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domingo, 5 de fevereiro de 2023

 Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!

Fernando Pessoa

domingo, 2 de outubro de 2022

 SOLENEMENTE


Solenemente
Carneiríssimamente
Foi aprovado
Por toda a gente
Que é, um a um, animal,
Na assembleia nacional
Em projecto do José Cabral.

Está claro
Que isso tudo
É desse pulha austero e raro
Que, em virtude de muito estudo,
E de outras feias coisas mais
É hoje presidente do concelho,
Chefe de internormas animais,
E astro de um estado novo muito velho.

Que quadra
Isso com qualquer espécie de graça?
Nada.
A Igreja Católica ladra
E a Maçonaria passa.

E eles todos a pensar
Na vitória que os uniu
Neste nada que se viu,
Dizem, lá se conseguiu,
Para onde agora avançar?
Olhem, vão p’ra o Salazar
Que é a p… que os pariu.

1935
Fernando Pessoa

domingo, 12 de setembro de 2021

 “Tudo o que sonho ou passo, 

 O que me falha ou finda, 

 É como que um terraço 

 Sobre outra coisa ainda. 

 Essa coisa é que é linda.” 


 Fernando Pessoa

sábado, 10 de julho de 2021

 «A alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos e em nenhum.»

Fernando Pessoa

« ou o seu Tudo ou o seu Nada »

 Fernando Pessoa

quarta-feira, 16 de junho de 2021

«Morreu em flor como as virgens verdadeiras…» – dizia Fernando Pessoa, aludindo a curta duração da revista «Orpheu»

quarta-feira, 7 de abril de 2021

A morte chega cedo,

 A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

11-9-1933

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 

 - 175.

 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

 Revista com um “Balanço do ano literário de 1982” assinado por Eduardo Prado Coelho, abre com as seguintes linhas: 

''O ano de 1982 será assinalado por um acontecimento maior: a publicação dos dois volumes que constituem o material susceptível de ser integrado no projecto do Livro do Desassossego que Fernando Pessoa foi elaborando durante longos anos da sua vida. Esta obra, que assume o estatuto de uma obra que vive do seu próprio adiamento, que se sustenta como des-obra, como impossibilidade de qualquer obra, como supremacia do fazer sobre o resultado, da produção sobre o produto, não podia deixar de suscitar as reservas daqueles que possuem uma imagem feita de Pessoa. Mas, por isso mesmo, constitui um desafio muito vivo colocado a todos os que se interrogam ainda sobre a obra de Pessoa. ''(Coelho, 1983)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

sábado, 23 de janeiro de 2021

 Fernando Pessoa

Levas uma rosa ao peito

Levas uma rosa ao peito

Levas uma rosa ao peito

E tens um andar que é teu...

Antes tivesses o jeito

De amar alguém, que sou eu.

s.d.

Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973). 

 - 42.

 

Fonte: http://arquivopessoa.net/textos/2451

sábado, 5 de dezembro de 2020

Fonte da publicação

Prémio Pessoa 2011 ou a ideia de que o literário nunca é apenas literário!

É com certeza um dos prémios que se reveste de maior importância simbólica para Eduardo Lourenço. De facto, se o Prémio Camões (1996) , o galardão mais importante de toda a literatura em língua portuguesa, o Prémio Vergílio Ferreira (Universidade de Évora, 2001) ou até o Prémio António Sérgio no já longínquo ano de 1992 constituiram distinções que muito sensibilizaram o ensaísta, não restam dúvidas de que Fernando Pessoa é o autor com quem Eduardo Lourenço tem mantido desde há largos anos (registe-se que, em Heterodoxia I, publicada em 1949, há já uma referência explícita ao poeta de Ode Marítima) um permanente e inacabado diálogo. De Pessoa terá Eduardo Lourenço retirado múltiplas lições, a menor das quais não será certamente a ideia de o literário nunca é apenas literário.
Ler Eduardo Lourenço não poderia deixar passar em claro este feliz acontecimento e por isso transcreve em seguida um excerto de uma entrevista realizada há largos anos pela jornalista Inês Pedrosa e publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 6/XII/1986, pp. 2-6. Para além do interesse das declarações do ensaísta sobre Fernando Pessoa, Ler Eduardo Lourenço recorda que Inês Pedrosa é, hoje, a directora da Casa Fernando Pessoa em Lisboa.

Mário Soares e Francisco Pinto Balsemão membros do Júri do Prémio Pessoa
(foto Expresso)


«Jornal de Letras – Eduardo Prado Coe­lho escreveu que Fernando, Rei da Nossa Ba­viera se pode, e deve, ler como um roman­ce, afirmação que eu subscrevo inteiramente. Concorda?

Eduardo Lourenço – Bom, cada um faz os romances que pode... Naturalmente, o que eu queria fazer era um romance, um verdadeiro romance. De maneira que aquilo que há em mim de imaginativo, ou de imaginante, possi­velmente se transfere para essa esfera de or­dem crítica, em que os autores servem ao mes­mo tempo de objecto de estudo no sentido tra­dicional e de objecto de projecção. Lembro-me de o meu amigo Carlos de Oliveira me di­zer, a propósito do Pessoa Revisitado, que não sabia se aquilo correspondia realmente ao Fernando Pessoa, mas que aquilo tinha muito a ver comigo. Quer isto dizer que, já no Pes­soa Revisitado, alguém que me conhecia tão bem como o Carlos de Oliveira pensava que era o meu romance.

(...) A mitologia de Fernando Pessoa comporta dois aspectos diferentes. Fernando Pessoa torna-se emblemático numa perspectiva nacionalista clássica, mesmo se isto corresponde a uma leitura não muito certa de Mensagem. Mas, em todo o caso, há um suporte para que Pessoa se tenha tornado um emblema de um novo sonho de Portugal, numa altura em que Portugal não tem perspectivas realistas de instituir uma imagem positiva de próprio que seja grata ao sonho português de ter sido um grande país. Portanto, a Mensagem vai ser lida como uma espécie de Lusíadas do século vinte, quando, em última análise, ela é anti-Lusíadas.

P. – Anti-Lusíadas em que sentido?

R. – Ela é anti-Lusíadas porque Os Lusíadas são um poema escrito sobre uma acção real, a exaltação de um facto real de importância nacional. E a Mensagem é um poema puramente onírico. Onírico, antes de mais em relação ao passado, porque todos os heróis ou figuras emblemáticas de Mensagem são símbolos de maneiras de estar no mundo e de representar o ser português ideal, mais do que personagens que agiram na História desta ou daquela maneira. Por outro lado, o livro termina com a constatação de que o presente de Portugal é um presente de Hora Zero, a partir do qual tem que haver uma espécie de renversement. Portanto, não tem muito a ver com Os Lusíadas. Só tem a ver na medida em que, na ordem do imaginário de Fernando Pessoa, Mensagem se destina a substituir Os Lusíadas, porque Os Lusíadas já não funcionam para o Portugal que existe. Portugal agora tem mais Sonho que Realidade: o poema da realidade está cumprido, já está no passado. No espírito de Fernando Pessoa, Os Lusíadas são definitivamente reenviados para o Passado com Mensagem – por isso mesmo ele se quer Super-Camões, o que quer dizer que ele integra a obra de Camões e a supera. A esse título, a pouco e pouco, foi sendo tomado à letra, e o Fernando Pessoa tornou-se o novo Camões.


P. – Mas, no fundo, não procura Fernando Pessoa uma Ilha dos Amores, como n’ Os Lusíadas?


R. – Dos Amores não direi, porque em matéria de amores o Fernando Pessoa não tinha exactamente o mesmo tipo de perspectiva de Camões. Aparentemente, pelo menos, porque o Jorge de Sena insinua que sim. Mas a habitual mitologia amorosa e erótica construída em volta de Camões é a do homem das diversas chamas, diversos amores, entendendo-se por esses amores, em princípio, amores femininos. Ora, Fernando Pessoa não parece ter ardido em nenhuma chama de amor, mas na chama do Não-Amor. O que há menos em Fernando Pessoa é a mulher. Portanto, é uma experiência extremamente dolorosa, mais dolorosa do que a da paixão de amor, correspondida ou não-correspondida.


P. – Terá Pessoa sido de facto, como diz Eduardo Lourenço, um abandonado de amor? E porque não um voluntário auto-excluído por demasiado consciente?


R. – Pouco me importam quais tenham sido as razões de ordem genealógica, psíquica ou psicanalítica. Essa ferida está inscrita nos poemas. As causas podem-se discutir indefinidamente. Não há dúvida de que a interpretação que ele, Fernando Pessoa, dá, sobretu­do agora através das páginas mais precisas do Livro do Desassossego, é a dessa orfandade real, mítica. Mítica, porque a mãe existiu até 1925. A mãe não o parece ter desamado no sentido literal do termo. Mas ele é que viveu essa não-presença efectiva, importante, da sua adolescência. Pessoa está em Portugal e a mãe está fora; ou então foi o segundo casa­mento dela que o marcou, como João Gaspar Simões foca. De qualquer modo, essa ideia de se representar a si próprio, num dos seus se­mi-heterónimos, como alguém a quem a mãe morreu, quando a mãe dele está viva, signifi­ca que ele se autopsicanalisou antes da psicanálise existir. Portanto, a realidade erótica de Fernando Pessoa não me parece ser do mesmo estilo da que conhecemos para o Camões, embora nós não conheçamos muita coisa do Ca­mões, afinal de contas não conhecemos nada. Não sabemos se essa espécie de don juanismo de Camões não será do mesmo estilo a que eu chamo o Não-Amor do Fernando Pessoa... Afinal, trata-se de uma espécie de impossibilidade permanente de Camões de aderir a um amor real. Inventaram-se musas diversas para justificar esses poemas. Mas pode ser simples­mente um trabalho onírico hiperpetrarquiano, sem suporte concreto.


P. – E já estamos a entrar na irresolúvel questão das sinceridades versus autenticida­de...


R – ... que é uma questão que não tem verdadeiramente sentido na ordem da escrita, do ficcional e do poético. É uma questão de nível psicológico ou psíquico. O que importa é o texto.


P. – O professor Eduardo Lourenço repe­te isso várias vezes ao longo deste livro, mas depois diz assim, taxativamente: «O autor da Tabacaria e dos fragmentos de Ode à Noite não foi especialmente vocacionado para o que chamamos felicidade.»


R. – Nós aprendemos isso lendo-o. Mas o facto de Pessoa não ser vocacionado para a fe­licidade também não é uma originalidade em absoluto. Praticamente toda a nossa lírica é uma glosa do desejo insatisfeito. Pos­sivelmente, toda a lírica o é. Por conseguinte, essa insatisfação não corres­ponde àquilo que de uma maneira geral se chama um destino vocacionado para uma cer­ta normalidade, uma certa felicidade. Agora se me pergunta o que é ser-se vocacionado pa­ra a felicidade... Bom... Certas pessoas vivem a sua relação com a existência, com os outros, com o mundo, de uma maneira mais harmo­niosa do que outros. Pertencem a essa espécie de animais felizes que dizem «qu’ils sont bien dans leur peau». Há o caso de um político proeminente que diz «qu’il se sent bien dans sa peau»... E afinal é isso o normal, no fundo to­da a gente nasce para estar bem dans sa peau. O que deveria ser considerado anormal é que as pessoas não se sintam bem naquilo que são. E aqueles que ressentem essa fractura interna, com mais profundidade são os poetas, os criadores. Sobretudo os poetas da Moder­nidade. Porque houve outras épocas em que os criadores não parecem ter tido necessidade de se sentirem particularmente infelizes para serem criativos. Não temos a ideia de que Bach tivesse tido uma existência particular­mente infeliz, mas o Bach pertence à idade clássica ou neoclássica da Modernidade. De­pois vem essa idade a que podemos chamar Idade de Depressão, em todo o sentido do ter­mo – depressão histórica, depressão por uma contradição profunda entre o tipo de existência que o homem moderno se fabricou, aquilo a que chamámos Romantismo. Os românticos sentem a obrigação de ser infelizes, mesmo que sejam extremamente felizes.


P. – Nesse sentido, Fernando Pessoa é o puro romântico.


R. – Ele próprio o diz. Se ele não fosse romântico, o que é que nós seríamos? Pessoa é, possivelmente com o Pascoaes, o nosso maior romântico.


P. – E simbolista, e só aparentemente mo­dernista.


R. – A minha relação com Fernando Pes­soa tem já muitos anos e muita reflexão. E, embora isso esteja anunciado nos textos mais antigos como uma hipótese, o que cada vez me parece mais relevante é o facto de que nós nos enganámos todos; na leitura, fizemos da excepção a anormalidade do caso Fernando Pessoa. E a excepção é a sua estridência modernista, que foi um momento extremamente breve na sua produção, após o qual ele regres­sou imediatamente aos seus antigos demó­nios. E o seu demónio é o demónio simbolista. É uma visão da existência sobre o fundo do nevoeiro, da ausência, do vago. O que não é vago é a escrita dele, mesmo quando ele é sim­bolista. O Marinheiro, mesmo nas suas pas­sagens mais ultra-simbolistas, é de uma lumi­nosidade que não tem comparação nenhuma na literatura portuguesa, e poucas em qual­quer literatura. E o que Pessoa está ali a glo­sar é a Ausência da Ausência da Ausência. E essa Ausência é presente no texto, de uma ma­neira muito forte.


P. – Assim como os heterónimos seriam a glosa de uma heteronomia mais funda. E a originalidade de Pessoa estaria…


R. – ...no facto de ele ser um carrefour, um cruzamento das várias possibilidades de se ser moderno, desde os fins do século deza­nove aos princípios do século vinte. Fernando Pessoa é modernista no sentido mais profun­do da consciência daquilo que é a ausência da Modernidade, ou seja, da morte de Deus, da perda de um Sentido para uma História que até então tinha Sentido. A própria criação do conceito de História em termos modernos visa recuperar um Sentido que tinha sido perdido em termos teleológicos. Ao mesmo tempo, Fernando Pessoa é profundamente antimo­dernista a todos os níveis. Não se tem notado muito, mas a aprendizagem de Fernando Pes­soa foi extremamente clássica, como clássica era a poesia inglesa de que ele mais gostava – incluindo os românticos, que ao nível da escri­ta eram perfeitamente clássicos, fascinados pela Grécia. Portanto, no imaginário de Pes­soa, a Idade de Ouro da Humanidade é a Grécia; não a Grécia de Nietzsche, mas a Grécia de Winckelmann, a Grécia de Goethe. O Mo­dernismo é o facto de ele querer apanhar to­dos os comboios, de não ser ninguém e por is­so estar disponível...


P. – Só marginalmente o seu interesse por Pessoa parece literário...


R. – O literário é que para mim nunca foi apenas literário. Foi isso o que me começou a separar, a nível teórico, da perspectiva crítica clássica da geração anterior à minha, que era a da Presença. Fundamentalmente, Régio por um lado. Simões do outro, porque sempre me considerei mais próximo do Casais Mon­teiro, naturalmente por ambos termos sido alunos de Filosofia. Para mim, a literatura é a expressão de alguma coisa mais, que no fundo não tem nome.


P. – Se bem entendo, o seu entusiasmo pelo que de indizível há na Literatura, partiu da constatação de que a Filosofia conduz a ca­tegorias, absolutos, enquanto que na ficção pura se recupera um sentido que discurso al­gum com pretensão à objectividade pode alcançar.


R. – Em última análise, eu também não faria uma distinção tão tranchante entre aquilo de que a Filosofia é a manifestação exterior e a Poesia. As duas têm a mesma fonte, a res­posta é que é diferente.


Como diz Platão, o que determina o desejo de filosofar é o espanto diante da realidade. Esse espanto interroga-se a si próprio e pede uma resposta. Essa resposta articulada pela norma ocidental chama-se, em geral, Filoso­fia. Esse espanto liricamente expresso, sem a preocupação de uma resposta, aberto, é Poe­sia. Mas as primeiras formas de Filosofia ex­primiam-se de forma poética. Parménides é um poema. No fundo, todo o poeta persegue sob a forma do onírico o mesmo desejo de en­trar em contacto com qualquer coisa que en­globa o Sentido geral da sua própria experiên­cia.


P. – E disso terá tido consciência Pessoa, como ninguém em Portugal.


R. – Sim, Pessoa até é um caso curioso, porque demonstrou um interesse intenso pela Filosofia no sentido de disciplina... Possivel­mente quis fazer um curso de Filosofia, vemos isso através dos numerosos extractos dos livros que ele lia. Nesse sentido, Fernando Pes­soa pertence igualmente a uma maneira clássica de encarar a Filosofia. A Filosofia devia dar-lhe a resposta à interrogação última, de­via dar-lhe, em termos racionais, o Absoluto. E porque ela não lha dá, ele fractura-se espiri­tualmente, psiquicamente, abdica da ideia de encontrar uma Filosofia que resuma o mistério do Universo e compreende que esse é um ideal inexequível e que há maneiras diversas de se aproximar desse Absoluto. Pessoa compreende que o Absoluto é um mito e que não há senão uma pluralidade de caminhos, todos com a mesma possibilidade de serem es­sa Verdade que não existe.


P. – Coisa engraçada neste seu livro é que quando Eduardo Lourenço já está muito em­brenhado em Fernando Pessoa, às tantas pára e diz mais ou menos, isto: «Atenção, que o Fernando Pessoal é muito complicado». Neste livro e nos outros, aliás. Normalmente, a orientação dos ensaios pessoanos é a contrária: fazer-nos ver que, afinal, Fernando Pes­soa se explica...


R. – Isso é porque eu penso que não se po­de dar-lhe a volta.


P. – Nem quer dar-lhe a volta...


R. – Sim, eu também não quero dar-lhe a volta. Não é possível, porque Pessoa já dá a volta possível a si mesmo. O texto de Pessoa é um autotexto, um texto sobre o próprio texto. E essa é a novidade que não existia na poesia anterior. Nem mesmo naquela que disso se poderia aproximar, pelo seu desejo de interro­gar a Esfinge até ao último limite, como a de Antero. Mas Antero não tem esse olhar triplo, em que não há possibilidade de parar em par­te nenhuma.


É por isso que desconfio de toda a gente que me vem dizer que Fernando Pessoa foi isto ou aquilo... Eu não sou capaz de dizer o que é que Fernando Pessoa foi.


P. – Cada vez mais incapaz?


R. – Cada vez mais. E, no entanto, gosta­ria que, lendo-me, as pessoas tivessem o senti­mento de que, nessa renúncia a uma imagem completa, eu estou mais próximo do Pessoa do que um outro tipo de discurso que quereria dissolvê-lo. Exactamente dissolvê-lo.»

domingo, 29 de novembro de 2020


Fernando Pessoa

[Carta a Armando Teixeira Rebelo - 2 Ago. 1907] - T

[Carta a Armando Teixeira Rebelo -2 Ago. 1907]

Hotel Brito, Portalegre

22 de Agosto de 1907

.

Venerável porção de existência terrena!

Nuns poucos momentos de concatenada actividade mental, não desassistida dos fumos carnais da bebida alcoólica — nada mais nada menos do que vinho — não exclusivo a esta localidade, a minha alma sentiu, como um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado e tendências a um cérebro amigável como o teu.

Solitário e silente no meu transitório lugar de existência no hotel mencionado no cabeçalho desta explosiva epístola de uma sobrecarregada alma, sentindo em redor de mim um mundo moralmente frio e materialmente quente — abaixo de zero quanto à minha alma e não longe dos 40 quanto ao meu corpo — nestas circunstâncias angustiosas e inspiradoras veio até mim a ideia de que talvez o processo desta composição epistolar possa ser subjectivamente conducente a um alívio do meu fardo terreno neste momento, possa ser o «bálsamo em Gilead» sonhado por Poe, para o meu espírito desgarrado.

Daí esta carta.

Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semiesPãholismo e nada. O vinho é bom (embora não daqui, creio), mas é decididamente alcoólico, especialmente quando a jarra de água está na outra extremidade da mesa e tu te esqueces (quer dizer, eu me esqueço) de o pedir. O estilo desta carta é disso uma prova decisiva. Farei dela registo, para que uma tão brilhante produção do meu espírito não se perca no correio.

A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado — poeticamente falando, é claro. Apesar disso, os homens têm trabalhado bastante depressa e tenho os olhado e observado com a maior das energias.

Acredito sinceramente que, se tivesse que aqui ficar um mês, teria de ir para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda. Mal podes imaginar o hiperaborrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo num sítio destes, que reinam no meu espírito!

Encontrei um livro para ler. Estou ansioso por voltar para Lisboa; penso contudo que ainda terei de ficar aqui mais três dias.

    O Alentejo visto do comboio

    Nada com nada em sua volta

    E algumas árvores no meio,

    Nenhuma das quais claramente verde,

    Onde não há vista de rio ou de flor.

    Se há um inferno, eu encontrei-o,

    Pois se não está aqui, onde Diabo estará?

Passa bem, ó tu

F. Nogueira Pessoa

P. S. — Não me escrevas para Portalegre. Poderei já aqui não estar. Espera o meu regresso a Lisboa. Aí falaremos então.

2-8-1907

Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. Fernando Pessoa. (Introduções, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Publ. Europa-América, 1986.

  - 56.

Tradução de António Quadros.

1ª publ. in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração. João Gaspar Simões. Lisboa: Bertrand, 1951.

sábado, 29 de agosto de 2020

sábado, 4 de julho de 2020

“I know not what tomorrow will bring” (“Não sei o que o amanhã trará”)

Chavalier de Pas (Cavaleiro do Nada), com o qual trocava correspondências dele para ele mesmo.

Primeiro heterônimo de Fernando Pessoa.
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