domingo, 26 de janeiro de 2014
É TÃO RARO O AMOR POR SI PRÓPRIO
Sigo na escuridão sem rosto. Sofre
a criança solitária que palpita nos meus olhos,
perdida na espiral da angústia.
Ela nada pede, escuta um futuro despido.
Está sombria e ausente e já não me sorri.
Não sei como conduzi-la à alegria.
Com as minhas lágrimas silencia e não pode dormir.
Sou parte da bruma que não me ama.
Um pequeno pulsar une-me a tudo o que vivo,
já não se sabe se sou o que ainda sou
ou sou o que me nega obstinadamente.
É tão raro o amor por si mesmo
que na sua fronteira treme com o seu contrário
e por vezes se troca ou se suprime.
Como entender então a súbita piedade,
a injustiça de um ódio que por vezes se comove
mostrando-me a sua gelada transparência?
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 31
DESVANECES-TE AO AMANHECER
Desvaneces-te ao amanhecer.
Só fica a tua sombra entre as minhas mãos,
uma presença de ar, desejo e sonho e riso
que dissipa o seu incêndio consumido
(...)
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 29
RITUAL DOS ESCRAVOS
Dá-me o que não tens, mas que é a tua essência,
acaso esse desejo tão íntimo e proibido,
o que mais te pertence: a tua entrega e a tua renúncia.
Tudo o que serás quando a tua plenitude
alcance o futuro que tenha amadurecido
como um dourado fruto pela luz do Outono.
Talvez a noite límpida nos reúna
para que conheçamos o mal do difícil,
o mail indivisível do amor,
onde por fim possamos existir
no ténue esplendor com que a vida
nos escolhe e fatalmente nos mistura.
Por isso peço-te que com firmeza cumpras
o rigoroso ritual dos escravos:
mudar a liberdade da esperança
pela ânsia que juntos nos aprisiona.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 28
RESSURREIÇÃO
A meio da tarde sou um morto qualquer,
e o desejo uma duna que se estende
no seu próprio deserto, no seu pântano sem ondas.
Por não querer saber não sonho nem com a paisagem,
deixo de ouvir o território que disseca o rio
como se fosse o esqueleto em funga
da miragem, pedra que ancorou sob o silêncio.
Tudo se altera na noite. As estrelas ressurgem
de poliedros fulgurantes. São despertos os felinos
que rasgam com veemência um sol que se fez sombra.
A sede põe-se em pé, com metáforas cresce
no alto arvoredo do coração profundo.
Aqui canta o enigma dos bosques,
o círculo que aquece o teu corpo no meu:
bela praia-mar dos sentidos plenos,
ebriedade e delírio da ressurreição.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 27
Give me your eyes
That I might see the blind man kissing my hands
The sun is humming
My head turns to dust as he plays on his knees
As he plays on his knees
And the sand
And the sea grows
I close my eyes
Move slowly through drowning waves
Going away on a strange day
And I laugh as I drift in the wind
Blind
Dancing on a beach of stone
Cherish the faces as they wait for the end
Sudden hush across the water
And we're here again
And the sand
And the sea grows
I close my eyes
Move slowly through drowning waves
Going away
On a strange day
My head falls back
And the walls crash down
And the sky
And the impossible
Explode
Held for one moment I remember a song
An impression of sound
Then everything is gone
Forever
A strange day
Um dia olhou para o céu e disse a palavra mãe, e caiu morto.
«Em 1919, o famoso bailarino Nijinsky era fechado num manicómio. Ao longo de trinta anos a sua loucura foi motivo de experiências dolorosas, algumas de carácter quase torcionário. Um dia olhou para o céu e disse a palavra mãe, e caiu morto. A ordem psíquica, que é um acto de criação no tempo, nem sempre, ou muito raramente, tem sentido para os psiquiatras.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 71
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
bailarino Nijinsky,
loucura,
romance,
saúde mental
«Viver em Lisboa, para Maria Adelaide, aos dezoito anos, é pior do que sofrer duma deformidade, ter seis dedos nas mãos. Não é o bastante para ser um fenómeno de circo e, no entanto, impede que se dê o sincronismo entre ela e os outros.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 67
«Aquilino Ribeiro publicava A Via Sinuosa, e ele retratava a mulher cuja ''carne era uma harpa de inefáveis melodias''. O melhor que uma mulher de espírito podia aspirar era ser chamada «privilegiada senhora».
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 66
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
Aquilino Ribeiro,
autores portugueses
Maria Adelaide
«(...) o seu estado depressivo que faz com que se vista pobremente e se recuse a ter relações conjugais, tendo crises de irritação e de isolamento.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 62
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 62
sábado, 25 de janeiro de 2014
« De pé, no meio da sala, vacilante, atordoado, fiquei a pensar na minha vida, a ver o que ela foi. Não, não é fácil vencer tal corrente de lama. Fui um homem tão horrível que não tive um único amigo. Mas, pensava eu, não seria porque sempre fui incapaz de disfarçar? (...)
Eu não teria sido tão desprezado se não me tivesse mostrado tanto, se não fosse tão aberto, tão nu.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 134
Etiquetas:
autores franceses,
François Mauriac,
o nó de víboras
«Nem os melhores aprendem a amar sozinhos. Para ultrapassar o ridículo, os vícios e, sobretudo, as asneiras dos seres humanos é preciso conhecer o segredo de um amor que não encontramos no mundo.»
François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 133
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
«Não amava o marido, ou parecia-lhe que ele não a merecia, rica como era, bonita e submissa como uma freira ao seu apostolado. (...) Que prazeres tivera, que compensações, que esperanças? São perguntas que as mulheres fazem a si próprias quando o espelho as desengana.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 48
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
amor e ódio,
autores portugueses,
doidos e amantes,
romance
«(...) orgulhos maltratados e leis do coração que só a morte resolve.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 44
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
autores portugueses,
romance
«A frustração amorosa é uma reminiscência pré-histórica da frustração do poder.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 40
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
doidos e amantes,
romance
«O que dizem Júlio de Matos, Sobral Cid, Egas Moniz e Bettencourt Rodrigues numa obediência cega ao seu trabalho de alienistas? Dizem o seguinte: ''O equilíbrio instável, em que muitos degenerados conseguem manter-se, simulando a sanidade do espírito, rompe-se facilmente ao menor pretexto, porque eles não são, na frase justa dos psiquiatras franceses, senão perpétuos candidatos à loucura. Fadigas físicas, emoções, surménage intelectual, muitas vezes mesmo as fases evolutivas e as funções normais da vida, as menstruações, a gravidez, os partos, o aleitamento e a menopausa, bastam a lança-los na alienação mental em qualquer das suas múltiplas formas. Este é o caso de D. Maria Adelaide Coelho da Cunha.'' E assinam.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 32
* surmenage - esgotamento
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
autores portugueses,
romance,
saúde mental
«O coração de Adelaide tinha ainda sombras, dessas que não se apagam com coisas felizes. Ela era nova e alegre, mas parecia-lhe a felicidade uma forma qualquer de malícia.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 32
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
autores portugueses,
romance
quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
amancebar-se
verbo pronominal
1. viver maritalmente com uma pessoa, sem estar casada com ela; juntar-se em mancebia; amigar-se
2. tornar-se amante
«Coisas do coração querem-se seladas e feitas em fumo.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 27
«Aprendemos a não nos desiludir porque não aspiramos a ser protagonistas de nada deste mundo. Bastamo-nos como ser parceiros na história que, por ser fingida, nos dá a garantia de ser inofensiva. Passa-se com os outros, e portanto temos a liberdade melhor de todas que é a de acreditar que estamos a salvo de tudo o que sucedeu e sucederá.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 20
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís,
autores portugueses,
romance
É o tempo da abundância e da paz sobre os campos. Vejo-os ao olhar nítido da minha fome. As sombras estendem-se sobre eles como os rios no seu leito e eles são à superfície a agonia da paisagem. É o último dia de agosto, a tarde desce com o verão. Ainda se ouvem nas árvores os últimos pássaros e a agitação da folhagem esconde tantas asas quanto aquelas que ainda ferem o meu coração. Estive pronto e não parti.
De Fome (Inédito)
João Moita
O BORAMETZ
«O cordeiro vegetal da Tartária, também chamado «Borametz» e «polipódio Borametz», e «polipódio chinês», é uma planta cuja forma é a de um cordeiro, coberta de penugem dourada. Ergue-se sobre quatro ou cinco raízes; as plantas morrem, à volta e ela mantém-se louçã; quando a cortam sai um suco sangrento. Os lobos deleitam-se a devorá-la. Sir Thomas Browne descreve-a no terceiro livro da sua Pseudodoxia Epidemica (Londres, 1646). Noutros monstros combinam-se espécies ou géneros animais; no Borametz, o reino vegetal e o reino animal.
Recordemos a este propósito a mandrágora, que grita como um homem quando a arrancam, e a triste floresta dos suicidas, num dos séculos d'O Inferno, de cujos troncos magoados brotam ao mesmo tempo sangue e palavras, e aquela árvore sonhada por Chesterton, que devorou os pássaros que tinham feito ninho nos seus ramos e que, na Primavera, deu penas em vez de folhas.»
Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009., p. 39
O Basilisco
«O Basilisco reside no deserto: ou melhor, cria o deserto. Aos seus pés caem mortos os pássaros e apodrecem os frutos; a água dos rios em que bebe fica envenenada durante séculos. Plínio declarou que o seu olhar parte as pedras e queima o pasto. O cheiro da doninha mata-o e na Idade Média dizia-se que era o canto do galo. Os mais experimentados viajantes levavam galos consigo para atravessar regiões desconhecidas. Uma outra arma era um espelho, porque o Basilisco cai fulminado com a sua própria imagem.»
Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 34
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
THANATOS E EROS
Espelho dentro de um absorto espelho,
quem vês dentro de ti mesmo,
o teu frio, talvez, a tua carência,
ou o convulso mistério que te embebe
para ser parte de ti o que do éden tu desejas?
Serás, por acaso, o meu altivo delírio,
a outra metade perdida e nunca encontrada,
o outro inimigo que me procura?
Obscura tentação do proibido,
a tua indagação explica-me, turva-me até inflamar
a perversa paixão da aparência,
a vã leveza que me nega e te apaga,
a que lança na minha alma a sua promessa de amor
até ficar contigo, alheio e deslumbrado,
para assim me destruíres lentamente.
Mas o que procuras em mim? Serão os meus sonhos
ou as minhas reencarnações futuras?
Afasta de mim a tua exaltação tenebrosa,
ou será que formaremos sempre um só ser,
fundidos num corpo de cega luz.
Sei que somos duas forças fustigadas,
a luta fraticida entre Thanatos e Eros,
a impiedade da noite e o desdém da luz,
a claridade que pulsa com a sua agónica sombra.
O horror e o afã de se extinguir na tua vertigem,
sorvendo o teu brilho e o meu soluço,
tornam infindável a miragem.
O tempo divide-nos e reúne-nos.
Na palavra elevada voltamos a olhar-nos,
lenta ressurreição, sonho de pátria e vento,
olhos onde começamos a encontrar
as súbitas presenças da minha face e do teu revés,
enquanto a solidão e o silêncio se afundam
e nos deixam cativos, frente a frente, no nada.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18
Etiquetas:
ensayista y traductor español,
Justo Jorge Padrón,
poema,
poesia
«Toco a hostil humidade no anoitecer
das tensas palavras que não esqueço
e escuto a palpitação do poema,
como se fosse o infinito espaço
que abraçasse o planeta solitário que eu sou.»
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 18
Etiquetas:
ensayista y traductor español,
excerto,
Justo Jorge Padrón,
poeta
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
First I shut down the stars because
You said they ruled us
Then I took out Mars
He was the cruelest
His lover followed suit
By way of suicide
And the others stood there silent
As I dealt out peace of mind
Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man
Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man
Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'm less than nothing
I'm a misanthropic man
This is a journey
To the edge of the night
I've got no companions
Only Celine's on my side
Don't need nothing from no-one
The needle's in the red
Nothing to lose
Everything's dead
Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'll show you nothing
I'm a misanthropic man
Shut me up
Shut me down
Stop me if you can
My love, I'm less than nothing
I'm a misanthropic man
The sky is empty/silent
The earth as still as stone
Nothing stands above me
Now I can sleep alone
Etiquetas:
letras de canções,
Rowland S. Howard,
vídeos
« -O trabalho que me deu essa mulher para descobrir-lhe a alma ou qualquer coisa como isso. Virei Lisboa do avesso para encontrar-lhe o rosto. Havia ainda quem a amasse, acredita nisso? Havia quem, depois de ela ter morrido, velha e esquecida, fosse capaz de matar por ela.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 12
-O que estás a pensar?
-Eu? Em nada...Mas já que quer saber, penso que não há remédio para uma pessoa como você.
-Não há salvação, quer dizer.
-Ou isso.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 12
I
«Um enterro no campo:
A tarde parecia vagarosa, como acontece às vezes em que acrescentamos às obrigações de todos os dias um dever que não sabemos qualificar. Neste caso, o enterro dum amigo. É muito difícil descrever uma amizade quando se tem tudo para a pôr de parte. Tudo, como a juventude, o futuro prometedor e a espécie de indústria cega que é o talento. Este tem qualquer coisa de desumano. Escorrega-nos dos dedos sem que se possa evitar o egoísmo que compõe a sua matéria e o seu uso. Ele não se adapta a qualquer conselho moral ou imoral. Apodera-se das nossas entranhas e deixa-as secas para tudo o que não seja a sua obra.
No entanto, eu tinha tido um amigo naquele homem que fazia da infelicidade um desporto da alma.»
Agustina Bessa-Luís. Doidos e Amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 9
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
UM ANIMAL SONHADO POR KAFKA
«(...)
Costumo ter a impressão de que o animal me quer amestrar; agarrar e logo esperar tranquilamente que volte a atrair-me, e de imediato voltar a saltar?»
FRANZ KAFKA
Hochzeítsvorbereitungen auf dem Lande, 1953
Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 20
Costumo ter a impressão de que o animal me quer amestrar; agarrar e logo esperar tranquilamente que volte a atrair-me, e de imediato voltar a saltar?»
FRANZ KAFKA
Hochzeítsvorbereitungen auf dem Lande, 1953
Jorge Luis Borges; Margarita Guerrero. O livro dos seres imaginários. Trad. Serafim Ferreira, Editorial Teorema, Lisboa, 2ª ed, 2009p. 20
O SANGUE IRREFREÁVEL
A avidez que descubro nas minhas pupilas
como fera encerrada por um íntimo acaso.
Atracção por aquele fogo, a miragem
estende as suas areias perante o mar de Verão,
perante o voo dos pássaros que anunciam
o diálogo furtivo dos corpos.
Reino da lascívia sob palmeiras sombrias,
ardente brisa, música plena dos sentidos
iniciada na alma, respirada
com fruição pelos meus cinco salteadores dementes.
Quantas luzes se acenderam. Quanta pura agitação
nos lábios e nas ancas fugidias.
Emergi da espuma como um sol solitário.
Passei por dunas, oásis, cheirei esticados lençóis,
despertei os racimos mais pretos e os mais túmidos,
senti as certezas que estes dedos abriam.
Ali a dança, abismo de doçura,
e o seu vibrante ventre de timbale,
bebendo-se na desordem o meu futuro
sob o ar de uma vertigem de estrelas.
Fui tirano e escravo do gozo e da dor,
da dura saudade dos beijos,
da fugacidade depredadora
de tudo quanto vive e ama consumindo-se.
Despedaçado, escutei o pavor do capricho,
a impiedade que me nega ou aquela onde amanheço.
Morri com a convicção em tantas ocasiões
para ressuscitar com um vigor fragante,
e depois e depois e depois, depois de tantos anos,
sonho perante o mar rebelde do estio,
sonho com a juventude de um erguido desejo
e espero a maré das horas
vindo e indo até ao último deserto,
lá onde se dilui o sangue irrefreável.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 13/4
Etiquetas:
ensayista y traductor español,
Justo Jorge Padrón,
poeta
Consciência
Já nem conservas a fibra dos sonhos
que reclame a herança perdida da tua sorte?
Exiges certezas, uma fidelidade
de acordo com a paz do coração,
livre dos presságios onde espreita
o exausto pulsar do vencido.
Quanto desdém usurpa a tua integridade.
Ainda no erro manténs o orgulho
de ser entre medíocres o senhor dos náufragos.
Os teus olhos esculpiram no ar distante
a esperança, a única possível
de não ouvir a chuva de qualquer infortúnio.
É tão difícil perdurar, continuar
a insistir num ténue registo de palavras,
procurando-as pelos anos sombrios,
como se elas salvassem ou desculpassem
esta inquietude de merecer a vida.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 11
que reclame a herança perdida da tua sorte?
Exiges certezas, uma fidelidade
de acordo com a paz do coração,
livre dos presságios onde espreita
o exausto pulsar do vencido.
Quanto desdém usurpa a tua integridade.
Ainda no erro manténs o orgulho
de ser entre medíocres o senhor dos náufragos.
Os teus olhos esculpiram no ar distante
a esperança, a única possível
de não ouvir a chuva de qualquer infortúnio.
É tão difícil perdurar, continuar
a insistir num ténue registo de palavras,
procurando-as pelos anos sombrios,
como se elas salvassem ou desculpassem
esta inquietude de merecer a vida.
Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 11
Etiquetas:
ensayista y traductor español,
Justo Jorge Padrón,
poeta
Dois poemas plásticos
O dia morre contigo. Deixa que os teus braços pendam
sobre a hora que não tarda.
A tua túnica ondeia como um verme espreguiçado.
Os teus mamilos já não fremem: a hora cobre-te a nudez.
A primeira estrela subiu e veio depor o beijo sobre
[a tua fronte suada.
As aves estão contigo. Abrigam-te as lágrimas serenas
[nas suas asas de crepe.
Pronto. Cerra os olhos. É o fim.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 129
«Eu chorava essas horas de prisioneiro na sala da varanda
entre as flores que minha mãe adorava»
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 114
Etiquetas:
fernando namora,
poetas portugueses,
versos soltos
Ressaca
Retratos de Família
As badaladas da torre, pelo fim do dia...
Os homens regressavam do trabalho, enxada aos
[ombros.
Os pastores vinham sondar a estrada e o crepúsculo,
saindo dos matos como faunos;
as suas flautas de cana choravam penas ou amores ou
[apenas humildade.
Eram sons talvez sem música. Mas a sua melopeia trazia
[paz e também candura
e deixava-as à flor da terra, um orvalho
que ficasse poisado nos fetos
até à manhã seguinte.
Essa paz fazia-me companhia no meu regresso do pinhal.
E eu enchia as narinas de tudo isso,
orvalho, moitas, flautas, terra,
e sentia-me calmo e repleto.
Mas em chegando à aldeia estava de novo só.
E na minha solidão gritava por um amigo.
Não ter um amigo! Se o tivesse,
outras coisas boas se dariam!
Iria, por exemplo,
até ao pico da montanha, ouvir ranger as velas do moinho.
E talvez o ardor me levasse mais longe.
Até onde, não sei. Sabê-lo-ia
se tivesse um amigo.
Fernando Namora. As Frias Madrugadas. Publicações Europa-América, 4ª ed, Lisboa, 1971., p. 111-112
Etiquetas:
fernando namora,
poema,
poesia,
poetas portugueses
«Era como se as entranhas da terra viessem até ali, de rastos, famintas, para serem possuídas. A planície tinha a ondulação, a profundidade e a largueza de um mar. Tudo nela era imenso, insondável e simultaneamente dádiva e fuga. Era o mesmo sortilégio que, havia muito, se tinha apossado do Loas. A campina de tão lânguida, amolengava os músculos dos homens, e o Loas, amando a terra, desejando-a como se deseja fecundar um corpo de uma mulher, era no entanto impotente para traduzir tudo isso em acção. Erguia a enxada em meia dúzia de vezes e parava, embevecido, esperando que a gleba, sob esse breve estímulo, se multiplicasse em alvoroço e fertilidade. Como se o esforço físico o impedisse de assistir à solenidade dessa procriação. No seu apelo à terra havia o desejo fanático de nela deixar uma cicatriz, mas uma cicatriz de amor e não de suor.»
Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 18-19
domingo, 19 de janeiro de 2014
Subscrever:
Mensagens (Atom)