Como a “sombra que uma criança persegue com a vela”, na sua escrita Rui Nunes atingiu o limite do horror, iluminando o seu mecanismo de absurdos. Diogo Vaz Pinto entrevista o autor, que, ao reclamar a vulnerabilidade da pobreza como condição para o homem estreitar a sua relação com a realidade, encerra a sua obra como um dos exemplos mais notáveis de uma literatura actuante. António Pedro Santos fotografou o escritor que o grande público não soube reclamar
Rui Nunes (Lisboa, 1947) começou a publicar em 1968 e, com mais de 20 títulos de um género inclassificável editados, hoje admite que não escreverá mais, não apenas porque a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também por sentir que alcançou um momento final. Referência de um público minoritário, na sua clandestinidade esta obra alcançou um prestígio enorme. "Armadilha" e "Uma Viagem no Outono" saíram recentemente na Relógio D'Água - o último, numa edição limitada a 150 exemplares, só pode ser adquirido por encomenda directa à editora.
De livro para livro, há na sua escrita uma apropriação da linguagem que supera toda a ficção: uma mesma visão, um negrume...
Esse negrume, para mim, é mais uma revelação de intimidade com a morte das coisas. E com a pobreza das coisas. A humildade dos próprios objectos: isso fascina-me. Está muito ligado ao meu mundo, a um mundo que não foi fácil, desde criança. O contacto com a morte e com a doença, com as dificuldades e com a violência, foi-me construindo uma relação com a realidade que não se deixava seduzir pela sua aparência mais benigna. Por outro lado, fui-me apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência - em que as palavras se procuram e se encontram umas às outras, independentemente daquele que fala.
Neste último livro ("Armadilha") refere isso ao falar no modo como as pessoas tendem a ouvir os políticos e a sentir que por ouvi-los falar bem estes sabem do que falam.
Que há verdade naquilo. E há certeza. É exactamente isso, a fluência: parecer que um discurso, quando se produz com alguma rapidez, prova alguma coisa. E é exactamente isso o que sempre me perturbou. Porque as palavras têm uma carga de malignidade tão grande que quando se procuram fazem-no para deter poder. E ultrapassam aquilo que nós pretendemos dizer. Daí uma espécie de vigilância ou de suspeita em relação à palavra e em relação ao discurso.
Há vários livros seus - lembro-me, por exemplo, de "A Boca na Cinza" - em que a sua linguagem, a violência a que propositadamente a sujeita, parece uma forma de se tornar a si e a quem o lê muito consciente dessa fluência.
A minha suspeição em relação ao poder da linguagem sempre me levou a um determinado tipo de escrita. Não necessariamente de forma consciente, mas é assim porque a suspeita existe. Ela existe e organiza a minha linguagem. É pela crueza da linguagem que a verdade mais simples se manifesta. E a crueza pode estar no palavrão, mas também pode estar na desarticulação sintáctica. E é interessante ver que as pessoas não reagem mal às alterações morfológicas, muitas vezes nem sequer às sintácticas. Aquilo a que reagem mal é à pontuação. Aliás, foi uma descoberta tardia minha. Ouvia as pessoas dizer: "Ai, aquelas vírgulas estão mal postas!" Por exemplo, em relação ao Saramago. Eu gosto do Saramago. Gostava dele como pessoa e gosto do que escreveu, embora não tenha muito a ver com a minha escrita. Mas a vírgula, aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a violência.
Pensa que as pessoas se submetem à linguagem e a um conjunto de ideias que não conseguem dominar totalmente e que portanto acabam por ser súbditas no seu uso?
Quando leio um grande livro tenho um medo terrífico do que vem a seguir. Porque um belo livro pode ser uma bela perdição para quem o escreveu, e esse é sempre o meu medo: que um belo livro se transforme numa bela perdição. Isto é, lê-se um modelo do qual a pessoa já não consegue sair. E penso que isso é uma das coisas terríficas na literatura portuguesa. As pessoas submetem-se rapidamente a um modelo e sentem-se bem nele. E quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola.
Foi viver para a Áustria, numa zona muito isolada. Porque procurou esse isolamento?
Foi natural. Quer dizer: o isolamento está ligado a um certo desgosto do mundo. Não sou religioso, se fosse teria ido para um convento, possivelmente. Há em mim essa necessidade. O encontro comigo mesmo dá-se no silêncio, e é mesmo um silêncio absoluto. Há uns tempos, durante uma semana, tive o cuidado de medir o tempo que passava em conversa com os outros e fiquei espantado. Verifiquei que era ainda menos que aquilo que imaginava.
O desgosto na sua relação com os outros estava ligado a uma desilusão daquilo que o Rui esperava, daquilo que em si criou e que por isso esperava encontrar no outro?
É difícil dizer. É tudo. Mas em criança eu já era assim. Tinha fases em que era extremamente endiabrado e depois tinha fases em que me isolava absolutamente. Era capaz de passar horas na praia a olhar para o mar sem ninguém por perto. Oscilava entre uma situação e outra. Hoje tenho esta necessidade absoluta de silêncio, e por isso não gosto de estar em Portugal.
Mas pela relação com os portugueses?
Não. Para já, não tenho nada desse sentimento do patriota. Não gosto dos ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. As casas parecem-me todas de papel. Os ruídos atravessam as casas. Não há um minuto de silêncio. Chego a Viena e sinto-me em casa, tenho uma espécie de felicidade do reencontro. Não é com a casa, é com o silêncio.
Isso serena-o ou liberta-o para pensar?
Permite-me ficar mais próximo de mim. É o silêncio dos ruídos naturais. Tudo é natural, é evidente, mas eu gosto do ruído do vento, da chuva, da neve a bater. Gosto das gralhas, gosto de ouvir esses ruídos. É um lugar-comum, mas são esses ruídos o grande silêncio. Isso aqui não tenho. E depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.
Há a sensação de que o estado de solidão é um estado dramático em que uma pessoa cai quando fracassa e então esse desespero pode surgir por as pessoas sentirem que devem falar, que se uma pessoa estiver bem é comunicadora?
Exacto, é isso. E não interessa o que a pessoa diz, é preciso é dizer. É a fala contínua. E quem não diz continuamente é suspeito. Quantas vezes se ouve: "Porque é que estás calado?" Eu não preciso de justificar-me por estar a falar, mas preciso de justificar porque estou calado. "Estás tão calado!" E eu digo sempre: "E tu, porque é que estás a falar tanto?" Aquilo que se pretende é que o discurso da pessoa seja uma confissão contínua. "Fala porque ao falar mostras-te. Porque ao falar tornas-te claro. Não sejas obscuro."
Há um poeta que reclama isso na sua obra. "Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro." Herberto Hélder reclama essa condição, mas se nele ela surge algo deslumbrada ou fascinada, o Rui, se primeiro reclama a obscuridade, também avisa o leitor: "Cuidado com esta ciência e com este poder que eu exerço." Ou seja, não parece entrar de livre vontade no canto. Nunca pretende cantar...
Está a tocar num ponto absolutamente essencial da minha escrita. Gosto muito da escrita do Herberto Hélder. Mas no Herberto existe o fascínio da linguagem, em mim não existe. A linguagem não me fascina. Tudo aquilo que eu sou está de certo modo aí, e eu estou condenado a ela [à linguagem], mas ela não exerce nenhum tipo de fascínio sobre mim.
Num verso, Sá de Bandeira diz: "m'espanto às vezes, outras m'avergonho." Parece que na relação das pessoas com a poesia herbertiana há sobretudo o espanto, enquanto na sua a vergonha é o sentimento mais forte. Até porque a obra do Rui é muitas vezes dimensionada por uma reflexão sobre aquilo que foi a violência exercida sobre o homem no século xx, como o Holocausto. Num período em que parece ser muito fácil descartar o passado, e em que se pensa que um passado longínquo é algo que sucedeu há 50 anos, ao passo que antigamente uma coisa de há 50 anos era ontem... Acredita que a vergonha se tornou hoje a grande lição que um homem humilde pode dar a si neste tempo?
A vergonha é a expressão da própria consciência. Algum passado está a desaparecer. Como o passado se aproximou muito do presente, parece que é dominado pelo presente ainda, e que eu no presente, de certo modo, consigo controlar esse passado, porque nós verificamos que o passado, por exemplo para os políticos, é um passado próximo, está ali mesmo na fronteira do presente. E esquecem que o passado que os move está bem mais longe. O Holocausto, o inominável da situação, ainda hoje nos move sem nós sabermos. Desde miúdo que convivi com pessoas que viveram essa situação. Algumas já morreram, mas durante 30 e tal anos, quase 40, convivi com pessoas que estiveram num campo de concentração, cujos irmãos e pais tinham morrido num campo de concentração. E vi como isso opera e como é que cala. A linguagem não chega para dizer as coisas.
A sua obra parece trilhar um caminho de confrontação, a diferença entre um silêncio que ainda vive e um silêncio que já morreu. O que é a morte?
Não é nada. Eu vi morrer a minha família quase toda. Às vezes chego a dizer que desde que nasci a minha família não fez outra coisa. A morte é banal. Só houve uma morte realmente perturbadora, a primeira morte. Para mim, a primeira foi perturbadora. Depois é a banalidade, no sentido em que a Hannah Arendt classificava o mal do Eichmann. Para já, a morte são as coisas mortas. E é impressionante a semelhança que existe para mim entre um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença. Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes dos bichos todos, que morrem porque é essa a pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que redima, que me dê o que quer que seja.
A forma como as pessoas se entregam à crença - às tantas elevada quase a uma ciência, e debatida - com tantas a quererem enquadrar uma mesma crença... Pensa que isso as desresponsabiliza?
Desresponsabiliza, completamente. Eu sinto que no meu caso específico a ausência de crença, a impossibilidade que existe em mim de aderir ao ritual gera uma responsabilidade imensa em relação ao outro. Porque não há mais nada senão eu em relação ao outro e ele em relação a mim. Não há outra esperança, e isto é uma banalidade mas é uma belíssima banalidade: não há uma esperança senão no outro.
Acredita que pode haver uma transposição deste fenómeno mais pessoal ou convivencial para uma regra de âmbito político?
A política, no sentido mais amplo, entrou muito cedo na minha vida. E para mim nunca foi nem um drama nem um problema, como nunca houve uma opção. Eu estava lá, e sei porque é que estava lá. Por aquilo que lhe disse anteriormente: uma sensação de que todos nós somos responsáveis por todos os outros. E por um sentimento muito forte da fragilidade e da pobreza. Aquilo que lhe vou dizer é certamente uma vulgaridade, mas é assim mesmo e em política é isso que interessa. Às vezes perguntam-me: "Porque é que votas no Partido Comunista?" Eu sou do PCP, sou militante. E depois vêm-me com uma quantidade enorme de teorias... Eu conheço-as, quer dizer, estudei-as, mas não é isso. O que me interessa é a acção. No plano político, para mim, é tudo de uma simplicidade muito grande. É evidente que existe um discurso que o suporta. E como não gosto de fronteiras, é de certo modo o internacionalismo que funciona para mim, é a condição das próprias pessoas, e esta não tem fronteiras. A condição do trabalhador africano não é muito diferente da condição do trabalhador grego ou norte--americano. É a condição que me perturba. Depois posso discutir as teorias, mas não é isso que me move. Isso apenas justifica
a posteriori as nossas próprias opções. E as opções políticas são sempre opções biológicas, no fundo.
Acompanha aquilo que os novos autores portugueses vão publicando?
Quando gosto deles, leio tudo. Ou lia. Sente-se pela forma como a linguagem se organiza se estamos perante uma escrita livre, uma escrita genuína, ou não. E quando encontro a genuinidade sinto- -me fascinado.
E ao longo dos anos sentiu algum tipo de evolução nos autores portugueses?
Na poesia, sim. É difícil falar em evolução, mas senti que apareceram belíssimos poetas. Na prosa não. A poesia sempre foi, e felizmente que foi, a parente pobre. É essa pobreza que lhe dá a dignidade toda.
Debate-se hoje o problema da ficção portuguesa actual não se dimensionar a si mesma, mas ser pré-embalada com o selo do circuito internacional de distribuição. Os autores identificam-se menos e exercem menos a cultura do lugar a partir do qual escrevem?
Aquilo que me perturba é ler textos e perceber que, desde a escolha das palavras, há autores que revelam ignorância da realidade. Há ali uma falsidade total, porque as palavras nomeiam coisas, mas essas coisas não se presentificam por nos referirmos a elas. São abstracções. O exemplo do tipo que descreve como ouviu as cigarras à noite só diz que nunca foi ao campo. E disso há muito na literatura portuguesa. Há coisas assim, espantosas. A verdadeira escrita começa sempre por algo de esplendoroso. A verdade começa sempre por algo de muito pessoal, e a verdadeira escrita conta aquilo que sabe, que viu e viveu. Esse é o princípio.
E esta nova ficção...
Nasceu velha, continua velha e vai morrer velha. Reduz-se à historieta. Mas esta literatura sempre existiu. Era chamada literatura de cordel, os folhetins dos jornais. Só que não se confundia com a outra literatura. O que acontece é que lhe foi dada uma dignidade que não tem.
A crítica perdeu a capacidade de perceber a diferença entre literatura e entretenimento?
É a ideia de tempo e de trabalho. Para ler um livro, não uma coisa qualquer, é preciso tempo, e dá trabalho. O leitor tem de entrar num mundo que não conhece. O que acontece é que muitos dos críticos impõem àquilo que lêem um esquema prévio e não buscam o que há ali de novo. Aquilo que não está de acordo com o esquema que já trazem não serve. Não têm a inocência da abordagem, e é preciso essa inocência. Nós vivemos confrontados com uma linguagem que esqueceu uma quantidade enorme de nomes. Lembro-me que antes de ter deixado de dar aulas [de Filosofia] deixou de se falar em bibliotecas e começou a ouvir-se falar em centros de recursos. Agora já não há cegos, há deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos.
Essa forma de suavizar a linguagem, de lhe fazer perder propriedades, surge porque se entende que há um certa violência em chamar a alguém cego ou surdo?
Mas porquê? Onde é que está a violência? Cego não acarreta nenhuma deficiência, é um estado. Eu sou cego do mesmo modo que tenho um metro e setenta e cinco. Mas se sou deficiente visual falta-me alguma coisa. Isso é que é agressivo.
O que é que a suspeita introduz que lhe parece que a tornou tão estruturante na forma como vivemos em comunidade?
A suspeita introduz no outro o medo de ser. E ao mesmo tempo introduz uma espécie de claridade maligna sobre o outro. Voltamos à expressão "deficiente visual" contra "cego". Quando se afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras, mais uma vez, estão carregadas de malignidade.
Na sua escrita há um exercício muito hábil de traduzir pela linguagem uma relação física com o mundo.
Aquilo que me fascina na linguagem é a possibilidade que há de a tornar física, é a fisicalidade que é possível retirar da linguagem. Nos nomes que temos esquecido encontra-se muitas vezes essa capacidade de fisicalizar a linguagem. Isto está muito ligado ao olhar. Se vejo um animal morto, aquilo que vejo é uma transparência - vêem-se os ossos debaixo da pele como se fosse o desenho do próprio ser, e como se fosse o futuro desse ser. É essa transparência que só o olhar encontra. É interessante porque eu vejo muito mal e sempre vi mal, e no entanto olhar é para mim a coisa mais fascinante, porque o mundo só pelos olhos é que me entra. A minha escrita nasce de uma percepção. Posso dar exemplo do livro sobre os anões, "A Boca na Cinza". Uma vez estava em Aveiro, entre amigos, a jantar, e vi um casal na mesa do lado (na altura ainda via alguma coisa), reparei que a rapariga afastou o cigarro da boca e senti que havia qualquer coisa de estranho. Eram dois anões, os donos do restaurante, estavam ali a jantar e tinham uma quantidade de listas telefónicas sobre as cadeiras. Ela e o irmão, pensei. Muito bonita, ela: um cabelo lindíssimo. Quando acabaram de jantar vieram dois empregados e carregaram-nos ao colo para fora do restaurante. Foi desse episódio que depois nasceu o livro. Vivo fascinado pela realidade.
Como é que se relaciona com os seus livros depois de os publicar?
Geralmente não lhes volto a pegar.
O Rui está longe de ser um dos autores portugueses mais divulgados ou traduzidos.
Nunca fui traduzido. Aliás, só para croata. E um conto na Alemanha.
Aquilo a que se chama literatura parece andar atrás do que deixa as pessoas entusiasmadas...
As pessoas querem um passatempo. Esse tipo de passatempo a minha escrita não fornece. Qualquer escrita que resista a essa apropriação imediata está condenada a viver à margem.
Causa-lhe alguma perplexidade isto?
Ela até poderia ser traduzida e depois não a lerem, que é o mais natural. Só me causa perplexidade que nem sequer exista essa tentativa. Mas não é coisa que me preocupe muito.
Considera-se um dos nossos escritores mais portugueses?
Sim. Eu que não sou nacionalista, digo- -lhe que sim. Não é que a minha pátria seja a língua portuguesa, mas é este enraizamento (infelizmente, para mim) aqui. E é isso que está sempre a emergir.
A sua escrita surge porque o Rui se incomoda, o mundo incomoda-o, a linguagem incomoda-o. Imagino que não pense no seu leitor, mas para si não faz sequer sentido vir para a literatura se não se põe como princípio incomodar-se?
Acho que a pessoa que não se incomoda não escreve, não pinta, não faz nada.
Mas pode ler e apreciar uma obra de arte?
Pode, se deixar que a incomodidade o apanhe. Se não se quiser incomodar não vai tirar um gosto disso. Penso que um dos grandes problemas foi que não se acrescentou a participação à compreensão que se faz do mundo. Não basta compreender o terror, é preciso participar dele. É preciso ter medo, não basta compreender o medo. O peso da modernidade ainda é tão forte que o acto de participação está excluído. E então constroem--se teorias e teorias, mas a essas teorias falta uma coisa que é participar. É essa dimensão biológica que falta à compreensão.
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