domingo, 16 de fevereiro de 2014

XXI





  «A dor não se destina apenas a um sintoma, mas também a estimular as energias vitais do paciente, que é o ser humano em geral. No caso de Maria Adelaide podemos observar as suas queixas desde muito nova e que serviam aos médicos para fazerem um diagnóstico. Desde 1889 que Maria Adelaide sofre de uma depressão profunda motivada provavelmente pela morte do pai, que sucede a 14 de Maio do mesmo ano. Em Setembro ela escreve: ''Chego a parecer doida''. Tem falhas de memória que a surpreendem, fica sem saber como se escrevem palavras que não oferecem qualquer dificuldade. Não consegue fixar a atenção num livro ou num trabalho qualquer. Sai de casa e logo deseja regressar. Colhe flores no jardim e deita-as fora. À mesa, mantém-se calada e desinteressada da conversa das pessoas presentes. Tudo isso no tempo de luto que foi interrompido pelo casamento com o doutor Cunha, casamento prematuro, dado o seu estado depressivo. Nunca chega a remeter-se dessa desordem nervosa e a imagem de Eduardo Coelho afirma-se cada vez mais na sua mente. Em 1903 piora muito. Tem trinta e dois anos e a sua instabilidade faz com que lhe seja atribuída uma neurastenia. ''A neurastenia entra no quadro das enfermidades mentais!'' - dizem os doutores mais eminentes do país. Comprometem-se a declará-la doida e entram sem hesitação na estranha perversidade de a encerrar no manicómio com o fim de ser instruído o processo de interdição.»



Agustina Bessa-LuísDoidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 101

Nest (1979)


urticação


nome feminino

1. acto ou efeito de urticar
2. flagelação da pele para a excitar
3. sensação de ardência, parecida com a que é causada pelas urtigas sobre a pele

Acha que ela sofria?


« - Claro que tinha talento. Só não sabia o que fazer com ele. É a sina das mulheres. Sofrem com isso e usam de todos os meios para se livrarem dessa dor. Usam a fricção, a flagelação, a urticação, e nós somos os parceiros escolhidos. Maria Adelaide usou o cautério para despertar a sensibilidade que tinha perdido. É o método dos remédios dolorosos contra a dor.

    -Acha que ela sofria?
   -Acho que sim. Era uma mulher extraordinária. A dor decompõe-se a favor da arte numa infinidade de intermediários até ao sentimento mais perto do prazer. Estou a citar.»


Agustina Bessa-LuísDoidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 99

água-benta


«''Um príncipe de ilustração! Infelizmente os príncipes verdadeiros não são assim.'' Ela reconhecia que as mulheres o perdia e que ele ia ter uma carreira fulgurante e breve, porque as mulheres amam os que vão morrer.»



Agustina Bessa-LuísDoidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 87


« - Seu marido tratava-a mal?
   - Não me batia, mas fazia-me desconsiderações testemunhadas por todos. Chegou a passar três meses sem ir a casa, a não ser para mudar de roupa.»


Agustina Bessa-LuísDoidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 85

XVII



«Há dois meses que Maria Adelaide estava presa no manicómio por ordem do seu marido. Em princípio ela talvez quisesse agredi-lo, sem um plano formado de levar muito longe aquela desavença conjugal que lhe servia de exército, não sem um toque de sadismo.»



Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 84
«O senhor Júlio Dantas, que escrevia como um Óscar Wilde falava à mesa, teve a ocasião de assistir a certos sintomas inquietantes em relação a Maria Adelaide. Ela tinha, como a condessa de Ficalho, um vestido de linho branco com botões de coral. Um dia arrancou-lhe os botões, servindo-se de uma faca de sobremesa, e pôs-se a jogar com eles como se fossem berlindes.»



Agustina Bessa-Luís. Doidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 77

XV



«Alguém para quem vive uma rotina equivale a uma manipulação do espaço em que vive, o espaço do casamento, só muito tarde se apercebe das transformações de carácter que foram explicadas como alienação mental.

   O carácter de uma pessoa não é imutável. Ele sofre alterações nas diversas idades da vida; às vezes certos períodos bastam para fixar um comportamento oposto ao que até ali era tido por normal.»


Agustina Bessa-LuísDoidos e amantes. 2ª edição, Lisboa Guimarães Editores, 2005., p. 76

«(...) e agora como gosto eu de reflectir, para libertar o meu sonho desta roupagem.»

Stéphane Mallarmé. IGITUR ou A Loucura de Elbehnon. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena Editora, 1990., p. 55

''estrela acetinada''

''fio aracnídeo''

«além do bater de asas absurdas de um qualquer habitante assustado da noite, ferido pela claridade no seu sono pesado e prolongado a sua indefinida sombra.»


Stéphane Mallarmé. IGITUR ou A Loucura de Elbehnon. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena Editora, 1990., p. 52

roda-pé filosófico


«(...) Igitur quer provar aos antepassados que o seu empreendimento é uma loucura perante a vida, quer dizer, o acaso.»

Prisioneiro do efémero: «Sempre vivi de alma fixa no relógio.»

«Nevrose, tédio, (ou Absoluto!)»




«IGITUR. Igitur, ou a Loucura de Elbehnon: título estranho de uma obra estranha. Ensina-nos Rolland de Renéville que em hebreu El behnon significa «o filho dos Elohim», quer dizer «anjos», quer dizer «astros», e o advérbio-substantivo Igitur teria sido tirado do primeiro versículo do segundo capítulo do Génesis: Igitur perfecti sunt coeli et terra et omnis ornatus eorum. Igitur seria, pois, o filho de uma raça de anjos, o último rebento, a última consequência («igitur») de uma raça de puros espíritos cujo destino, a «loucura» se quisermos, é ele manter-se no plano do espírito puro, no plano das essências eternas e imutáveis libertando-se do presente, do acaso, da individualidade. Atrás do rosto desta personagem, Mallarmé pinta-se a ele próprio, o último descendente dos altos poetas e herdeiro espiritual dos grandes filósofos, no qual deve resumir-se.»



Stéphane Mallarmé. IGITUR ou A Loucura de Elbehnon. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena Editora, 1990., p. 30

sábado, 15 de fevereiro de 2014

«A destruição foi a minha Beatriz.» (Corr., 246)


«Queixa-se do peito, de um sistema nervoso «feito num oito», e descobre-se incapaz de pronunciar a mais simples frase. Durante esses invernos terríveis vive sempre numa espécie de beatitude de sonâmbulo, uma vez que os seus excessos de reflexão sobre si o ajudaram a reduzir-se ao estado de verdadeira sombra, e procura-se, inquieto, no reflexo dos espelhos para não se reconhecer. Bem sabe, porém, que esta dura ascese é necessária para dar oportunidade às «belas coisas» com que sonha obstinadamente e que devem desabrochar «na Vida - ou na Morte» (Corr., 226)




Stéphane Mallarmé. IGITUR ou A Loucura de Elbehnon. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena Editora, 1990., p. 22/23

Goat Head


despersonalização

«Para Hegel, o pensamento do pensamento é a reflexão que representa, na dialéctica da Enciclopédia, a passagem necessária do pensamento em si ao pensamento para si. E esta reflexão, ao atingir o nível do Absoluto, faz-se a própria reflexão do ser no pensamento, ao mesmo tempo que o pensamento se faz o pensamento do ser.»
«De resto confesso, mas só a ti, que os insultos do meu triunfo foram de tal forma grandes, ao ponto de ainda sentir necessidade de me olhar nesse espelho para pensar, e até voltaria a ser o Nada se acaso ele não estivesse à frente da mesa onde te escrevo esta carta. É isto dizer-te que agora sou impessoal, e não mais o Stéphane que conheceste - mas uma aptidão que o Universo espiritual tem para se ver e desenvolver através daquilo que eu fui. (Corr., 240-242)




Stéphane Mallarmé. IGITUR ou A Loucura de Elbehnon. Tradução de Carlos Valente. Lisboa, Hiena Editora, 1990., p. 20

«O meu pensamento pensou-se...estou perfeitamente morto...»


''esta verdade que ardia agora nele como um incêndio''

A sua verdadeira tragédia

«A sua verdadeira tragédia (começava a entender) residia na incapacidade de comunicar aos outros o conhecimento que tinha da existência de um outro mundo, um mundo para além da ignorância e da fragilidade, para além do riso e das lágrimas.»


Henry MillerO Sorriso aos Pés da Escada. Tradução de Célia Henriques e Vítor Silva Tavares. Literatura ASA, 1ª edição: Maio de 1992, p. 49
«Agora sei quem sou, o que sou, e o que devo fazer. É isto a realidade. O que vocês chama realidade não passa de serradura; esboroa-se, escapa-se entre os dedos.»


Henry MillerO Sorriso aos Pés da Escada. Tradução de Célia Henriques e Vítor Silva Tavares. Literatura ASA, 1ª edição: Maio de 1992, p. 46/7

Antichrist

“(…) Sobretudo no amor se deve ter cuidado; gostar dos outros e lhes querer bem tem sido o motivo de muita opressão e de muita morte dos espíritos. (…) Não tens, essencialmente, de amar nos outros senão a liberdade, a deles e a tua; têm, pelo amor, de deixar de ser escravos, como temos nós, pelo amor, de deixar de ser donos do escravo. (…)”

Agostinho da Silva

«No seu coração não havia ressentimento, apenas uma tristeza profunda. Era uma luta permanente para conseguir suster as lágrimas.»


Henry Miller. O Sorriso aos Pés da Escada. Tradução de Célia Henriques e Vítor Silva Tavares. Literatura ASA, 1ª edição: Maio de 1992, p. 18

''uivo protestatório''

literato

«uma luta que dura a vida inteira para nos acharmos a nós próprios.»

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014


«Não sei o que me diz o coração...»


Camilo Castelo Branco. O Retrato de ricardina. Livros do bolso europa américa, Lisboa, 1971., p.44

domingo, 9 de fevereiro de 2014

«O que eu preciso não é salvar-me das dores que me esperam: é morrer; se Deus me levar primeiro do que a ti, chamarei a tua alma. Se fores adiante, não hás-de esperar-me muito tempo»


Camilo Castelo Branco. O Retrato de ricardina. Livros do bolso europa américa, Lisboa, 1971

«A mulher do Loas não saíra da lareira. A sombra refugiara-a numa zona de neutralidade, onde havia muito se habituara a esconder-se dos outros e de si própria.»



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 37


«O vadio era um homem de fáceis emoções. Soluçando, com uma confusa mistura de raiva, ternura e solenidade, prometeu, enfim, associar-se aos sonhos do lavrador.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 36


«Penso no problema e com o cérebro já exausto, Barbaças adormeceu de novo. De boca aberta, um joelho flectido, as mãos tranquilamente apoiadas no peito, deixou que corressem sobre ele a tarde, o crepúsculo, o anoitecer.»



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 34

Woody Allen with Mia Farrow, whom he never married, but with whom he shares two children, Satchel (L) and Dylan


  «A tontinha da Alice estava ansiosa e fascinada.  E, na verdade, seria engraçado domesticar um rato; mas que anos de paciência uma tarefas dessas exigia!»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 33
«Rubro de humilhação, adiando uma resposta que tardava, por fim lançara um repto cuja ousadia, se fosse bem sucedida, poderia ter feito dele a personagem  mais falado da vila...»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 32

«(....), vasculhando na memória, enrugava a testa até ao martírio.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 32

''Os desejos dos mortos são sagrados.''

Fernando Namora. O Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 28
« - Tu a modos que andas triste... - insinuava o Loas, com uma voz lastimosa, mudando de estratégia, enquanto os olhos claros se lhe humedeciam de uma ternura azulada.
   -É feitio.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 27

«Sempre que abria um rego na terra e o ensopava com água do poço, não podia deixar de mirar, com ressentimento e ternura, o inútil engenho que a ferrugem ia corroendo.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 21

domingo, 2 de fevereiro de 2014


«É a corrente oculta que as paixões
do fogo e da cinza levam
para os clandestinos infernos das lágrimas.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 76

''Águas nocturnas do delírio''

The Mirror


''De que amor destruído me agarro desamparado?''

NOITE PERENE

De repente abri os meus olhos na escuridão
-lua negra, ardósia imensa, precipício -
e nada pude ver. Senti que a minha memória
tinha-me igualmente abandonado.

A cidade absorvia o seu esgotado deserto,
como se a impassível escuridão
desde sempre ocupasse a sua amorfa existência.

A realidade vazava os meus sentidos
para quedas de água e desaguamentos,
precipitando-se num marasmo tenebroso
de invisíveis objectos repudiados.

Procurei a minha própria sombra e aquele nome,
mas encontrei o torpe esquecimento da linguagem.
A voz fez-se bruma, tácita transparência.

Tudo ficou em suspenso e continuei pela noite
da alma como um navio sem timoneiro e sem luz,
perdido entre as águas fantasmagóricas.




Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 72

''boca ensimesmada''

''Hierática no teu abismo''


''O AMOR ESCOLHE O SEU CAMINHO''

LIMOS DO DESPREZO


Se pudesse olhar-me na sede dos teus olhos
em nenhum território perderia os meus vestígios.
Os segredos mais ácidos secariam
as suas ocultas raízes destruidoras,
as sílabas clementes do perdão
voltariam a ouvir-me comovidas
sob as grandes asas de uma luz aprazível.
Mas a cabeça assegura o seu erro no delírio.
Sente elevar-se a sombra que o desprezo derrama,
onde só ressurge a impiedade
de uma tribo de espectros dilacerantes.
Ainda continuo contigo, meu desolado corpo,
incapaz de morrer, vislumbrando os dois
terríveis abandonos: a morte sem repouso
e a vida que morre sem viver nem se extinguir.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 60

''a herança do Inverno''

TANTA ORFANDADE


No seu tremor medroso desenvolve-se
a sombria linhagem do desamparado.
Tanta orfandade abrupta sob os dias do silêncio,
tanta velha injustiça persistente
sem querer ter piedade do destino do homem.
Se pudesse cumprir o desejo supremo,
seria a impiedade que livremente se rebelasse
contra a servidão dos humilhados.
Se das minhas sementes podres pudesse crescer o meu valor
até fazer parar o sangue assassinado
e, ainda, pudesse recuperar a necessária força
para enfrentar a legião de sombras,
então apagaria os poços de dor,
rasgaria o sossego da sua aguarela aracnídea
cegando a altivez do perene culpado,
para que prisioneiro desapareça
no seu mortal e ubíquo labirinto.





Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 56

(Nostalghia)


ESSA IDADE


Cheguei a essa idade em que os dias
são o pulsar cansado que antecede a morte,
e a vida espreita por detrás de um vidro embaciado
como se não soubesse já o caminho,
nem forças tivesse para continuar às escuras
dissimulando perante a dor que a ameaça.

A paisagem está tão quieta, as árvores não agitam
memórias, tudo pesa no fastio
da alma, que tão lentamente se consome.
Fatigado, sem ímpeto nem voz,
o vento de Outono agita-se no horizonte.
Uma agitação longínua aproxima-se
com a sua tromba de sombra e infortúnio.
Nas pupilas arde um súbito soluçar,
e a melancolia, ainda que vencida, pugna
por surgir novamente com a sede do que é vivo.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 55

INDÍCIOS DE CRUELDADE


Somente que na crueldade a morte sorri-nos
com a sua primeira rosa queimada entre os dedos.


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 54

O CEGO

«(...)

Aqui, ouvindo as paredes da minha sepultura,
falo continuamente com os meus mortos.
Sinto na escuridão o soar dos seus passos,
os meus vacilantes passos, no negro deserto.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 53

JAULAS

noite simplifica a derrota.
Calada sensação de hirta medula
no hostil fastio do relento.
Os instantes são jaulas fechadas
que escondem as memórias guardadas.
Não compreende a enorme deterioração
que foi transformando a sua existência.
Lenta maturação até à morte.
Recebida esta velhice fustigadora.
Lição constantemente exercitada
da lucidez da consciência.
A quem há-de servir esta renúncia,
esta ânsia que labora e que resiste
à miséria das suas reencarnações?




Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 52



falam sempre mais feroz
os que mudam de sentidos
ganham olhos quando sós
metamorfose

e já são bestas pelo medo
buscam nomes escondidos
estão escondidos desde cedo
assassinos

ficou
deitado pelo chão
o corpo do último deus
e se o tocar
mil vozes falará
e se o tocar
mil rostos mudará
e se o tocar
morrerá
por fim

quatro patas a correr
quantas caçam o inimigo
e mais patas a nascer
resistindo

tantas feridas aqui florindo
quais jardins à flor da pele
como hienas já sorrindo
infinitas

ficou
deitado pelo chão
o corpo do último deus
e se o tocar
mil vozes falará
e se o tocar
mil rostos mudará
e se o tocar
morrerá
por fim

metamorfose
metamorfose
metamorfose

AUSCHWITZ

Lá em baixo, em Auschwitz, longe do Vístola,
amor, ao longo da planície nórdica,
num campo de morte: fria, fúnebre,
a chuva na ferrugem dos postes
e os enredos de ferro dos recintos:
e não há árvore ou pássaros no ar cinzento
ou acima do nosso pensamento, mas inércia
e dor que a memória deixa
ao seu silêncio sem ironia ou ira.

Tu não queres elegias, idílios: só
razões da nossa sorte, aqui,
tu, branda aos contrastes da mente,
incerta a uma presença
clara da vida. E a vida está aqui,
em cada não que parece uma certeza:
aqui escutaremos chorar o anjo o monstro
as nossas horas futuras
badalar o além, que é aqui, em eterno
e em movimento, não numa imagem
de sonhos, de possível piedade.
E aqui as metamorfoses, aqui os mitos.
Sem nome de símbolos ou de um deus,
são crónica, lugares da terra,
são Auschwitz, amor. Como de súbito
se esfumou em sombra
o querido corpo de Alfeu e de Aretusa!

Daquele inferno aberto por uma inscrição
branca: «O trabalho vos libertará»
saiu o fumo contínuo
de centos de mulheres empurradas fora
dos canis ao amanhecer contra o muro
do tiro ao alvo ou sufocadas gritando
misericórdia à água com a boca
de esqueleto sob os chuveiros a gás.
Encontrá-las-ás tu, soldado, na tua
história em formas de rios, de animais,
ou és também tu cinzas de Auschwitz,
medalha de silêncio?
Ficam longas tranças fechadas em urnas
de vidro ainda cerradas por amuletos
e infinitas sombras de pequenos sapatos
e de xales de hebreus: são relíquias
de um tempo de sageza, de sapiência
do homem que se faz medida de pelas armas,
são os mitos, as nossas metamorfoses.

Nas planícies onde amor e pranto
apodreceram e piedade, debaixo da chuva,
lá em baixo, pulsava um não dentro de nós,
um não à morte, morta em Auschwitz,
para não repetir, daquela cova
de cinzas, a morte.

AUSCHWITZ
Laggiù, ad Auschwitz, lontano dalla Vistola,
amore, lungo la pianura nordica,
in un campo di morte: fredda, funebre,
la pioggia sulla ruggine dei pali
e i grovigli di ferro dei recinti:
e non albero o uccelli nell’aria grigia
o su dal nostro pensiero, ma inerzia
e dolore che la memoria lascia
al suo silenzio senza ironia o ira.

Tu non vuoi elegie, idilli: solo
ragioni della nostra sorte, qui,
tu, tenera ai contrasti della mente,
incerta a una presenza
chiara della vita. E la vita è qui,
in ogni no che pare una certezza:
qui udremo piangere l'angelo il mostro
le nostre ore future
battere l'al di là, che è qui, in eterno
e in movimento, non in un'immagine
di sogni, di possibile pietà.
E qui le metamorfosi, qui i miti.
Senza nome di simboli o d'un dio,
sono cronaca, luoghi della terra,
sono Auschwitz, amore. Come subito
si mutò in fumo d'ombra
il caro corpo d'Alfeo e d'Aretusa!

Da quell’inferno aperto da una scritta
bianca: " Il lavoro vi renderà liberi "
uscì continuo il fumo
di migliaia di donne spinte fuori
all’alba dai canili contro il muro
del tiro a segno o soffocate urlando
misericordia all’acqua con la bocca
di scheletro sotto le doccie a gas.
Le troverai tu, soldato, nella tua
storia in forme di fiumi, d’animali,
o sei tu pure cenere d’Auschwitz,
medaglia di silenzio?
Restano lunghe trecce chiuse in urne
di vetro ancora strette da amuleti
e ombre infinite di piccole scarpe
e di sciarpe d’ebrei: sono reliquie
d’un tempo di saggezza, di sapienza
dell’uomo che si fa misura d’armi,
sono i miti, le nostre metamorfosi.

Sulle distese dove amore e pianto
marcirono e pietà, sotto la pioggia,
laggiù, batteva un no dentro di noi,
un no alla morte, morta ad Auschwitz,
per non ripetere, da quella buca
di cenere, la morte.

Salvatore Quasimodo

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014


TEMPO DE BAIXA-MAR


«Apaga-se a certeza de me ter enganado
em tudo o que mais amei e em tudo aquilo
onde pude enraizar-me plenamente.
Tempo de baixa-mar, cuja ondulação
perdeu o seu feitiço entre as rochas.
Em que se deve apostar na vida quando a vida é só
a saudade que aproxima o tédio de estar morto?»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 51

''indómita ondulação''

''húmido uivo da lua''

caligem


nome feminino
1. nevoeiro denso
2. escuridão
3. névoa nos olhos
4. catarata

(Do latim caligĭne-, «fumo negro; nevoeiro cerrado»)

NA FECHADA CELA DE PAPEL


«Já não quer insistir porque sabe que o amado
há-de ser, rapidamente, a imagem da dor.
E sonha, consola-se com maltratadas memórias
na fechada cela de papel.»


Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 43

CRUEL TESTEMUNHO

O vento da dor,
cegando-lhe os olhos,
agitado areal que se move
insone e sem perguntas.
A sua indiferença cala,
enche de sombria luz
o sonolento abraço
de uma cruel desmemória,
ali, onde se extinguem
latidos e desejos,
o vínculo impossível
que faz mover o mundo.
E aperta-se na sua cabeça
uma garra de pedra,
irrespirável boçal,
arduamente enquistados
no longo horizonte
das horas, fazendo-o descer
à sua perversa prisão.
E uma voz, a mais verdadeiramente sua,
sobre outras se amotina,
com o seu nome de fogo,
eleva-o, reclama-o.
E continua e não se rende,
um dia e outro dia
insiste obstinadamente
mas não para viver,
somente para dar
o seu cruel testemunho.



Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 41

«as palavras também não são palavras,
nem sequer se arriscam a serem lágrimas,»

Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 39

A Arte Contemporânea é uma farsa: Avelina Lésper

Com a finalidade de dar a conhecer seus argumentos sobre os porquês da arte contemporânea ser uma “arte falsa“, a crítica de arte Avelina Lésper apresentou a conferência “El Arte Contemporáneo- El dogma incuestionable” na Escuela Nacional de Artes Plásticas (ENAP), sendo ovacionada pelos estudantes na ocasião.

A arte falsa e o vazio criativo

“A carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de criação, o acaso e a falta de inteligência passassem a ser os valores desta arte falsa, entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus “

A crítica explica que os objetos e valores estéticos que se apresentam como arte são aceites em completa submissão aos princípios deuma autoridade impositora. Isto faz com que, a cada dia, formem-se sociedades menos inteligentes e aproximando-nos da barbárie.

O Ready Made

Lésper aborda também o tema do Ready Made, expressando perante esta corrente “artística” uma regressão ao mais elementar e irracional do pensamento humano, um retorno ao pensamento mágico que nega a realidade. A arte foi reduzida a uma crençafantasiosa e sua presença em um mero significado. “Necesitamos de arte e não de crenças”.

Génio artístico

Da mesma maneira, a crítica afirma que a figura do “génio”, artista com obras insubstituíveis, já não tem possibilidade de manifestar-se na atualidade. “Hoje em dia, com a superpopulação de artistas, estes deixam de ser prescindíveis e qualquer obra substitui-se por outraqualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade“.

O status de artista

A substituição constante de artistas dá-se pela fraca qualidade de seus trabalhos, “tudo aquilo que o artista realiza está predestinado a ser arte, excremento, objetos e fotografias pessoais, imitações, mensagens de internet, brinquedos, etc. Atualmente, fazer arte é umexercício ególatra; as performances, os vídeos, as instalações estão feitas de maneira tão óbvia que subjuga a simplicidade criativa, além de serem peças que, em sua grande maioria, apelam ao mínimo esforço e cuja acessibilidade criativa revela tratar-se de uma realidade que poderia ter sido alcançada por qualquer um“.

Neste sentido, Lésper afirma que, ao conceder o status de artista a qualquer um, todo o mérito é-lhe dissolvido e ocorre umabanalização. “Cada vez que alguém sem qualquer mérito e sem trabalho realmente excepcional expõe, a arte deprecia-se em sua presença e concepção. Quanto mais artistas existirem, piores são as obras. A quantidade não reflete a qualidade“.

Que cada trabalho fale pelo artista
“O artista do ready made atinge a todas as dimensões, mas as atinge com pouco profissionalismo; se faz vídeo, não alcança os padrões requeridos pelo cinema ou pela publicidade; se faz obras eletrónicas, manda-as fazer, sem ser capaz de alcançar os padrões de um técnico mediano; se envolve-se com sons, não chega à experiência proporcionada por um DJ; assume que, por tratar-se de uma obra dearte contemporânea, não tem porquê alcançar um mínimo rigor de qualidade em sua realização.

Os artistas fazem coisas extraordinárias e demonstram em cada trabalho sua condição de criadores. Nem Damien Hirst, nem Gabriel Orozco, nem Teresa Margolles, nem a já imensa e crescente lista de artistas o são de fato. E isto não o digo eu, dizem suas obras por eles“.

Para os Estudantes

Como conselho aos estudantes, Avelina diz que deixem que suas obras falem por eles, não um curador, um sistema ou um dogma. “Suaobra dirá se são ou não artistas e, se produzem esta falsa arte, repito, não são artistas”.

O público ignorante

Lésper assegura que, nos dias que correm, a arte deixou de ser inclusiva, pelo que voltou-se contra seus próprios princípios dogmáticos e, caso não agrade ao espectador, acusa-o de “ignorante, estúpido e diz-lhe com grande arrogância que, se não agrada é por que não apercebe“.

“O espectador, para evitar ser chamado ignorante, não pode dizer aquilo que pensa, uma vez que, para esta arte, todo público que não submete-se a ela é imbecil, ignorante e nunca estará a altura da peça exposta ou do artista por trás dela.Desta maneira, o espectador deixa de presenciar obras que demonstrem inteligência”.

Finalizando

Finalmente, Lésper sinaliza que a arte contemporánea é endogámica, elitista; com vocação segregacionista, é realizada para suaprópria estrutura burocrática, favorecendo apenas às instituições e seus patrocinadores. “A obsessão pedagógica, a necesidade de explicar cada obra, cada exposição gera a sobre-produção de textos que nada mais é do que uma encenação implícita de critérios, uma negação à experiência estética livre, uma sobre-intelectualização da obra para sobrevalorizá-la e impedir que a sua percepção seja exercida com naturalidade“.

A criação é livre, no entanto a contemplação não é. “Estamos diante da ditadura do mais medíocre”

fonte: Vanguardia


Conferência proferida por Avelina Lésper:


domingo, 26 de janeiro de 2014

''Corrói-te e persegue-te o espectro da angústia''

Justo Jorge Padrón. Extensão da Morte. Editorial Teorema, 2000., p. 35

água lustral

água do baptismo
Powered By Blogger