efectivamente, não gosta de ninguém a não ser dele próprio. Talvez um pouco, dos filhos...um pouco.
Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 57/58
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