sábado, 26 de março de 2011

«...Planícies verdes. Ver subir e descer o horizonte com o vento que agita as espigas, o eriçar da tarde com uma chuva de triplas ondulações. A cor da terra, o cheiro da alfafa e do pão. Uma aldeia que cheira a mel derramado...»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 34

Drinking Water from a Spigot, Italy, 1961

«-...O sujeito de que estou a falar trabalhava como «amansador» na Meia-Lua; dizia chamar-se Inocencio Osorio. Embora todos o conhecêssemos pela alcunha de Saltarico por ser muito leve e ágil a saltar. O meu compadre Pedro dizia que estava talhado para amansar potros; mas a verdade é que ele tinha outro ofício: o de «provocador». Era provocador de sonhos. Era isso que ele era verdadeiramente. E enredou a tua mãe tal como fazia com muitas. Entre outras, eu. Uma vez, senti-me doente e ele apresentou-se e disse-me: «Venho tomar-te o pulso para que te sintas melhor.» E tudo consistia nisto: começava a massajar-te, primeiro nas pontas dos dedos, depois esfregando as mãos; a seguir os braços, e acabava por meter-se entre as nossas pernas, a frio, pelo que aquilo, ao fim de algum tempo, começava a produzir calor. E, enquanto manobrava, falava-te do teu futuro. Entrava em transe, revirava os olhos fazendo invocações e amaldiçoando; enchendo-te de gafanhotos tal como os ciganos. Por vezes, ficava em pelota porque dizia ser esse o nosso desejo. E às vezes acertava; picava em tantos sítios que a algum tinha de ir dar.
    «A verdade é que o tal Osorio prognosticou à tua mãe, quando ela o foi ver, que ''nessa noite não devia deitar-se com nenhum homem porque a Lua estava bravia.''»
 
 
 
Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 33

13.

Oh, se fosses tu mesmo! Mas assim
só te pertences quanto a vida avança.
Devias preparar-te para o fim
e dar a alguém tão doce semelhança.
E da beleza que deténs a prazo
no vencimento, então também serias
outra vez tu depois do próprio ocaso
e a branda forma em brando alguém verias.
Quem deixa arruinar tão bela casa
se tem honra viril com que a mantenha,
na borrasca invernal que tudo arrasa,
contra o gelo da morte, a estéril sanha?
Bem sabes, caro amor, gastar a esmo...
Tiveste um pai, teu filho diga o mesmo.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.37

8.

 És música e a música ouves triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
Se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
É canção sem palavras, vária e em
uníssono: ''só não serás ninguém''.



Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.27
«Se sais de ti do zénite no brilho,
morrerás ignorado sem um filho.»


 Os Sonetos de Shakespeare. Versão Integral, 2ª edição. Trad. Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2002, p.25

'The Parting of Lancelot and Guinevere'

*

O método estrito é apenas estudo,
não devia ser impresso.
Devia escrever-se para o público
num estilo livre, sem peias,
juntando-lhe apenas a demonstração rigorosa,
o desenvolvimento sistemático.
A escrita não devia ser insegura,
feita a medo, confusa, sem fim,
mas determinada, clara, sólida,
com pressupostos apodícticos, tácitos.
Uma pessoa de carácter bem definido
causa também uma impressão
benéfica e decidida e estável.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 77
*

Só saberemos aquilo a que dermos expressão,
isto é, aquilo que soubermos fazer.
Quanto mais completa e diversamente
produzirmos uma coisa, a executarmos,
tanto melhor a conheceremos.
Teremos dela um conhecimento completo
se soubermos comunicá-la e suscitá-la
em toda a parte e de todas as maneiras -
se soubermos produzir, em cada um dos seus órgãos,
uma expressão individual.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 63
*
Só saberemos se fizermos.


Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 63

sexta-feira, 25 de março de 2011

« e em mar de névoa o sono foi pesado
ao coração a desmedir o peito »


Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.109

47.

Enquanto a noite alarga a escuridão
que os animais e os homens adormece
fogo do sonho e o lar nos humedece
e à amiga morta rasga o coração

Chama na vasta fronde se amanhece
ave tímida ao dia dando a mão
e pelas longas ervas sombras vão
coroando o negro túmulo a luz cresce

A alba faz-se outra vez neste lugar
noite que ventos frios descarregava
vai-se a tarde nas relvas ocultar

perante o raio que inimigo cega
e com as horas dando meio-dia
na cova dela toda a luz se unia.



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.107

45.

Porque é minha alma que o belo só procuras?
de há muito tempo que morreu e o mundo às voltas foi
atrás do seu girar e ninguém falta herói
Porque é minha alma que o belo só procuras?

Senhor porque me acordas em choro e amarguras?
ah bem busquei o sono desfigura-se e dói-
-me abandono que em mim com o teu se constrói
Senhor porque me acordas em choro e amarguras?

Falava eu uma a noite a sós no coração
e emudeci confuso decidido a calar
e tanta turvação da minha alma ocultar

nem despertá-la a dar às dores consolação
mas vê da boca em sono quais círios fez brotar
em lágrimas a arder tanta triste canção.


 
 
Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.103

quinta-feira, 24 de março de 2011

Lella

*

O carácter é uma vontade
perfeitamente formada.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 60
*

Não se perde a autêntica inocência,
tal como não se perde a vida autêntica.
A inocência que conhecemos
só tem uma vida, como o homem,
e, como ele, não tem regresso.
Quem, como os deuses, ama seres virgens,
nunca poderá desfrutar
da segunda inocência como da primeira -
esta é mais do que aquela.
Certas coisas
só uma vez se manifestam,
porque da sua essência
faz parte o único.
a nossa vida é, a um tempo,
absoluto e dependente.
Só morremos até certo ponto,
A nossa vida é, em parte,
parte de uma vida maior
entre outros seres.


 
Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 58/9
*

A necessidade do amor
expõe a cisão que existe em nós.
Toda a necessidade
trai uma fraqueza.


Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 57
*

Estamos sós
com tudo o que amamos.


Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 57

quarta-feira, 23 de março de 2011

Jackie Kennedy, Wife of Sen, Cutting Out Newspaper Clippings Next to Open Scrapbook

22.

Vós lábios meus quereis cicatrizar
sem cura e ficar mudos? rubras feridas
como de espadas já não são tingidas
Deixai me lance à espada E de brotar

hão-de cessar as queixas desmedidas
da boca que há-de o amigo apropriar
desesperou na morte o silenciar
aliei a seu ser dores incontidas

Não sem que tardo alvor maduro a breve
juventude dos anos lhe transborde
e da hora mortal fadiga leve

se dela sangra o mundo em rubro acorde
A golfada das dores já me sossega
e é mar liso que espelha a alba que chega


Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.37
*
(Toda a cinza é pólen.
O cálice é o céu.)



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 50
*

O destino que nos esmaga
é a indolência do espírito.
Alargando e educando o nosso agir,
transformamo-nos nós próprios em destino.
Tudo parece afluir sobre nós vindo de fora,
porque não há corrente que saia de nós.
Somos negativos porque queremos -
quanto mais positivos formos,
tanto mais negativo será o mundo à nossa volta,
até que, no fim, não haverá negação,
porque nós seremos tudo em tudo.
Deus quer deuses.
Se o nosso corpo mais não é
do que o centro da acção comum dos sentidos,
se dominamos os nossos sentidos,
se temos o poder de os transformar em acção,
de os orientar para a comunidade -
então só depende de nós dar a nós próprios
o corpo que desejamos ter.
Se os nossos sentidos mais não são
do que modificações de um órgão pensante -
do elemento absoluto -
poderemos também, dominando esse elemento,
modificar e dirigir à vontade
os nossos sentidos.


Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 47/8
*

Quando se lê como se deve ler,
desabrocha dentro de nós
um mundo real e verdadeiro
feito à imagem das palavras.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 47
*
A arte de nos tornarmos todo-poderosos:
arte de realizar totalmente a nossa vontade.
De dominar corpo e alma.
O corpo é o instrumento
de formação e modificação do mundo,
Temos de ensinar o corpo
a ser um órgão capaz de tudo.
Modificar o nosso instrumento
é modificar o mundo.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p. 45

Reclining Nude; Oregon, 1976.

*

Estamos próximos do despertar
quando sonhamos que sonhamos.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.40
A vida existe para servir a morte.


Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.29
*

Nunca chegaremos
ao pleno entendimento de nós.
Mas saberemos e poderemos
conhecer-nos para lá do entendimento.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.27

I

GRÃOS DE PÓLEN

    Amigos, o solo é pobre. Precisamos de lançar
muitas sementes para obter uma modesta colheita.



Novalis. Fragmentos são Sementes. Selecção, tradução e ensaio de João Barrento. Roma Editora, Lisboa, 2006, p.27

terça-feira, 22 de março de 2011

Nu de la forèt

14.

Aliei-me à velha noite de maneira
que envelheci com ela e a tristeza
no coração sem paz meteu acesa
a presença das sombras na lareira

O que assim faz ser una essa pobreza
distante sem ter sol na terra inteira
com meu obscurecer quando o não queira
o amigo Na vigília muita vez a

ideia me sacudiu O sonho é raro
em noite assim dá ao insone a sua
claridade impotente para amparo

do homem mas nos seus mundos estua
não lhe brota outra luz no limiar
a lembrança é-lhe lua e faz-lhe par.


Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.41
«Fora dela consolo algum se gera
longe dela tristezas não existem
contém como um tecido estrela e fera»



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.37

3.

Parto feliz quanto o silêncio o sele
de que ao nascer fui logo destinado
a ser brilho da noite no olhar dado
a quem silente ao vasto céu se impele

a ser raio que toca os olhos dele
e em que feliz está quem não é nado
e junto à face a ser mais afagado
que no azul voga em nuvem que revele

a luz. Estava escrito nunca havia
de me vibrar a boca sem o canto
e a minha fronte o extremo arco seria

do berço em prece ardente a orlá-lo enquanto
aconteceu que me escapou então
com minha jovem morte em sua mão.



Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.19
Dá-me de dentro o que o teu perto estende


Os Sonetos de Walter Benjamin. Tradução de Vasco Graça Moura. Campo das Letras, 1999, p.15
____________________________________________


Mas então quando morre,
esse a quem a beleza
mais tocava, de modo que na forma
era um milagre e os seres celestes o tinham
marcado, e quando, por recíproco enigma eterno,
não podem compreender-se um
ao outro os que viveram juntos
na memória, e não afasta só a areia
ou os prados e comove
os templos, quando a honra
do semideus e dos seus
se esvai e mesmo a sua face
o Altíssimo desvia, assim que em parte alguma um
imortal seja de ver no céu ou
na terra verde, o que se passa?


Friedrich Hölderlin
Quand tout est dit, ce qui reste à dire est le désastre,
ruine de parole, défaillance par l'écriture, rumeur qui murmure:
ce qui reste sans reste (le fragmentaire).

Maurice Blanchot, L'écriture du désastre

segunda-feira, 21 de março de 2011

Edouard Boubat, Portugal, 1956

MASHA         (Com amargura e desapontamento, entre-den-
                        tes) Que Deus não me tivesse nunca deixado
                        pôr os olhos em ti!»



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 86
POLINA             (Para TREPLEV) Ela é um amor. (Pausa) As
                             mulheres querem apenas uma única coisa,
                             Kostya: um olhar de adoração. Sei-o por
                             mim.


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 84

domingo, 20 de março de 2011

POLINA     (Suspirando) As pessoas de idade são iguais
                     às crianças pequenas.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 83
MASHA                          (Levanta a luz do candeeiro) O lago está co-
                                         berto de ondas. Ondas gigantescas.

MEDVEDENKO            Está uma escuridão total, no jardim. Deviam
                                        ter mandado desarmar o palco. Para ali ficou,
                                        no meio do jardim, desguarnecido e desarti-
                                        culado, como um esqueleto, e com a cortina a
                                        espanejar ao vento. Ontem à noitinha, passei
                                        lá ao pé e pareceu-me ouvir alguém a chorar,
                                        lá dentro.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 82
TREPLEV   (...) Perdoa-me, não sei men-
                    tir - os livros dele dão-me vómitos.

(...)

TREPLEV    (Com ironia) ''Realmente dotados de ta-
                     lento'', ora vejamos! (Furioso) Quanto a
                     isso, eu tenho muito mais talento do que vo-
                     cês todos juntos. (Arranca a ligadura da ca-
                     beça) Vocês e as vossas convençõezinhas ta-
                     canhas são quem manda na arte, hoje em dia.
                     Considerem que só o que é feito por vocês é
                     genuíno, autêntico - suprimem e destroem
                     tudo o mais. Recuso-me a reconhecer-vos, e
                     à vossa supremacia! Não admito a tua, nem a
                     dele!


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 70

Performance ,1997

Directive

Back out of all this now too much for us,
Back in a time made simple by the loss
Of detail, burned, dissolved, and broken off
Like graveyard marble sculpture in the weather,
There is a house that is no more a house
Upon a farm that is no more a farm
And in a town that is no more a town.
The road there, if you’ll let a guide direct you
Who only has at heart your getting lost,
May seem as if it should have been a quarry—
Great monolithic knees the former town
Long since gave up pretense of keeping covered.
And there’s a story in a book about it:
Besides the wear of iron wagon wheels
The ledges show lines ruled southeast-northwest,
The chisel work of an enormous Glacier
That braced his feet against the Arctic Pole.
You must not mind a certain coolness from him
Still said to haunt this side of Panther Mountain.
Nor need you mind the serial ordeal
Of being watched from forty cellar holes
As if by eye pairs out of forty firkins.
As for the woods’ excitement over you
That sends light rustle rushes to their leaves,
Charge that to upstart inexperience.
Where were they all not twenty years ago?
They think too much of having shaded out
A few old pecker-fretted apple trees.
Make yourself up a cheering song of how
Someone’s road home from work this once was,
Who may be just ahead of you on foot
Or creaking with a buggy load of grain.
The height of the adventure is the height
Of country where two village cultures faded
Into each other. Both of them are lost.
And if you’re lost enough to find yourself
By now, pull in your ladder road behind you
And put a sign up CLOSED to all but me.
Then make yourself at home. The only field
Now left’s no bigger than a harness gall.
First there’s the children’s house of make-believe,
Some shattered dishes underneath a pine,
The playthings in the playhouse of the children.
Weep for what little things could make them glad.
Then for the house that is no more a house,
But only a belilaced cellar hole,
Now slowly closing like a dent in dough.
This was no playhouse but a house in earnest.
Your destination and your destiny’s
A brook that was the water of the house,
Cold as a spring as yet so near its source,
Too lofty and original to rage.
(We know the valley streams that when aroused
Will leave their tatters hung on barb and thorn.)
I have kept hidden in the instep arch
Of an old cedar at the waterside
A broken drinking goblet like the Grail
Under a spell so the wrong ones can’t find it,
So can’t get saved, as Saint Mark says they mustn’t.
(I stole the goblet from the children’s playhouse.)
Here are your waters and your watering place.
Drink and be whole again beyond confusion.

Robert Frost. From Steeple Bush | Holt, 1947

Arvo Pärt - Cantus in Memory of Benjamin Britten

The Idea of Order at Key West

She sang beyond the genius of the sea.
The water never formed to mind or voice,
Like a body wholly body, fluttering
Its empty sleeves; and yet its mimic motion
Made constant cry, caused constantly a cry,
That was not ours although we understood,
Inhuman, of the veritable ocean.

The sea was not a mask. No more was she.
The song and water were not medleyed sound
Even if what she sang was what she heard,
Since what she sang was uttered word by word.
It may be that in all her phrases stirred
The grinding water and the gasping wind;
But it was she and not the sea we heard.

For she was the maker of the song she sang.
The ever-hooded, tragic-gestured sea
Was merely a place by which she walked to sing.
Whose spirit is this? we said, because we knew
It was the spirit that we sought and knew
That we should ask this often as she sang.
If it was only the dark voice of the sea
That rose, or even colored by many waves;
If it was only the outer voice of sky
And cloud, of the sunken coral water-walled,
However clear, it would have been deep air,
The heaving speech of air, a summer sound
Repeated in a summer without end
And sound alone. But it was more than that,
More even than her voice, and ours, among
The meaningless plungings of water and the wind,
Theatrical distances, bronze shadows heaped
On high horizons, mountainous atmospheres
Of sky and sea.
                   It was her voice that made
The sky acutest at its vanishing.
She measured to the hour its solitude.
She was the single artificer of the world
In which she sang. And when she sang, the sea,
Whatever self it had, became the self
That was her song, for she was the maker. Then we,
As we beheld her striding there alone,
Knew that there never was a world for her
Except the one she sang and, singing, made.
 
Ramon Fernandez, tell me, if you know,
Why, when the singing ended and we turned
Toward the town, tell why the glassy lights,
The lights in the fishing boats at anchor there,
As the night descended, tilting in the air,
Mastered the night and portioned out the sea,
Fixing emblazoned zones and fiery poles,
Arranging, deepening, enchanting night.
Oh! Blessed rage for order, pale Ramon,
The maker's rage to order words of the sea,
Words of the fragrant portals, dimly-starred,
And of ourselves and of our origins,
In ghostlier demarcations, keener sounds.


Wallace Stevens

sexta-feira, 18 de março de 2011

Já lá vai o tempo em que se semeava...

Com os zunzuns em torno da comemoração do Dia Mundial da Poesia, noto em mim, ó Álvaro, por aquela sensação de azedume do estômago. Como é que as putas chegam a papel impresso? Dinheiro. Tendo dinheiro. É decadente, só lhe posso chamar a fase da decadência. Com Camões e Pessoa nesta bandeira, lembram-se de putas menores que ainda nem largaram as fraldas (como eu já as tive) e, Deus Pai, como é que é possível? Só um 'pseudo-povo', hastearia fagulhas, quando tem a chama na pátria para aleitar as crias, o suficiente. Este rebanho não tem memória da mão que o varejou, porque nunca foi varejado, nem sequer, colhe das sementeiras ao alcance da mão, a verdadeira palavra. Haja neste país quem possa ficar para semente...

Eduardo Gageiro (b.1935) Amália Rodrigues

ACTO III

(Sala de jantar em casa de SORIN. À esquerda e à direita, há portas. Aparador. Outro armário, com muitos remédios. Mesa, no meio da sala. Uma mala e caixas de chapéus. Preparativos de viagem, bem visíveis. TRIGORIN está a almoçar. MASHA, de pé, junto da mesa)

MASHA          Se lhe falo nisto, é precisamente por o senhor
                        ser escritor. Se quiser, pode utilizar tudo. Se
                        ele estivesse gravemente ferido, eu não seria
                        capaz de continuar a viver nem mais um mi-
                        nuto. Ah, mas ainda conservo algum ânimo, e
                        resolvi arrancar este amor do meu coração, de
                        uma vez para sempre, arrancar-lhe raízes.

TRIGORIN       Como?

MASHA            Casando-me. Vou casar-me com o
                          Medvedenko.

TRIGORIN        O professor?

MASHA             Sim.

TRIGORIN         Para mim não é muito clara a razão que a
                           compeliu a isso.

MASHA             É um amor sem esperança, ano após ano à
                           espera...Se eu me casar, deixo de ter tempo
                           para o amor. Responsabilidades novas hão-
                           -de apagar os antigos afectos. De qualquer
                            modo vai ser uma situação nova para mim.
                            Acompanha-me? (Enche os copos)




A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p. 59/60
NINA               O que é que está a escrever?

TRIGORIN       São só uns apontamentos...Ocorreu-me agora
                          mesmo um tema...(Mete o bloco de notas na
                          algibeira) Um tema para um conto. Uma ra-
                          pariga que passou a vida à beira de um lago,
                          Assim, como você. Essa rapariga ama o lago.
                          como uma gaivota, e é feliz e livre como uma
                          gaivota. Um homem passa, olha para ela, e
                          como não tem mais nada que fazer, destrói-a
                          - como aquela gaivota ali. (Pausa)



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.58

quinta-feira, 17 de março de 2011





Monsieur le Président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour partir à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le Président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter

Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins

Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir
S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le Président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer


Boris Vian

A viagem alimenta a lucidez dos homens

Mas quando, de repente, vi a minha roupa reflectida como que num espelho,
Percebi nela o meu eu inteiro também,
E através dela reconheci e vi a mim mesmo.
Pois, embora nós derivássemos de um único e mesmo, estávamos
parcialmente divididos; e aí, de novo, éramos um, com uma única
forma.
E até os tesoureiros que tinham trazido a roupa
Eu via como dois seres, mas existia uma única forma em ambos,
Uma única prova real consistindo em duas metades.
E eles tinham o meu dinheiro e riqueza nas suas mãos, e deram-me a minha
recompensa:
A bela roupa de cores vivas;
Que era bordada com ouro, pedras preciosas e pérolas para dar uma
              impressão conveniente.


Layton, As Escrituras Gnósticas, pg. 443.

quarta-feira, 16 de março de 2011

«As paixões, quando mandam
em nós, são vícios.»

Blaise Pascal

terça-feira, 15 de março de 2011

Inspiration

TREPLEV            (Entra, sem chapéu, com uma espingarda.
                             Traz na mão uma gaivota morta) Está aqui
                              sozinha?

NINA                   Sozinha. (TREPLEV poisa a gaivota no chão,
                              aos pés de NINA) Que quer isto dizer?

TREPLEV             Hoje cometi um acto desprezível. Matei esta
                              gaivota. E agora deponho-a a teus pés.

NINA                   Mas o que é que tu tens? (Pega na gaivota e
                             observa-a).

TREPLEV           (Após uma pausa) Não vai tardar muito que
                            eu me mate também.

NINA                 Não estou a reconhecer-te.

TREPLEV          Foi desde que eu deixei de te reconhecer a ti.
                           Mudaste, no teu comportamento para comigo.
                           Tens um olhar frio...a minha presença constran-
                            ge-te.

NINA                E tu, de há algum tempo para cá, tornaste-te
                          irritável. Nem é fácil apanhar o sentido do
                          que tu dizes - parece que falas por símbolos.
                          Quer parecer-me que esta gaivota também
                           é um símbolo, obviamente, mas não o
                           entendo, desculpa-me. (Põe a gaivota em
                           cima do banco) Sou demasiado simples para
                           poder entender-te.

TREPLEV          Tudo começou naquela noite, com o falhanço
                           da minha peça. Um falhanço estúpido! E as
                           mulheres não perdoam nunca o insucesso. Já
                           queimei a peça, não ficou nem uma folha. Se
                            tu soubesses como eu me sinto infeliz. Essa
                            tua frieza é horrível. É inacreditável. Sinto-me
                            como se tivesse acordado de repente, e visse
                            o lago todo seco, bebido pela terra. Disseste
                            que eras simples de mais para me entenderes.
                             Mas entenderes o quê? A minha peça desa-
                             gradou a todos. E tu não dás valor à minha
                             inspiração, consideras-me medíocre, uma
                             nulidade, como a maior parte das outras pes-
                             soas...(Bate com um dos pés) Ah, como eu
                             estou a compreender tudo, a compreender
                             muitíssimo bem! É como se me tivessem dado
                             uma martelada na cabeça. Maldito! Maldito
                             orgulho que me está a sugar o sangue até à
                             derradeira gota, que é como uma víbora...
                             (Vê TRIGORIN a aproximar-se, lendo o seu
                              bloco de apontamentos) Eis que vem aí um
                              verdadeiro génio, tem as passadas de Hamlet,
                              e, como ele, avança de livro na mão. (Zomba)
                              ''Words, words, words...'' Ainda este sol
                               vem longe e já o teu sorriso desponta. A
                               frieza do teu olhar aquece sob os seus raios.
                               Não quero ser importuno. (Sai, rápido)




A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.48-50
ARKADINA           (...) Onde é que está o Boris Alexeevich?

NINA                       Está lá em baixo, a pescar.

ARKADINA            Nunca se cansa de pescar, não entendo.
                                  (Prepara-se para prosseguir leitura)

NINA                       Que livro é esse?

ARKADINA            Na Água, do Maupassant, minha querida.
                                  (Lê umas linhas, para consigo) Bem, o que
                                   vem a seguir não tem interesse, nem sequer é
                                   verdadeiro. (Fecha o livro) Estou preocupa-
                                   díssima, verdadeiramente aflita, no meu
                                   íntimo. Sabe dizer-me o que é que se passa
                                   com o meu filho? Porque é que ele anda tão
                                   abatido, tão triste? Deixa-se ficar dias e dias
                                   inteiros, à beira do lago, e mal o vejo.

MASHA                    Tem o coração doente. (Para NINA, com ti-
                                   midez) Não faz o favor de nos ler uma pas-
                                   sagem da peça dele?

NINA                        (Depois de encolher os ombros) Quer que eu
                                   leia? Mas é tão pouco interessante, a peça.

MASHA                    Quando é ele próprio a ler, os seus olhos
                                    brilham, e empalidece. Uma voz linda, me-
                                    lancólica. Parece mesmo um poeta.




A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.40
MINETTI
(Para a Senhora)
Não acha
que devemos odiar o progresso
a partir dum dado momento?



Thomas Bernhard. Minetti seguido No Alvo. Minetti Tradução de João Barrento; No Alvo Tradução de Anabela Mendes. Edições Cotovia, Lisboa, 1990, p. 18
Minetti

Retrato do artista quando velho

Noite de Inverno

«Um lobo vermelho a ser estrangulado por um anjo. As tuas pernas tilintam, a andar, como gelo azul, e um sorriso cheio de tristeza e arrogância empederniu-te o rosto, e a fonte empalidece com a volúpia da geada;»
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 91

Metamorfose Do Mal

(2ª versão)
 
(...)
 
          «Alguém te abandonou na encruzilhada, e tu olhas longamente para trás. Passos argênteos na sombra de macieiras raquíticas. Purpúreo, o fruto resplandece nos ramos negros, e na erva a serpente está na muda de pele. Oh, a escuridão! O suor que apareceu na fronte de gelo e os tristes sonhos no vinho, na taberna da aldeia sob traves negras de fumo. Tu, deserto ainda, que faz nascer por magia ilhas de rosas das nuvens castanhas do tabaco e lhes arranca do interior o grito selvagem de um grifo que caça, rodando falésias negras, por mares, tempestades e gelos. Tu, um metal verde e por dentro um rosto de fogo que quer sair para cantar, de cima do monte de ossadas, tempos sinistros e a queda flamejante do anjo. Oh, desespero que num grito mudo cai de joelhos!
           Um morto vem visitar-te. Do coração corre-lhe o sangue que ele próprio verteu, e no sobrolho negro
aninha-se um instante indizível. Encontro lúgrebe. Tu - uma lua de púrpura, quando o outro aparece na sombra verde da oliveira. Segue-o a noite eterna.»
  
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 87
Cai-lhe dos braços um corpo já morto,
 
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 79
Oh, que solitário fim o do vento da tarde!
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 59

segunda-feira, 14 de março de 2011

A Toad in the Path – An Early Spring in Norfolk, 1888

DORN              Ainda outra coisa. Na obra de arte, tem de
                          haver sempre um pensamento claro e bem
                          definido. Temos de saber para que se está a
                         escrever. De outro modo, quando envereda-
                         mos por um caminho cheio de pitoresco mas
                         sem objectivo, perdemos o rumo e somos
                         aniquilados pelo nosso próprio talento.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.34
NINA             Estou só. E uma vez apenas, de cem em cem
                       anos, abro a minha boca para falar, e a minha
                       voz ressoa melancólica neste lugar ermo e de-
                       solado, e ninguém a ouve...



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.24
(...)
 
«À noite, no terraço, embriagámo-nos com vinho castanho.
Vermelho arde o pêssego na folhagem;
Doce sonata, alegre riso.
 
Belo é o silêncio da noite.
Na planície negra
Encontramo-nos com pastores e estrelas brancas.'»
 
 
 
Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 57

domingo, 13 de março de 2011

Cântico Da Noite

I

Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.

Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.

Somos os viadantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las.


II

Que em mim se consume o último sofrimento,
Não vos detenho, forças negras do Mal!
Vós sois a estrada para o grande silêncio,
Por onde entramos em noites de cristal.

No velho hábito crepita o meu lume.
Paciência! Morre a estrela, os sonhos passam
Para aqueles reinos, para nós sem nome,
Que só os homens sem sonhos atravessam.


III

Coração negro, oh noite cerrada,
Quem espelha vossos sacros recantos,
Do vosso mal os derradeiros antros?
A nossa dor deixa a máscara gelada -

A nossa dor, o nosso prazer,
E esse riso de pedra da máscara sem dundo,
Que fez ruir as coisas deste mundo
E escapa a quem o queira conhecer.

Mas ele aí está, inimigo de fora,
Rindo das coisas por quem nos arriscamos,
Ensombrando as canções que cantamos
E deixando no escuro o que em nós chora.


IV

Tu és o vinho que embriaga o mundo,
E eu esvaio-me em sangue em danças de amor,
Coroando de flores a minha dor!
É a tua vontade, oh noite sem fundo!
Eu sou a harpa em ti a tanger,
E as últimas dores no meu coração
Cedem à tua negra canção,
Que me faz eterno e me apaga o ser.


V

Paz profunda, dorme o vento,
Nem um som de sinos traz.
Doce mãe de sofrimento -
É da morte a tua paz.
Deixa que sangrem para dentro,
Sara as feridas, estende a mão
De bálsamo e compaixão,
Doce mãe de sofrimento -


VI

Que o meu silêncio seja a tua canção!
De que te serve o ciciar do deserdado,
Que dos jardins da vida se afastou?
Deixa-te em mim ser o não nomeado -

Como se em mim te erguesses sem sonhar,
Como a ausência de toque nos sinos,
Como a noiva de mel da minha dor
E a papoila ébria dos meus sonhos.


VII

Ouvi flores nos abismos a morrer
E das fontes a queixa inebriada
E da boca dos sinos uma canção a sair,
Noite, e uma pergunta ciciada;
E, chaga de morte, um coração nascer
Do outro lado desta pobre jornada.


VIII

As trevas apagaram-se sem nada dizer,
Tornei-me sombra morta em pleno dia -
Saí então da casa do prazer
Para a noite me engolir.
Com o coração cheio de silêncio vi
Como ele é insensível ao tédio do dia -
E te oferece um sorriso de espinhos de ti,
Noite - até ao fim!


IX

Noite, muda porta do meu sofrimento,
Olha o meu sangue negro da chaga a correr,
E como já se inclina o cálice da dor!
Oh noite, é o momento!

Tu, noite, jardim do esquecimento
Do brilho órfão do mundo desta pobreza minha!
Murcha a coroa de espinhos, a folhagem da vinha.
Oh vem, supremo tempo!


X

Tempos houve em que o meu demónio ria,
E eu era uma luz em jardins soalheiros,
Tinha jogo e dança por companheiros
E o vinho do amor que me inebria.

Tempos houve em que o meu demónio chorava,
E eu era uma luz em jardins de crueldade,
Tinha por companheira a humildade
Que a casa da pobreza iluminava.

Hoje o meu demónio não ri nem chora,
Eu sou uma sombra num jardim perdido,
E o meu companheiro, pela morte enegrecido,
É o silêncio vazio de antes da aurora.


XI

Meu pobre sorriso que te cortejava,
Minha triste canção que no escuro se apagava.
Agora a jornada quer chegar ao fim.

Concede que eu entre na tua catedral
Como outrora um simples devoto, fiel,
Para mudo te adorar a ti.


XII

Tu és em funda meia-noite
Uma praia morta num mar de silêncio,
Uma praia morta: Esquecimento!
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
O céu em que foste estrela por vezes,
O céu em que já não florescem deuses.
Tu és em funda meia-noite.

Tu és em funda meia-noite
Um não-concedido em ventre de amor,
O que nunca foi e não tem ser!
Tu és em funda meia-noite.



Georg Trakl. Outono Transfigurado. Tradução e prefácio de João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 25-35

sexta-feira, 11 de março de 2011

ARKADINA    (Recita uma passagem do Hamlet)
                          ''Meu filho, fizeste
                            voltar o meu olhar para dentro de mim.
                            E vejo nódoas tão raiadas e escuras
                            que nada lhes lavará a tinta.''

TREPLEV           (Do Hamlet:)
                            ''Porque vos haveis vós entregado ao vício
                             e procurado o amor nos abismos do crime?''


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.22

Towing the Reed, 1885

DORN        (Canta) ''Nunca digas que a tua juventude foi
                     perdida...''


A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.19
NINA            É tão difícil de representar, a tua peça. Não
                      tem personagens vivas, nenhuma.

TREPLEV     Personagens vivas! A vida não tem que ser
                     reproduzida como é, nem como deveria ser.
                     É a vida que vemos em sonho que nós temos
                     de reproduzir.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.18/9
NINA       O meu pai e a mulher não querem nunca dei-
                  xar-me vir. Dizem que há aqui um ambiente
                  de boémia...Receiam que eu queira ser actriz.
                   Mas eu estou sempre a desejar tanto, tanto,
                   vir para a beira do lago...como se fosse uma
                  gaivota. E o meu coração está tão cheio, tão
                  cheio de ti....(Olha em volta)

TREPLEV  Estamos completamente sós.

NINA         Pareceu-me ouvir alguém.

TREPLEV   Ninguém. (Beijam-se)

NINA          Esta árvore, o que é?

TREPLEV   É um ulmeiro.

NINA          Tão sombrio, porquê?

TREPLEV    Está a anoitecer. Todas as coisas vão ficando
                     sombrias. Não te vás embora tão cedo, peço-
                     -te.

NINA            Não posso ficar mais tempo.



A. Tchekov. A Gaivota. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Relógio D'Água, Lisboa, 1992., p.17

quarta-feira, 9 de março de 2011

POEMA SIMPLES

Quando, à nossa volta, já tudo escurece, e lilás se rasga o céu, então
                                                            [gostaria de ver os teus olhos.
Quando te olho, só vejo teus olhos, e gostaria de beijar tuas mãos,
                                                                                [com audácia.
Gostaria de beijar-te, e quando estou ao Teu lado, sei que não
                                                                    [beijarei tuas mãos.


József Attila in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 179

VELA INCLINADA

 Estala, vira-se o leme, a longa
       verga,
ceifa quase a onda,
        e a barca larga!

Mastro e vela, vê,
lança-se quando
vitoriosa? Quando se
      inclina ao mais profundo.



Illyés Gyula in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 175
E eu escutava o ruído das suas asas.

Ezequiel, 1, 24

terça-feira, 8 de março de 2011

Entre flores no chão deitar-nos e
queres, queres brincar à morte?


Kosztolányi Dezső in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 154

The Garden Party, ca. 1905

ENTRE CAIXÃO E BERÇO

Mãe, quando, um dia, eu voltar de vez,
fico aqui contigo para sempre.
Quando abraçar a velha soleira
e beijar as santas árvores de antigamente
e, cansado, em lágrimas tremendo,
teus olhos olhar.

Espera, então, por mim, que uma noite virei.

Será Outono, sei, luz púrpura ziguezagueia,
fulva luz noctura.
A grande porta de ferro, troando, há-de fechar-se de tal modo,
que a velha casa, fria, tremerá
de medo.

Mas tu não receies, vem ao meu encontro, suavemente,
por mais medonho e branco que seja,
aperta-me nos teus braços, não busques o coração,
que inunda o sangue feio e preto,
olha só para os meus olhos dormentes e baços,
acaricia-me a cabeça, em silêncio.
Eu nem sequer te contarei como vivi
entre beijos ulcerados, na noite clara,
olhar-te-ei somente, como no passado,
então, compreenderei que tu és o início
e tu és o fim.
Mudo, deitar-me-ei na grande cama branca,
eu, velho bebé que falar não sabe,
e do coração aos lábios sobe, vibrante,
a ida melancolia da minha vida.
Tu escutas, como quem vela junto a um berço,
eu devaneio, sorrindo, triste,
e, hesitando entre caixão e berço,
fias minha branca coroa de flores.

Passou quase a noite, em repetidos suspiros;
curando, franze teu abençoado sorriso;
e, em lágrimas, com flores e uma canção muito antiga,
cantas a morte do teu pobre filho.


1907



Kosztolányi Dezső in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 153
        « A chuva transformava-se em brisa. Ouviu: «O perdão dos pecados e a ressurreição da carne. Amén.» Isso era cá dentro, onde as mulheres rezavam o fim do rosário. Levantavam-se; fechavam-se os pássaros; trancavam a porta; apagavam a luz.
         Só permanecia a luz da noite, o ciciar da chuva como um murmúrio de grilos...
         -Porque é que não foste rezar o rosário? Estamos na novena pelo teu avô.
         Lá estava a sua mãe, na ombreira da porta, de vela na mão. A sua sombra, que se estendia até ao tecto, longa, desdobrada. E as vigas do tecto desenvolviam-se em pedaços, despedaçada.
          -Sinto-me triste - disse.
          Então, ela voltou-se. Apagou a chama da vela. Fechou a porta e abriu os seus soluços que continuaram a ouvir-se, confundindo-se com a chuva.
          O refúgio da igreja deu as horas, uma a seguir à outra, como se o tempo estivesse encolhido.»




Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 31
«Os teus lábios estavam molhados como se o orvalho os houvesse beijado.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 28

A Ilha Que Desaparecia

Presumimos um dia radicar-nos
Para sempre entre as suas colinas azuis
E a costa árida onde passámos a noite
De desespero em oração e vigília,
Mas uma vez colhida a lenha que o mar trouxe,
Construída uma lareira, e pendurado
O nosso caldeirão como um firmamento,
Quebrou-se a ilha sob os nossos pés como uma onda.
A terra que nos sustinha parecia
Só ter firmeza quando a abraçávamos
In extremis. Tudo o que lá sucedeu,
Creio, foi visão.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.399
Dia e noite as minhas lágrimas foram o meu pão.


Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.377

Untitled (Billiard game), c. 1910,

Clareiras

Em memória de M.K.H., 1911-1984


Ela ensinou-me o que o seu tio lhe ensinara:
Como o maior carvão rachava facilmente
Se o ângulo entre o veio e o martelo fosse o certo.

O som dessa pancada aliciante e segura,
O seu eco agregado e obliterado,
Ensinou-me o golpe certeiro, e a distensão,

Ensinou-me, entre o maço e o cepo, a enfrentar
Consequências. Ensina-me agora a escutar,
A acertar no veio entre as linhas a negro.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.365

A Lanterna do Espinheiro

Arde fora do tempo o invernal pilrito,
pomo entre espinhos, pequena luz para pequena
gente, desta só esperando que não deixe
extinguir-se a mecha do respeito por si própria,
não tendo de a cegar com um clarão.

Mas quando o hálito se condensa na invernia
toma às vezes a forma errante de Diógenes
com a sua lanterna, em busca de um homem justo;
e assim nos vemos observando de trás
à altura dos olhos, e estremecemos
perante pele e caroço tão coesos,
espinho de sangue que esperamos nos teste e liberte,
pomo maduro e picado que nos sonda
e depois se afasta.



Seamus Heaney. Da Terra à Luz. poemas 1966-1987. Tradução, Prefácio e Notas de Rui Carvalho Homem. Relógio D' Água, Lisboa, 1997., p.351

segunda-feira, 7 de março de 2011

(...)

«Tu conheces o fio da lâmina, o sabor do sangue,
           os minutos de tensão,
os espasmos da traqueia lacerada, e a luta
           e terror de sufocar.
Ajuda-me! Tu já sabes tudo, tudo passaste,
           adulto sábio! Tu sabes bem
quanto sofrimento suporta o homem, que nem é muito
           para a bondade de Deus,
e o que vale a vida...E, talvez, que nem é
uma coisa assim tão grande a morte.»



Verão de 1937



Babits Mihály in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 150

PERGUNTAS DA NOITE

Quando a noite, esta manta branda,
negra, lisa manta de veludo
que estende uma gigantesca ama,
lentamente cobre a terra resguardada,
e tão cuidadosamente, que cada fio de erva
fique, direito, sob doce véu
e não curve a pétala das flores
e as duplas asas subtis das bordadas borboletas
não percam o esmalte de arco-íris
e assim descansem na sombra velada,
leve, liso, aveludado véu,
esse véu de quem nem sentem o peso:
então, por onde andes, no vasto mundo,
ou estejas em casa, sentado no quarto escuro e triste,
ou vejas, no café, admirado,
que acendem, um após outro, candeeiros de gás de luz solar;
ou, cansado, com teu cão na falda da colina
observes a preguiçosa lua entre as frondas;
ou pela estrada, que levantou pó,
teu cocheiro ensonado, cabeceando, te conduza;
ou tenhas vertigens no chão vacilante
do navio, ou no assento do comboio;
ou, errando através de uma cidade estrangeira,
pares nas esquinas para admirar, tranquilo,
o longo fio de ruas longínquas,
a dupla linha de ruas em chamas;
ou até em cidade aquática, no Riva,
onde um espelho opalino, estragado, pontilha chamas,
tenhas saudades do passado longínquo regressando,
cuja recordação docemente te tortura,
tempo ido que, qual imagem da
lâmpada encantada, está presente, mas não existe,
cuja recordação nunca pode ser fria,
cuja recordação é um peso, mas também um tesouro;
aí, tua espada cabeça de recordações
no chão de mármore possas inclinar:
entre puras belezas e em prazeres andando,
irás só ainda pensar, cobarde:
toda esta beleza para quê?
irás ainda pensar, órfão:
para quê a água de seda, o mármore multicolor?
para quê a noite, alada manta?
porquê as colinas e porquê as frondas,
e o mar, que ninguém semeia?
para quê os fluxos, para quê os refluxos,
e as nuvens, essas tristes Danaides,
e o sol, essa pedra de Sísifo escaldante?
para quê as recordações, para quê os passados?
porquê as lâmpadas e porquê as luas?
porque é que o tempo não mata o seu fim?
Ou toma exemplo do minúsculo fio de erva:
porque cresce a erva, se há-de secar?
porque seca, se cresce de novo?


Primavera de 1909



Babits Mihály in Antologia da Poesia Húngara. Selecção e tradução de Ernesto Rodrigues. Âncora, Lisboa, 2002., p. 144/5
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