domingo, 29 de novembro de 2020


Fernando Pessoa

[Carta a Armando Teixeira Rebelo - 2 Ago. 1907] - T

[Carta a Armando Teixeira Rebelo -2 Ago. 1907]

Hotel Brito, Portalegre

22 de Agosto de 1907

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Venerável porção de existência terrena!

Nuns poucos momentos de concatenada actividade mental, não desassistida dos fumos carnais da bebida alcoólica — nada mais nada menos do que vinho — não exclusivo a esta localidade, a minha alma sentiu, como um suspiro mental, a necessidade de dar expressão do seu presente estado e tendências a um cérebro amigável como o teu.

Solitário e silente no meu transitório lugar de existência no hotel mencionado no cabeçalho desta explosiva epístola de uma sobrecarregada alma, sentindo em redor de mim um mundo moralmente frio e materialmente quente — abaixo de zero quanto à minha alma e não longe dos 40 quanto ao meu corpo — nestas circunstâncias angustiosas e inspiradoras veio até mim a ideia de que talvez o processo desta composição epistolar possa ser subjectivamente conducente a um alívio do meu fardo terreno neste momento, possa ser o «bálsamo em Gilead» sonhado por Poe, para o meu espírito desgarrado.

Daí esta carta.

Portalegre é um lugar em que tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semiesPãholismo e nada. O vinho é bom (embora não daqui, creio), mas é decididamente alcoólico, especialmente quando a jarra de água está na outra extremidade da mesa e tu te esqueces (quer dizer, eu me esqueço) de o pedir. O estilo desta carta é disso uma prova decisiva. Farei dela registo, para que uma tão brilhante produção do meu espírito não se perca no correio.

A desmontagem e embalagem da tipografia está a levar um tempo danado — poeticamente falando, é claro. Apesar disso, os homens têm trabalhado bastante depressa e tenho os olhado e observado com a maior das energias.

Acredito sinceramente que, se tivesse que aqui ficar um mês, teria de ir para Lisboa e depois para o Hotel Bombarda. Mal podes imaginar o hiperaborrecimento, o ultra-estafanço-de-tudo, a absoluta sensação de o-que-há-de-fazer-um-tipo num sítio destes, que reinam no meu espírito!

Encontrei um livro para ler. Estou ansioso por voltar para Lisboa; penso contudo que ainda terei de ficar aqui mais três dias.

    O Alentejo visto do comboio

    Nada com nada em sua volta

    E algumas árvores no meio,

    Nenhuma das quais claramente verde,

    Onde não há vista de rio ou de flor.

    Se há um inferno, eu encontrei-o,

    Pois se não está aqui, onde Diabo estará?

Passa bem, ó tu

F. Nogueira Pessoa

P. S. — Não me escrevas para Portalegre. Poderei já aqui não estar. Espera o meu regresso a Lisboa. Aí falaremos então.

2-8-1907

Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas. Fernando Pessoa. (Introduções, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Publ. Europa-América, 1986.

  - 56.

Tradução de António Quadros.

1ª publ. in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração. João Gaspar Simões. Lisboa: Bertrand, 1951.

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