São vermelhos os montes e os meus irmãos andam no meu cérebro,
como se Jesus não tivesse sido crucificado à luz das estrelas,
que não têm medo das crueldades da minha alma, da alma
que enterrei num vale quando nem sequer era nascido, naquele tempo,
em Abril, o mês iracundo, que lava as pedras
e as torna em lousas de sepulturas, sobre as quais se encolhem as
companheiras da minha solidão,
com rostos lívidos, enquanto o vendaval lhes vai rasgando os olhos
no brilho mortiço da Lua distante.
Para quê estes dias, para quê a morte,
para quê tudo aquilo de que não gosto, o arbusto
e as flores na boca do burro e o grito
dos meus membros no Outono e a lida dos camponeses
e a glória do sofrimento com que a minha mãe me sobrecarregou ao
morrer,
oprimida pelos donos, sempre bêbados, da fábrica de cerveja na margem
do lago, que devora os meus mortos
sob o riso das estrelas.
Eu não fiz nada que pudesse prejudicar a vossa felicidade, nada,
senão escrever uns versos que fizeram chorar o meu irmão
e despertar na minha irmã - com as flores do vento de Março -
o espinho do ciúme, não comi nada
que tivesse faltado na vossa mesa, não bebi nada que cheirasse aos
vossos casamentos nem
ao cantar dos celeiros, a que eu já não posso voltar, porque
toquei o sino errado na margem do rio, que leva ao encontro
da minha aflição os crânios vazios da imortalidade,
todos os dias, uma manhã após outra, em silêncio, como seu me
tivesse desfeito em cinza, antes
de ter acordado na carne primaveril destas cidades.
Em que é que eu penso quando vejo as ruas vazias, as janelas dos
homens e das mulheres
que tanta putrefacção beberam que Deus terá de te proteger,
que despedaçaram o teu verde e o teu cinzento e o negro dos rios,
que não enalteceram a tua fonte nem a tristeza das tuas noites,
em que, com cada pedra e com cada rã, te despenhaste
no esquecimento! No esquecimento! No desespero
das raízes!
Já não vejo nenhum rosto que eu possa amar, nenhuma carne
que traga prazer ao meu anseio nem nenhuma morte
que satisfaça o meu estar só...Os campos estão vazios! As casas
estão roxas de velas! As portas rangem o seu desdém na tua fadiga
quando
tu regressas a qualquer boca depravada que possui um campo,
uma macieira, uma vaca, um pedaço de relva
te amaldiçoa...
E quando queres partir não sabes para onde!
E quando queres beber água, estás no deserto!
E quando queres mendigar, a imundície da sua riqueza já te
estrangulou!
E quando buscas a tua sepultura, trazem-te uma travessa cheia de
beleza!
...Já não vejo nenhum rosto...Só o barro negro e em decomposição
das suas enfermidades e a ira que transforma em pó a sua vida.
Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 113-117