domingo, 31 de outubro de 2010

***

M.B
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde
para respirar o ar fresco que vinha do oceano.
O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro
e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.
Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,
tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,
divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro
e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.
Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,
em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora
não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda
distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.
Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome
já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,
só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos
de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.
Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez
numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?
Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez
dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.
1989
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63


Exortação

IV
 
Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.
Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,
as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem
e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém
é de facto vertical. Deitado na montanha, estás
de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás
de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,
e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.
 
V
 
Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.
Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.
Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em
quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem
um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,
apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te
de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,
para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.
 
VI
 
Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta
com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela
que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto
perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto
pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.
Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também
tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar
quando de ti só a alma for o que restar.
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47

André Kertész: Falsche Bucher Wie Im Bucherschrank Eines Neureich, c. 1920s

«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»


Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12
«No tempo dos príncipes havia um, e dos mais belos, rico e moço que, andando um dia a passear no campo, por distracção pôs o pé na borda de um poço raso e caiu no fundo dele.
O sítio era ermo. Daquele poço já ninguém se serviu porque estava seco e atafulhado de silvas.
O triste moço, todo arranhado, quando deu consigo no buraco negro onde caíra barafustou, gritou e gastou as unhas nas pedras, mas tudo em vão. Rouco, quem o ouvisse já não suporia ser a sua uma voz humana. (...)»




Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 123

Journal d’un curé de campagne AKA Diary of a Country Priest (1951)

*

Quem mantém o pensamento separado da língua é mau
companheiro, ó Cirno, pois é melhor inimigo do que amigo.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Não me ames com palavras, tendo noutro lado mente e coração,
se me amas e se fiel é a tua intenção.
Ama-me com a mente pura, ou então rejeita-me
e odeia-me e opta pelo conflito aberto.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

*

Encontrarás poucos homens, ó Cirno, que sejam amigos
fiéis em empreendimentos difícieis: homens
que ousem estar sintonizados contigo,
a ponto de partilharem por igual das coisas boas e das más.

Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65
*

Para grandes empresas confia em poucos homens,
para que não obtenhas, ó Cirno, uma dor insustentável.


Teógnis. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.65

sábado, 30 de outubro de 2010

Female nude between bench and window

28 Amor pesado (fr. 460 PMG)

O fardo do Amor.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.60

21 Cabelo cortado (fr. 414 PMG)

Cortaste a flor perfeita do teu cabelo macio.

Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.59

14 Sedento (fr.389 PMG)

És amável para homens estranhos: dá-me de beber, estou sedento.


Anacreonte. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.57

8 As rosas da Piéria (fr. 55 PLF)

Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória
nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas
da Piéria, mas invisível na mansão de Hades
andarás para trás e para a frente no meio dos mortos sombrios.


Safo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.38.

1 Elogio do prazer (fr. 1 W)

O que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?
Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem:
o amor secreto, as suaves ofertas e a cama,
que são flores da juventude sedutoras
para homens e mulheres. Mas quando chega a dolorosa
velhice, que faz até do homem belo um homem repulsivo,
tristes preocupações sempre lhe moem os pensamentos
e já não sente prazer em contemplar a luz do sol,
mas é odiado pelos rapazes e desonrado pelas mulheres.
Assim áspera foi a velhice que o deus impôs.



Mimnermo. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.31

10 Nocturno

Dormem os píncaros das montanhas e as ravinas,
os promontórios e as torrentes,
e todas as raças rastejantes que a terra negra alimenta:
as feras das montanhas e a raça das abelhas
e os monstros nas profundezas do mar purpúreo;
dormem as raças das aves de longas asas.



Álcman. Poesia Grega de Álcman a Teócrito. Organização, tradução e notas Frederico Lourenço,Livros Cotovia, Lisboa, 2006 p.20

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O do Senhor da Casaquinha Verde

E o Senhor da casaquinha verde?
Que terrível sonho eu tive com ele!
Entrava num conto que me lembro de ter ouvido. Era um farsante! Saía do seu buraquinho, falava, corria as sete partidas do mundo a intrigar uns e outros, e não passava de um lagarto.
Que noite tão assustada eu passei por causa do senhor da casaquinha verde! Sonhei que estava a dormir com ele. Via-o mesmo ao pé da minha cara e sentia-me cheia de arranhões e babujada.
Mas que havia de eu fazer? Horripilante companhia! Levanto-me repentinamente da cama e atiro-me da janela abaixo. Até parece que voo. Fujo, fujo, fujo...e o senhor da casaquinha verde perseguindo-me.
Começa a chover. Não é água que cai, infelizmente, apesar de eu ter medo da chuva. São bolotas, são pedras, são bugalhos, que me magoam tanto! É castigo, penso eu, estou a ser castigada, mas de quê?
Atrás de mim o lagarto faz uma restolhada medonha, mas eu nunca me volto, nem quero ver nada.
Não quero ver...e sem querer olho...mas como é que não morro logo de susto? Perseguem-me centenas de lagartos, enormes, e todos com olhos a fuzilar. Que bocarras, que bocarras! Caio de joelhos no chão, falece-me a coragem. Estou num círculo de lagartos ferozes, estou no meio de navalhas afiadas....
Oiço então a voz do senhor de casaquinha verde: queres voltar comigo para a cama?
Ele a falar-me!
Choro, cheia de medo, e o círculo das navalhas aperta-se, aperta-se cada vez mais. Vou morrer. Já morri. Sei que estou morta, o que me não dá alegria nem tristeza. Deixo de pensar nos lagartos, vou descendo não sei para onde. É terrível e delicioso, escorrego sempre, sempre, sem jamais parar.
Acordei cansada. E jurei a mim mesma nunca mais ouvir nem ler histórias de lagartos.



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 116-118
«A menina ainda é uma criança. Mas tudo já aqui se vê, tem umas linhas muito claras.
Parecia a mulher que estava a ler:
Gosta do que não tem e do que ainda não conhece, não é verdade, minha beleza? Pois, com isso tudo ainda há-de vir a ser muito afortunada. Já perdeu a sua mãezinha....
Sem mesmo querer fiz-lhe com a cabeça que sim.
E tem madrasta.
Pus-me séria.
Coitadinha!
As lágrimas vieram-me aos olhos.
Não se entristeça, minha bela menina. Ainda há-de sair daqui e ser muito afortunada, que lho digo eu. Nos seus olhos há uma luz que me não engana. Esta marca, vê a menina esta estrela de bicos? é como fala. (...)»





Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 108

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

«A quem confiar as minhas alegrias e as minhas dores, as secretas paixões quixotescas da minha juventude, o violento choque, mais tarde, com Deus e os homens, e finalmente o orgulho selvagem da velhice que arde mas se recusa, até à morte, a transformar-se em cinza? A quem direi eu quantas vezes escorreguei e caí, ao escalar com os pés e mãos a encosta abrupta de Deus, quantas vezes voltei a erguer-me, coberto de sangue, para recomeçar a subir?Onde encontrar uma alma trespassada de mil golpes mais insubmissa, como a minha, para me confessar a ela?»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 11
«E apresso-me, antes de usar o «capuz negro» e descer ao pó, porque essa linha sangrenta será o único traço que deixará a minha passagem na Terra: o que escrevi, o que fiz, foi inscrito e gravado na água e desapareceu.»
 
 
 
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 10
« A Carta a Greco não é uma autobiografia: a minha vida pessoal só tem valor, muito relativo, para mim e para mais ninguém; o único valor que lhe reconheço é este: a sua luta para subir, degrau em degrau, e para chegar tão alto quanto a sua força e obstinação a possam levar - ao cimo a que eu próprio chamei o Olhar Cretense.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 9
«O coração tem sempre de pagar...Ou o vão matando aos poucos ou ele se gasta.»


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 97
«Que alegria de andar sozinho, de não ver ninguém e de nem saber para onde ir!»

Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 80
«Habituei-me a sair muito cedo, sozinho, quando o céu ainda parece branco.»


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 78

terça-feira, 26 de outubro de 2010


Toda a minha vida é um grito
e toda a minha obra a interpreta-
ção desse grito.



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa.
Três espécies de almas, três orações:

a) Sou um arco nas tuas mãos, Senhor;
curva-me, senão apodrecerei.

b) Não me curves demasiado, Senhor;
posso quebrar.

c) Curva-me até onde desejares, Senhor;
e tanto pior se eu quebrar.

1956



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa.
«O meu caixão era de puro cristal, transparente. A todo o momento me parecia que o mar e o céu se juntavam para me engolirem. Era uma ilusão, uma curiosa ilusão.»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 64
«Os cabelos soltos da jovem, como ela anda de cabeça baixa, virada para as suas flores, tapam-lhe os olhos. Solícito o cavaleiro quer-lhos arredar e pedir que descanse. Ela sorri-lhe. Ele corresponde-lhe e só deseja falar, explicar-se. Mas que há-de dizer? Não sabe...É ela que lhe pergunta então se alguma coisa lhe falta, se tem fome, se não tem pena de nada...
Ele só lhe responde com a mais feliz convicção: de nada, de nada.»

Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 48/49

segunda-feira, 25 de outubro de 2010


« (...) Florêncio, filho desta casa.
Coitado!
Já sem esperança pôs os olhos naquela estrela...
Naquela estrela e pedia-lhe: dá-me o que me falta, ó estrela!
E ela adormeceu-o.
Mas ele ficou a dormir, acordado.
A estrela velava-o.
Velava-o...»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 38
«O meu tempo corria como o tempo corre...ao acaso. Nada me pertencia já. Bastarda a casa, bastardos os ares respirados nela. Quantos anos teria eu então?Doze, treze, catorze. Até o gosto de vestir perdi porque tudo me retiravam; de vestir e de andar limpa e bem pregada. Só a imaginação me sustinha. A imaginação, digo; isto que aos jovens compensa de muitas faltas, da ternura, das satisfações, dos desejos realizáveis, de pequenas e grandes coisas.»



Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 35
Tudo se abrasa de súbito e depois escurece.


Irene Lisboa. Uma Mão Cheia de Nada Outra de Coisa Nenhuma. Livraria Figueirinhas, Porto, 1989., p. 12

Elephant Man

The Library of America

It's like heaven: you've got to die
To get there. And you can't be sure.
The publisher might go out of business.
Or you yourself might not be good enough.
The vagaries of taste might swerve,
Suddenly, leaving you disaudienced.

Marquand. Aiken. cummings. Mailer.
What are their chances now, which once
Loomed so large? Ubi sunt, as they say
In France, while their language
Expires. It's sad, this transience
We share, but look on the bright side:

It makes us, even the snottiest,
Human, which is a good thing to be.
And, in any case, inalterable. We die,
Others occupy our premises, decide
They don't need so many bookshelves,
And redecorate. Every vanity

Will be deaccessioned, as Islam
Deaccessioned Alexandria. Ubi sunt.
Cling as you may, assert whatever claims,
Once you have fallen into the public domain,
There's precious little hope, and all that
Little is reserved for those who had no doubts.

The man who carved the Sphinx's nose:
What was his name again? For centuries,
Millennia, that nose was there, and now
It's not. We are—I am—like him
Ephemeral, a million Ozymandiases
Drifting about in a vast Sahara.

Sift those sands, you archeologists.
Number the shards of the shattered nose.
Reprint the words that once we shivered
To read, and annotate each line. Still,
When we die, we are certainly dead,
And only a few of our books will be read.

And then even those will be forgotten.



Tom Disch

Nineteen Thirty-Eight

That was the year the Nazis marched into Vienna,
Superman made his debut in Action Comics,
Stalin was killing off his fellow revolutionaries,
The first Dairy Queen opened in Kankakee, Ill.,
As I lay in my crib peeing in my diapers.
“You must have been a beautiful baby,” Bing Crosby sang.
A pilot the newspapers called Wrong Way Corrigan
Took off from New York heading for California
And landed instead in Ireland, as I watched my mother
Take a breast out of her blue robe and come closer.
There was a hurricane that September causing a movie theater
At Westhampton Beach to be lifted out to sea.
People worried the world was about to end.
A fish believed to have been extinct for seventy million years
Came up in a fishing net off the coast of South Africa.
I lay in my crib as the days got shorter and colder,
And the first heavy snow fell in the night.
Making everything very quiet in my room.
I believe I heard myself cry for a long, long time.

Charles Simic

Klara and Edda belly-dancing


Fundación mítica de Buenos Aires

¿Y fue por este río de sueñera y de barro
que las proas vinieron a fundarme la patria?
Irían a los tumbos los barquitos pintados
entre los camalotes de la corriente zaina.
Pensando bien la cosa, supondremos que el río
era azulejo entonces como oriundo del cielo
con su estrellita roja para marcar el sitio
en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.
Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron
por un mar que tenía cinco lunas de anchura
y aún estaba poblado de sirenas y endriagos
y de piedras imanes que enloquecen la brújula.
Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,
durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,
pero son embelecos fraguados en la Boca.
Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.
Una manzana entera pero en mitá del campo
expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.
La manzana pareja que persiste en mi barrio:
Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.
Un almacén rosado como revés de naipe
brilló y en la trastienda conversaron un truco;
el almacén rosado floreció en un compadre,
ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.
El primer organito salvaba el horizonte
con su achacoso porte, su habanera y su gringo.
El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,
algún piano mandaba tangos de Saborido.
Una cigarrería sahumó como una rosa
el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,
los hombres compartieron un pasado ilusorio.
Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.
A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:
La juzgo tan eterna como el agua y como el aire


Jorge Luis Borges

Susana Bombal

Alta en la tarde, altiva y alabada,
cruza el casto jardín y está en la exacta
luz del instante irreversible y puro
que nos da este jardín y la alta imagen
silenciosa. La veo aquí y ahora,
pero también la veo en un antiguo
crepúsculo de Ur de los Caldeos
o descendiendo por las lentas gradas
de un templo, que es innumerable polvo
del planeta y que fue piedra y soberbia,
o descifrando el mágico alfabeto
de las estrellas de otras latitudes
o aspirando una rosa en Inglaterra.
Está donde haya música, en el leve
azul, en el hexámetro del griego,
en nuestras soledades que la buscan,
en el espejo de agua de la fuente,
en el mármol de tiempo, en una espada,
en la serenidad de una terraza
que divisa ponientes y jardines.

Y detrás de los mitos y las máscaras,
el alma, que está sola.


Jorge Luis Borges

El Puñal

En un cajón hay un puñal.

Fue forjado en Toledo, a fines del siglo pasado; Luis Melián Lafinur se
lo dio a mi padre, que lo trajo del Uruguay; Evaristo Carriego lo tuvo
alguna vez en la mano.

Quienes lo ven tienen que jugar un rato con él; se advierte que hace
mucho que lo buscaban; la mano se apresura a apretar la empuñadura
que la espera; la hoja obediente y poderosa juega con precisión en la
vaina.

Otra cosa quiere el puñal.

Es más que una estructura hecha de metales; los hombres lo pensaron y
lo formaron para un fin muy preciso; es, de algún modo eterno, el puñal
que anoche mató un hombre en Tacuarembó y los puñales que mataron
a César. Quiere matar, quiere derramar brusca sangre.

En un cajón del escritorio, entre borradores y cartas, interminablemente
sueña el puñal con su sencillo sueño de tigre, y la mano se anima cuando
lo rige porque el metal se anima, el metal que presiente en cada
contacto al homicida para quien lo crearon los hombres.

A veces me da lástima. Tanta dureza, tanta fe, tan apacible o inocente
soberbia, y los años pasan, inútiles.


Jorge Luis Borges

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

«(...) será que a verdade tem de ser feia? Será que não estaremos a fazer uma ofensa ao mundo - ou a ser, se preferirmos - vestindo a verdade ou, mais precisamente, a busca da verdade, com as roupas mal costuradas de uma racionalidade deformada, mutilada pela recusa à poesia?»

Alexandre Belfort. Nietzsche e o Corpo: O Nascimento da Tragédia e a Genealogiada Moral.
Tese

The Spirit Leaves the Body


quinta-feira, 21 de outubro de 2010

«Uma camada de neve impoluta cobria a vegetação do bosque e acumulava‑se nas copas das árvores, caindo lentamente para o chão com um queixume seco. Quando me virei, vi um oceano invernal, que se espraiava do lado oposto ao do separador da auto‑estrada,sereno e tranquilo, como um mar de cor azul brilhante. Tudo o que via me enchia de nostalgia. Fechei firmemente o meu coração e voltei as costas ao mar.
A neve do bosque foi‑se tornando mais profunda, os ramos partidos e os pedaços de troncos duros faziam com me fosse mais difícil caminhar do que aquilo que eu tinha imaginado. De repente, um pássaro levantou voo por entre as árvores com um chilrear agudo. Parei e pus‑me a escuta, mas não ouvi mais nada, era como se não restasse mais ninguém neste mundo. Ao fechar os olhos, escutei o som das correntes dos carros que circulavam pela estrada, que soavam como cascavéis. Tive a sensação de não saber onde estava, de não saber quem era.»




Kyoichi Katayama. Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p. 10
«Naquela manhã acordei a chorar. Como sempre. Nem sequer sabia se estava triste. A par das lágrimas, as minhas emoções iam‑se escoando para um sítio desconhecido. Deixei‑me ficar deitado no futon durante um bocado, absorto, até que a minha mãe se aproximou e me disse: «Já está na hora de te levantares.»
Kyoichi Katayama.Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p.9

“the moments we call crises are ends and beginnings”

Kermode
MAUPASSANT, Guy de. Bel-Ami. London: Penguin, 2003. “A solidão agora me invade com uma angústia horrível: a solidão no quarto, numa noite, próximo à lareira. Parece que estou sozinho sobre a terra, horrivelmente sozinho, mas cercado por ameaças e perigos desconhecidos e terríveis; e o muro que me separa do meu vizinho desconhecido torna-me tão distante dele como das estrelas que vejo da minha janela.”

Robert Bresson - Pickpocket (1959)


«O mar é grande, inesgotáveis são também os desertos,
e não se sofre melhor longe destes lugares...?»


Negras colinas

Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 165

Abalo

Eu vou lá gritar, gritar bem alto
e chamar o meu pai e apresentar uma confissão,
levantar-me no fogo e meter as minhas mãos em chamas
na garganta da neve.

Vou expulsar dos campos as flores, para que regressem a casa,
e quebrar os ramos aos meus arbustos para o abalo da morte.
Vou dar uma carta à minha tristeza e recomendá-la a Deus
e dizer-lhe que ela é vida como nenhuma outra vida,
tristeza no crepúsculo das cidades natais!

Eu vou lá anunciar donde vim
e para onde vou.
Eu vou até onde ninguém me possa alcançar
com sapatos sujos. Nenhuma frialdade há-de empedernir o meu coração
perante a incerteza dos deuses ensombrados!





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 135

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Tormento

Morro diante o Sol e
diante o vento e diante as crianças que disputam o cão, morro
numa manhã que não pode vir a ser nenhum poema; só triste e verde e
interminável
é essa manhã...O meu pai e a minha mãe estão na ponte e julgam
que eu venho da cidade e não me trazem senão
as suas primaveras destroçadas em grandes cestos e vêem-me -
e não me vêem, porque
eu morro diante do Sol.

Um dia não verei mais os bosques, e a erva
há-de colher a tristeza da minha irmã. O arco da porta
ficará negro e o céu já não será
inatingível
para os meus desesperos...Num dia hei-de
ver tudo e a muitos enxugar os olhos
de manhã cedo...

Estou então de novo debaixo dos jasmins e
vejo como o jardineiro dispõe os mortos nos alegretes...
Morro diante do Sol.
Estou triste, porque há sempre dias que não voltam mais...A parte
nenhuma.



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 123

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta
estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem
pergunto por mim me viu.
Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens
por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.

Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,
que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,
os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.

A terra fala uma linguagem que ninguém entende,
porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus
nos desesperos
e bebi vinho do seu jarro,
que é feito das minhas dores.

Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus
atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante
e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das
almas.
Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas
e causam graves danos nos monumentos.
Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.
Debaixo da porta está afixado um mandamento:
NÃO MATARÁS
...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,
que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.
Leio essas notícias como uma fábula,
de uma facada para outra - sem me aborrecer.
Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme
sob o movimento da mão de Deus.




Thomas Bernhard. Na Terra e no InfeNegritorno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121

Robert Bresson-Pickpocket (1959)


Tristeza

São vermelhos os montes e os meus irmãos andam no meu cérebro,
como se Jesus não tivesse sido crucificado à luz das estrelas,
que não têm medo das crueldades da minha alma, da alma
que enterrei num vale quando nem sequer era nascido, naquele tempo,
em Abril, o mês iracundo, que lava as pedras
e as torna em lousas de sepulturas, sobre as quais se encolhem as
companheiras da minha solidão,
com rostos lívidos, enquanto o vendaval lhes vai rasgando os olhos
no brilho mortiço da Lua distante.


Para quê estes dias, para quê a morte,
para quê tudo aquilo de que não gosto, o arbusto
e as flores na boca do burro e o grito
dos meus membros no Outono e a lida dos camponeses
e a glória do sofrimento com que a minha mãe me sobrecarregou ao
morrer,
oprimida pelos donos, sempre bêbados, da fábrica de cerveja na margem
do lago, que devora os meus mortos
sob o riso das estrelas.
Eu não fiz nada que pudesse prejudicar a vossa felicidade, nada,
senão escrever uns versos que fizeram chorar o meu irmão
e despertar na minha irmã - com as flores do vento de Março -
o espinho do ciúme, não comi nada
que tivesse faltado na vossa mesa, não bebi nada que cheirasse aos
vossos casamentos nem
ao cantar dos celeiros, a que eu já não posso voltar, porque
toquei o sino errado na margem do rio, que leva ao encontro
da minha aflição os crânios vazios da imortalidade,
todos os dias, uma manhã após outra, em silêncio, como seu me
tivesse desfeito em cinza, antes
de ter acordado na carne primaveril destas cidades.
Em que é que eu penso quando vejo as ruas vazias, as janelas dos
homens e das mulheres
que tanta putrefacção beberam que Deus terá de te proteger,
que despedaçaram o teu verde e o teu cinzento e o negro dos rios,
que não enalteceram a tua fonte nem a tristeza das tuas noites,
em que, com cada pedra e com cada rã, te despenhaste
no esquecimento! No esquecimento! No desespero
das raízes!
Já não vejo nenhum rosto que eu possa amar, nenhuma carne
que traga prazer ao meu anseio nem nenhuma morte
que satisfaça o meu estar só...Os campos estão vazios! As casas
estão roxas de velas! As portas rangem o seu desdém na tua fadiga
quando
tu regressas a qualquer boca depravada que possui um campo,
uma macieira, uma vaca, um pedaço de relva
te amaldiçoa...
E quando queres partir não sabes para onde!
E quando queres beber água, estás no deserto!
E quando queres mendigar, a imundície da sua riqueza já te
estrangulou!
E quando buscas a tua sepultura, trazem-te uma travessa cheia de
beleza!
...Já não vejo nenhum rosto...Só o barro negro e em decomposição
das suas enfermidades e a ira que transforma em pó a sua vida.


Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 113-117
XII


Coisas terrenas,
Oh, são inúteis e frágeis, mas nelas
Me inspirando, posso esquecer as minhas angústias;
Todo o pensar que dói, as lágrimas vertidas por outros,
Todas as dores e todos os desejos nelas mergulho.
Ao pensá-las, mais dói o pensamento, daí que
Embora temendo, desejo fechar os olhos em morte breve,
Só que mais sofro ainda, pois não sei o que é a morte.
Oh, o mistério do homem, que triste tu és
E tão profundo! Que horrível é o teu rosto
Marcado pelo véu da vida mortal!
Profunda de mais p'ra dizer, grande de mais p'ra pensar.

Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 367

The sacred and the profane: Anne Wiazemsky and Balthazar in Robert Bresson’s “Au hasard Balthazar”


Literatura para crianças: O Pássaro da Alma




Quando alguém nos magoa, o pássaro da alma agita-se de lá para cá / Em todos os sentidos dentro do nosso corpo, sofre muito.

*
Decerto querem também saber de que é feito o pássaro da alma.
Ah, isso é mesmo muito fácil:
É feito de gavetas e mais gavetas.
Mas não podemos abrir as gavetas de qualquer maneira,
Pois cada uma delas tem uma chave para ela só!
E o pássaro da alma
É o único capaz de abrir as gavetas dele.
Como?
Pois isso também é muito simples:
Com a segunda pata.
**
E como o que sentimos tem uma gaveta,
O pássaro da alma tem imensas gavetas.
A gaveta da alegria e a gaveta da tristeza.
A gaveta da inveja e a gaveta da esperança.
A gaveta da desilusão e a gaveta do desespero.
A gaveta da paciência e a gaveta do desassossego.
E mais a gaveta do ódio, a gaveta da cólera e a gaveta do mimo.
A gaveta da preguiça e a gaveta do vazio.
E a gaveta dos segredos mais escondidos,
Uma gaveta que quase nunca abrimos.
E há mais gavetas.
Vocês podem juntar todas as que quiserem.
***
E o mais importante - é escutar logo o pássaro.
Pois acontece o pássaro da alma chamar por nós, e nós não o ouvirmos.
É pena. Ele quer falar-nos de nós próprios.
Quer falar-nos dos sentimentos que estão encerrados nas gavetas
Dentro de nós.
****
Há quem o ouça muitas vezes,
Há quem o ouça raras vezes,
E há quem o ouça
Uma única vez na vida.
Michal Snunit
. O Pássaro da Alma. Ilustrações de Naama Golomb. Trad. do hebraico de Lúcia Liba Mucznik. Editora Vega, Lisboa, 2007

“uma função da arte é legar um ilusório ontem à memória dos homens”

Borges
Nietzsche, «Del país de la educación», Así hablaba Zaratustra: “já só amo a terra dos meus filhos, a terra ainda não descoberta no mar mais longínquo; é por ela que mando as minhas velas a procurar e voltar a procurar.É nos meus filhos que quero remediar o facto de ser filho dos meus pais: e compensar todo o futuro... por este presente!”.

«Fundação mítica de Buenos Aires»

«(...) A tarde tinha-se afundado em ontens,
os homens partilharam um passado ilusório.»


Borges

Tango em Evaristo Carriego

«Borges afirma então que o tango tem por objecto a fabulação de uma certa memória
combativa
:


''Talvez a missão do tango seja essa: dar aos argentinos a certeza de terem
sido valentes, de terem cumprido já com as exigências da coragem e da
honra.''»



Eduardo Pellejero. Borges e a política da expressão a transvaloração do passado nacional, p.3

segunda-feira, 18 de outubro de 2010


''Indagação'' socrática

(Sobre a impossibilidade da sobreposição da cópia)
“Não haveria dois objectos, tais como Crátilo e a imagem de Crátilo, se um deus, não satisfeito em reproduzir apenas tua cor e tua forma, como os pintores, representasse além disso, tal como ele é,todo o interior de tua pessoa, dando exactamente seus caracteres de flacidez e calor, e colocasse nele o movimento, a alma e o pensamento, tais como eles são em ti, em resumo, se todos os traços de tua pessoa, ele dispusesse junto a ti numa cópia fiel? Haveria então Crátilo e uma imagem de Crátilo,ou então dois Crátilos?”. Crátilo: “Dois Crátilos, Sócrates, me parece”.





Guimarães, R (2008). Jorge Luis Borges e Maurice Blanchot: Os pharmakós da escritura. ACTA LITERARIA Nº 37, II Sem., p.4

« (...) no conto “Vinte e cinco de agosto, 1983”, Borges encontra Borges num quarto de hotel. Esse outro (ele mesmo) é bem mais velho. Assustado, o narrador (o jovem Borges) pergunta: “Então, tudo isto é um sonho?” A resposta, nada esclarecedora: “É, tenho certeza, meu último sonho”. Quem sonha com quem? Esta é a pergunta aristotélica feita pelo jovem Borges. Porém, a resposta é borgeana: “Você não se dá conta de que o fundamental é averiguar se há um único homem sonhando ou dois que sonham um com o outro” (Borges, 2000c: 427).»


Guimarães, R (2008). Jorge Luis Borges e Maurice Blanchot: Os pharmakós da escritura. ACTA LITERARIA Nº 37, II Sem., P.4

“la literatura no es otra cosa que un sueño dirigido”

Borges
“Le fantastique c’est l’hésitation éprouvée par un être qui ne connaît que les lois naturelles, face à un événement en apparence surnaturel.''


Todorov. Introduction à la littérature fantastique, 1970, p. 29

domingo, 17 de outubro de 2010

XXII
Mulher (para Marino):
Certos homens têm um negro semblante,
Os seus olhos não respondem à luz do olhar
Pois estão mergulhados na sombra. Mas os teus
Têm a escuridão abafada da noite tropical
Onde o relâmpago está prestes...



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 335

XVIII


A Morte veio e levou-o de mim.
(...)
Acho que (de mim tão amigo e chegado)
Nesta aparência de mortal frialdade,
Senti sobre a face o sopro abafado
Do grande vortéx da eternidade.

Tão perto, que a Morte parecer tocar
Meu corpo tremente; triste me parece
Que a Morte junto a mim não vai voltar
Salvo por mim mesmo...
(...)
Alguns morrem na batalha sangrenta,
Alguns no cadafalso, outros esfaqueados,
Outros dão o ser sem qualquer contenda,
Mas os mártires por outros são imolados.

Morrem alguns no leito de agonia,
Noutros funda angústia os arranca à sorte,
Uns partem sem ver quão belo é o dia,
Outros bem tarde. Mas morte é sempre morte.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 331
XIII

Menestrel: Tão bem te conheço, Giles Attom, que tu
Não te conheces a ti tão bem quanto eu;
Tua infância e juventude, a tua idade adulta
Tudo me é conhecido; teus pais igualmente
Conheci muito bem; até da tua vida
Conheço os segredos - tuas paixões, cuidados,
Teus amores e desgostos, tuas raivas e calmas,
Chamas e friezas; sei do teu presente
E, de igual modo, o teu futuro conheço.
Giles: Como tal? Quem és e o que és para falar assim?
Para te gabares de tudo conhecer?
Men: Não interessa
Quem sou e o que sou. Basta dizer-te...






Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 323/325

En el mercado de Zacatepec, 1956


«Que o homem é tão estranho na sua existência,
Tão raro no seu fado, tão obscuro na sua origem,
Que ante coisas tão simples perdemos a voz.
Tão ridículo, tão bizarro, tão real, irreal
E contudo tão triste! Como exprimir tudo isto?
Tivesse em mil línguas, mil maneiras
De expressar meu pensar e uma ideia só a dizer
Inda a mente me oprimiria ante um pensamento
Que amaldiçoa a palavra.

Sim, por vezes acho
Que vou ter a resposta de tudo; só que então
Algo demasiado horroroso em si aparece,
Uma loucura que alastra, uma ausência de luz,~
E de novo emudeço.
Quando medito sobre
Este espaço imenso, silencioso, interminável,
Sinto a vertigem do viandante que olha
Arrebatado sobre o fundo de um abismo,
Em escuro envolvido, donde se soltam terríveis sons -
Assim é estridente na minha alma o som solene
Do pensamento em si pesado.
Eu te dou algo para pensar, mas retém uma só
Palavra - uma pequena palavra, amigo - «Deus»
E diz-me tudo o que nela está. Ou então não digas
E pensa somente.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 323

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

«(...) Nietzsche identifica a verdade de Deus como sendo uma herança dos gregos. Ele sugere a existência de uma escada com três degraus importantes: o primeiro deles evidencia que em determinada época a humanidade foi sacrificada por um Deus. O segundo degrau revela que em seguida a humanidade sacrificou seus mais fortes instintos e sua natureza em nome da moral. Finalmente, no terceiro degrau, a humanidade sacrificou deus em favor do nada e da liberdade. Mas, diante da leitura de tais apontamentos nietzschianos, surge uma pergunta para o leitor: liberdade para quê? Agora o homem é livre, porém não sabe o que fazer com sua liberdade e se encontra sem direcção, navegando num mar desconhecido.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 39

Causas do Niilismo

«Segundo Nietzsche, há duas grandes causas para a presença do niilismo: a ausência de grandes modelos para a humanidade (grandes homens) e a crescente maioria da população (a massa, a sociedade, o rebanho). O excesso de fraqueza e a falta de força – a falta de modelos de força e vontade humana – constituem para o filósofo a raiz do niilismo.
Assim, haverá homens fracos e fortes no mundo, mas é importante que os fortes representem a maioria, para que a vida seja enriquecida. No entanto, faz-se necessário frisar que nem sempre aqueles que detém o poder, a autoridade e o saber são os mais fortes. Muitas vezes eles são os mais fracos, os parasitas. O que Nietzsche quer, de fato, afirmar é que o homem vive numa era de pobreza (“age of poor”). O homem tem se tornado pobre em valores, em talentos, em conhecimento e em espírito. O mundo de um modo geral tornase corrompido.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 36
«Em Gaia Ciência (1882), no parágrafo 125, Nietzsche ressalta a morte de Deus(ou o assassinato de Deus). Vê-se que a crise na qual se encontra o mundo moderno/contemporâneo aponta para nenhuma direcção. Deus não representa mais um papel fundamental na vida do homem e na sua relação com a realidade. Nessa obra, o filósofo sugere que o homem sempre viveu no erro ao criar um mundo para si próprio, de acordo com sua razão. A história da filosofia tem mostrado que somos frequentemente enganados pelo nosso pensamento e pela razão. Ao buscar alcançar a verdade, a humanidade se afasta cada vez mais dela, como um incansável Sísifo.»




ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 33

Where we still walk soon no one will be able to walk

Nietzsche

Niilismo

«Etimologicamente, “niilismo” vem do latim nihil e significa a persistência do pensamento pelo nada. De acordo com Franco Volpi, o termo “niilismo” surge entre o final do século XVIII e início do século XIX, mas há registos de que o termo já havia sido empregado em 1733 no título do tratado de F. L. Goetzius, “De neonismo et nihilismo in theologia”. (...)
No entanto, apesar desses registos anteriores, o termo “niilismo” tornou-se conhecido somente a partir do romance russo, Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, escrito entre 1860 e 1862. De facto, é tarefa difícil remontar a história do niilismo, pois suas raízes tendem a se aprofundar cada vez mais à medida que se busca a sua origem. Mas, para além da origem do termo, o niilismo, enquanto sentimento, existiu desde sempre. Trata-se do sentimento de estranhamento e da falta de sentido diante do mundo.»


ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 30

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

III

Se eu pudesse dizer quantas vezes quis morrer esta noite,
morrer sem salmo e sem mãe nem pai, morrer como os animais
que sufocam, encurralados entre os muros,
morrer como um verme pisado, sem qualquer assistência,
morrer como o melro esmagado pela roda do comboio aéreo,
morrer como a alma das árvores, que mandam com o vento
os seus segredos para os oceanos, quando a Primavera chega, porque
«à la fin tu es las de ce monde ancien...»,
tanto sofrimento, tanto cheiro de corpos humanos nunca eu antes
tinha respirado.





Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 93

Sandip

«O seu intelecto é vivo, apurado, mas a sua natureza é grosseira e, por isso, ele adorna com nomes ressonantes os seus desejos egoístas. As baixas consolações do ódio são-lhe tão necessárias como a satisfação dos seus apetites.»




Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 33/4
«Outro dia, quando Sandip me acusou de falta de imaginação e afirmou que tal carência me impedia de dar ao meu país uma imagem visível, Bimala concordou com ele. Decidi não dizer nada em minha defesa, porque vencer numa discussão não conduz à felicidade. A divergência de opinião da minha mulher não provém da desigualdade de inteligência e, sim, de dissemelhança de naturezas.
Acusam-me de não ser imaginativo - isto é, segundo eles, tenho óleo no candeeiro, mas não tenho chama. Ora, essa é, precisamente, a acusação que lhes faço. Podia-lhes dizer: «Sois escuros como as pederneiras, precisais de atrito violento e barulho para produzirdes as vossas centelhas: mas as suas chispas desconexas servem apenas para lisonjear o vosso orgulho e não clarificam a vossa visão.»





Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 33
«Bimala é impaciente com a paciência, gosta de encontrar nos homens turbulência, cólera, injustiça. No seu respeito por eles tem de haver um elemento de medo.»



Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 32

«Tenho um espinho cravado no coração, um espinho que não pára de me causar dor, enquanto me entrego ao trabalho diário, e que me parece nem sequer me dar tréguas quando durmo. Mal desperto, de manhã, vejo que o céu perdeu i fulgor. Que se passa? Que aconteceu?
O meu espírito tornou-se tão sensitivo que até a minha vida passada, que se me apresentara sob o disfarce da felicidade, parece arrancar-me o coração, com a sua falsidade. A vergonha e a mágoa que se aproximam cada vez mais vão perdendo o ar secreto, velado, e perdem-no principalmente porque tentam ocultar o rosto. O meu coração é todo olhos. Tenho de ver as coisas que não deveriam ser vistas, as coisas que não quero ver.
Chegou finalmente o dia em que a minha vida maltratada tem de divulgar a sua pobreza, o seu desamparo, numa longa série de revelações. Esta penúria tão inesperada instalou-se no coração onde parecia reinar a plenitude. O que paguei à ilusão durante nove anos, apenas, da minha juventude tem agora de ser pago com juros à Verdade, até ao fim dos meus dias.
De que me serve esforçar-me para conservar o meu orgulho? Que mal pode haver em confessar que falta em mim qualquer coisa? Talvez me falte a firmeza, a impetuosidade cega que as mulheres gostam de encontrar nos homens.»





Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 31
«Uma das heranças joycianas de Beckett e Hilst é a utilização do fluxo de consciência em suas narrativas. Os autores conseguem radicalizar esse recurso estilístico levando-o ao extremo, fazendo com que a narrativa se apresente entrecortada, como se o leitor passasse de uma cena a outra, sem uma sequência, uma continuidade. Seus personagens, além de conviverem com pessoas reais da história, criam personagens imaginários, cujas falas se misturam com a do próprio protagonista, provocando uma confusão no leitor que está acostumado a uma leitura linear, sem atropelos, e sem ambiguidades que comprometam a compreensão do todo. »



ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Tese de Doutoramento em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p. 27

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

132.

Primeiros fragmentos

I

-«O que é a fama após a morte?
Uma vida sem vida, caro rapaz,
Uma vida que se vive e não apraz,
Um nome escrito à esquina duma rua,
Um busto que podemos espezinhar,
Um vento leve que a tempestade destrua:
Essa a fama póstuma. Maldito quem se agastar
Só por tê-la; e quem por ela morrer, Marino,
Se matará duas vezes. Por isso escuta...

II
É bom ser amado por toda a gente,
Melhor ainda o amor só de alguém;
Mas não há na vida maior amargura
Do que não ter o amor de ninguém.

III
Nunca as negras nuvens serão tão densas
Que não haja um azul para vislumbrar;
Nunca o céu tão escuro que um raio luminoso
Através dele não possa passar.

IV
Nada é mais frio do que as cinzas são
E contudo o lume ali se ateou;
A noite que envolve uma única estrela
Mais negra parece quem a olhou.

(...)




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 313/314

124.

Dia de Inverno



II

A visão que tenho deste dia frio,
A depressão funda em que o pensar extravio
Um símbolo e um resumo é, simplesmente,
Do que a minha vida é perpetuamente.

Em tristeza e dor, que fundo o pensamento!
Como a alma mergulha em desespero intensivo!
Que desolado o peito emudecido
Das palavras que são como odor expelido
Da flor aberta da plena juventude!
Como fico encerrado na minha inquietude!
Como fico neste círculo confinado,
Círculo trágico do meu ser odiado!
Nem uma ambição ou desejo me chama -
Humanitarismo, poder, riqueza ou fama.
Mas sinto-me cansado, frio, desiludido,
Tal como este dia. Tenho envelhecido
A ver os sonhos a passar e desaparecer,
Deixando a lembrança pura, luzindo,
De algo que, como a luz, se foi extinguindo
Sem o vivo horror de se ver morrer.

Negrito


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 291

122.

Oh, estrela solitária

Oh, estrela brilhante que na solidão
Espreitas do seio da noite envolvente,
Nada iguala em beleza a tua amplidão
No céu despido e de estrelas ausente.

Promete manter o teu cintilar
Na noite luzindo em dormente prazer,
Como de uma fada o indolente olhar
Que, p'ra pensar, recusa adormecer.

Que há outras estrelas, eu sei muito bem,
Que podem ter mais brilho e verdade;
Mas não as desejo, porém só uma vem
Pedir atenção e vencer a vontade.

E se, disto, a lição não tiverdes tirado
Muito da Virtude terás desprezado.


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 283

I write about myself with the same pencil and in
the same exercise book as about him. It is no
longer I, but another whose life is just beginning.

Samuel Beckett

«O contexto histórico-filosófico de Beckett (1906-1989) é a passagem do existencialismo para o pessimismo. Eis a situação do sujeito do século XX, após vivenciar os anos de guerra. As paisagens inóspitas e os diálogos de seus personagens que denunciam a impossibilidade de comunicar algo são evidências da realidade do pós-guerra. Sua linguagem sem ornamentos tem como função ressaltar o silêncio dos personagens. Seu teatro exprime a angústia de personagens que se encontram condenados à incapacidade de a linguagem comunicar o que sentem.»





ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.22


Atraco-me comigo, disparo uma luta. Eu e meus alguéns, esses
dos quais dizem que nada têm a ver com a realidade e é
somente isto que tenho: eu e mais eu
H.Hilst

«Desejo de eternizar-se. Desejo de abdicar da vida social para se dedicar totalmente à literatura. Desejo de alcançar a verdade, o conhecimento, a compreensão da vida e da morte. Desejo de ser santa aos oito anos de idade, quando era interna no colégio de freiras. Desejo de escrever um livro a cada novo amor que surgia em sua vida. Desejo de traçar um roteiro para a sua obra, mesmo que o final deste roteiro fosse dar no silêncio: “eu fui atingida na minha possibilidade de falar”. Eram tantos os desejos dessa autora, leitora de Joyce, Beckett, Kafka, Nietzsche, Kierkegaard, Kazantzákis, só para citar alguns de seus autores preferidos.»



ARAÚJO, R. B (2009). Niilismo heróico em Samuel Beckett e Hilda Hilst: Fim e recomeço da narrativa. Doutorado em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba, p.16
How far does the Truth admit of being learned?
Kierkegaard
«Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contacto com quem está possuído pelo demónio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.»

Georg Lukács
«-Vê, Nikhil, como a Verdade adquire carne e sangue no coração de uma mulher! - exclamou Sandip Babu. - A mulher sabe ser cruel, a sua virulência é como uma tempestade cega: maravilhosamente terrível. No homem é feia porque contém no seu âmago os vermes corrosivos da razão e do pensamento.

(...)


Vem, pecado, ó belo pecado!
Que teus esbraseantes beijos vermelhos derramem
ardente vinho tinto no nosso sangue!
Faz soar a trompa do mal imperioso
E atravessa na nossa fronte a coroa da exultante
ilegalidade!
Ó Deusa da Profanação,
Mancha sem vergonha o nosso peito com a mais
negra lama do descrédito!



Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 29
«Se fosse necessário preencher, pouco a pouco, o espaço entre o dia e a noite, levar-se-ia nisso uma eternidade. Mas o Sol nasce e as trevas dissipam-se, basta um momento para abarcar uma distância mínima.»


Negrito
Rabindranath Tagore. A casa e o mundo. Trad. de Fernanda Pinto Rodrigues. Minerva de Bolso. 1ª ed., 1973, p. 16

106.

Rasgos de Loucura



III

Os olhos são coisas raras.
Neles o sentido se transforma em vida.
Neles a vida tem asas.

Olha para mim. É louco e estranho o teu olhar.
Uma luta interior se vê reflectida.
Mais que belo Horror ele vem revelar!

IV

1.

Quanto tu falavas, apenas sentia
Um terror alienado e estranho.
Imagina. Ajoelhar-me poderia
Ante teus lábios, seu mover, seu desenho.
A forma dos lábios, cheia de expressão,
E teus dentes meio descobertos
Eram do delírio, chicotes despertos.
Senti desaparecer minha razão.

Um fetichismo mais que sensual
Visita minha mente delirante.
Maior do que o abismo se apresenta
A fenda entre a razão e sentimento,
Aberta ao alvião do sofrimento.

Tudo contém mais do que aparenta.



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 241
«E, de modo estranho e indefinido,
Perdidos no Todo, um só vivente,
Essa prisão a que eu chamo a alma
E esse limite a que chamo mente.»



Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 233
«Lamento o passado e temo o futuro,
Choro e desejo o que nunca fui eu,
Aquilo que não houve na Natureza
E o que havendo nunca será meu.

Saudade do prazer que já é passado,
Tristeza da dor outrora vivida,
A dor do que visto em vagas visões
É apenas eco da amargura tida.»

(...)



91. A minha vida


Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 201

89.

O Lábio


Um dia em delírio entorpecido,
Onde vi estranhas coisas a passar,
Vi num sonho, sem luz alguma a brilhar,
Um homem com um só lábio -
Exactamente, exactamente,
Exactamente um só lábio.

Lembro bem que ele não tinha rosto
Nem nariz, com a ponta para vê-lo,
Nem olhos, nem faces, nem cabelo
Mas apenas só um lábio -
Um somente, um somente
Apenas um, um só lábio.

Podeis pensar nisto sem terror?
E nenhum outro lábio ressalva
À visão, nem tampouco lhe faltava:
Havia somente um lábio.
Vendo-o como eu, ficaríeis loucos -
O homem com um só lábio.




Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., pp. 197/8

terça-feira, 12 de outubro de 2010

New Yorker Review of Books
"with enough time, enough afterlife, a great book does find its rightful place. And perhaps some books deserve to be rediscovered again and again" (com tempo suficiente, vida post mortem suficiente, um grande livro encontra o seu lugar de direito. E talvez alguns livros mereçam ser redescobertos várias vezes).
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