O manicómio de Vigny-sur-Seine nunca desenchia lá muito. Nos jornais intitulavam-no «Casa de Saúde» por causa de um grande jardim que o rodeava e onde os nossos loucos passeavam quando fazia bom tempo. Passeavam, os loucos, com um estranho ar de quem achava difícil equilibrar a cabeça sobre os ombros, como se tivessem constantemente medo de tropeçar e espalhar o seu conteúdo no chão. Lá dentro tinham fechada toda a espécie de coisas saltitantes e patuscas a que estavam horrivelmente agarrados.
Só nos falavam dos seus tesouros mentais, os alienados, com uma porção de contorções horrorizadas ou ares condescendentes e protectores, como se fossem muito poderosos e meticulosos administradores. Nem um império faria aquela gente abdicar das suas cabeças. Um louco não passa de vulgares ideias de homem, embora bem fechadas numa cabeça. O mundo não lhe atravessa a cabeça, e isso basta. Uma cabeça fechada transforma-se numa espécie de lago sem rio, numa infecção.
Baryton abastecia-se de massas e legumes em Paris, a grosso. Por isso os comerciantes de Vigny-sur-Seine não gostavam lá muito de nós. Nem sequer nos podiam ver, pode mesmo dizer-se. Mas esta animosidade não nos tirava o apetite. À mesa, quando o meu estágio começou, Baryton extraía regularmente conclusões e filosofia das nossas desconchavadas conversas. Mas como tinha passado a vida entre alienados, a ganhar o pão com o seu tráfico, a partilhar a sua sopa, a neutralizar-lhes como podia a insânia, nada lhe parecia mais entendiante do que às vezes ter de falar das manias deles durante as refeições. «Não devem estar presentes na conversa de pessoas normais!», afirmava defensivo e peremptório. Pela parte que lhe tocava, agarrava-se a esta higiene mental.
Gostava de conversa, ele, e de uma forma quase inquieta, gostava dela divertida, sobretudo tranquilizadora e bastante sensata. No que respeitava a tolinhos não queria insistências.»
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 378