terça-feira, 24 de março de 2015


PREFÁCIO


Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
— Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes —
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos.
— Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
                  — Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
Traziam sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros —
comovidos, difíceis, dadivosos,
                           ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
                        — E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva — tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

— E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente
até uma baía fria — que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
                                             de beleza.

In A Colher na Boca in Ofício Cantante, Assírio & Alvim, Lisboa, 2009
"a morte faz do teu corpo um nó que bruxuleia e se apaga,
e tu olhas entre as coisas pequenas
e para onde olhas é essa parte alumiada toda"


 Herberto Helder, A Morte Sem Mestre, 2014.

domingo, 22 de março de 2015

“Não me queiram converter a convicção: sou lúcido! Já disse: sou lúcido. Nada de estéticas com coração: sou lúcido. Merda! Sou lúcido.”

Fernando Pessoa/Álvaro de Campos

Poema da eterna presença


Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva,
de olhos postos no céu, e reparo, com alegria,
que as dimensões do infinito não me perturbam.
(O infinito!
Essa incomensurável distância de meio metro
que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!)

O que me perturba é que o todo possa caber na parte,
que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote.

O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim,
de mim, pobre de mim, que sou parte do todo.
E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas
porque eu não sou braço nem sou perna.

Se eu tivesse a memória das pedras
que logo entram em queda assim que se largam no espaço
sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair;
se eu tivesse a memória da luz
que mal começa, na sua origem, logo se propaga,
sem que nenhuma se esquecesse de propagar;
os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que engoliram
continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que galgaram sobre a
Terra.

Mas não esqueci tudo.
Guardei a memória da treva, do medo espavorido
do homem da caverna
que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz;
guardei a memória da fome;
da fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei ao mundo;
guardei a memória do amor,
dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras,
que me fez desejar a mulher do próximo e do distante;
guardei a memória do infinito,
daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos,
em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado,
à formação do Universo.

Tudo se passou defronte de partes de mim.
E aqui estou eu feito carne para o demonstrar,
porque os átomos da minha carne não foram fabricados de propósito para mim.
Já cá estavam.
Estão.
E estarão.

António Gedeão, in 'Poemas Póstumos'
"És tu a Primavera que eu esperava,
A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante"

Sophia de Mello Breyner

O POEMA ENSINA A CAIR


O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.

Luiza Neto Jorge
b.
aprende a falar — diz
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos. põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. então, falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue,
de assombro em
assombro.

Manuel Gusmão

sexta-feira, 20 de março de 2015

OS INSOLENTES
"Maud ficou uns momentos à janela, com os braços estendidos sobre o parapeito, de cabeça pendurada, numa atitude semelhante semelhante à de uma criança ociosa. Mas estava pálida, e parecia mortificada pelo aborrecimento.
Quando se voltou para o quarto e fechou a janela o ruído do vale parou bruscamente, como se se fechasse a comporta num rio."
-"Os Insolentes"
- Marguerite Duras

quinta-feira, 19 de março de 2015


OLHOS AZUIS CABELO PRETO
"Excepto desse olhar há dias, já não se sabe, não acontece nada a não os movimentos do mar, as passagens da noite os choros.
Dormem, desviados um do outro.
É ela quem habitualmente cai primeiro no sono. Ele vê-a afastar-se, partir no esquecimento do seu quarto, da história. De todas as histórias."

-"Olhos Azuis Cabelo Preto"
- Marguerite Duras
DEZ HORAS E MEIA NUMA NOITE DE VERÃO
"Maria vive uma alegria feliz. Atrevem-se, agora. Enquanto a polícia passa, continuam a olhar-se. A expectativa resolve-se por fim, liberta. De todos os pontos do céu, de todas as ruas, daqueles que dormem, ali perto. Bastava-lhe o céu, a ela bastava-lhe o céu para adivinhar que era Rodrigo Paestra.
O horizonte surge por fim lavado. A tempestade lavou-o. Como uma foice, corta o trigo. Um vento frouxo seca as ruas. O tempo amansa, um belo,luminoso dia vai nascer. A noite corre ainda, total. São talvez possíveis soluções para as soluções para as incertezas da consciência. Tudo o leva a crer."

-"Dez Horas e Meia Numa Noite de Verão"
- Marguerite Duras
“I know that in my own work the best things are the things that just happened images that were suddenly caught and that I hadn’t anticipated. We don’t know what the unconscious is, but every so often something wells up in us. It sounds pompous nowadays to talk about the unconscious, so maybe it’s better to say ‘chance.’ I believe in a deeply ordered chaos and in the rules of chance.”


Francis Bacon quoted in 'Unnerving Art', article by Michael Kimmelman, New York Times Magazine August 20, 1989.
“Artists are people driven by the tension between the desire to communicate and the desire to hide.”
― Donald W. Winnicott
"A herdada faculdade de fingir criou a "pessoa", a figura atrás da qual nos escondemos, - a figura que anda, pelo mundo, em nosso nome".

- Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro.

CIDADE SOZINHO


"Tudo aqui tem o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
- a luz presa debaixo das meias -
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino jesus
sobre o decote, e a mão - a minha mão -
percorre o náilon.
Agora as páginas
do diário devolvem-me a esta noite,
fria noite num quarto frio.
Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre."

-"Antologia"
- José Ángel Cilleruelo

quarta-feira, 18 de março de 2015

DO PORVIR


"O mundo vai abrir-se - lento e calmo -
mais uma vez abrir-se - ainda é tempo -
para de ti e tudo e todos receber
o que - lento e calmo - o mundo exige
Para que tudo quanto há nele mergulhe
o mundo vai abrir-se - lento e calmo -
Grandes e numerosas são
as águas - ao redor do homem
Peuqenos e raros são
os barcos - que de nós se aproximam
As horas em que todo
o mundo cessa -
É então que se renova
em nós a aliança."

-"A Aliança"
- Raul de Carvalho
- Edição do Autor, 1958
“Psychoanalysis is in essence a cure through love.”

Sigmund Freud, Letter to Carl Jung (1906)

IMENSIDÃO DA NOITE


A meio da noite surge por vezes
uma pergunta, e a noite agiganta-se,
e é imensa a noite até à angústia.
Como um barco sem luzes, silencioso,
assim sulca o nosso quarto tanta sombra
que parece sem limites o mundo.
Rodeia-nos o vazio, é água escura
mais densa ainda do que o sangue. Nada se ouve,
apenas um chapinhar de fundo lodo
lá no mais profundo dessa água:
é o nosso coração. Mas a noite
não cessa de crescer e é já um olho
de insuportável nudez que fita
o nosso terror. E essa é a pergunta,
e a noite sabe-o e olha então
(só às vezes) o desamparado ser
que somos, com ternura, e o sono regressa.
E a infinita gruta que é o universo
novamente resplandece.

Abelardo Linares

(tradução de Vasco Gato)
"- É artista? pintor? poeta?
- Não; sou simplesmente um atónito.
[...]
- Para mim, [...] o facto essencial e pasmoso das coisas é elas realmente serem. O facto de qualquer coisa ser é milagroso. O outro facto milagroso é estar eu aqui, a ter consciência que elas são"


- Fernando Pessoa, "O Mendigo", in "O Mendigo e outros contos", Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p.21.

terça-feira, 17 de março de 2015



«-A tua dor é superficial e tempestuosa. A do homem grande é serena e profunda...como o céu estrelado. Mas...porque não levaste um pouco mais longe o teu aviltamento?»


José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 41

ilógico

''régia mesquinhez''

«O que me salva é ser doido, por isso a minha razão não tem costumes!»


José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 35



«E se tiras conclusões de tudo, acabarás por não compreender nada. Ora desenrola ainda as orelhas, e ouve mais este pequeno discurso: Comparações, conclusões, inferências, induções, deduções, - são hábitos do nosso espírito; ou antes: da nossa razão.»

José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 34

«Ora ouve: Quando se fala, já se pensou ou pensar-se-á.»


José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 31

«-Tu não queres ser idiota: Convém-te fingir sê-lo quando pretendes exasperar-me.
-Isso é cá comigo.
-É contigo..., o quê? exasperar-me? E comigo..., não?
-Se te exasperas...,é contigo: Não tenho nada com isso. Se te exaspero, é comigo: Não tens nada com isso. Queres coisa mais clara? De resto, ouve: Eu posso fingir-me idiota, saber-me a fingir, sem por isso deixar de ser idiota. Não sabes que os homens que se fingem doidos são doidos? E só o não são no momento em que se fingem doidos, porque então querem ser o que são; ora quando se quer ser o que se é, já se não é o que se é.
-Tu fazes-me perder a cabeça! Explica-te melhor.
-Mas essas palavras não exprimiam pensamentos?»



José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 31


«Se queres que eu diga qualquer coisa que interesse, interessa-te por qualquer coisa que eu diga: Por culpa tua, eu não sou para ti senão ódio, ou o teu amor, ou o teu cansaço, ou a tua indiferença, ou a tua desconfiança...embora seja preciso acabar com tais equívocos!»



José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 30
«-A acção é tua. Portanto, é contigo.
-Cala-te, idiota! Estou farto dos teus sofismas pueris...Anda, fala!»


José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 30
«Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse movimentava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam.»


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 9

Dead flowers


Amigos de Quem


Lá voltaste a puxar para ti o lençol
Como que a privar meus sonhos do último raio de sol
Amigos são sobras do tempo
Que enrolam seu tempo á espera de ver
O que não existe acontecer

Mas teimas em riscar o fim do meu chão
Nunca medes a distância
Dos passos á razão
Meus votos são claros na forma
Desejo-te o mesmo que guardo p'ra mim
E o que não existe não tem fim

É só dizer e volto a mergulhar
Voltar a ler não é morrer é procurar
Não vai doer mais do que andar assim a fugir
Deixa-te entrar para tentar ou destruir

Mas quem te ouviu falar
Pensou tudo vai bem
Só que alguém vestiu a pele
Que nunca serve a ninguém
E a dúvida está do meu lado
Mas eu não consigo olhá-la e achar
Ser esse o lado em que ela deve estar

Erguemos um grande castelo
Mas não nos lembramos bem para quê
E é essa a verdade que se vê

É só dizer e volto a mergulhar
Voltar a ler não é morrer é procurar
Não vai doer mais do que andar assim a fugir
Deixa-te entrar para tentar ou destruir
Mas sem fingir
Sem fingir
Sem desistir

Clã

Pequena Morte

(...)


«Vira-me do avesso, amor
Corta-me aos pedaços
Eu cresço e desapareço
Seguindo os meus próprios passos
Eu cresço e desapareço


Não me abandones nesta margem
Eu sou parte da viagem.»

Clã

Madame Tussaud's spare heads - doll parts


Narciso Sobre Rodas



ainda me lembro de ti.
tão cheio de ti mesmo.
passeando tua esfinge
de príncipe de alta casta.
alguém que já nem finge
que amar-se a si mesmo basta!

havia sempre alguém
a prestar vassalagem
e a render-se à tua imagem
de Narciso bem penteado
tirando da garagem um coração cromado!

julgavas que a vida era um chevrolet vermelho
que a beleza bastava
para seres do mundo lago mas quebrando-se o espelho
não aguentaste o estrago.

E eu que verti uma lágrima
Por não merecer o teu olhar
Pergunto a mim mesma como pude um dia
por ti chorar.

narciso, sobre rodas vem
narciso
sobre rodas

e agora encontrar-te pergunto a mim mesmo
como pude um dia sequer amar-te
e agora encontrar-te pergunto a mim mesmo
como pude sequer amar-te

Clã

segunda-feira, 16 de março de 2015

protagonista regiana

UNO
"Os olhos dela são como dois lagos
recuperados do sânscrito à sombra do lótus
Cantarei nas margens sem mover quadris
na imóvel dança dos sufis
«Bom dia, meu senhor!»
e a loucura da manhã amadurece o amor"

-"Amor Único"
- António Barahona da Fonseca
«(…) O que eu quis significar com reforma da mentalidade não é uma modificação no conteúdo das crenças, e sim na forma do pensamento dos homens, isto é, a passagem da mentalidade catecismal e dogmática (que se encontra igualmente nos dois campos opostos, entre homens da direita e entre homens da esquerda, entre vermelhos e azuis) para a atitude de espírito indagadora e crítica - para a do livre exame, para a da correcção incessante, para a da discussão aberta, para a da investigação contínua.»

- António Sérgio, História de Portugal – Introdução Geográfica, 1941.

domingo, 15 de março de 2015


«O FARTURAS - Eu tenho morrido mil vezes. Há anos que morro todos os dias mais um bocadinho. E gostava de morrer todo de uma só vez, com um enfartamento.»


Miguel BarbosaOs Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 31

Margaret Monck, Man, Quayside with Bird Cages (Portugal) 1930 s.



«O PÉRICLES (gritando) - Vejo vampiros!
O SUICIDA - Onde, ó Péricles? É no ar?!
O PÉRICLES - Sim, no ar. Andam vampiros no ar. À nossa volta.
O SUICIDA - São moscas (faz menção de apanhar uma que passa.) Sou o Rei! O imperador das moscas. (Abre a mão lentamente como se tivesse medo que ela fugisse). Domino-as, apanho-as no ar. Escravizo-as. Nunca falho. Tenho a mão. A mão para as moscas...E só as largo quando quero. Separo-as do mundo, do sol, da vida. Foi o que me fizeram a mim. Fechado num quarto escuro, sem janelas, a morrer de fome. Maldito mundo, malditas pessoas, e como tinha medo daquela maldita miséria! O mundo, as moscas, tudo contra mim!...(Puxa duma corda). Vou-me suicidar.»


Miguel BarbosaOs Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 29

«Há coisas que, se a gente não souber, não doem. O que não se sabe não dói...»

Miguel BarbosaOs Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 28

«-As máquinas são os braços, as pernas, o pensamento do homem. Satisfazem-no até sexualmente»

«Deixamos de sentir fome, é verdade, mas continuamos a tê-la»


 Miguel BarbosaO Tecni-Homem. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 16

''riso amargo, pungente''

«Pior que matarem-te foi terem-te roubado a esperança.»

Miguel BarbosaO Tecni-Homem. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 16

Romy Schneider on the set of L’Enfer (1964)


apoteose


«Por momentos somos levados a suspeitar que Miguel Barbosa é orientado por um sentido de fatalismo ontológico como se, à semelhança dos heróis das tragédias gregas, às personagens fosse inútil a luta. E resta-lhes não o riso mas a acção que parece destinada a provocá-lo. É um teatro incómodo porque, se aponta problemas existenciais e não lhes dá solução, também não deixa adivinhar uma estrutura ética, social, estética, interior ao drama, substantiva à acção que sugira a esperança.»


Isabel Clemente

in Miguel BarbosaOs Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 16

''consciência da humilhação''

sine qua non

catársis

«A fome inexplicável, por exemplo. A fome que não tem sentido apreensível, justificável:
«De que espécie é a tua fome? É uma fome assim...muito grande?
-É fome, fome...Só fome.
-Porque não dormes de barriga para baixo? Devias dormir de barriga para baixo...»



Miguel Barbosa. Os Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 14

Um Crime À Minha Porta

Um Crime À Minha Porta
Vim da rua de matar alguém,
E foi assim que eu matei por bem.
As razões:
Não há razões!
É que eu não tenho mais amor pra dar,
E a ninguém!
Quero não amar p'ra não cair,
Não vou dar,
E não vou ter,
A mesma forma de estar.
Tudo bem vá durar um dia,
Faça agora tudo o que eu fizer.
Quero estar voar e só contigo,
Mas só enquanto eu quiser.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Vim da rua de matar alguém,
Agora espero o sol.
Agora espero só.
Quem não dá para ter quem não dá,
Pra dar um brilho ao ego,
E ter assim o cheiro do que um dia,
Seria,
O nosso dia,
Daquilo que eu faria.
Agora sinto a dor,
Agora sinto a dor.
Por quem matei por ter feito amor.
Qual dor.
Eu só faço o que eu quero.
Eu não penso em ninguém,
Por pensar.
Meu nome é partir,
E voltar,
E tudo por quem?
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Levo-me ao inverno,
Pela mão da minha culpa,
Tenho a força para ser mais forte,
E roubo-te a desculpa.
Eis a preocupação,
Com uma qualquer situação anormal.
É triste o fim ser igual,
Para nós.
Estar nas nossas mãos,
O evitar simples,
Da dor.
E qualquer dia me traz,
Até mim.
Qual a minha culpa qual,
A sentença?
Da lição não tiro nada,
Mas que o crime só compensa.
E se eu matar,
Logo pela madrugada?
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Eu não sou normal.
Eu não quero ser igual.
Isso é virar um homem,
Que eu não sou.
(Sou) ouro em teu olhar.
Serei o pai do teu prazer até ao dia,
Em que o amor for para nós:
A ultima fatia.
E se o trago é difícil,
E a veia entope,
Só nos resta a nós os dois:
A hemorragia.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.
Sobre esta forma de amar,
Vai de uma forma de estar.

Pára de Olhar Para Mim

Ao ver meu quarto aberto
Alguém entrou
Só no acender da luz
Vê que eu não estou
Eu jurei
Quando eu voltar
Ninguém mais vai entrar
Para sempre eu vou esperar por ti
Pára de olhar para mim
Deixa-me ser alguém
Tão cedo não vais ver ninguém
Ao ver meu quarto aberto
Alguém pensou
Foi para mim que alguém assim o deixou
Para quê mentir
Se eu bem sei
Que não há ninguém igual
Para sempre eu vou esperar por ti
Pára de olhar para mim
Deixa-me ser alguém
Tão cedo não vais ver ninguém
Guardar cá dentro amor
Não nos faz nada bem
Quando cá fora o ódio quer entrar
Fui morar pra paixão
Pois eu sei
Que não há melhor lugar
Para sempre eu vou esperar por ti
Pára de olhar para mim
Deixa-me ser alguém
Tão cedo não vais ver ninguém
Eu só quero dar-te alguém melhor

sexta-feira, 13 de março de 2015

"Escreve-se para que algo aconteça
sem acrescentar nada ao mundo"


- António Ramos Rosa, As Palavras.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Coffee girl


«T: Então o que é que queres? Foder?
Ou queres que te bata?
L: Eu quero qualquer coisa real!
T: Então vou começar a gritar: estúpida e fedorenta de
merda
cona nojenta
puta de puta
puta cancerosa
racha pestilenta
balde de cancro
rio de aftas
porque é que não pões o dedo no iogurte
e o metes depois pela cona acima
para poderes finalmente ver-te livre desses fungos
e nós podermos, finalmente, dar mais uma queca!
E depois começas tu a gritar para mim:
Estupor de merda, cara de merda...
L: Eu é que decido o que te quero gritar,
mas eu não te quero gritar mais nada
porque estaria a desperdiçar o meu tempo e a minha
voz
T: Nem sequer tens voz
L: Caralho!
T: OK
     Cona!»

Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 169/170

«T: Queres dizer que eu não te consigo dar esse
sentimento?
L: Porque é que tens que reconciliar tudo com tudo?
T: Acabaste de dizer que destruo tudo
L: Alisas sempre as rugas
é essa a tua maneira de reconciliar
e de destruir
T: Amo-te
L: Isso é o que todos dizem
T: Estamos a falar de sentimentos ou de arte?
L: Outro cliché»


Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 166





Uma estalada

T: O resto é silêncio
L: Não. Sentimento.
T: Magoei-te?
L: Não saberias
T: Magoar?
L: Sentir
T: É a mesma coisa, para mim
L: Caralho
T: OK
     Cona
   
Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 164

«T: Mas pode-se sonhar que se sonha
L: Também se pode dizer que se diz qualquer coisa
T: É pena
Pensava que estávamos a encetar uma conversa
 interessante
L: Não estás a dizer nada
Estás só a destruir coisas
T: É a mesma coisa
L: Sim, é tudo a mesma coisa:
é nada
Uma conversa interessante, um sonho, ou um buraco
negro
para o qual és sugado
Quero um bebé!»

Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 163

«L: Bateste-me! Não me digas que já estás a esquecer!
T: Pediste-me! Não me digas que te esqueceste!»


Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 157
«L: Se eu não soubesse como chorar
também seria muito infeliz»

Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 149


«L: Estava a ler uma coisa que dizia
mulherzinhas mexem o chá com as maminhas
e a palavra política
parece dizer sempre policiar»


Gerardjan Rijnders Buraco Negro. Campo das Letras, 1999, p. 148
"O meu livreiro dá-me conselhos. Ele conhece-me, sabe o género de livros de que eu gosto. O meu marido, esse, lê coisas científicas. Não gosta de romances, lê coisas muito difíceis de compreender... oh, não é que não gostasse de ler... mas neste momento... durmo...
Sou alguém que tem medo - continua Alissa - medo de ficar abandonada, medo do futuro, medo de amar, medo da violência, do número, do desconhecido, da fome, da miséria, da verdade."

-"Destruir, Diz Ela"
- Marguerite Duras 
TEMPO APRAZADO
"Coloca uma palavra
no vale da minha nudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra"


-"O Tempo Aprazado"
- Ingeborg Bachman


Silêncio

RICHARD
Não te compreendo

RITA 
Como se quisesses

Silêncio

RICHARD
Eu quero compreender-te

RITA
Tu nem sequer sabes o que isso quer dizer

Silêncio

RICHARD
Eu quero que tu me expliques
Aquilo que eu quero
Quando digo
''Eu quero compreender-te''


Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 131

«Atreve-te de uma vez a dizer algo
Atreve-te de uma vez a nada dizer»


Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 129

ramo de peónias

''No lamento sou feliz''


Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 108

língua de trapos

«RICHARD
Eu não te acuso
Tu partes do princípio
Que és acusada»

Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 99

«E se estivesses só
Mas não o sentisses»


Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 98

apoquentação doentia


«RICHARD
Não tenho lágrimas
Não faço ideia onde elas estão
Não saberia onde ir buscá-las
Falámos tanto que desapareceram»



Gerardjan Rijnders. Belo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 94

«Portanto, tu queres...

RITA
Eu quero que continues a falar!

RICHARD
Tu queres música

RITA
Quero que continues a falar

RICHARD
Tu queres música
Tu queres um enterro»


Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 91/2

«RICHARD
Good morning Vietnam!»

Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 86
«RICHARD
Um homem ama uma mulher
Ela ama-o
Mas ele não pode mais fodê-la
Só massajar
Então não dá vontade de chorar?

RITA
Sim
Isso
''Não pode mais fodê-la''
É nisso que deu então
Todos os anos que estiveram juntos

RICHARD
Sim

RITA
Sim?

RICHARD
Tenho frio

RITA
Muita gente tem frio



Gerardjan RijndersBelo? Buraco Negro. Câncer. Campo das Letras, 1999, p. 82
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