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quinta-feira, 20 de agosto de 2015

João Moita 8 poemas

O mundo é a tua vigília.
Levas milénios acordado,
velando a tua esperança.
Velas, teus acólitos seguram
as tuas pálpebras.
Esperas o impossível:
que se erga da terra um rumor que embale.

*

À força de êxtases,
a fé podou o amor.

Quando veio o desejo,
brincámos com a fome dos corações.

*

A descrença celebra o seu apóstata,
reclama o seu arado:

chegará o tempo da sega,
mas cultive-se primeiro o amor,
essa deformação.
                           Se espigar,
haverá fome por mantimento
e uma colheita tardia
para a distração.

*

Não escrevia para não roubar tempo à leitura: aprendia a humildade. Agora escrevo, aprendo a humilhar-me.

*

Se falham o primeiro voo,
as aves não chegam a voar.
Delas não se pode dizer
que tinham o voo por condição.
Inata só a altura do ninho
e a vertigem do solo.
O resto é conquista das asas.

*

Uma consciência tranquila dorme de noite, mas de dia é uma insónia insuportável.

*

Os mastins dormiram esta noite
junto ao leito do nosso amor.
Partiram antes da alba
para paragens menos desoladas
com as marcas dos nossos dentes
sobre o dorso.

*

Fiquei em silêncio até já ter dito tudo
e só depois me ergui da fogueira-

Tive de queimar a pele para ferver o sangue.


in Fome, Lisboa, Enfermaria 6, 2015: 14, 18, 19, 31, 36, 40, 47, 55

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

É o tempo da abundância e da paz sobre os campos. Vejo-os ao olhar nítido da minha fome. As sombras estendem-se sobre eles como os rios no seu leito e eles são à superfície a agonia da paisagem. É o último dia de agosto, a tarde desce com o verão. Ainda se ouvem nas árvores os últimos pássaros e a agitação da folhagem esconde tantas asas quanto aquelas que ainda ferem o meu coração. Estive pronto e não parti.
 
De Fome (Inédito)
João Moita
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