quinta-feira, 22 de abril de 2010

Depois a trágica retirada para o jazigo ou cova,
E depois o princípio de morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando que faz anos que
morreste;

Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.



Álvaro de Campos in Fernando Pessoa. Poesia de Álvaro de Campos Vol. I. Colecção dirigida por Vasco Graça Moura. Planeta DeAgostini, Lisboa, 2002

olhar fotográfico (sobre trabalho a carvão de Robert Longo)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

A Maria Lionça

«O filho, o Pedro, é que não resistiu ao desencanto. Envergonhado dum pai que lhe passara apenas pelos olhos como um fantasma de podridão, e sem poder abarcar a grandeza daquela mãe que fazia do absurdo o pão da boca, abalou para Lisboa, sem Galafura saber a quê. E nova via sacra começou na loja do correio.
- Não tens nada, Maria.
Velha, branca, igual, a Lionça voltava pelo mesmo caminho e sentava-se ao lume a fiar, pondo na regularidade do fio a estremada regularidade da sua vida. E Galafura, tanto ao passar para os lameiros como na volta, saudava respeitosamente nela uma permanência que resgatava a traição do marido e a fraqueza do filho. Como à mimosa familiar do adro, ou à fonte incansável do largo, assim a viam, segura e repousante no seu posto, e capaz de todos os heroísmos dum ser humano. O tempo dera-lhe a chave daquela existência, destinada, afinal, mais às provações do sofrimento do que ao gosto das alegrias. Só ela os podia esclarecer e ajudar no desespero de certas horas e situações. Movediço como a insensatez da sua idade, o filho fizera-se marinheiro. E Galafura, humosa, enraizada no dorso da serra de S. Gunhedo, olhava esse rebento, mergulhado em água, como um proscrito. Antes o degredo do pai no Brasil, ao menos aproado a um chão que fazia parte da cosmogonia de Galafura. Diluída na imensidão do mar, a imagem do rapaz perdera toda a nitidez. E sumir-se-ia irremediavelmente na consciência da povoação, sem a ajuda da Maria Lionça. Quando inesperadamente chegou um telegrama da capitania de Leixões e ela partiu, é que viram todos como fora capaz, sozinha, de manter indelével a realidade do ausente. Se se metia a caminho, se enfrentava de rosto calmo a primeira viagem distante e o pavor da cidade, lá tinha as suas razões, que eram necessariamente razões de Galafura.
Tal e qual. No dia seguinte a aldeia viu com espanto e comoção que trouxera nos braços de sessenta anos o filho morto. Deram-lho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então no comboio com ele ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado.
Galafura quase que não compreendia como pudera com ele, embora fosse meão e magro. O que é certo é que pudera, e sem lágrimas nos olhos lhe falava ternamente mal o revisor aparecia no compartimento.
- Dói-lhe, filho? Dói-te muito? Pois dói...Dói...
Encostava-o ao ombro, enrolava-lhe a manta nas pernas hirtas e mostrava os bilhetes.
Em Gouvinhas apeou-se. À porta da estação, o guarda arregalou muitos olhos, mas deixou passar. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço eterno de sua mãe.
Miguel Torga in Contos da Montanha. 7ª. Edição. Gráfica de Coimbra. pp 21-23.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Era uma vez dois irmãos que partiram para conquistar um lugar no mundo.
No meio do caminho deram com uma grande casa e no letreiro estava escrito que era uma casa de educação e deviam ficar lá sete anos, com a garantia de ficarem educados como deve ser.
«Quero ver o mundo» diz um dos irmãos e seguiu viagem.
«E eu vou para a casa de educação» diz o outro.
«Aqui deve primeiro aprender a estar nas pernas como deve ser. Primeira Posição!» e ele ficou na primeira posição.
«A Palavra é de Prata e o Silêncio é de Ouro» disseram, e ele calou-se para sempre.
«Não deve pensar em si próprio da maneira que se veja. Os olhos só devem olhar para a frente!» e então os olhos passaram só a olhar para a frente.
«Não ponha as pernas assim quando anda» - «É melhor atá-las com uma corda» diz ele e imediatamente foram atadas com cordas.
«Nem os braços devem mover-se assim!» disseram «umas cordas neles também!»
Puxaram então as cordas e ele moveu-se como foi ensinado.
Agora estava educado.


A Educação é aprender a ficar como uma marioneta - parte de uma peça teatral de Hans Christian Andersen.
Hans Christian Andersen(1805-1875) by Franz Hanfstaengl - 1860

«Deixa-me ser quem sou», implorou Hans Christian Andersen repetidamente em criança, jovem e adulto.

Tudo Dança

Toca alegremente o Violino.
Tudo Dança! Dou a minha Palavra!
Olha, a Terra gira à volta do Sol,
E a Lua à volta da Terra;
Dançamos todos, uns com os outros,
Até o coração anseia avançar.
E, se o Vinho sobe à cabeça,
Temos a Sala, também, a dançar.

Hans Christian Andersen, 1832

Annemarie Schwarzenbach












Les poètes

Au siècle qui s'en vient hommes et femmes fortes
Nous lutterons sans maîtres au loin des cités mortes
Sur nous tous les jours le guillotiné d'en haut
Laissera le sang pleuvoir sur nos fronts plus beaux.

Les poètes vont chantant Noël sur les chemins
Célébrant la justice et l'attendant demain
Les fleurs d'antan se sont fanées et l'on n'y pense plus
Et la fleur d'aujourd'hui demain aura vécu.

Mais sur nos cœurs des fleurs séchées fleurs de jadis
Sont toujours là immarcescibles à nos cœurs tristes
Je marcherai paisible vers les pays fameux
Où des gens s'en allaient aux horizons fumeux

Et je verrai les plaines où les canons tonnèrent
Je bercerai mes rêves sur les vastes mers
Et la vie hermétique sera mon désespoir
Et tendre je dirai me penchant vers Elle un soir

Dans le jardin les fleurs attendent que tu les cueilles
Et est-ce pas ? ta bouche attend que je la veuille ?
Ah ! mes lèvres ! sur combien de bouches mes lèvres ont posé
Ne m'en souviendrai plus puisque j'aurai les siennes

Les siennes Vanité ! Les miennes et les siennes
Ah ! sur combien de bouches les lèvres ont posé
Jamais jamais heureux toujours toujours partir
Nos pauvres yeux bornés par les grandes montagnes

Par les chemins pierreux nos pauvres pieds blessés
Là-bas trop [près] du but notre bâton brisé
Et la gourde tarie et la nuit dans les bois
Les effrois et les lèvres l'insomnie et les voix

La voix d'Hérodiade en rut et amoureuse
Mordant les pâles lèvres du Baptiste décollé
Et la voix des hiboux nichés au fond des yeuses
Et l'écho qui rit la voix la voix des en allés

Et la voix de folie et de sang le rire triste
De Macbeth quand il voit au loin la forêt marcher
Et ne songe pas à s'apercevoir des reflets d'or
Soleil des grandes lances des dendrophores


Guillaume Apollinaire

Tristesse d'une étoile

Une belle Minerve est l'enfant de ma tête
Une étoile de sang me couronne à jamais
La raison est au fond et le ciel est au faîte
Du chef où dès longtemps Déesse tu t'armais

C'est pourquoi de mes maux ce n'était pas le pire
Ce trou presque mortel et qui s'est étoilé
Mais le secret malheur qui nourrit mon délire
Est bien plus grand qu'aucune âme ait jamais celé

Et je porte avec moi cette ardente souffrance
Comme le ver luisant tient son corps enflammé
Comme au cœur du soldat il palpite la France
Et comme au cœur du lys le pollen parfumé


Guillaume Apollinaire

quarta-feira, 14 de abril de 2010

136

Eu não serei eu, morte,
até que te unas com a minha vida
e assim me completes todo;
até que a minha metade de luz se feche
com minha metade de sombra
- e eu seja equilíbrio eterno
no espírito do mundo:
umas vezes, meu meio eu, radiante;
outras, meu outro meio eu, no esquecimento.-

Eu não serei eu, morte,
até que tu, em teu labor, vistas
de ossos pálidos minha alma.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 122

133

Quero dormir, esta noite
que tu estás morto; dormir;
dormir, dormir paralela-
mente ao teu sono completo;
a ver se te alcanço assim!


Dormir, aurora da tarde;
fonte do rio, dormir;
dois dias que brilhem juntos
no nada, duas correntes
que cheguem juntas ao fim;
dois todos, se é algo isto;
dois nadas, se tudo é nada...

Quero dormir teu morrer!


Juan Ramón Jimenez
in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, p. 120

Cindy Sherman Untitled Film Still #13, 1978


terça-feira, 13 de abril de 2010

Dois Sonetos Morais à Crítica Lusitana de Poesia e à Mesma Poesia em Relação com aquela Crítica, e referentes ao ano de 1970 da Salvação do Mundo

1

Surdos a versos, só do tururum
da banza pinicada vos sentis
molhados entre as pernas. Ou fingis
que imagens e metáforas zunzuns


sem pés e sem cabeça ou piço algum
vos dão na verborreia o que o nariz
de música não saber ser juiz.
E delicados logo uivais se algum

verso mais limpo do que as vossas cuecas,
mais nu de inventos do que de existência,
mais nobre que cantiga de pilecas,

se encrava abrupto na flatulência
de vossas tão francesas bibliotecas.
Ou vos descobre o horror de haver consciência.


2

De cu pró ar contando os sons concretos,
ou co'a mão esquerda em realistas pívias,
ou de tutu e em pontas académicas,
ou boca aberta língua e lábios prontos

a provocar na goela surrealista
toda a tesão dos deuses palavrosos,
os lusos da poesia se preparam
sob as visitas simpáticas da PIDE

que já PIDE não é no nome apenas.
E porque os prelos como putas abrem
a quem lhes paga mesmo mal, as pernas,

às vezes parem livros que os Gaspões
e os outros muitos à semana lambem,
buscando com ardor a esporra seca neles.


Dezembro de 1970


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; pp. 71/2
«Os génios micro-poetas
com solares à beira-povo
hão-de morrer das punhetas
que lhes faz o estilo novo.»




Dezembro de 1971


excerto da dedicácia:'Balada à Maneira de Charles d'Orléans
sobre o Ano Literário Português de 1971'


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.81
O poeta delicado de ascendência humilde
foi sempre um cão batido e se não fosse
viveria mais infeliz ainda por não ser
o cão batido. É bom no fundo, amigo, leal, o dedicado.
Mas, nas entrelinhas dos sorrisos dele,
há sempre um rosnar doce de contida inveja:
é que outros a quem batem são leões ou alifantes,
porém não cães batidos. E não nasceram
nas palhas da província, embora se não escolha
onde se nasce para cão batido.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010; p.97

Comédie de la Soif / 1. Les Parents

Nous sommes tes Grand-Parents
Les Grands!
Couverts des froides sueurs
De la lune et des verdures.
Nos vins secs avaient du coeur!
Au soleil sans imposture
Que faut-il à l'homme? boire.

Moi - Mourrir aux fleuves barbares.

Nous sommes tes Grand-Parents
Des champs.
L'eau est au fond des osiers:
Vois le courant du fossé
Autour du Château mouillé.
Descendons en nos celliers;
Après, le cidre et le lait.

Moi - Aller où boivent les vaches

Nous sommes tes Grand-Parents;
Tiens, prends
Les liqueurs dans nos armoires
Le Thé, le Café, si rares,
Frémissent dans les bouilloires.
- Vois les images, les fleus.
Nous rentrons du cimetière.

Moi - Ah! tarir toutes les urnes!


Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche. pp. 232.

domingo, 11 de abril de 2010

A Dama do Unicórnio, por Rafael

Julgou Saint-Simon ver neste quadro uma confissão herética. O unicórnio, o narval, a pérola obscena do medalhão que parece ser uma fera, e o olhar terrivelmente fixo de Madalena Strozzi num ponto em que se desenrolariam cenas lascivas ou de flagelação: Rafael Sanzio mentiu aqui a sua mais terrível verdade.
A intensa cor verde do rosto da personagem atribuiu-se durante muito tempo a gangrena ou ao solstício da Primavera. Animal fálico, o unicórnio tê-la-ia contaminado: no seu corpo dormem os pecados do mundo. Viu-se depois que bastava levantar as falsas camadas de tinta colocadas por três acérrimos inimigos de Rafael: Carlos Hog, Vincent Grosjean, dito o Mármore, e Ruben o Velho. A primeira camada era verde, verde a segunda, era branca a terceira. Não é difícil vislumbrar aqui o tríplice símbolo da mortal falena, que une ao corpo cadavérico umas asas que a confundem com as folhas de uma rosa. Quantas vezes Madalena Strozzi cortou uma rosa branca, sentiu-a gemer entre os dedos, retorcer-se e gemer debilmente como uma pequena borboleta ou um daqueles lagartos que cantam como as liras quando se lhes mostra um espelho. Já era tarde, a falena tê-la-ia picado: Rafael soube, sentiu que ela estava a morrer. Para poder pintá-la com veracidade, agregou o unicórnio, símbolo de castidade, simultaneamente cordeiro e narval, que bebe pela mão de uma virgem. Mas pintava a falena na sua imagem, e este unicórnio mata a senhora, penetra no seu seio majestoso com o corno ornado de impudicícia, repete a operação de todos os princípios. O que esta mulher sustém nas mãos é a misteriosa taça de que sem saber bebemos, a sede que acalmamos noutras bocas, o vinho vermelho e lácteo donde saem as estrelas, os vermes e as estações ferroviárias.

Julio Cortázar in Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.18

diante do mar

diante do mar

antevejo as planícies místicas de outubro,
quando o vento trás o travo das gaivotas
à boca semeada das papoilas da primavera

é verdade, há um caminho secreto que conduz,
através dos verdes campos de maio,
à casa que, regada do incêndio do verão
mostra em outubro que, depois da bucólica infância
das imagens, vem sempre o espaço do poema:


o olhar que distende o movimento da mão conduz
à casa a casa a casa a casa
a conciliação dos trabalhos da mão
com o perfume do silêncio


então, antevejo:
o poema é a mão que corrige o olho,
que antecipa a eternidade

sou o caminho dessa mão
que antevê o cálculo
do marinheiro que manobra
o astrolábio da canção

essa mão é todo o corpo do poema

a mão que distende o travo das manhãs pela paisagem
e mantém sempre todo o silêncio junto ao peito,

a mão que escreve as marés as marés as marés
e trás a lua a lua a lua para o olho,
e trás a lua condenada pela carne e pelo sal
à degustação das parábolas


entretanto,
o gosto progride, como um segredo

a mão promove uma lenta infância que se alarga,
um caminho através do poema, que
não teme a derrocada das casas, que
promove o anseio salubre que
as planícies infundem no rosto da criança
adormecida

sabe-se que
diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio


Luís Felício

campânulas

I
campânulas de vidro desenhado
sobre o vidro, de vidro

as mãos de vidro

e a infância,

(dentro das casas
de vidro os meus lábios)

o vento norte entre
a espada e a parede

e a mão entre a lavra da cal
e a doçura do silêncio

e, de vidro a boca pouca louca
para tanta água

de vidro sempre
a veia a pretexto do sangue/
do texto

o palimpsesto das mãos
enredadas no odor

no poema, isto é
, a pele à tangente do perfume
e os lábios postos
sobre, muros, a letra a lâmina

tão precisas na melodia

a voz tangida no leito da pedra

de vidro
o poeta, isto é

, ser um rio
e ver tudo a partir
do interior do sangue

e também depois o gesto de acompanhar as sebes
à transparência de um eco

hermes olhando os quintais
hermes caído sobre olhos de barro dos animais

todo o rubro desaire do epifonema, a canção


a boca sempre tão próxima do silêncio

(o lábio dedilhado o cume dos ulmeiros
em noites)


II
campânulas, os poemas, lentíssimas casas de ar
essa mínima raiz do inverno

transparente ciência infusa,
o gesto puro e simples de tocar
alguém com um nome, assim

e brilha também ao alto
o sangue a linfa a lava

nos coágulos silábicos do texto

enquanto na extremidade mais porosa da memória
um anjo estremece dentro da madeira

uma ave-campânula semeada em chão de página


é este todo o acto que obsidia, o acto
de circunscrever odores a precisão melódica

toda a sintaxe erguida
a partir

do mármore, do sal, da prata


ciência sonora do sangue

o fundo poder de adivinhar e dizer
por palavra

o eco dos olhos na pureza do leito

e gesto de respirar a prumo
o aprumo
dos nomes

quero as suas vogais de silêncio

o modo como são de vidro
quando tocados,

(como os teus lábios,- agora)

III
campânulas,
os nomes
o som que fazem,-
a face que dão

e como me comovem os dedos-

ao passar por elas adentro
todo o rumor do mundo, todo o mundo omisso
entre a lavrada terra funda
e a infundida leveza do verso,-pele a pele-

os nomes o oculto labor de adivinhar
por gesto

o oculto gesto de escrever
o eco dos olhos sobre o vidro

e, de vidro, depois, de vidro a música; / duvido
de vidro, duvido
que haja outra forma de cantar
senão com a mão funda dentro
do sangue
e o astro-lábio habilitado
à síncope melódica

não há outra forma

senão (com) a mão

lavrando campânulas sobre
o vidro eléctrico


IV
os (pro)nomes agora
como (?)

espelhos olhando espelhos
olhados olhos olhados a partir
do omisso centro das imagens

(porque) é uma confiança cega, o ritmo, o coração

é assim que se perde finalmente um rosto


e diz-se "a mão na pena vale a mão na charrua"

e senta-se (-se) assim, levíssimo, feito tão-só de ar,
num verão de amoreiras em torno do pensamento

(os pronomes, também o gesto
de te dar os meus lábios à distância
de um eco)

o gesto de te dar um nome sem nome

(o gesto de te dar o nome com te olho)

V

são gestos as palavras
(e como eu amo esses rostos de estanho)

os nomes, por eles

convoca-se incêndios em celeiros de amor
porque tudo é sempre devido àquele
que conheceu o mundo
e entrou solícito no leito do perfume

os nomes
escreve-se o leito do odor o peso da mão
o eco do rosto contíguo a muros
escreve-se e não se lamenta nenhum espelho

os nomes
atravessa-se sempre a água só de a respirar

e pensa-se em campânulas com o sangue do avesso


"do mundo", pensa-se em árvores semeadas
sobre a lavra do pó

pensa-se em poemas, em anjos cor de cedro
estremecendo, e acredita-se (sabe-se)
que tudo está sempre por fazer

acredita-se no puro movimento das palavras,
como se

incêndios de aves rodeassem

in-ter-mi-ten-te-mente
o tímpano


e, mente o tímpano que ouve a/à distância

"todo o anjo é terrível"

a mão no perímetro órfico

os nomes: todo o amor por fazer

e descobre-se subitamente que é preciso tão-só
plantar as coisas no vento: campânulas

para que o pássaro de boca do poema
possa sempre acompanhar a mão, os lábios
rumo à cega floração do sal

é no centro da mão que vejo nos nomes

a cegueira começando a florescer,
(mas não hermeneuicamente)


VI
campânulas os poemas assim escritos
no contágio de
lume ave âmbar ar
o movimento da boca nos nomes
o sucinto peso lúbrico

e depois o seráfico olhar dos nomes,
como se não fossem já

a boca já antes do gesto dentro
do leito da pedra

e, de vento os poemas: som, som, som
som, habilitado à travessia do odor


sim, corpos, gestos: o odor deslocado no sopro

mãos depois, mãos: o odor colhido nos leitos

sim, o poema começa sempre pela
abdicação dos olhos

vidro escrito sobre vidro,escrito
apesar de tudo e de nada

"no mundo"


VII
começa-se sempre por querer
sem saber

eco e narciso ( é a única verdadeira
história de amor)

(peito repetindo as ondas do mar)

o impossível

as mãos aflitas
sobre a roupa
(des)atentas ao perfume

a semente desatada no gesto de te tocar os olhos
por detrás do vidro
(os teus, que são tão belos)

e no poema, a louca lunação dos nomes
a boca sempre debruçada sobre o aroma

nunca houve outra forma
de escalar a infância
senão pelo som

(a forma como o ar oferece o seu corpo
hoc est enim corpus meum)

nunca houve outra palavra.



Luís Felício

«-Explique-me só, nosso cabo, o que quer isto dizer! O que é que o homem bebeu?
Ninguém respondia.
-Quem costuma dormir na caserna dele?
-Eu, messargento!Eu, Blemaque François do Terceiro! Nunca o vi assim...Há dois anos que está na minha esquadra...Para mais e não para menos. Nunca o vi assim...
-Muito bem! Belíssima resposta, ó Blemaque.
Vai daí levanta-se toda tesa, a sentinela, ainda a franzir os olhos, olha para nós e dá um grito de verdadeiro susto, um rasgar de todo o corpo que nunca mais acaba...E volta a cair, desaba no tabique e recomeça com mais gemidos, aos solavancos.
Todo o posto se junta à volta, por cima dela, a discutir.
O Rancotte impõe silêncio.
- Olhem-me só estas caretas! Mas este urso imundo o que é que me bebeu? É lá possível que seja do bagaço! Só vinagre, só uma mistela! Só um veneno! Ainda se me fina, a alimária!
Realmente não era nada agradável ver a sentinela, não tranquilizava nada a maneira de ela se crispar, de sufocar na palha. Era medonho.
Já ninguém se atrevia a tocar-lhe.
Mas o Rancotte, esse chateou-se.
-É só comédia! Merda! Quero lá saber! A minha garrafa, ó porco! Que fizeste dela? Estás-me a ouvir, vadio?
Fazia-lhe a pergunta mas o outro continuava em convulsões e a estertorar, cada vez mais bravio.
-Costuma dar-lhe a epiléptica, o «mal-sagrado»? - pergunta assim o Lambelluch. E depois mete-se em pormenores, em raciocínios.
-O Bastien, que era alfaiate no Três...Aquele Arthur que esteve no P.H.R., depois...dava-lhe a coisa dentro da língua...era aqui dois anos mais velho que eu...e quando aquilo lhe dava...Mordia-a toda, à dentada...até lhe vi bocados soltos...Tenho que a pôr de fora, dizia-me ele...Quando me dá, tenho de -la cá fora!...E eu punha-la, com ajuda de um garfo...O Arthur Bastien...Desatava a andar à volta, todo zonzo...Chupava-me, aquela língua...Enfiava-a toda até ao fundo.»



Louis-Ferdinand Céline in De Três Em Pipa. Trad. de Aníbal Fernandes. Colecção Gato Maltês. Assírio&Alvim, 1985., pp. 86/7

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Patti Smith: Don`t smoke in bed

Casi juicio final

Mi callejero no hacer nada vive y se suelta por la variedad de la noche.
La noche es una fiesta larga y sola.
En mi secreto corazón yo me justifico y ensalzo:
He atestiguado el mundo; he confesado la rareza del mundo.
He cantado lo eterno: clara luna volvedora y las mejillas que apetece el amor.
He conmemorado con versos las ciudad que me ciñe y los arrabales que me desgarran.
He dicho asombro donde otros dicen solamente costumbre.
A los antepasados de mi sangre y a los antepasados de mis sueños he exaltado y
cantado.
He sido y soy.
He trabado en firmes palabras mi sentimiento que pudo haberse disipado en ternura.
El recuerdo de una antigua vileza vuelve a mi corazón.
Como el caballo muerto que la marea inflige en la playa, vuelve a mi corazón.
Aún están a mi lado, sin embargo, las calles y la luna.
El agua sigue siendo dulce en mi boca y las estrofas no me niegan su gracia.
Siento el pavor de la belleza; ¿quién se atreverá a condenarme si esta gran luna de mi
soledad me perdona?



Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p. 19.

Calle con almacén rosado

Ya se le van los ojos a la noche en cada bocacalle
y es como una sequía husmeando lluvia.
Ya todos los caminos están cerca,
y hasta el camino del milagro.
El viento trae el alba entorpecida.
El alba es nuestro miedo de hacer cosas distintas y se nos viene encima.
Toda la santa noche he caminado
y su inquietud me deja
en esta calle que es cualquiera.
Aquí otra vez la seguridad de la llanura
en el horizonte
y el terreno baldío que se deshace en yuyos y alambres
y el almacén tan claro como la luna nueva de ayer tarde.
Es familiar como un recuerdo la esquina
con esos largos zócalos y la promesa de un patio.
¡Qué lindo atestiguarte, calle de siempre, ya que te miraron tan pocas cosas mis días!
Ya la luz raya el aire.
Mis años recorrieron los caminos de la tierra y del agua
y sólo a vos te siento, calle dura y rosada.
Pienso si tus paredes concibieron la aurora,
almacén que en la punta de la noche eres claro.
Pienso y se me hace voz ante las casas
la confesión de mi pobreza:
no he mirado los ríos ni la mar ni la sierra,
pero intimó conmigo la luz de Buenos Aires
y yo forjo los versos de mi vida y mi muerte con esa luz de calle.
Calle grande y sufrida,
eres la única música de que sabe mi vida.



Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,p.7

O Papalagui tornou Deus mais pobre

«O Papalagui tem uma maneira de pensar particularmente confusa. Está sempre a ver como é isto ou aquilo lhe poderá ser útil ou dar-lhe certos direitos. Não se preocupa em pensar nos homens em geral, mas apenas num, o qual acaba sempre por ser ele próprio.
Quando um homem diz: «A minha cabeça é minha e de mais ninguém!» tem razão, tem muita razão, e contra isso ninguém terá nada a objectar. Aquele a quem uma mão pertence, será quem mais direitos tem sobre ela. Até aqui estou de acordo com o Papalagui. Mas ele também diz: « A palmeira é minha!», só porque ela cresce, por acaso, diante a sua cabana. Como se tivesse sido ele a fazê-la crescer! Nunca a palmeira poderá pertencer-lhe, nunca! A palmeira é a mão que Deus nos estende, através da terra; Deus tem muitas mãos. Cada árvore, cada erva, o mar, o céu e as nuvens são outras tantas mãos de Deus. Podemos tocar-lhes e regozijar-nos com isso, mas lá por isso não temos o direito de dizer: «A mão de Deus é a minha mão!» No entanto é isso o que o Papalagui faz.»




O Papalagui. Discursos de Tuiavii Chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Recolhidos por Erich Scheurmann. Trad. Luiza Neto Jorge. 2ª. edição. Edições Antígona. Lisboa, 1983., pp.71

O Papalagui nunca tem tempo


«O Papalagui adora o metal redondo e o papel forte, gosta de encher a barriga com uma série de líquidos provenientes de frutos mortes, e com carne de porco, boi e outros horríveis animais, mas acima de tudo gosta de uma coisa que não se pode agarrar e que no entanto existe: o tempo. Leva-o muito a sério e conta com toda a espécie de tolices acerca dele. Embora não possa haver mais tempo do que o medeia do nascer ao pôr do sol, isso para o Papalagui nunca é o bastante.» (pp.63)
«Dizia eu que se deve tratar de uma espécie de doença...Suponhamos, com efeito, que um Branco tem vontade de fazer qualquer coisa e que o seu coração arde em desejo por isso; que, por exemplo, lhe apetece ir deitar-se ao sol, ou andar de canoa no rio, ou ir ver a sua bem-amada. Que faz ele então? Na maior parte das vezes estraga o prazer com esta ideia fixa: « não tenho tempo para ser feliz». Mesmo dispondo de todo o tempo que queira, nem com a melhor boa vontade o reconhece. Acusa mil e uma coisas de lhe tomarem o tempo e, de mau grado e resmungando, debruça-se sobre o trabalho que não tem vontade nenhuma de fazer, que não lhe dá qualquer prazer e que ninguém, a não ser ele próprio, o obriga a fazer. Quando de repente se dá conta de que tem tempo, que tem realmente todo o tempo à sua frente, ou quando alguém lhe dá tempo - os Papalaguis dão frequentemente tempo uns aos outros, é mesmo a acção que mais apreciam -, nessa altura, ou já não tem vontade, ou já se cansou desse trabalho sem alegria. E geralmente deixa para o dia seguinte o que podia fazer no próprio dia.» (pp.65)

O Papalagui. Discursos de Tuiavii Chefe de tribo de Tiavéa nos mares do Sul. Recolhidos por Erich Scheurmann. Trad. Luiza Neto Jorge. 2ª. edição. Edições Antígona. Lisboa, 1983
Escreve mas para dissipar o que está escrito


António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983., pp.43/4

terça-feira, 6 de abril de 2010

Presença solar e sólida fugidia...

...Recolho-me para escutar....o silêncio resolver-se-á na
conjugação de palavras sólidas e brancas...palavras que
substituirão o sentido pela arcaica ressonância de uma
disseminação...as palavras serão a realização aberta à
qualificação mais livre e nula

...É um novo silêncio e um novo sol
sobre a mesa de pedra
o meu desejo à claridade da folha
lança-se
sobre um campo verde
ao abandono vejo


a força material dos membros e o tronco de mulher
as pernas fortes laceradas pelos espinhos
pernas solares sólidas para os caminhos solitários e
íngremes
ignoro se invento esta presença
com as palavras ou se algo se abriu
no interior de um olhar
ignoro se estas palavras vêem da visão
de uma figura entrevista entre as árvores...

uma energia intensa...é quase um grito
que cega e liberta
e se suspende ao abandono na página
e então será o arranque ou a explosão
a planície líquida onde a figura emerge...
a solidez compacta dos seios
o triângulo negro do púbis
o triunfo branco das pernas sólidas redondas


Vejo-te transcrita palpitante seda
forma alta e pura branca e livre
nascida do desejo e da linguagem sólida
quem te chamaria o sol entre as árvores vibrantes
se mais que o sol deslumbra e és solar
solar e nítida nos caminhos ásperos
viajante das manhãs de um sossego de fábula
terra terra verde e doirada ó fulva deusa
que corres como um arco sobre as hastes
tuas pernas brancas revelam-se sobre as vestes
branquejam sobre a página incendeiam-se
sólidas solares cálidas fogosas
como te materializas se te apagas branca
e mais não és que um sopro dissipado
estas palavras no entanto te levantam
ó amor de um corpo que a linguagem liga
ambígua intermitente e luminosa embora
como transmitir tua geometria das formas
se te fragmento e dilacero te perco...

A presença viva apaga-se entre as pedras no papel...apaga-
-se mas não se anula...fica o seu rastro alucinante...uma visão
vaga mas ardente...o desejo de retornar ao canto...ouvi-la
cantar no próprio movimento das formas ó perfume da
solidez divina terrena brancura invulnerável....



António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.33/4

Cors de chasse

Notre histoire est noble et tragique
Comme le masque d'un tyran
Nul drame hasardeux ou magique
Aucun détail indifférent
Ne rend notre amour pathétique

Et Thomas de Quincey buvant
L'opium poison doux et chaste
À sa pauvre Anne allait rêvant
Passons passons puisque tout passe
Je me retournerai souvent

Les souvenirs sont cors de chasse
Dont meurt le bruit parmi le vent


Guillaume Apollinaire

Enfance

Au jardin des cyprès je filais en rêvant,
Suivant longtemps des yeux les flocons que le vent
Prenait à ma quenouille, ou bien par les allées
Jusqu'au bassin mourant que pleurent les saulaies
Je marchais à pas lents, m'arrêtant aux jasmins,
Me grisant du parfum des lys, tendant les mains
Vers les iris fées gardés par les grenouilles.
Et pour moi les cyprès n'étaient que des quenouilles,
Et mon jardin, un monde où je vivais exprès
Pour y filer un jour les éternels cyprès.


Guillaume Apollinaire

A Man with a Violin, 1948


«O eco subia às árvores...por cima dos edifícios...até às sombras, aos cenários enormes que tinham levantado a toda a volta...contra o céu...ali pretíssimos, ruidosos, inchados que sei cá, monstros de murmúrio imenso...era os medos que saem das folhas...da noite quando ela se mexe...
-Sim, messargento...
Que húmido eu estava no capote, coisa realmente horrível para a minha estreia militar. Uma deambulação muito ingrata entre pedras espalhadas numa grande bandalheira no escuro, debaixo das torrentes daquela bátega. Voltámos a contornar muros e os meus butes eram fraquitolas, na verdade, para lutar com valadas, terríveis...Eu passava-lhes no meio e tropeçava, caí duas vezes...Mas lá me esforçava por continuar assim mesmo de passo certo: Aumm! Dois!Aum! Dois!...
O Meheu estimulava-nos, escoltava-nos de lanterna a dar a dar ao longo da fileira...e tudo isto cheio, ainda por cima, de comentários e facécias impagáveis.
-Diz-me lá tu, magala, se esta volta de gato preto não é mesmo boa? De gato molhado? De gato morto! E não estás a gramar estas bombas de água? Não gostas, diz lá, deste quartel? Não te enche as medidas? O quê, nem um dente à mostra? Tudo isso é neura? Não reparas em nada, nesta categoria? Não estarás feito num oito, por acaso? Não me-lo digas! Ainda te não apetece fugir? Olha que ainda me partes essa cabeça! Espera! Espera! O passo certo! Direita volver! Direita volver! Amanhã vais só ver! Tens esse cu em frangalhos! Oh!Oh!Oh!
E tudo gozava, minha gente.
-É carne para canhão! Garante o Governo. Quando dás por ela já não existes! Já vinhas tísico...


Louis-Ferdinand Céline in De Três Em Pipa. Trad. de Aníbal Fernandes. Colecção Gato Maltês. Assírio&Alvim, 1985., pp. 30/1

Singladura

El mar es una espada innumerable y una plenitud de pobreza.
La llamarada es traducible en ira, el manantial en tiempo, y la cisterna en clara
aceptación.
El mar es solitario como un ciego.
El mar es un antiguo lenguaje que ya no alcanzo a descifrar.
En su hondura, el alba es una humilde tapia encalada.
De su confín surge el claror, igual que una humareda.
Impenetrable como la piedra labrada
persiste el mar ante los muchos días.
Cada tarde es un puerto.
Nuestra mirada flagelada de mar camina por su cielo:
Última playa blanda, celeste arcilla de las tardes.
¡Qué dulce intimidad la del ocaso en el huraño mar!
Claras como una feria brillan las nubes.
La luna nueva se ha enredado a un mástil.
La misma luna que dejamos bajo un arco de piedra y cuya luz agraciará los sauzales.
En la cubierta, quietamente, yo comparto la tarde con mi hermana, como un trozo de
pan.


Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 15.
Hacia 1905, Hermann Bahr decidió: "El único deber, ser moderno". Veintitantos
años después, yo me impuse también esa obligación del todo superflua.
Ser moderno es ser contemporáneo, ser actual: todos fatalmente lo somos.
Nadie -fuera de cierto aventurero que soñó Wells- ha descubierto el arte de
vivir en el futuro o en el pasado. No hay obra que no sea de su tiempo:
la escrupulosanovela histórica Salammbô, cuyos protagonistas son los
mercenarios de las guerras púnicas, es una típica novel francesa del siglo XIX.
Nada sabemos de la literatura de Cartago, que verosímilmente fue rica,
salvo que no podía incluir un libro como el de Flaubert. (...)




J.L.B.
Buenos Aires, 25 de Agosto de 1969
Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.

domingo, 4 de abril de 2010

Impression, 2006

A Canalha

Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.

7 de Dezembro de 1971

Publicado na revista Hífen, Porto, nº.6, Fevereiro 1991.



Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010.
Dizem alguns directores literários
(e accionistas da própria propaganda)
que «o Sena não se vende». E é verdade:
Não vende. Só as putas se vendem.
E em Portugal são tantas que não há
bolsas bastantes para comprá-las,
nem caralhos bastantes
para fodê-las como mereciam.


Glasgow-Londres, 23 de Fevereiro de 1973

Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp. 87

quarta-feira, 31 de março de 2010

«Tentar e falhar é, pelo menos
aprender.
Não chegar a tentar é
sofrer a inestimável
perda do que poderia
ter sido»


Geraldo Eustáquio

Nick Drake- Way To Blue

terça-feira, 30 de março de 2010

AMOROSA ANTICIPACIÓN

Ni la intimidad de tu frente clara como una fiesta
ni la costumbre de tu cuerpo, aún misterioso y tácito y de niña,
ni la sucesión de tu vida asumiendo palabras o silencios
serán favor tan misterioso
como el mirar tu sueño implicado
en la vigilia de mis brazos.
Virgen milagrosamente otra vez por la virtud absolutoria del sueño,
quieta y resplandeciente como una dicha que la memoria elige,
me darás esa orilla de tu vida que tú misma no tienes,
Arrojado a quietud
divisaré esa playa última de tu ser
y te veré por vez primera, quizá,
como Dios ha de verte,
desbaratada la ficción del Tiempo
sin el amor, sin mí.


Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 9.

PARA UNA CALLE DEL OESTE

Me darás una ajena inmortalidad, calle sola.
Eres ya sombra de mi vida.
Atraviesas mis noches con ti segura rectitud de estocada.
La muerte -tempestad oscura e inmóvil- desbandará mis horas.
Alguien recogerá mis pasos y usurpará mi devoción y esa estrella.
(La lejanía como un largo viento ha de flagelar su camino.)
Aclarado de noble soledad, pondrá una misma anhelación en tu cielo.
Pondrá esa misma anhelación que yo soy.
Yo resurgiré en su venidero asombro de ser.
En ti otra vez:
Calle que dolorosamente como una herida te abres.



Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 22.

Elegia IX - Outonal

Nenhuma beleza de Primavera ou Verão em tal graça
Como a que descobri numa face Outonal.
As jovens Belezas forçam-nos ao amor: isso é Violação;
Esta apenas aconselha, e não lhe podemos escapar.
Se fosse vergonha amar, não seria vergonha aqui
Onde a Afeição toma o nome de Reverência.
Foram-lhe os primeiros anos a Idade de Ouro? É verdade,
Mas ela agora é ouro bem martelado e sempre novo.
Aquele foi o seu tempo tórrido e inflamador,
Este é o seu temperado clima Tropical.
Olhos belos, quem vos pedir mais fogo que o emanado,
É porque, febril, deseja a pestilência.
Não chamem campas a estas rugas; se campas fossem
Seriam as do amor, porque ele não está noutro lugar.
Porém o amor não jaz aqui morto, mas aqui se senta
Consagrado a esta trincheira, como um Anacoreta;
E aqui até que a morte dela, que será a dele, chegue
Não cavará uma Campa, mas erigirá um Túmulo.
Aqui habita; e apesar de viajar por todo o lado
Com Estadão, é ainda aqui a sua residência fixa:
Aqui onde está calma a Tarde, não o meio-dia ou a noite,
Sem voluptuosidades, porém toda deleite.
Todas as palavras dela, próprias a todos os ouvintes
Seja no Folgar, seja em Conselho, podemos seguir.
Este é o madeiro do amor, a juventude os seus arbustos;
Ali ele, como vinho em Junho, faz ferver o sangue,
Que depois se tempera, quando o nosso gosto
E apetite de outras coisas é passado.
O estranho amor Lídio de Xerxes, o Plátano,
Foi amado pela idade, e porque nenhum era maior,
Ou então porque, sendo jovem, a natureza lhe abençoou
A juventude com a glória da idade, a Esterilidade.
Se amamos as coisas há muito procuradas, a Idade é algo
Que levamos cinquenta anos a conquistar.
Se as coisas são transitórias, e cedo se corrompem,
A Idade será mais amável nos seus últimos dias.
Mas não nomeiam Faces Invernais, de pele flácida,
Descarnadas como um saco vazio, antes a bolsa da alma;
Cujos Olhos buscam luz de dentro, pois tudo aqui é sombra;
Cujas bocas são buracos, mais gastos do que feitos;
Em que um a um cada dente partiu para vários lugares
A fim de lhes humilhar as almas na Ressurreição:
Não me nomeiem essas Cabeças mortas viventes,
Porque estas não são Anciãs, mas Antigas.
Odeio extremos; porém antes preferia ficar
Com Tumbas do que Berços;para passar um dia.
Dado que tal é o movimento natural do amor, possa ainda
O meu amor abrandar, e viajar monte abaixo
Nunca a suspirar atrás de belezas em crescimento. Assim,
Irei definhando no fluxo dos que se dirigem para casa.



John Donne in Elegias Amorosas. Edição bilingue. Trad. Helena Barbas. Assírio & Alvim, 1997.,pp49/51

segunda-feira, 29 de março de 2010

L'esprit

Éternelles Ondines
Divisez l'eau fine.
Vénus, soeur de l'azur,
Émeus le flot pur.

Juifs errants de Norwège
Dites-mois la neige.
Anciens exilés chers,
Dites-moi la mer.

Moi - Non, plus ces boissons pures,
Ces fleurs d'eau pour verres
Légendes ni figures
Ne me désaltèrent

Cansonnier, ta filleule
C'est ma soif si folle
Hydre intime sans gueules
Qui mine et désole.


Rimbaud in Poésies complètes (1870 - 1872). Introduction, chronologie, bibliographie, notices et notes par Pierre Brunel. Le Livre De Poche. pp. 233.

Monica Bellucci


domingo, 28 de março de 2010

«O primeiro pormenor que me despertou a atenção, quando avançava lentamente por uma clareira do bosque, foi um enorme besouro a debater-se de pernas para o ar, o que me levou a pousar um joelho no chão para ajudar o pobrezinho a voltar de novo à sua posição normal. De certo modo, sabe que não pode ter a certeza daquilo que um insecto deseja; por exemplo, eu nunca fui totalmente capaz de determinar, caso fosse uma borboleta nocturna, se preferia que me afastassem da candeia ou me deixassem voar directamente para ela e queimar-me... ou então, se fosse uma aranha, não sei bem se ficaria muito satisfeito ao ver a minha teia destruída e a mosca em liberdade... Mas tenho a certeza de que, se fosse um besouro que tivesse rolado e ficado de costas, sentir-me-ia feliz quando me ajudassem a endireitar.»



Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.157
«Em primeiro lugar, quero saber - meu querido e tão jovem leitor - por que razão as Fadas têm sempre de nos estar a ensinar o nosso dever e de nos censurar quando erramos, e nós nunca lhes ensinamos coisa alguma?Não me quer convencer que as Fadas nunca são ambiciosas, egoístas, falsas, mal-humoradas, porque isso seria um disparate, como sabe. Bem, não acha que se sentiriam melhor se se lhes ralhasse ou fossem castigadas de vez em quando?
Na verdade não vejo por que não se há-de experimentar e tenho quase a certeza que se pelo menos conseguisse agarrar uma Fada, -la a um canto e dar-lhe só pão e água durante um dia ou dois, descobriria nelas um melhor carácter - pelo menos, deitar-lhe-ia abaixo um pouco da sua vaidade.»


Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003., pp.156
(...)


Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os
[mandasse.

21 de Maio de 1964


excerto da dedicácia Epístola a Álvaro Salema, publicada na revista Hífen, Porto, nº6, Fevereiro de 1991.


Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.31/2

Sua Putidade o Crimertídaco

Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,
persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe
sempre ao meu lado, e nos lugares aonde
julga que eu passei. Filho, como é,
do que nem pode chamar-se bem
uma puta, vive de cuspir, de arrepelar
de arranhar, de perseguir as sombras
que ele julga serem as de quem não passa
nos becos onde a mãe o deu à luz,
depois de untada a vida com lubrificante
que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,
e a mãe, logo que o viu, lhe calçou
meias verdes e lhe comeu o imbigo.
Filho do que, de puta, nem por prenha basta
para gerar um esterco assim tão penteado,
tão crítico, tão de meias verdes,
tão arrotantemente porco nas regueifas que
do cachaço ascendem ao tutano encefálico,
julga suinamente que não há lugares,
nem seres humanos, livres de presença
de Sua Putidade. Há.
Exactamente as pessoas e os lugares aonde
ser filho da puta é ser filho da puta,
com ou sem regueifas nas ideias
ou verdura nas meias,
ou brilhantina uterina
de quem lambido foi em sua mãe
antes de nascer para cri-mer--da-co.

3 de Agosto de 1962
Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.29

quinta-feira, 25 de março de 2010

terça-feira, 23 de março de 2010

«Rilke não procura dar conselhos sobre composição poética e evita o papel de crítico que, ao contrário de Virginia Woolf, considera inútil ou nefasto, pois as obras de arte « são de uma solidão infinita». Em termos práticos, limita-se a sugerir que evite o caminho demasiado percorrido da poesia de amor, até porque «num único pensamento criativo revivem mil noites de amor esquecidas».Rainer Maria Rilke defende a poesia como expressão de uma realização interior; a arte como forma de vida, vê na busca das profundezas de si, nas recordações de infância, na depuração dos sentimentos pela solidão, a espera e o sofrimento, a garantia da autenticidade»

Excerto do Prefácio de Francisco Vale ao livro:
Rainer Maria Rilke e Virginia Woolf in Cartas a Jovens Poetas. Relógio D'Água Editores, 2003., pp 19

Cartas a Um Jovem Poeta

« (...)é bom estar só, pois a solidão é difícil, mas o facto de uma coisa ser difícil é mais uma razão para que a façamos.
Também amar é bom, pois o amor é difícil. Amor de um ser humano por outro: isso é talvez o mais difícil que nos está destinado, o extremo, a prova e o exame final, a obra para a qual toda as outras são apenas preparação. É por isso que os jovens, novos em todas as coisas, ainda não sabem amar: têm de aprender primeiro. Têm de aprender a amar, com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas no coração que bate inquieto e ansioso. Mas o tempo de aprender é sempre prolongado e fechado, e assim é o amor por muito tempo e pela vida fora; a solidão é para aquele que ama um isolamento intenso e profundo. Amar não é, antes de mais, nada adquirido que se designa por abrir-se, entregar-se e unir-se a outra pessoa (pois o que seria uma união do ainda impreciso, do ainda por ordenar - ?) mas é um ensejo sublime para o indivíduo amadurecer - tornar-se algo dentro de si próprio, tornar-se mundo, mundo para si por amor a outra pessoa, é uma grande e ambiciosa exigência para ele, algo que o torna eleito e o destina à grandeza. Só neste sentido, como obrigação assumida de se trabalharem a si próprios («escutar e martelar noite e dia»), é que os jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é oferecido. A perda no outro e a entrega a qualquer espécie de comunhão não é para eles (que ainda terão de poupar e juntar durante muito tempo, muito tempo) - é a finalização, é talvez aquilo para que as vidas quase já não chegam.

Rainer Maria Rilke in Cartas a Jovens Poetas. Trad. de Lino Marques Relógio D'Água Editores, 2003., pp 68/69

segunda-feira, 22 de março de 2010

92

Eu não sou eu.
Sou este
que vai a meu lado sem eu vê-lo;
que, por vezes, vou ver,
e que, às vezes, esqueço.
O que se cala, sereno, quando falo,
o que perdoa, doce, quando odeio,
o que passeia por onde estou ausente,
o que ficará de pé quando eu morrer.



Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.96

domingo, 21 de março de 2010

Arte Poética

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme a nossa carne é essa morte
De cada noite, que se chama sono.

Ver no dia ou até no ano um símbolo
Quer dos dias do homem quer dos anos,
Converter a perseguição dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver só na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, assim é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso

Às vezes certas tardes uma cara
Olha-nos do mais fundo dum espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar Ítaca
Verde e humilde, A arte é essa Ítaca
De verde eternidade e não prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal dum mesmo
Heraclito inconstante, que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.63-65
(...)

Está sozinho, sonhando-se. (Que a glória
É uma das maneiras do olvido.)

Pelos vidros a iluminação
Duma tarde mais toca o livro de couro
E outra vez arde outra se gasta o ouro
Que envaidece a encardenação.

Na solitária sala o silencioso
Livro viaja no tempo. As auroras
Ficam p'ra trás e as nocturnas horas
E a minha vida, sonho pressuroso.


(excerto do poema Ariosto e os árabes)


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue.
Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.57

Viajar é muito útil, faz trabalhar a
imaginação. O resto não passa de
decepções e fadigas. A nossa viagem é
inteiramente imaginária. Daí a sua
força.

Vai da vida até à morte. Homens,
animais, cidades e coisas, é tudo
imaginado. Um romance, apenas uma
história fictícia. Di-lo Littré, que nunca
se engana.

Aliás, à primeira vista todos podem
fazer o mesmo. Basta fechar os olhos.

É do outro lado da vida.


Louis-Ferdinand Céline in Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Biblioteca Angelica, Rome, Italy

A partir do deserto

Abre-se o espaço uma corola se abre
a partir do deserto
um silêncio se apaga outro silêncio de água

Desce a dançarina exacta
até ao extremo da brancura

A noite é verde
na distância dos cabelos
nenhuma imagem subsiste
nenhuma gota de sangue
o sol repousa numa obscura nuvem

Absoluta a suavidade sem espera
um aroma sem aroma
o silêncio entre os corpos


António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.20

Não dissemos as palavras mais simples

Não dissemos as palavras mais simples
a caligrafia das águas sobre a pedra uma pedra vacila
verde
as árvores despertam dormem apertadas na concavidade
do rumor
não dissemos ainda as pálpebras longínquas do horizonte
o trémulo deslumbramento da água jorrando lisa da terra
não dissemos a progressão das formigas em torno da árvore
de claras malhas como um leopardo
não dissemos as vagas sombras imóveis as folhas verdes
as altas e negras flores nas varandas suspensas
não dissemos sequer o nascimento da terra e do cavalo
as manhãs a meia-noite o turbilhão
do ventre o arranque para a primeira explosão no mar e o muro
onde o tempo se condensa como um navio suspenso sobre
o mar vertical

António Ramos Rosa in Gravitações. Colecção de Viva Voz. Litexa, 1983, pp.11

quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma mulher estranha

«Temos que voltar para casa. Os trenós rangem no gelo. Uma brisa suave atira-nos ao rosto com pequenos flocos de neve, e vemos então a luz das lâmpadas eléctricas como que através de um prisma. No cais, as casas iluminadas parecem enormes. Estreito levemente Natália pela cintura; mas não me atrevo a apertá-la mais. Sinto um milhão de sensações finas, subtis - mas as palavras não me ocorrem e não sei que lhe hei-de dizer. Em que está pensando a sua linda cabeça pequenita, que ela protegeu com o regalo? E forço-me por me lembrar do seu rosto, que agora não vejo e de que me esqueci completamente. Tenho junto de mim uma mulher que não conheço e que quero conhecer. Para quê? Para uma pequena e vulgar aventura amorosa? Não, não! Nada d'isso!
-Voltemos para casa.
-Sim, minha querida. Se me vierem à cabeça ideias vis a seu respeito, matar-me-ei.
Vejo que sofre, que é um ser que mal começou a viver e já tem o coração despedaçado. Lá em casa espera-a o marido moribundo. E um drama - e não se sabe qual dos dois sofre mais.»



N. Garin in Uma Mulher Estranha. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.128/129

segunda-feira, 15 de março de 2010

66/ Solidão

(1 de Fevereiro)


Estás todo em ti, mar,e, todavia,
como sem ti estás, que solitário,
que distante, sempre, de ti mesmo!

Aberto em mil feridas, cada instante,
qual minha fronte,
tuas ondas, como os meus pensamentos,
vão e vêm, vão e vêm,
beijando-se, afastando-se,
num eterno conhecer-se,
mar, e desconhecer-se.

És tu e não o sabes,
pulsa-te o coração e não o sente...
Que plenitude de solidão, mar solitário!


Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.82

(Oberón a Titania)
Deixo correr meu sangue,
para que te persiga...
Não esperes que derrame
a última gota, pra fazer-te minha!




Juan Ramón Jimenez in Antologia Poética. Selecção e Trad. de José Bento. Relógio D'Água, 1992, pp.69

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia
Sobre os que já não são, como se houvesse
Uma região onde o Ontem pudesse
Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem
Que ergueu, em tortuosas azinhagas
De terra ou em perdidas plagas,
A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,
Deixando à epopeia um episódio,
Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,
Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada
Brasa que, como uma indecisa rosa,
Conserva dessa chusma valorosa
De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo
Do outro mundo habitará a dura
Sombra daquele que era sombra escura,
Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade
Os santos) que na ponte duma via,
Matou o irmão, Ñato, que devia
Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais
No esquecimento aos poucos se desgasta.
E dispersou-se uma canção de gesta
Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa
Dos seus restos totais conservadores;
Aí estão os soberbos matadores
E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,
O tempo, os dispersassem pelos lodos,
Hoje, p'ra além do tempo e da aziaga
Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem
Das cordas da viola trabalhosa,
Que tece na toada venturosa
A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular
Com leões e cavalos, oiço o eco
Desses tangos de Arolas e de Greco
Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,
Sem antes nem depois, contra o olvido,
E que tem o sabor do que, perdido,
Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:
Ou a parreira ou o pátio ancestral.
(E por trás das paredes receosas
O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,
Os trabalhosos anos desafia;
Feito de pó e tempo, o homem dura
Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria
Um passado irreal, real embora.
Recordação que não pôde ir-se embora
Morta na luta, algures na periferia.


Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.
Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47

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