domingo, 16 de junho de 2013
«É um grande alívio ter alguém a quem podemos chamar a atenção para qualquer coisa. Ou então com que se possa estar em silêncio. Ou com ele seguir as obscuras veredas da mente e penetrar no passado, visitar livros, afastar os seus ramos e colher os frutos.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144
''um pôr do sol invernal na extensão dos campos''
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144
sábado, 15 de junho de 2013
Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares
Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior
Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 195
Porque a morte tem o seu tempo
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 184
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Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 175
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Preparou o coração com a lenha do arado
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 158
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Agora és um animal que pensa
Amanhã um animal que dorme
Mas tens uma noite inteira para dormires do mesmo lado
Hoje és um dia que começa outra vez
Como se hoje pudesses plantar o dia que não acaba
Um animal que come a sombra diurna daquilo que é pensado
És um alimento
Agora és um alimento que dorme
Do mesmo lado da mão direita de quem colhe
Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica
E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada
Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive
Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga
Agora és um animal que se propaga no sono
Que pesa menos do que o sonho ou um pássaro
Um animal que se eleva em seu instinto de máquina
És agora uma máquina montada para a morte
Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta.
E fabricas um homem que se afasta
Do mundo
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 138
Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes de visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito os olhos cobertos
Por escamas
Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas
Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado
E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre de Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 136/7
«(...) não prefiras o orgulho à sensatez.»
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 76
«Bem melhor é morrer uma só vez do que sofrer todos os dias.»
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 58
sexta-feira, 14 de junho de 2013
sábado, 8 de junho de 2013
«Amarro espigas molhos de espigas »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 104
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«Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência? »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 111
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«Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 100
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EXPLICAÇÃO DA MADRUGADA
Água entre muralhas:
O orvalho
O orvalho
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 89
«-Mais interior do que o sangue no coração que me darás -»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 86
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«Com os teus lábios podes destruir-me.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 77
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«Regressou como que repetiu o caminho cada dia »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 75
domingo, 2 de junho de 2013
«Lembra-se - continuou Ernst - do que nos dizia muitas vezes: que a saúde mental de uma pessoa não estava no que ela fazia, mas sim naquilo em que ela pensava? Lembra-se de perguntar a cada um de nós: em que tens pensado? Lembra-se dessa pergunta, que nos metia medo? Se agora me fizesse de novo essa pergunta, agora que me sinto equilibrado, sabe o que lhe respondia? Que nos últimos dias tenho pensado em matá-lo.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 139
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Pedra de Sísifo II
Agora medirei o tempo
Pela vara erguida ao meio-dia
Pela areia a descer o coração
E o sono
Pela cinza no cabelo de Jacob
Pelas agulhas no colo de Penélope
Agora lavarei a minha face
Sem perturbar os círculos da água
Medirei o tempo pelo peso da pedra
De Sísifo, perto do cimo
E pelo musgo que dificulta
A firmeza dos seus pés
Partirei sozinho na viagem
Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 70
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Labirinto II
«(...)
A teia é movimento que persiste
Em sua paciência.
Como Ariadne costurando umbrais
Para que Teseu possa vir do nada.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 67
A teia é movimento que persiste
Em sua paciência.
Como Ariadne costurando umbrais
Para que Teseu possa vir do nada.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 67
AQUILES E PÁTROCLO
Nem sucessivas e sucessivas migrações de aves
Perfarão a distância que agora nos separa
Mas esta nau não me levará a casa
E seguir-te não será morrer
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 65
indigência
nome feminino
1. situação de quem vive em condições de miséria, sofrendo necessidades básicas (comida, vestuário, abrigo, etc.); pobreza extrema
2. falta de alguma coisa; carência
3. conjunto de pessoas que vivem em grande pobreza
(Do latim indigentĭa-, «carência»)
Tenho aflição por tudo o que morre
Como tenho pavor por cada noite que cai.
Como fui esquecer o caminho para fora?
Infeliz que esqueci as sendas da caça.
Comerei erva? Sol? Comerei estepes e estepes
A arder?
Vou-me pôr à mesa e esperar.
Tenho aflição por toda a ausência não anunciada
Acendi a luz por toda a casa e electrifiquei a voz
Agora posso ampliar o clarão dos gritos.
Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta
Que fez o povo atravessar enxuto o interior da água.
Vou-me encostar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.
Fazer de conta que estou a esperar.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 40
Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida irrompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 19
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida irrompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 19
quinta-feira, 30 de maio de 2013
domingo, 26 de maio de 2013
O sobrevivente de um campo de concentração disse:
«Os homens normais não sabem que tudo é possível.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 139
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 139
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«Não precisavam um do outro, pareciam pois preparados, se necessário, para o ódio.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 108
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curado de
«Estar curado não era apenas deixar de ter determinados comportamentos, era ainda esquecer o trajecto que de novo os poderia recuperar.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 104
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 104
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loucura,
saúde mental
«Wisliz traz uma ligadura na cabeça.
Fui operado à cabeça, diz Wisliz.
Tiraram-me a inteligência.
Dizem que sou estúpido, que não percebo.
Eu fico cansado, não me consigo concentrar.
Preciso de dormir muito, diz Wisliz.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 85/6
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quinta-feira, 16 de maio de 2013
«A Noiva»
«A Noiva», chamavam-lhe, uma argentina com um físico que não era mau de todo embora tivesse, quanto à moral, uma única ideia: casar com o pai. E então dava sumiço às flores dos canteiros, uma a uma, para serem espetadas no grande véu branco que usava dia e noite, onde quer que estivesse. Um caso de que a família, religiosamente fanática, tinha uma horrível vergonha. Escondiam do mundo a filha mais a sua ideia. »
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 392
«Eu nunca mais voltaria a dormir profundamente. Tinha como que perdido o hábito daquela confiança, da que é bastante necessário nós termos, e em grande quantidade, para adormecer profundamente entre os homens. »
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 390
Parapine
«(...) Parapine é um rapaz que tenho na conta de inteligente, bem entendido...Mas apesar de tudo um rapaz com uma inteligência inteiramente arbitrária! Não acha, Ferdinand? - entièremeng, como ele dizia. - Antes de mais, é um rapaz que não quer adaptar-se...É coisa que se nota logo...Nem sempre está à vontade na profissão...Não está sequer à vontade neste mundo! ...Confesse!...E neste ponto ele não tem razão! Nenhuma razão!...E então sofre!...A prova é esta. Olhe para mim, veja como eu me adapto, Ferdinand!... - batia no esterno. - Que a terra comece amanhã a girar ao contrário, por exemplo. Muito bem, e eu? Adapto-me, Ferdinand! E logo de seguida! Sabe como, Ferdinand? Dormindo mais umas dozes horas, e acabou-se! E pronto! Para a frente! Não é mais esperteza que isto! E a coisa fica arrumada! Estou adaptado! Enquanto o seu amigo Parapine, esse, sabe o que ele faz numa aventura semelhante? Põe-se a ruminar projectos e azedumes durante mais cem anos!...Tenho a certeza!»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 381
«Em suma, a grande fadiga da existência talvez não passe do enorme esforço que fazemos para continuar vinte, quarenta anos ou mais razoáveis, para não sermos simplesmente, profundamente nós próprios, isto é, imundos, atrozes, absurdos. Pesadelo de termos sempre que apresentar como ideal universal, e super-homem de manhã à noite, o infra-homem claudicante que nos deram.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 380
«Por vezes, os loucos vinham às janelas do refeitório que davam para a rua berrar e alvoraçar a vizinhança, mas principalmente dentro deles próprios é que o horror continuava. Ocupavam-se pessoalmente desse horror e preservavam-no contra os nossos cometimentos terapêuticos. Apaixonava-os, essa resistência.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 379
O manicómio de Vigny-sur-Seine
O manicómio de Vigny-sur-Seine nunca desenchia lá muito. Nos jornais intitulavam-no «Casa de Saúde» por causa de um grande jardim que o rodeava e onde os nossos loucos passeavam quando fazia bom tempo. Passeavam, os loucos, com um estranho ar de quem achava difícil equilibrar a cabeça sobre os ombros, como se tivessem constantemente medo de tropeçar e espalhar o seu conteúdo no chão. Lá dentro tinham fechada toda a espécie de coisas saltitantes e patuscas a que estavam horrivelmente agarrados.
Só nos falavam dos seus tesouros mentais, os alienados, com uma porção de contorções horrorizadas ou ares condescendentes e protectores, como se fossem muito poderosos e meticulosos administradores. Nem um império faria aquela gente abdicar das suas cabeças. Um louco não passa de vulgares ideias de homem, embora bem fechadas numa cabeça. O mundo não lhe atravessa a cabeça, e isso basta. Uma cabeça fechada transforma-se numa espécie de lago sem rio, numa infecção.
Baryton abastecia-se de massas e legumes em Paris, a grosso. Por isso os comerciantes de Vigny-sur-Seine não gostavam lá muito de nós. Nem sequer nos podiam ver, pode mesmo dizer-se. Mas esta animosidade não nos tirava o apetite. À mesa, quando o meu estágio começou, Baryton extraía regularmente conclusões e filosofia das nossas desconchavadas conversas. Mas como tinha passado a vida entre alienados, a ganhar o pão com o seu tráfico, a partilhar a sua sopa, a neutralizar-lhes como podia a insânia, nada lhe parecia mais entendiante do que às vezes ter de falar das manias deles durante as refeições. «Não devem estar presentes na conversa de pessoas normais!», afirmava defensivo e peremptório. Pela parte que lhe tocava, agarrava-se a esta higiene mental.
Gostava de conversa, ele, e de uma forma quase inquieta, gostava dela divertida, sobretudo tranquilizadora e bastante sensata. No que respeitava a tolinhos não queria insistências.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 378
quarta-feira, 15 de maio de 2013
«Dois tipos de educação recebera Mylia: a educação para ver e a educação para ouvir. Por ela, ou talvez pela sua doença,havia aprendido a tocar. Não se toca assim nas pessoas - escutava uma e outra vez. E assustava-se. Não se toca assim nas pessoas? Ela não o repetiria.»
Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 44
domingo, 12 de maio de 2013
Todas as terras enraízaram seus grandes
medos debaixo dos meus pés
e eles pendem poços-de-corda pesados e velhíssimos
enchendo sempre a transbordar a noite
a palavra mortífera -
Assim não posso eu viver
só na queda -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 228
medos debaixo dos meus pés
e eles pendem poços-de-corda pesados e velhíssimos
enchendo sempre a transbordar a noite
a palavra mortífera -
Assim não posso eu viver
só na queda -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 228
II
Visões de crepúsculo
Coisas perdidas dos mortos
também nós deixamos
o mais solitário de nós aos recém-nascidos -
Um volta-se
e olha pra o deserto -
a alucinação abre
a parede do ermo solar
onde um par de avós
fala a língua do pó descoberto
longe como voz de búzio sob o selo -
Trememos de frio
e lutamos com o passo próximo
pra o futuro -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 225
Coisas perdidas dos mortos
também nós deixamos
o mais solitário de nós aos recém-nascidos -
Um volta-se
e olha pra o deserto -
a alucinação abre
a parede do ermo solar
onde um par de avós
fala a língua do pó descoberto
longe como voz de búzio sob o selo -
Trememos de frio
e lutamos com o passo próximo
pra o futuro -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 225
Sempre de novo dilúvio novo
com as letras arrancadas a tormentos
os peixes falando presos ao anzol
para no esqueleto do sal
fazerem legível a ferida -
Sempre de novo aprender a morrer
pela vida velha
Fuga pela porta de ar
pra buscar pecado novo de planetas dormentes
Exercício extremo no velho elemento do respirar
assustado com a nova morte
Pra onde vai a lágrima
Se a Terra desapareceu?
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 223
«Não fazer nada
visível murchar
As minhas mãos pertencem a um bater de asas roubado
Com elas vou cosendo um buraco
mas elas suspiram junto a este abismo aberto - »
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 197
visível murchar
As minhas mãos pertencem a um bater de asas roubado
Com elas vou cosendo um buraco
mas elas suspiram junto a este abismo aberto - »
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 197
«No Norte azul da rosa-dos-ventos
vigilante à noite
já um botão de Morte sobre as pálpebras
caminhando para a fonte -»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 192
vigilante à noite
já um botão de Morte sobre as pálpebras
caminhando para a fonte -»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 192
Ela dança -
mas com um grande peso -
Porque dança ela com um grande peso?
Ela quer ser inconsolável -
Gemendo vai puxando o seu amado
pelos cabelos da fundura do Oceano
Hábito de inquietação sopra
sobre as traves salvadoras dos seus braços
Um peixe sofredor estrebucha sem fala
com o seu amor -
Mas de repente
pela nuca
o sono dobra-a para diante -
Libertos
são Vida -
são Morte -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 184
«Fundo-escuro é a cor da nostalgia sempre
assim a noite toma
de novo de mim posse.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 164
Morte
Cântico do mar
banhando-me o corpo em volta
uva salgada
a atrair sede na minha boca -
Feres as cordas das minhas veias
até que elas cantando rebentam
desabrochando das chagas
pra tocar a música do meu amor -
Os teus horizontes em leque desdobrados
com a coroa dentada do morrer
já posta em volta do teu pescoço
o ritual de partida
com o som regougado da respiração
começado
abandonaste como um sedutor
antes do casamento a vítima enfeitiçada
despida quase já até à areia
expulsa
de dois reinos
já só suspiros
entre noite e noite -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 160
Cântico do mar
banhando-me o corpo em volta
uva salgada
a atrair sede na minha boca -
Feres as cordas das minhas veias
até que elas cantando rebentam
desabrochando das chagas
pra tocar a música do meu amor -
Os teus horizontes em leque desdobrados
com a coroa dentada do morrer
já posta em volta do teu pescoço
o ritual de partida
com o som regougado da respiração
começado
abandonaste como um sedutor
antes do casamento a vítima enfeitiçada
despida quase já até à areia
expulsa
de dois reinos
já só suspiros
entre noite e noite -
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 160
quarta-feira, 1 de maio de 2013
«Um estranho tem sempre
a pátria nos braços
como uma órfã
para a qual talvez nada mais
busque do que uma sepultura.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 155
Caçador
a minha constelação
aponta
a ponto secreto do sangue: desassossego...
e o passo voa sem asilo -
Mas o vento não é uma casa
lambe apenas como os bichos
as feridas do corpo -
Como se há de puxar o tempo
dos fios de ouro do Sol?
Enrolá-lo
pra o casulo da borboleta-da-seda
Noite?
Ó escuridão
estende a tua mensagem
só por um bater de pestanas:
Repouso na fuga.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 147
Isto é o hálito escuro
de Sodoma
e a carga
de Nínive
pousada
junto à ferida aberta
da nossa porta.
Isto é a Escrita sagrada
em fuga pela terra
trepando ao céu
com todas as letras,
escondendo a emplumada
ventura num favo de mel.
Isto é o negro Laocoonte
lançando à nossa pálpebra
perfurando milénios
a retorcida árvore da dor
rebentando na nossa pupila.
Isto são dedos inteiriçados em sal
gotejando lágrimas na oração.
Isto é a Sua causa marinha
recolhida
para a cápsula marulhante dos mistérios.
Isto é o nosso refluxo
Constelação da dor
da nossa areia a desfazer-se
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 145/6
de Sodoma
e a carga
de Nínive
pousada
junto à ferida aberta
da nossa porta.
Isto é a Escrita sagrada
em fuga pela terra
trepando ao céu
com todas as letras,
escondendo a emplumada
ventura num favo de mel.
Isto é o negro Laocoonte
lançando à nossa pálpebra
perfurando milénios
a retorcida árvore da dor
rebentando na nossa pupila.
Isto são dedos inteiriçados em sal
gotejando lágrimas na oração.
Isto é a Sua causa marinha
recolhida
para a cápsula marulhante dos mistérios.
Isto é o nosso refluxo
Constelação da dor
da nossa areia a desfazer-se
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 145/6
«Numa curva do rio ouvimos um acordeão.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 364
Chegou mesmo a fazer-me uma espécie de cena...
«Que era séria...Que era uma vergonha da minha parte...Que eu tinha uma pavorosa opinião a seu respeito...Que isso não, porque só era comigo e mais ninguém!...Que eu a desprezava...Que os homens eram todos uns sujos...»
Enfim, o que elas, as mulheres, dizem todas em casos destes. Era de esperar. Poeira nos olhos. Para mim, o mais importante é que tivesse escutado bem os meus conselhos e retido o essencial. O resto não tinha importância nenhuma.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 362
«(...) Uma vez por outra, Madelon e eu arranjávamos os nossos momentos antes do jantar, no seu quarto. Mas não eram fáceis de combinar, as entrevistas. Não falávamos delas. Éramos o que havia de mais discreto.
Com isto não deve imaginar-se que não amava o seu Robinson. Não tinha nada a ver uma coisa com a outra. O caso é que ele brincava aos noivados enquanto ela, naturalmente, ia brincando às fidelidades. Era este o sentimento que entre eles existia. Nestes casos, tudo vai de se entenderem. Ele estava à espera de casar para lhe tocar, e a mim o para-já. Falara-me aliás de um projecto que também tinha, estabelecer-se com um restaurante mais ela, e largar a velha Henrouille. Tudo muito a sério, claro. «É graciosa, há-de agradar à clientela», previa nos seus melhores momentos. «E de resto provaste-lhe a cozinha, hem? Não teme seja quem for quanto à paparoca!»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 360
«A vida é muitíssimo curta. Não desejaríamos ser injustos para ninguém. Sentimos escrúpulos, hesitamos em julgar tudo isto de repente, e sobretudo tememos que seja preciso morrer enquanto hesitamos, porque então teríamos vindo ao mundo para absolutamente nada. O pior dos piores.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 349
«Se vivêssemos muito tempo, deixaríamos de poder respirar. Os verdadeiros abortos, os que estão nos museus, conseguem pôr as pessoas doentes e prestes a vomitar só de os verem. As nossas tentativas para sermos felizes, bem nossas mas muito ascorosas, são capazes de nos deixar doentes por serem assim tão falhadas, e isto muito antes de morrermos de vez.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 348
***
«Os jovens, que pressa têm de fazer amor, como são rápidos a deitar a mão a tudo aquilo que lhes fazemos crer que os diverte, quando se trata de sensações nem olham para trás. Fazem lembrar aqueles viajantes que devoram tudo quanto lhes oferecem no bufete da estação, entre dois apitos. Desde que se forneçam aos jovens as duas ou três canções que servem para puxar as conversas da foda, isso basta e é vê-los todos contentes. São de alegria fácil, os jovens, é bem verdade que gozam quanto querem!»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 345
Tomamos tudo por desgostos de amor, quando somos jovens
«Tomamos tudo por desgostos de amor, quando somos jovens e ainda não sabemos...
Where I go...where I look...
It's only for you... u....
Only for you... u...»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 333
domingo, 28 de abril de 2013
«Não andes mais. Tudo o resto é dor e mentira. O fim é aqui.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 111
« - Estas águas rumorejantes, disse Neville, sobre as quais construímos as nossas loucas plataformas, são, apesar de tudo, mais estáveis que os gritos selvagens, inconsequentes e frágeis que soltamos quando tentamos falar, quando raciocinamos e pronunciamos do género «eu sou isto...eu sou aquilo». A linguagem mente.
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 110
«Em que pegadas
hei-de eu buscar a poesia do teu sangue?»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 136
«Prontas a levar na mala o último
peso de melancolia, este casulo de borboleta,
em cujas asas um dia levarão
a viagem ao fim.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 129
''e a pedra dançando transforma
em música o seu pó.''
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 127
Quem sabe onde as estrelas estão
na ordem da magnificiência do Criador
e onde a paz começa
e se na tragédia da Terra
a guelra rasgada e sangrenta do peixe
está destinada
a completar o seu vermelho-rubi
a constelação Martírio,
a escrever a primeira
letra da língua sem palavras -
Por certo possui o amor olhar
que repassa ossadas como um relâmpago
e acompanha os mortos
para além do alento -
mas onde os rendidos
depõem a sua riqueza,
é desconhecido.
As framboesas traem-se no mais negro bosque
pelo seu perfume,
mas a carga-de-alma deposta dos mortos
não se trai a nenhuma busca -
e bem pode alada
entre cimento ou átomos tremer
ou sempre ali
onde ficou esquecido
um lugar pra o pulsar de um coração.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 122/3
«O verdugo
na escuridão carregada de culpa
escondeu o dedo fundo
no cabelo do recém-nascido
que deita rebentos já há anos-luz
pra céus não sonhados.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 120
na escuridão carregada de culpa
escondeu o dedo fundo
no cabelo do recém-nascido
que deita rebentos já há anos-luz
pra céus não sonhados.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 120
(...)
Povos da Terra
vós, que com a força dos desconhecidos
astros vos envolveis como carrinhos de linhas,
que coseis e de novo descoseis o que cosestes,
que entrais na confusão das línguas
como em cortiços de abelhas,
para no doce picardes
e serdes picados -
Povos da Terra,
não destruais o Universo das Palavras,
não corteis com as facas do ódio
o som que nasceu ao mesmo tempo que o hálito.
Povos da Terra,
Oh, que ninguém queira dizer Morte quando diz Vida -
e ninguém Sangue, quando diz Berço -
Povos da Terra,
deixai as palavras ao pé da sua fonte,
pois são elas que podem levar
os horizontes até aos céus verdadeiros
e desviadas de lado
como uma máscara atrás da qual boceja a noite
ajudar as estrelas a parir -
Já hoje exercitamos a morte de manhã
quando ainda o morrer velho murcha em nós -
O medo da humanidade de não resistir -
Ó habituação da morte até adentro de sonhos
onde andaime de noite cai em cacos negros
e lua de osso brilha nas ruínas -
Õ medo da humanidade de não resistir -
Que é dos suaves açoitados
Anjos-calma, que a fonte oculta
nos tocaram, que do cansaço
corre pra o morrer?
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 114/5
Povos da Terra
vós, que com a força dos desconhecidos
astros vos envolveis como carrinhos de linhas,
que coseis e de novo descoseis o que cosestes,
que entrais na confusão das línguas
como em cortiços de abelhas,
para no doce picardes
e serdes picados -
Povos da Terra,
não destruais o Universo das Palavras,
não corteis com as facas do ódio
o som que nasceu ao mesmo tempo que o hálito.
Povos da Terra,
Oh, que ninguém queira dizer Morte quando diz Vida -
e ninguém Sangue, quando diz Berço -
Povos da Terra,
deixai as palavras ao pé da sua fonte,
pois são elas que podem levar
os horizontes até aos céus verdadeiros
e desviadas de lado
como uma máscara atrás da qual boceja a noite
ajudar as estrelas a parir -
Já hoje exercitamos a morte de manhã
quando ainda o morrer velho murcha em nós -
O medo da humanidade de não resistir -
Ó habituação da morte até adentro de sonhos
onde andaime de noite cai em cacos negros
e lua de osso brilha nas ruínas -
Õ medo da humanidade de não resistir -
Que é dos suaves açoitados
Anjos-calma, que a fonte oculta
nos tocaram, que do cansaço
corre pra o morrer?
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 114/5
«Se o sentimento religioso morre, fazendo desaparecer a via mística do conhecimento, se a razão abre falência, na crise do positivismo, do idealismo germânico e, de um modo geral, das conglomerações de ideias tendentes e eternizar e a universalizar os conceitos, o homem vê-se então perdido num universo onde tudo lhe é estranho e cuja linguagem não entende. O homem é um estrangeiro em terra alheia e, ignorando o código por que deve comportar-se, não pode senão comportar-se sem código ou por um código interior. É o tema de O Estrangeiro.»
In Prefácio, António Quadros
Albert Camus. Os Justos. Prefácio António Quadros. Edição Livros do Brasil, Lisboa., p. 18/9
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Albert Camus
«Albert Camus impôs-se-me antes de mais nada como um dos poucos escritores sérios da nossa época (não são tantos, os escritores sérios, como o dá a entender a «bibliografia da fama literária»...) Escritor sério porque, para ele, a literatura não era um jogo, um pretexto para a afirmação pessoal, um meio de atingir a glória, uma actividade gratuita e sem responsabilidade no próprio destino do mundo ou ainda uma forma de enfeudamento às suspeitas forças de uma sociedade egolátrica ou desviada do seu mais fundo sentido criador. É este o ponto culminante do parentesco que me sinto com Albert Camus.»
In Prefácio, António Quadros
Albert Camus. Os Justos. Prefácio António Quadros. Edição Livros do Brasil, Lisboa., p. 14
sábado, 27 de abril de 2013
'' (...) e a noite desfez-se em lágrimas''
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 108
''então a humildade fez-te emudecer''
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 108
EM SEGREDO
Ó minha mãe,
nós, que moramos numa estrela órfã -
acabamos de suspirar o suspiro
dos que foram atirados para a morte -
quantas vezes cede sob os teus passos e areia
e te deixa sozinha -
Deitada nos meus braços
saboreias o mistério
que Elias andou -
onde o silêncio fala
nascer e morrer acontecem
e os elementos de outro modo se misturam -
Os meus braços seguram-te
como um carro de madeira os que viajam para o céu -
madeira que chora, arrancada
das suas muitas metamorfoses -
Ó minha regressante,
o mistério concrescido c'o esquecimento -
eu bem ouço coisas novas
no teu amor crescente!
Estás sentada à janela
e neva -
e o teu cabelo é branco
e as tuas mãos -
mas nos dois espelhos
da tua face branca
conservou-se o Verão:
Terra para os prados erguidos para o Invisível -
Bebedouro para as corças de sombra à noite.
Mas queixosa mergulho na tua brancura,
na tua neve -
donde a vida tão de manso se afasta
como depois numa reza dita até ao fim -
Oh, adormecer na tua neve
com toda a dor no hálito de fogo do mundo.
Enquanto as linhas suaves do teu rosto
mergulham já em noite marinha
pra novo nascimento
Quando o dia se esvazia
no crepúsculo,
quando o tempo sem imagens começa,
as vozes solitárias se unem -
os bichos nada são senão caçadores
ou caçados -
as flores só ainda odor -
vais tu para entre as catacumbas do tempo
quando tudo é sem nome como no princípio -
vais tu para entre as catacumbas do tempo
que se abrem para aqueles que estão perto do fim -
ali onde crescem os germes de coração -
na escura intimidade
te afundas -
já para lá da Morte
que é apenas um desfiladeiro ventoso -
e com frio da saída abres
os olhos
nos quais já uma nova estrela
deixou o seu reflexo -»
(...)
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 105-107
nós, que moramos numa estrela órfã -
acabamos de suspirar o suspiro
dos que foram atirados para a morte -
quantas vezes cede sob os teus passos e areia
e te deixa sozinha -
Deitada nos meus braços
saboreias o mistério
que Elias andou -
onde o silêncio fala
nascer e morrer acontecem
e os elementos de outro modo se misturam -
Os meus braços seguram-te
como um carro de madeira os que viajam para o céu -
madeira que chora, arrancada
das suas muitas metamorfoses -
Ó minha regressante,
o mistério concrescido c'o esquecimento -
eu bem ouço coisas novas
no teu amor crescente!
Estás sentada à janela
e neva -
e o teu cabelo é branco
e as tuas mãos -
mas nos dois espelhos
da tua face branca
conservou-se o Verão:
Terra para os prados erguidos para o Invisível -
Bebedouro para as corças de sombra à noite.
Mas queixosa mergulho na tua brancura,
na tua neve -
donde a vida tão de manso se afasta
como depois numa reza dita até ao fim -
Oh, adormecer na tua neve
com toda a dor no hálito de fogo do mundo.
Enquanto as linhas suaves do teu rosto
mergulham já em noite marinha
pra novo nascimento
Quando o dia se esvazia
no crepúsculo,
quando o tempo sem imagens começa,
as vozes solitárias se unem -
os bichos nada são senão caçadores
ou caçados -
as flores só ainda odor -
vais tu para entre as catacumbas do tempo
quando tudo é sem nome como no princípio -
vais tu para entre as catacumbas do tempo
que se abrem para aqueles que estão perto do fim -
ali onde crescem os germes de coração -
na escura intimidade
te afundas -
já para lá da Morte
que é apenas um desfiladeiro ventoso -
e com frio da saída abres
os olhos
nos quais já uma nova estrela
deixou o seu reflexo -»
(...)
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 105-107
MÃE DE LUTO
(...)
«Despedida -
palavra a sangrar de duas feridas.
Ontem ainda palavra de mar
com o navio a afundar-se
como espada no meio -
Ontem ainda palavra trespassada
de morte de estrelas cadentes -
Garganta beijada da meia-noite
dos rouxinóis -
Hoje - dois trapos pendentes
e cabelo humano numa mão em garra
que rasgava -
E nós a sangrar depois -
a esvair-nos de sangue em ti -
mantemos a tua fonte nas nossas mãos.
Nós exércitos dos que se despedem
que construímos a tua escuridão -
até que a Morte diga: cala-te -
mas aqui é: continuar a sangrar!
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 99
«Despedida -
palavra a sangrar de duas feridas.
Ontem ainda palavra de mar
com o navio a afundar-se
como espada no meio -
Ontem ainda palavra trespassada
de morte de estrelas cadentes -
Garganta beijada da meia-noite
dos rouxinóis -
Hoje - dois trapos pendentes
e cabelo humano numa mão em garra
que rasgava -
E nós a sangrar depois -
a esvair-nos de sangue em ti -
mantemos a tua fonte nas nossas mãos.
Nós exércitos dos que se despedem
que construímos a tua escuridão -
até que a Morte diga: cala-te -
mas aqui é: continuar a sangrar!
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 99
quinta-feira, 25 de abril de 2013
JOB
Ó tu rosa-dos-ventos dos martírios!
Por tempestades de tempos primevos
Arrastada sempre noutras direcções dos temporais;
O teu Sul chama-se ainda Solidão.
Onde tu estás, é o umbigo das dores.
Os teus olhos estão encovados fundo no teu crânio
como pombos de cavernas na noite
que o caçador às cegas tira cá para fora.
À tua voz fez-se muda,
pois ela perguntou vezes demais porquê.
Para os vermes e peixes se foi a tua voz.
Job, a chorar passaste todas as vigias da noite
mas um dia a constelação do teu sangue
fará empalidecer todos os sóis nascentes.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 84
VOZ DA TERRA SANTA
Ó meus filhos,
A morte passou pelos vossos corações
Como por uma vinha -
Pintou Israel a vermelho em todas as paredes da Terra.
Para onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?
Através dos canais da solidão
Falam as vozes dos mortos:
Deponde sobre o campo as armas da vingança
Pra que elas falem baixo -
Pois também o ferro e o trigo são irmãos
No seio da Terra -
Pra onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?
A criança no sono assassinada
Levanta-se; torce pra baixo a árvore dos milénios
E prende a estrela branca anelante
Que outrora se chamou Israel
Na sua coroa.
Reergue-te de novo, diz ela
Pra lá. onde lágrimas significam Eternidade.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 78
A morte passou pelos vossos corações
Como por uma vinha -
Pintou Israel a vermelho em todas as paredes da Terra.
Para onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?
Através dos canais da solidão
Falam as vozes dos mortos:
Deponde sobre o campo as armas da vingança
Pra que elas falem baixo -
Pois também o ferro e o trigo são irmãos
No seio da Terra -
Pra onde há-de ir a pequena santidade
Que ainda mora na minha areia?
A criança no sono assassinada
Levanta-se; torce pra baixo a árvore dos milénios
E prende a estrela branca anelante
Que outrora se chamou Israel
Na sua coroa.
Reergue-te de novo, diz ela
Pra lá. onde lágrimas significam Eternidade.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 78
«Terra, Terra, fizeste-te cega
Ante os olhos de irmãs das Plêiades
Ou do olhar perscrutador da Balança?
Mãos assassinas deram a Israel um espelho
Para nele ver ao morrer o seu morrer -
Terra, ó Terra
Estrela de todas as Estrelas
Um dia há-de haver uma constelação chamada Espelho.
Então ó Cega tornarás tu a ver.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 71
Ante os olhos de irmãs das Plêiades
Ou do olhar perscrutador da Balança?
Mãos assassinas deram a Israel um espelho
Para nele ver ao morrer o seu morrer -
Terra, ó Terra
Estrela de todas as Estrelas
Um dia há-de haver uma constelação chamada Espelho.
Então ó Cega tornarás tu a ver.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 71
empedernir
verbo transitivo, intransitivo e pronominal
1. converter(-se) em pedra; petrificar
2. tornar ou ficar duro como pedra; endurecer
3. figurado tornar(-se) insensível
(Do latim *impetrinīre, «empedernir», de petrīnu-, «de pedra»)
(...)
«Quando alguém nos toca
Toca um muro de lamentações.
Como o diamante o vosso lamento corta a nossa dureza
Até que ela cai e se faz coração brando -
Enquanto vós emperdenis.
Quando alguém nos toca
Toca as encruzilhadas da meia-noite
Ressonantes de nascimento e morte.
Quando alguém nos atira -
Atira ao Jardim do Éden -
O vinho das estrelas -
Os olhos dos amantes e toda a traição -
Quando alguém nos atira com ira
Atira leões de corações partidos
E de borboletas de seda.
Cuidado, cuidado
Não atireis com uma pedra em ira -
A nossa mistura está repassada do espírito.
Endureceu no mistério
Mas pode acordar com um beijo.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 69
«Quando alguém nos toca
Toca um muro de lamentações.
Como o diamante o vosso lamento corta a nossa dureza
Até que ela cai e se faz coração brando -
Enquanto vós emperdenis.
Quando alguém nos toca
Toca as encruzilhadas da meia-noite
Ressonantes de nascimento e morte.
Quando alguém nos atira -
Atira ao Jardim do Éden -
O vinho das estrelas -
Os olhos dos amantes e toda a traição -
Quando alguém nos atira com ira
Atira leões de corações partidos
E de borboletas de seda.
Cuidado, cuidado
Não atireis com uma pedra em ira -
A nossa mistura está repassada do espírito.
Endureceu no mistério
Mas pode acordar com um beijo.»
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 69
CORO DAS SOMBRAS
Nós sombras, oh, nós sombras!
Sombras de algozes
Agarrados ao pó dos vossos crimes -
Sombras de vítimas
A desenhar o drama do vosso sangue numa parede.
Oh, nós desvalidas borboletas do luto
Presas numa estrela que continua a arder tranquila
Enquanto nós temos de dançar em infernos.
Os nossos titeriteiros já só sabem a morte.
Áurea ama que nos alimentas
Para tal desespero,
Ó sol, desvia a tua face
Pra também nós nos afundarmos -
Ou deixa que sejamos o espelho dos dedos erguidos
Duma criança exultante
E da leve ventura duma libélula
Sobre o beiral dum poço.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 67
Sombras de algozes
Agarrados ao pó dos vossos crimes -
Sombras de vítimas
A desenhar o drama do vosso sangue numa parede.
Oh, nós desvalidas borboletas do luto
Presas numa estrela que continua a arder tranquila
Enquanto nós temos de dançar em infernos.
Os nossos titeriteiros já só sabem a morte.
Áurea ama que nos alimentas
Para tal desespero,
Ó sol, desvia a tua face
Pra também nós nos afundarmos -
Ou deixa que sejamos o espelho dos dedos erguidos
Duma criança exultante
E da leve ventura duma libélula
Sobre o beiral dum poço.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 67
Eu vi que ele via.
JEHUDA ZWI
Os teus olhos, ó meu Amado,
Eram olhos da corça,
C'os longos arcos-íris das pupilas
Como depois de passadas tempestades de Deus -
Como abelhas tinham os milénios
Juntando neles o mel das noites de Deus,
Últimas centelhas dos fogos do Sinai -
Ó portas transparentes
Para os reinos íntimos,
Sobre os quais jaz tanta areia dos desertos,
Tantas milhas de martírios para oh chegar a Ele -
Ó olhos apagados,
Cuja força de vidente agora caiu
Nas surpresas áureas do Senhor,
Das quais nós apenas sabemos os sonhos.
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 61
Se eu ao menos soubesse
Sobre o que é que pousou o teu últimos olhar.
Foi uma pedra, que já muitos olhares
Tinha bebido, até que eles em cegueira
Caíram sobre a cega?
Ou foi terra,
Bastante para encher um sapato,
E já negra
De tanta despedida
E de preparar tanta morte?
Ou foi o teu último caminho,
Que te trouxe o adeus de todos os caminhos
Que tu tinhas andado?
Uma poça de água, um pedaço de metal luzente,
Talvez a fivela do cinto do teu inimigo,
Ou qualquer outro, pequeno adivinho
Do céu?
Ou mandou-te esta terra,
Que não deixa partir ninguém sem ser amado,
Um sinal de pássaro pelo ar,
Acordando lembranças na tua alma, e ela estremeceu
No seu corpo queimado de martírio?
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 60
Sobre o que é que pousou o teu últimos olhar.
Foi uma pedra, que já muitos olhares
Tinha bebido, até que eles em cegueira
Caíram sobre a cega?
Ou foi terra,
Bastante para encher um sapato,
E já negra
De tanta despedida
E de preparar tanta morte?
Ou foi o teu último caminho,
Que te trouxe o adeus de todos os caminhos
Que tu tinhas andado?
Uma poça de água, um pedaço de metal luzente,
Talvez a fivela do cinto do teu inimigo,
Ou qualquer outro, pequeno adivinho
Do céu?
Ou mandou-te esta terra,
Que não deixa partir ninguém sem ser amado,
Um sinal de pássaro pelo ar,
Acordando lembranças na tua alma, e ela estremeceu
No seu corpo queimado de martírio?
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 60
algoz
nome masculino
1. executor da pena de morte; carrasco; verdugo
2. figurado pessoa cruel
(Do turco gozz, pelo árabe al-gozz, nome de uma tribo onde se iam geralmente buscar os carrascos)
''Estarmos apaixonados não é nada, mantermo-nos os dois juntos é que é difícil.''
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 312
Não falávamos muito, não tínhamos grande coisa a dizer.
«Não falávamos muito, não tínhamos grande coisa a dizer. De resto, para que servem as palavras quando temos ideias fixas? Para nos insultarmos e nada mais.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 277
vindicta
nome feminino
1. vingança; represália
2. perseguição
3. castigo; punição
(Do latim vindicta-, «castigo»)
segunda-feira, 8 de abril de 2013
«Tudo tem um fim. Nem sempre é a morte, muitas vezes é qualquer coisa diferente e bastante pior, sobretudo quando se trata de crianças.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 252
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Louis-Ferdinand Céline,
Viagem ao fim da noite
«Nestes momentos eu não sou eu.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 93
«Devo estender-lhe a mão; responder. Mas que resposta dar? Retrocedo com violência, sentindo escaldar o corpo desajeitado e exposto à indiferença e ao desdém dos homens, eu que imagino colunas de mármore e lagos onde as andorinhas molham as asas de ouro do outro lado do mundo.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 86
«Sou sucessivamente travessa, alegre, lânguida e melancólica. Tenho raízes mas flutuo.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 83
«É cruel o que tenho oferecer. Não posso flutuar suavemente misturando-me com as outras pessoas. Prefiro o olhar fixo dos pastores que encontro na estrada; ou o olhar das ciganas sentadas na berma da estrada, ao lado da carroça, amamentando os filhos como eu hei-de amamentar os meus. Pois em breve, no ardente meio-dia em que as abelhas zumbem à volta das malvas, o meu amor chegará. Estará parado sob o cedro. Dirá apenas uma palavra a que responderei com uma só palavra. Ofertar-lhe-ei o que cresceu dentro de mim. Terei filhos, criadas de avental, caseiros com forquilhas. Terei uma cozinha para onde vão trazer os cordeiros doentes para serem aquecidos em cestos e haverá presuntos pendurados e cebolas brilhando. Serei silenciosa como a minha mãe e de avental azul andarei pela casa fechando à chave os armários.» p. 80/1
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 80/1
«Não estou sempre a entregar-me a emoções duvidosas? Sim, quando me debruço à janela e deixo cair o meu cigarro de modo a que rodopie ligeiramente até ao chão, sinto os olhos de Louis que vigiam até a queda do meu cigarro. E Louis diz: «Tudo isto tem um significado. Mas qual?»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 75/6
«Mas quem despejou a areia dos vossos sapatos
Quando tivestes de erguer-vos pra morrer?
A areia, que Israel trouxe para casa,
A areia de peregrinar?
Areia ardente do Sinai,
Misturada co'as gargantas dos rouxinóis,
Misturadas co'as asas de borboleta,
Misturada c'o pó da saudade das serpentes,
Misturada com tudo o que caiu da Sabedoria de Salomão,
Misturada c'o amargor do mistério do vermute -
Ó vós dedos
Que despejastes a areia dos sapatos de mortos.
Amanhã já sereis pó
Nos sapatos vindouros!
Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 48
sábado, 30 de março de 2013
«Se não sou amado, tanto pior - amarei outra!»
Anton Tchekhov. O Selvagem. Tradução de Carlos Grifo. Editorial Presença, Lisboa, 1968., p 163
SEREBRIAKOV
«Nestes últimos dias sofri tanto, Miguel Lvovitch, reflecti tanto que me parece que podia escrever um tratado completo sobre a melhor forma de viver, para edificação da posteridade. Enquanto se vive, aprende-se - e o melhor mestre é a infelicidade.»
Anton Tchekhov. O Selvagem. Tradução de Carlos Grifo. Editorial Presença, Lisboa, 1968., p 149
Se pareço mais corajoso que vocês é porque eu sou o mais infeliz.
SEREBRIAKOV
«(...) Não nos calemos, meus amigos, falemos, falemos. É o melhor que há a fazer na nossa presente situação. Devemos encarar a desgraça de frente, sem temor. Se pareço mais corajoso que vocês é porque eu sou o mais infeliz.»
Anton Tchekhov. O Selvagem. Tradução de Carlos Grifo. Editorial Presença, Lisboa, 1968., p 148
«Amava-a bastante, é certo, mas ainda amava mais o meu vício, esse desejo de fugir de todos os lados à procura sei lá de quê, por estúpido orgulho, sem dúvida, por estar convencido de uma espécie de superioridade.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 220
«Tornamo-nos rapidamente velhos, e de forma irremediável. Apercebemos-nos disso pelo jeito que apanhamos de amar a nossa própria desgraça, mesmo sem querer. É que a natureza tem mais força que nós, aí está. Treina-nos um género, e depois já não vamos poder sair dele. Eu, por exemplo, tinha tomado o rumo da intranquilidade. A pouco e pouco vamos tomando o nosso papel e o nosso destino a sério, sem repararmos nisso, e depois, quando caímos em nós é demasiado tarde para mudar.
Fizemo-nos pessoas muito inquietas e, claro está. para sempre.»
Fizemo-nos pessoas muito inquietas e, claro está. para sempre.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 220
Molly
«Por Molly, uma das lindas raparigas dessa casa, não tardou que eu sentisse o excepcional sentimento de confiança que entre os seres amedrontados substitui o amor.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 219
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Louis-Ferdinand Céline. viagem ao fim da noite
«Só existíamos por uma espécie de hesitação entre o idiotismo e o delírio.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 217
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