terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A pátria é a viagem

Rui Nunes e a viagem: “Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar”

A pátria é a viagem de Rui Nunes

06.06.2012
Por: Maria da Conceição Caleiro
 
É um escritor que se subtraiu sempre das luzes da ribalta. Por princípio e por pudor. Todavia é um imenso escritor, um dos melhores

Recebeu em 1992 o Prémio PEN Clube Português de ficção e em 1998 o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores. Sauromaquia (1976) é o seu primeiro livro. Barro, que acaba de sair, o último.

Quando perguntaram a Hélia Correia que medidas tomaria para uma maior divulgação das obras de Maria Gabriela Llansol, ela respondeu intempestivamente: "Nenhumas, quem sentir a falta que leia". E se a mesma pergunta fosse colocada a Rui Nunes sobre Rui Nunes?
Não calculo. Nada, possivelmente, como disse Hélia Correia. "Quem quiser que leia" é uma belíssima resposta. Não há muito a fazer. A publicidade destrói completamente aquilo que escrevo, é uma sombra que se projecta. Esse tipo de mostração torna pornográfico aquilo que o não é. Cada livro vai conseguindo os leitores que merece. Se, por publicidade, o livro chegar aos leitores que não são os leitores dele, eles não ficam, vão-se embora.

No seu novo livro, Barro, subtrai até ao osso a matéria ficcional que comummente se espera. Parte-se de referências autobiográficas - a infância, a exposição The Porn Identity na Kunsthalle de Viena em 2009, o desejo, a constelação de autores que o marcaram (Celan, Tolstói, Victor Hugo, O Conde de Monte Cristo...)
São elementos autobiográficos, mas o livro não é uma autobiografia. Tentei reunir os elementos da minha vida que contribuíram para a construção da minha escrita, que estão na génese dela. No seguimento de A Mão do Oleiro, há uma presença do texto bíblico. Logo no começo deste, o que Deus disse a Jeremias: "E Deus disse: faça-se / do lixo, um rosto". Em Barro, as primeiras duas palavras são as do Génesis: "No princípio". Não sou católico, nem crente propriamente, mas o texto bíblico está inscrito na minha matriz, sobretudo o Antigo Testamento. Tem uma força, uma violência, uma beleza que o Novo Testamento não tem, está mais perto de nós.

Falemos então de Deus, presença disseminada no livro.
Será que falamos de outra coisa? No fundo, Deus é esse nada que leva a falar. É todos os sentidos e não é sentido nenhum. Mas preenchemos essa falta com a malignidade das próprias palavras.

Em Barro repete-se várias vezes um poema: "Estão sempre a recomeçar/ as palavras de qualquer fome./ Anónimas. Tornam anónimas todas as bocas. Todas as mãos./ Todos os gestos./ As palavras só prolongam palavras./ Até ao tumulto. De um rosto". Quer comentar?
Isso diz o meu fascínio pela palavra. Ao mesmo tempo, a palavra só é verdadeira quando acaba num rosto. Que a pára. Não é que a elimina, mas que a recebe e cala.

E a última palavra é o nome de Deus?
A última palavra é um rosto imensamente esperado. Falta sempre uma palavra a qualquer livro.

A espera mantém-se?
É essa espera de um rosto que vai alimentando a escrita. Escrevendo, mantém-se a espera. E como a única coisa que interessa é essa espera, escreve-se unicamente para a manter.

E aí irrompe a questão do tempo?
Exacto.

No limite a interrupção é o rosto?
É o rosto. O rosto é que é. O rosto é. Aliás a importância do rosto está em Levinas.

É uma responsabilidade a que não se pode virar a cara?
Por isso, como diz Hölderlin, "no rosto está o dialogo". O Levinas é profundamente hölderliniano, na consciência de que é no rosto que está o dialogo e de que as palavras são um bem perigoso.

No que escreve há uma violência e uma beleza às vezes sufocante.
O elemento autobiográfico cria violência porque a relação com esse elemento - que quer entrar no texto - é uma relação violenta, e são os acontecimentos violentos que marcam. A felicidade não marca, a felicidade apaga o texto, só a violência o faz nascer. Na minha vida também, eu penso até que o Antigo Testamento seja uma presença inapagável em todas as vidas. Está lá, como está na origem do ser que nós somos, como origem, como olhar, como conceito.

Tem muitas pátrias?
Quanto mais tempo estou, mais estrangeiro me sinto porque vou perdendo a minha coesão, vou perdendo a minha identidade, vou-me dissolvendo, de modo que é melhor não estar muito tempo nos sítios.

Como a palavra que, repetida, se esvai completamente?
É isso, uma palavra repetida perde o sentido, chega a uma altura em que é unicamente um som. Tal como um país repetido vai perdendo todo o sentido. A viagem é exactamente o contrário, a viagem é a pátria, é a grande pátria. Porque é na viagem que eu ganho coesão, não é na paragem; na paragem eu perco. A vida devia ser um durante com muito poucas paragens.

Portanto, a chegada nunca.
A partida é sempre exaltante, a chegada é pobre. Acontece-me prolongar as viagens. Quer dizer, pequenas viagens que podia fazer nuns minutos, eu faço o possível para que elas durem duas, três horas. Posso apanhar um comboio directo de enorme velocidade entre Sankt Pölten e Viena, mas prefiro apanhar o comboio vagaroso que pára em todas as estações e apeadeiros. Portanto estou sempre a partir. E gosto muito de escrever durante a viagem, no comboio. Já a minha mãe era assim. Isso está nos genes.

Assim como noutras figuras da sua infância.
Eu só falo de um, mas os meus dois avós fugiram de casa antes dos dez anos. O meu avô materno, que nós chamávamos o avô do mar, nunca mais voltou. E o meu avô paterno voltou à terra dele à volta dos 20 anos. Isso marca a pessoa. O meu avô materno fez uma viagem do Algarve a Setúbal a pé, atravessou o Alentejo todo a pé, teve febres porque na altura havia malária na região do Sado. Eu tenho esse movimento inscrito nos genes, não consigo estar parado, não consigo estar em Lisboa, aliás não gosto da cidade. De Lisboa para o Algarve, do Algarve para a Beira.... Ando de um lado para outro. É vital para mim. E muitas vezes ando de uns sítios para os outros cansado e com dificuldade, mas não consigo parar. O problema é o regresso, qualquer regresso é uma tragédia. A vida devia ter sido feita de partidas.

São várias as casas de que fala...
Eu nunca tive uma casa minha, minha. Vivi sempre na casa dos outros. Aos nove meses fui para casa da minha tia Amélia, dos meus avós da Beira, depois estive fora, a casa de minha mãe, depois a casa de amigos. A ideia de casa também não está inscrita em mim, a casa é sempre precária...

Infamiliar?
Infamiliar, ou familiar no pior sentido. São a expressão do poder, de uma ordem à qual eu sou sempre estranho.

A viagem desordena tudo isso?
Exacto, a viagem é uma espécie de sintaxe. Liga, mas é a única - e eu digo isso muito - que não tem a dimensão do poder, pelo contrário, é a única que dissolve o poder, que o destrói. Todas as outras constroem, mantêm-no, reproduzem-no.

Retomemos O Barro. Várias são as figuras que se desenham e insistem. O pai, sobretudo os avós.
Os meus avós deram-me todas as palavras do mundo. Um deu-me as palavras do mar, outro deu-me as palavras da terra,

Os barcos e as sementes...
Exacto, eu recebi todos os nomes como uma espécie de dádiva, fiquei com todos os nomes. O meu avô do mar tentou dar-me a história, mas ele sabia que a história não deve acabar. Eu pedia-lhe para contar O Conde de Monte Cristo e ele todas as noites inventava uma história diferente do Conde de Monte Cristo. Ainda hoje não sei como é que aquilo acaba, não quero saber.

Acaba por ser tudo uma espécie de emblema do viajar, anda-se à volta disso sempre?
Os meus avós eram viajantes, mas é estranho, o meu pai não. Via-se que tinha um prazer espantoso na História, nessa fixação do tempo, das coisas, das personagens, e a ele devo muitas das leituras que fiz em criança. O ter lido o Guerra e Paz, que foi para mim um livro matricial, Ele deu-me a fixidez da história, os meus avós deram-me a errância dos nomes.

Mas o nome fixa.
O nome amarra, mas de uma maneira diferente da frase. Amarra uma coisa a um solo e nunca mais o larga, como uma carraça se agarra a um cão e nunca mais o larga, desloca-se com ele. Por isso é que as palavras são impressionantes, as palavras têm essa ambiguidade de se moverem, de frase em frase, de texto em texto, mas carregando um sentido, um significado do qual não se conseguem libertar, às vezes ganhando novos significados, mas nunca perdendo os outros; acumulando significados.

Há palavras que insistem: barro é uma delas, Celan outra; ou Schnee (neve, em alemão)... Porquê?
Aquilo que me impressiona no Celan é um profundo e inultrapassável contencioso com todas as línguas, as que dominava, onde vivia, por onde andava. Não é só o alemão que é a palavra do carrasco, são todas as línguas. O português é, e vê-se o medo que as pessoas têm quando falam da língua, vêem-na como qualquer coisa de sagrado. Não entendo, o respeito por ela é precisamente o afastamento dela. Uma língua precisa de ser macerada, precisa de ser cortada, destruída, para libertar.

E é isso que faz?
Só assim eu a entendo, só assim consigo usá-la. Porque se não não sou eu quem a está a mostrar, é a língua, com o seu poder denunciante, a mostrar-me, e eu tornei-me numa vítima. Eu só não me torno numa vitima quando a consigo macerar. Se não, cada vez que falo digo que sou culpado não sei bem de quê.

De uma teia?
É, de uma teia. Uma mosca, o insecto que cai na teia, cai numa lógica da aranha.

Porque escreve barro em português e neve em alemão?
Eu só posso escrever assim porque é a neve do Celan, é aquela neve. O barro é um termo brutal e lindíssimo que eu estou a ver, e só pode ser aquele, aquela bola que o oleiro põe na roda e começa a moldar. A maior parte das pessoas nunca viu aparecer um cântaro, e realmente, se se pode imaginar a criação, é isso. E a água que se tem de pôr, amniótica... É um parto..

A luz é uma presença subliminar no que escreve. As coisas que a luz recorta e que, ao fazê-lo, traz para a morte. Gostava que falasse do fenómeno.
A luz é a morte, a luz conduz. Há um momento em que a luz não se vê, vêem-se as coisas. Esse tal momento da madrugada em que tudo está nítido e não há sombra é o momento não maligno da luz; depois, quando o tempo passa, a luz maligniza-se e o processo de malignização da luz vê-se na sombra que vai saindo dos objectos. A primeira sombra é imensa e pouco concentrada, com o tempo a sombra reduz-se e concentra-se, e assim dá espaço ao clarão. Portanto a luz vai-se tornando mortal, não se consegue ver nada: é quando o sol está no zénite. O mundo mostra-se pacificado nesse momento em que as coisas não produzem sombra, porque são vistas limpamente.

É o momento da coincidência.
É isso. Aquela nostalgia que eu penso que existe em todas as pessoas da coincidência do nome e da coisa realiza-se nesse momento: ‘Olha, aquilo não é uma árvore, é um sobreiro, é uma azinheira, é uma oliveira'. As coisas ganham não um nome abstracto, mas o seu nome. E, realmente, quando Deus disse ‘faça-se a luz', não foi o grande clarão, foi com certeza esse momento único em que é possível nomear.

E foi bom!
E foi bom (risos)!

E o livro próximo?
Um título que dê a ideia de um cântaro partido. La Potière Jalouse seria um grande título, mas já existe no Lévi-Strauss.
 
ver AQUI

Tudo era silêncio.

  «Fujo sempre à narração daquela noite. Estava tão quente que, apesar de detestares os morcegos, tínhamos as persianas abertas. Embora soubéssemos que era o agitar das folhas da tília no muro da casa, parecia-nos ouvir alguém respirar ao fundo do quarto. Às vezes, o vento imitava o barulho de um aguaceiro a cair sobre a folhagem. A Lua, quase a desaparecer, iluminava o chão e os pálidos fantasmas da nossa roupa espalhada pelo quarto. Já não se ouvia o murmúrio dos prados. Tudo era silêncio.
    Tu dizias: «Vamos dormir...É preciso dormir...» Contudo, uma sombra rondava a nossa lassidão. Não vínhamos sozinhos do fundo do abismo. Logo que eu te apertava nos meus braços, acordava no teu coração esse Rodolfo desconhecido.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31

La note bleue (1991)


«Nesse tempo vivias agarrada a preconceitos!»

François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 31
 
«Mas, porque nesta confissão pretendo mostrar-me tal como sou, não posso dissimular estes traços do meu carácter: a independência, a inflexibilidade. Não vergo diante de ninguém, sou fiel às minhas ideias.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 29/30
«Fingiu não se sentir ferida, nem sequer surpreendida. Por fim, falou, escolhendo as palavras para me obrigar a acreditar que já contava com a nossa separação.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 25

   «No entanto, houve na verdade alguns indícios da realidade, mas que interpretei mal. Lembras-te de uma noite em que estávamos sentados num banco da alameda ziguezagueante que fica atrás das Termas? De súbito, sem motivo aparente, desataste a soluçar. Recordo o perfume das tuas faces molhadas, o perfume dessa tristeza incógnita. Julguei serem lágrimas de felicidade. Muito novo, e ainda inexperiente, desconhecia as subtilezas desses soluços e dessas opressões. Tu dizias-me : «Não é nada, é por estar ao pé de ti...»
    E não mentias, mentirosa. Era, de facto, por estares ao pé de mim que choravas - ao pé de mim e não de outro cujo nome acabarias por me revelar alguns meses mais tarde, neste mesmo quarto onde hoje escrevo, velho, e quase a morrer, rodeado por um grupo de espiões que aguardam o momento propício para o assalto.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23

«Mata a sede de uma vez para sempre, pois nunca mais beberás.»

François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 23
 
«Como às vezes olhavas para mim de soslaio, a recordação dessas missas ficou ligada à maravilhosa descoberta que se apoderava de mim: ser capaz de interessar, de agradar, de impressionar. O amor que eu sentia confundia-se com o que eu inspirava, ou supunha inspirar. Os meus sentimentos nada tinham de real. O que contava era a minha fé no amor que sentias por mim. Reflectia-se noutro ser, e a minha imagem assim reflectida não era repelente. Expandia-me numa descontracção deliciosa. Nunca mais esqueci a felicidade de sentir o degelo de todo o meu ser sob o teu olhar, sob as emoções que brotavam das fontes libertadas. Os gestos de ternura mais vulgares, um aperto de mão, uma flor guardada num livro - tudo para mim era novo, tudo me encantava.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 22

bichanar

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

«Mas a sua maneira de ser repugnava-me. Por isso, acontecia deixar escapar piadas que os feriam mortalmente e aumentavam o rancor deles para comigo.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 17
«se alguma coisa nasceu para voar
foi o teu coração»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 30
«Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 28

''uma ave para desfolhar''

História de Inverno

A mulher de água
traz limos nas espáduas.
Tem olhos de lagoa
e o corpo como um rio.

Traz musgo sobre os seios
e a sua voz dá frio,
o seu olhar magoa.

Mas não lhe sei o nome.

Estende os cabelos de água
no inverno dos meus olhos,
dorme na minha sorte
por toda a noite insone.

Faz um rumor de chuva,
tem um sabor de morte.

Mas não lhe sei o nome.


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 27

estro


nome masculino

1. entusiasmo artístico; veia poética; riqueza de imaginação
2. época do cio
3. ZOOLOGIA gusano

(Do grego oĩstros, «tavão», pelo latim oestru-, «estro poético»)

''lobisomens chorando nas areias.''


espúrio


adjetivo

 1. antiquado diz-se de filho de uma relação extraconjugal; bastardo; ilegítimo
2. que não segue as leis; ilegítimo
3. diz-se da obra que não pertence ao autor a quem é atribuída
4. adulterado; falsificado
5. que não pertence ao vernáculo
6. não autêntico; não genuíno
7. regionalismo avarento e de aspeto pouco agradável


(Do latim spurĭu-, «bastardo; espúrio»)

«soubesses tu que tudo o que me dizes
é a sombra do que me não podes dar.»

Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 21

Elegia de Coimbra


Gela a lua de março nos telhados
e à luz adormecida
choram as casas e os homens
nas colinas da vida.

Correm as lágrimas ao rio,
a esse vale das dores passadas,
mas choram as paredes e as almas
outras dores que não foram perdoadas.

Aos que virão depois de mim
caiba em sorte outra herança:
o oiro depositado
nas margens da lembrança.



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 20

domingo, 29 de dezembro de 2013

«o primeiro vestígio da beleza
é a cólera dos versos necessários.»


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 20

Ama, tens frio;

Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 18

Cantiga do ódio


O amor de guardar ódios
agrada ao meu coração,
se o ódio guardar o amor
de servir a servidão.
Há-de sentir o meu ódio
quem o meu ódio mereça:
ó vida, cega-me os olhos
se não cumprir a promessa.
E venha a morte depois
fria como a luz dos astros:
que nos importa morrer
se não morrermos de rastros?


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 15

O viandante

Trago notícias da fome
que corre nos campos tristes:
soltou-se a fúria do vento
e tu, miséria, persistes.
Tristes notícias vos dou:
caíram espigas da haste,
foi-se o golpe do vento
e tu, miséria, ficaste.
Foi-se a noite, foi-se o dia,
fugiu a cor às estrelas:
e, estrela nos campos tristes,
só tu, miséria, nos velas.



Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 14

4

Canta a noite, sentimento da terra,
ou morreste, flor estranha?
Há tanto já que chove e nós sem lenha,
sem paz e sem guerra.

Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.

Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.


Carlos de Oliveira. Trabalho poético. Sá da Costa Editora, 2ª Edição, Lisboa, 1982., p. 13
HEDDA

Ah, os pensamentos...não são assim tão fáceis de reprimir!


Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 199

''noite tempestuosa e orgíaca''

Der Zauberberg

«De forma tão incompreensível como o cimento desaparece, crescem também as paredes. A gente recebe ordens para aqui e para ali, começa uma coisa e é enxotada do lugar. Apanha bofetadas e pontapés. Torna-se teimosa e melancólica por dentro e por fora servil e cobarde. O cimento carcome as gengivas até fazer ferida. Quando se abre a boca, os lábios rasgam como papel dos sacos de cimento. A gente cala a boca e obedece.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 38
«Sou obrigado a lembrar-me contra minha vontade. E mesmo quando não sou obrigado, mas quero, preferia não ser obrigado a querer.»



Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 35

O último mergulho

«Com geada ou calor de abrasar, passaram-se noites inteiras sem sentido. Só os piolhos em nós tinham permissão de movimento. Durante a interminável contagem, podiam encher-se até rebentar e desfilar em parada pelos nossos corpos miseráveis, rastejar horas a fio desde a cabeça até aos pelos da púbis. Na maior parte das vezes, os piolhos já se tinham enchido e deitado a dormir nas costuras dos casacos enchumaçados e nós continuávamos em sentido. O comandante de campo Chichtvanionov ainda continuava a gritar. O seu nome próprio nós não sabíamos. Chamava-se só tavarichtch Chichtvanionov. Era suficientemente longo para se gaguejar de medo ao pronunciá-lo. Ao ouvir o nome tavarichtch Chichtvanionov, vinha-se sempre à memória o ruído da locomotiva de deportação. E o nicho branco lá na terra, na igreja, O CÉU PÕE O TEMPO EM MOVIMENTO. Com certeza fomos obrigados s ficar em sentido contra o nicho branco, horas sem conta. Os ossos ficaram emperrados como ferro. Quando a carne desaparece no corpo, é o carrego dos ossos que se transforma num fardo, empurrando-te pelo chão dentro.»
 
 

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 28-29
«O que é que se pode dizer da fome crónica. Pode-se dizer que há uma fome que te põe doente de fome. Que se vem juntar sempre mais faminta à fome que já se tem. A fome sempre nova, que cresce insaciável e se lança em salto mortal para dentro da fome eternamente velha, a custo dominada. Como é que uma pessoa anda por este mundo, quando sobre si nada mais sabe dizer, a não ser que tem fome. Quando já não consegue pensar noutra coisa. O céu-da-boca é maior que a cabeça. alto e de ouvido aguçado até ao cocuruto do crânio, uma cúpula. Quando já não se aguenta a fome, o céu-da-boca retesa-se como se nos estivessem esticado atrás da cara uma pele de lebre recente a secar. As faces murcham e cobrem-se de pálida penugem.
   Nunca soube, será que deve acusar-se a erva-armola azeda de já não a podermos comer, porque fica lenhosa e se nos recusa. Saberá a erva que já não nos serve a nós e à fome, mas ao anjo da fome. »
 


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 26-27


The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

Just this side of motel's end
At suicide ocean

The clock died at a quarter to midnight
Frozen angels on my bedpost
Tripping over some senseless beggar
A simple case of mistaken face
My how nothing changes
Different men in the same positions

Time died at a quarter to Midnight
The scent of a ghost fills the air
The clock on the wall broke down to fall
My bleeding head on the baseboard
My how nothing changes
Different men in the same positions
«Sim, eu era terrível. Na pequena sala de jantar da nossa vivenda, sob o candeeiro que nos iluminava durante as refeições, eu respondia por monossílabos às suas perguntas tímidas. Outras vezes, encolerizava-me ao mínimo pretexto, ou até sem qualquer motivo.
    Ela nem tentava compreender-me. Nem perscrutava as causas dos meus acessos de fúria: suportava-os como se da cólera de um deus se tratasse. «É a doença», dizia ela.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15

. A minha juventude não passou de um suicídio lento.

«Em compensação, quando pretendia gracejar, descarregava sobre os outros, mesmo sem querer, golpes que eles nunca mais me perdoavam. Ia direito aos pontos fracos, aos defeitos, que nenhum de nós gosta que nos apontem. Por timidez e por orgulho, falava com as mulheres no tom superior e doutoral que elas detestam. Era incapaz de lhes elogiar os vestidos. Quanto mais sentia que lhes desagradava, mais se acentuava tudo o que as afastava de mim. A minha juventude não passou de um suicídio lento. Receando desagradar involuntariamente, passei a ser desagradável de propósito.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 15
«Eu, que mais tarde sofri tanto por me sentir doente e ninguém se importar com a minha doença, reconheço que fui justamente castigado pela minha dureza e pelo meu carácter implacável de rapaz mimado.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 14

Fui cruel para com os que pretendiam amar-me.

«Lembro-me de que o prestígio dos meus sucessos, apesar do meu temperamento irritável, atraía certas índoles. Fui cruel para com os que pretendiam amar-me. Fugia dos «sentimentos.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 13
   «Não me sentia preocupado e nada fiz para provocar as tuas confissões. Mas tu prodigalizaste-mas com tal complacência que, apanhado de surpresa, me senti perturbado. Na verdade,  não eram os escrúpulos que te obrigava a falar, nem sequer um sentimento de delicadeza para comigo, como me disseste e no qual, aliás, acreditavas.
     Não, tu sentias prazer em lembrar uma recordação feliz que não podias esconder por mais tempo. Talvez pressentisses a ameaça que isso representava para a nossa felicidade, mas, como se costuma dizer, foi mais forte do que tu. Não podias evitar que a sombra de Rodolfo vagueasse à nossa volta. O que sentias por ele ultrapassava-te.
      Porém, não imagines que foi o ciúme a causa da nossa desunião. Eu, que mais tarde me tornei um ciumento obcecado, não senti nada de semelhante naquela noite de Verão, a noite do ano de 85 em que me confessaste que estiveras, durante umas férias passadas em Aix, noiva desse rapaz desconhecido.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 10

«Sinto-me feliz por poder morrer no único lugar do mundo onde tudo está tal e qual as recordações gravadas na minha memória.»


François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
«A característica dominante do meu carácter, que teria cativado qualquer outra mulher que não tu, é de uma lucidez impressionante.
    Essa capacidade de se iludirem a si próprios, que ajuda a viver a maior parte dos homens, nunca eu a possuí. Tive sempre plena consciência de tudo quanto de abjecto senti e pratiquei...»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 8
«(...) Quanto mais necessidade eu sentia de acreditar no meu valor, mais tu te empenhavas em provar a minha nulidade...Mas esse aspecto pouco importa. É de um outro silêncio que eu queria vingar-me; o silêncio em que te obstinaste quanto à nossa vida a dois, quanto à nossa desunião profunda. Quantas vezes, quando assistia a peças de teatro, ou lia romances, perguntei a mim mesmo se, na vida real, existirão amantes e esposas que fazem «cenas», que se explicam de coração aberto e que sentem alívio nesses desabafos.
   Durante estes quarenta anos em que sofremos lado a lado tiveste sempre a coragem de evitar toda e qualquer conversa mais profunda, matava-las à nascença.
   Cheguei a pensar que o fazias de propósito, por algum motivo que me escapava. Porém, certo dia percebi que a verdade era outra: o assunto não te interessava. Eu andava tão longe do teu pensamento que te furtavas, não por medo, mas porque te aborrecia. Eras hábil a pressentir os momentos de perigo; descobrias-me ainda longe. E, se te apanhava de surpresa, arranjavas facilmente pretextos para me dares um beijo e saíres pela porta.»



François Mauriac. O Nó de Víboras. Tradução de Maria Conceição Ramírez Cordeiro. Livros de bolso europa-américa., p. 7/8

sábado, 28 de dezembro de 2013

LOVBORG

 É verdade, Hedda! E quando eu lhe fazia as minhas confidências! Quando lhe contava os meus próprios problemas! Assuntos que nunca ninguém suspeitou que pudessem servir de tema das nossas conversas. Sentava-me lá e confessava que andava quase todos os dias e também as noites perdido de bêbado. Por fim, era mesmo todos os dias e todas as noites. Oh, Hedda! Que extraordinário poder havia em si para me obrigar a confessar coisas como essas!

HEDDA

 Acredita que houvesse um poder tão grande, em mim?



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 128

BRACK
Por que não há-de ter, como a maior parte das outras mulheres, uma dádiva, pela vocação que...?

HEDDA
Esteja calado! Às vezes quer-me parecer que somente tenho uma coisa como presente!

BRACK (Aproximando-se)
E qual é ela, sem me permite a pergunta?

HEDDA (Mantendo o olhar vago)
É aborrecer-me de morte. Agora já fica a saber. (Voltando-se e olhando na direcção da sala interior, com um sorriso ) É assim mesmo! Aí vem o nosso professor.

BRACK
Cuidado agora, minha senhora Hedda!



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 106

sempiterno


adjetivo
1. que não teve princípio nem há de ter fim; que dura muito
2. figurado perpétuo; incessante

(Do latim sempiternu-, «idem»)
HEDDA
Como é realmente o seu marido, Thea? Percebe o que digo... no trato diário? É amável para si?

SENHORA ELVSTED (Evasivamente)
É tão senhor do seu próprio valor, que julga que faz tudo melhor do que os outros.

HEDDA
Mas diga-me, não será velho de mais para si? Mais de vinte anos, não é?

SENHORA ELVSTED
Sim. É velho de mais. Em diversos aspectos, a minha vida com ele é miserável. Não temos nenhum ponto de contacto, eu e ele. Nem um bocadinho.

HEDDA
Mas ele não a estima? Quero dizer...mesmo fazendo-o à sua maneira?

SENHORA ELVSTED
Ora! Nunca soube qual é a maneira dele sentir. Julgo que lhe sou útil apenas. Apesar de tudo, não lhe saio cara. Sou fácil de contentar.

HEDDA
Isso é idiota da sua parte.

SENHORA ELVSTED (Abanando a cabeça)
Não consigo ser diferente. Pelo menos, com ele. Efectivamente, não gosta de ninguém a não ser dele próprio. Talvez um pouco, dos filhos...um pouco.



Henrik Ibsen. Hedda Gabler. Tradução de Freire de Andrade. Editorial Presença, Lisboa., p. 57/58

HEDDA GABLER

«Hedda Gabler, é um extraordinário retrato de mulher, que domina a intriga do primeiro ao último acto. A sua figura tem algo de fluido, de inapreensível. Lúcida, fascinante, dominadora, há nela quase todos os talentos para viver contente consigo própria. Todavia não vive; o tédio é a sua condição. Incapaz de romper, por um acto definitivo, com as grades em que se sente envolvida, incomunicável com o meio que a cerca, ela vai dissolver-se aos poucos na destruição, vai minar esse pequeno mundo dos outros do qual se sente à margem. Até ao último acto da tragédia. Hedda será sempre presa da sua profunda contradição: detesta o mundo das convenções mas falta-lhe a coragem para arrostar com o rompimento. Isso constituirá a sua derrota no amor e na vida.»

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013


amolgadelas

«Nessa noite, talvez não tivesse sido eu, mas o pavor dentro de mim, que de repente se tornou adulto.»

Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 24

Entendemos, sem compreender

«Entendemos, sem compreender, que ubornaia significa ida colectiva à retrete. Lá no alto, muito lá no alto, a lua redonda. A respiração esvoaçava diante dos nossos rostos, branca e cintilante como a neve debaixo dos nossos pés. A toda a volta, as pistolas automáticas prontas a disparar. E agora: calças abaixo.
   Aquele constrangimento, o sentimento de vergonha do mundo inteiro. Como era bom que aquela terra nevada estivesse tão sozinha connosco, que ninguém olhava para ela, a ver como nos compelia a todos a fazer o mesmo, ao lado uns dos outros, colados. Eu não precisava de ir à retrete, mas deixei cair as calças e pus-me de cócoras. Como era cruel e silenciosa aquela terra nocturna. Como nos expunha ao ridículo nas necessidades. Como a Trudi Pelikan, à minha esquerda, a arrepanhar o casaco com feitio de sino até às axilas e a puxar para baixo as calças até aos tornozelos, assim como o silvar da enxurrada entre os sapatos. Como, atrás de mim, o advogado Paul Gast a gemer de tanta força, como o intestino da sua sr.ª Heidrun Gast a estalejar da diarreia. Como, cintilante, logo congelava a toda a volta o vapor morno e pestilento. Como esta terra nevada nos zurzia uma cura de mata-cavalo, nos abandonava solitários de rabo a reluzir, no meio dos ruídos do baixo-ventre. Como se tornavam lamentáveis as nossas entranhas naquela comunhão.»


Herta Müller. Tudo o que eu trago comigo. Traduzido do Alemão por Aires Graça. Publicações Dom Quixote, 1ª edição, 2010., p. 23

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

''O ar cheirava a lã velha''


O Nó de Víboras

«Pintor por excelência das paixões ardentes, das almas atormentadas e dos grandes dramas interiores, Mauriac atinge em o Nó de Víboras um dos pontos mais altos no tratamento desta temática verdadeiramente obsessiva em toda a sua obra. Ao longo das páginas deste livro, um homem, velho e doente, atormentado pelo ódio, roído pela avareza e pela fome de vingança, abre o seu coração, que ele próprio classifica como um nó de víboras - um «nó impossível de desatar, que seria necessário cortar com uma faca ou uma espada». Mas através deste monólogo de moribundo transparece também o deserto de sentimentos que era a alma dos seus, roídos, eles também, por paixões ardentes e mesquinhas. Nó de víboras, afinal, não era apenas o seu coração enfermo. As víboras tinham saído e formado à volta dele um outro nó, hediondo e repugnante.»

V

E a seguir à angústia houve a fadiga,
que sente o seu esperar desesperado,
a sede que a água clara não mitiga,
a amargura do tempo envenenado.



António Machado. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento.2ª Edição, Edições Cotovia, 1999., p. 211/213

'' a impossível para o amor e sempre amada.''

António Machado. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento.2ª Edição, Edições Cotovia, 1999., p. 211

Por ti o mar ensaia ondas e espumas,

António Machado. Antologia Poética. Selecção, tradução, prólogo e notas de José Bento.2ª Edição, Edições Cotovia, 1999., p. 205

O Arquipélago da Insónia

Entrevista a António Lobo Antunes

Entrevista a António Lobo Antunes

Trata-as em diminutivo, assim por cima do ombro, as crónicas, "uns contitos", fragmentos, "aguarelazitas", "esboços", "fantasias", "palavrinhas", "pequeninos nadas", "piscinas para crianças" com água pela cintura e onde nunca se perde o pé. E, no entanto, é nas suas crónicas que tantas vezes António Lobo Antunes se revela e expõe de uma forma tão íntima - a ele e a nós, nos nossos pequenos devires de inseto, sempre a formigar na mesquinhez dos dias.
Mais velho de seis irmãos - gosta de se dizer "filho mais velho de dois filhos mais velhos" -, António Lobo Antunes lembra-se de quando eram pequenos: adoecia um, adoeciam todos. E o pai, "um pai muito pouco ternurento", médico anatomopatologista, ia até ao quarto dos seus rapazes, sentava-se numa das camas e lia-lhes poesia. Ou fazia com eles um jogo temível. Citava uma frase e eles tinham de acertar em quem a houvera escrito. Ou punha a tocar os primeiros acordes de uma sinfonia para os filhos lhe adivinharem a autoria. A VISÃO propôs a um dos escritores maiores da literatura mundial o mesmo jogo, um pouco perverso. Lançar-lhe algumas das frases que ele escreveu nas crónicas quinzenais desta revista (coligidas em Quinto Livro de Crónicas) e decifrar-lhe sentidos ocultos, escavar-lhe as profundezas e outros canais subterrâneos. "Isto é muito difícil, porque me faz perguntas e eu não tenho respostas, só ainda mais perguntas. E quando penso que tenho uma resposta, ela transforma-se numa pergunta dentro de mim... E a seguir a essa não resposta vem um vazio angustiado... Eu estou cheio de perguntas e cada vez tenho menos certezas. Penso que os livros vão ficar, mas o que passei nos últimos seis anos [com o cancro e a recidiva], fizeram-me questionar tudo e até estar-me nas tintas para que os livros fiquem ou não". "O que é que me interessa isso, se eu morro."
VISÃO: 'Devemos fazer tudo o mais simplesmente possível mas não mais simplesmente do que isso" - é um dos títulos que deu à crónica em que fala da pouca importância que lhes dá, quando as retira ao acaso da gaveta e as envia para a editora...
ANTÓNIO LOBO ANTUNES: Foi Einstein que disse essa frase. E é tão verdadeira, não é? [Pausa.] Às vezes mostravam-lhe um conjunto de equações e ele dizia "é esta": "Porque é a mais simples e a mais bonita." As crónicas nasceram um bocado assim, há 20 anos, quando o Vicente Jorge Silva me convidou para um suplemento de domingo do Público. Aceitei com a condição de o Zé [Cardoso Pires] poder alternar comigo, pois andávamos ambos bastante aflitos de dinheiro. Pensei que deveriam ser assim uma coisa levezinha, divertida e não sei quê... Nunca pensei que tivessem tanto sucesso e que viessem sequer a ser traduzidas lá fora... Espanta-me, porque onde jogo a minha vida é nos livros... O problema para mim, depois de escrever uma crónica, é regressar ao ritmo do livro.
"As crónicas são um galope diferente, que me seca a cadência do livro e me atrapalha o ritmo. O segredo de escrever é ser estrábico, ter um olho na bola e outro nos jogadores (...) descobri-me lagarto numa pedra, à coca, muito quietinho, rodando as pupilas para sítios diferentes, guloso da mosca de uma frase." 
Faço a crónica num dia. Mas, depois, já não consigo voltar a pegar no livro que estava a escrever. Tenho de voltar a despir-me de tudo... 
> Nas crónicas, fala muito do seu passado, da sua infância, da guerra, da doença, dos avós. Mas, depois, também diz: "O passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não para de se transformar."
A frase é do [George] Orwell, eu sempre canibalizei muita coisa. O meu pai tinha uma mania para nós, seis irmãos rapazes, horrorosa. Dizia: "Quem não sabe quem escreveu esta frase não sai no sábado." Ou então punha meia dúzia de compassos de uma sinfonia a tocar e ameaçava: "Quem não sabe quem compôs isto não sai no domingo." E a Memória de Elefante [primeiro livro, 1979] estava cheio desse jogo com o leitor. Se calhar era uma pequena vingança contra o meu pai.
> Mas, por outro lado, também refere: "Estou cheio de citações, que gaita. Pareço um cigano a mostrar o ouro falso dos anéis..."
A gente quer que as pessoas nos admirem por fazermos uma bela metáfora ou fazermos uma pirueta, mas o importante no livro é que ele seja eficaz. O que interessa andar a mostrar plumas, e penas e proezas? A mim o que me interessa é escrever. O que está à volta custa-me um bocado, a exposição pública, tudo o que rodeia os livros. A minha vida é muito retirada, não vou a lançamentos. E finalmente lá consegui que a editora se deixasse disso. Durante anos e anos, escrevia os livros e deitava-os fora no fim.Um amigo meu viu um maço de papéis, jogado a um canto, perguntou-me o que era. Era a Memória de Elefante. Levou-o a várias editoras que não o quiseram e o livro acabou por ser publicado em 1979. Mas foi tarde demais, porque, nessa altura, eu já tinha escrito dois.
> Porque é que deitava tudo fora?
Porque ainda não tinha encontrado a voz. Pensava "ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto...". Eu sou canhoto, escrevia com a mão esquerda. E quando tento desenhar com a direita sai diferente. E a Memória de Elefante já foi escrita com a mão direita. Mas as receitas do hospital continuava a escrevê-las com a esquerda. Os gestos mais finos, de desenhar ou pregar um botão também os fazia com a esquerda. Não tenho talento para desenhar, é evidente, mas o meu pai tinha e obrigava-nos a fazer cópias de quadros famosos, como nos obrigava a ouvir música. Nos primeiros anos de casados, os meus pais tiveram logo quatro filhos e, então, quando um estava doente, adoeciam todos. Ele vinha com um livro, sentava-se numa das camas e começava a ler para nós, sobretudo poesia. Aos 19 anos, eu só escrevia poesia, queria ser poeta. Então descobri que não tinha qualquer jeito e fiquei desesperado com aquilo... Fazia umas tentativas muito canhestras e a minha poesia era, de facto, muito má... Havia pouco dinheiro lá em casa. O meu pai era médico, só estava no hospital e não ganhava muito. Ia uma vez por semana ao consultório, mas muitas vezes não levava nada aos doentes, trazia-os para casa, para jantarem connosco. O mestre dele, o Egas Moniz, dizia que nunca se devia levar dinheiro a artistas - e de repente todos eram artistas, até os bandarilheiros [risos]. De maneira que foi assim que conheci uma série de gente interessante. Era um homem que não se dava com quase ninguém, um homem muito fechado, mas um homem de paixões, até ao fim: a leitura e a pintura, a música... Fui fazer a primeira comunhão a Pádua por causa de uma promessa, por eu não ter morrido de meningite, em bebé...

Entrevista a António Lobo Antunes

>Nas crónicas, fala de doenças, não só do cancro mas até da eclampsia da sua mãe, quando nasceu inanimado: "Depois de me tirarem a ferros quem ia indo desta para melhor era eu, porque toda a gente, ocupada da moribunda, se esqueceu de mim." Tinha um avô que não se esquecia de si...
O meu avô, que também se chamava António, tinha uma grande devoção a Santo António, levou-me a Pádua fazer a primeira comunhão. Enquanto o meu pai só me levava a museus, museus, museus.... Naquela altura, os museus tinham escarradores cromados a cada dez telas, e do que eu gostava era dos escarradores. 
> Aliás, diz: "O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e envergonho-me disso."
Sim, o meu pai com discursos sem fim sobre a perspetiva em Tintoretto para uma criança de sete anos e eu fascinado com os escarradores [risos]... Pouco antes de ele morrer, um dos meus irmãos, o Miguel, perguntou-lhe: "O que gostava de deixar aos seus filhos?" E ele respondeu: "O amor das coisas belas." Só já muito perto da morte lhe fiz a pergunta mais íntima que existe: se ele acreditava em Deus. E ele, anatomopatologista, naquele gabinete cheio de cérebros, ficou calado durante um bocado e depois, sem olhar para mim, respondeu: "o nada não existe na biologia" e, depois, não disse mais nada. Portanto, as nossas conversas eram assim... 
> O seu pai não gostava de "pieguices". Entre os irmãos "não há efusões, não há gestos". Era assim em sua casa?
Não havia confidências, nem manifestações exteriores de ternura... Com o meu irmão João, que é, talvez, a pessoa que eu conheço melhor, não partilhamos confidências e, no entanto, sabemos tudo um do outro, sem falar. Não se falava muito em minha casa, de facto. Eu não falava muito, o meu pai e a minha mãe não falavam muito. Não havia grandes expansões físicas de ternura. Há alturas em que penso que tivemos a sorte de não termos sido amados... 
> Porque é que diz sorte?
Porque, se fosse ao contrário, se calhar não escrevia, não é? A gente escreve para gostarem de nós. Quando o Mozart, aos 5 anos, tocou para a corte francesa, ele foi a correr sentar-se ao colo da Maria Antonieta e pediu-lhe "aimez moi!". 
> Mas, por outro lado, tinha com eles esta estranha cumplicidade de fazerem chichi juntos: "Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade."
Nós temos a imensa vantagem de poder fazer chichi de pé. Era engraçado, na tropa: quando um tinha vontade, íamos todos [risos]. É muito engraçado isso. Lembrei-me agora de repente, do [Ernesto] Sabato, no livro Sobre Heróis e Túmulos, que acaba com duas personagens que saem da camioneta, e fazem chichi à beira da estrada, enquanto observam como é bonito Buenos Aires ao longe. Não sei como é com os meus irmãos, nunca falámos disso, mas eu carrego a grande dor de não ter tido uma irmã. É talvez o maior desgosto da minha vida. 
> Porquê? Gostava de conhecer a mulher numa outra perspetiva?
Um autor americano dizia "o que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?". Esta frase tocou-me sempre tanto... E a sensação de que se calhar tive uma irmã gémea que abandonei ao nascer, percebe o que eu quero dizer? 
> Não muito bem...
É evidente que não tive, mas isso foi sempre, dentro de mim, uma nostalgia  grande e uma dor. Poder gostar de uma mulher como de uma irmã. 
> Mas nunca lhe aconteceu na amizade?
Nunca consegui a pureza que eu imaginava que teria essa relação. Onde o sexo e os instintos estavam abolidos. Adorava ter tido uma irmã e hei de morrer com essa pena. Nem imagina o que essa frase me tem feito pensar... "O que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?"
> Se calhar é porque existe um lado feminino cromossomático (XY) em todos os homens, todos nasceram de uma mulher...  
Eu gosto da parte masculina das mulheres, mas não gosto da parte feminina dos homens. Como mulheres, os homens deixam muito a desejar... 
> Mas tanto nos livros como nas crónicas coloca-se tantas vezes dentro de uma voz feminina...
Pois é, e cada vez mais. Não sei porquê... Gosto dos homens que são tão homens que não têm medo de serem mulheres. 
> As suas mulheres, tão melancólicas e solitárias, parecem saídas dos quadros do Hopper, a olharem o vazio...
Não as consigo ver. Para mim são vozes. São aquelas vozes que vêm e entendo-me bem com elas. As crónicas são muito apanhadas aqui. Este é um bairro pobre [Conde Redondo], está cheio de viúvas, em quartos alugados... As pessoas são tristes, aqui. 
Aliás, o bairro é feio, triste e pobre. Não sei, talvez se vivesse noutro sítio, as crónicas sairiam diferentes. Mas isso tem-se acentuado nos últimos tempos, desde que vivo nesta casa [uma antiga casa de chá remodelada]. Eu não me ponho grandes perguntas. Limito-me a escrever. 
> Aliás, diz que escreve onde calha...
O sítio onde escrevo é-me indiferente, não tenho rituais, nem maço ninguém... Desde que não falem comigo. Escrevo devagar, mas também não faço mais nada. Gosto de desenhar as letras, o ato de escrita tem uma componente infantil que me agrada. Escrever é fazer redações. E as pessoas a darem importância às redações... Por isso, fico sempre surpreendido quando dizem que os meus livros são complicados. Para mim são tão óbvios, é tão claro aquilo, que parece que tinha mesmo de ser assim. Não me interessa nada contar histórias. 
> O que o interessa é "experimentar, penosamente, alcançar com o dedo as areias do fundo, quero lá saber de personagens e enredos: servem-me, quando muito, de isco, para atrair o leitor, e sobretudo para me atrair a mim mesmo"? 
Sim. E aquelas vozes. Normalmente, sento-me e tenho de ficar uma hora à espera, a esvaziar, a esvaziar... Depois vem uma palavra... Começar um capítulo é sempre difícil, o arranque é tão, tão, difícil... E até aquilo que está dentro de nós começar a sair e a andar sozinho.... E só se faz aquilo que o livro quer. Nós vamos atrás do livro, não vale a pena fazer planos, ele foge--nos para todos os lados, não o orientamos, não o dirigimos, vai-se atrás dele. E ele é que diz que acabou. 
> Como é que lhe diz que acabou?
Um livro acaba quando a gente sente que o livro está farto de nós, já não aguenta mais correções. Como quando nos querem beijar e já não nos apetece mais, e os lábios parecem bifes, e se nos tocam, a gente deita-se na pontinha da cama, na esperança de que não nos toquem mais... Quando aquilo de que antes gostávamos nos irrita, a maneira de cruzar a perna, ou de atender o telefone, ou os tiques verbais, que até tinham encanto... E então a gente sente que o livro está farto. Júlio Pomar citava  uma frase do Marcel Duchamp: "Um quadro nunca está acabado, está definitivamente inacabado." Num livro é sempre possível continuar, há sempre um "que" ou um "mas"... O Zé [Cardoso Pires] tinha uma relação muito angustiada com a escrita. Uma vez, virou-se para mim, com uns olhos esquisitos: "Os meus livros não são assim tão maus, pois não?" E estava a ser profundamente sincero. E ele, que era um homem duro, parecia um miúdo. 
> Tinham uma grande cumplicidade?
Eu compreendo a infidelidade no amor, mas não a compreendo na amizade. E o Zé tinha uma enorme fidelidade na amizade. Com 15 anos comprei o livro O Anjo Ancorado e mostrei-o ao meu pai. E ele: "Um homem chamado Pires não pode ser um bom escritor." Mais tarde, numa entrevista, falei nisso. Conheci-o no aeroporto e ele disse: "Eu sei que sendo Pires não posso ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti." E foi assim, ficámos amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. 
> E porque é que entende a infidelidade no amor?
No amor, o ciúme é normal, e até posso aceitar o sentimento de posse. Na amizade, isso não existe, os nossos amigos têm outros amigos, e nós aceitamos isso. Mas talvez não sejam sentimentos tão diferentes... Para mim, a amizade é completamente assexuada, não sou capaz de sexualizar uma amizade, nunca fui, mas no amor às vezes também não. Porque o amor é tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar apenas, só o privilégio de poder estar a olhar... e existe aquela sensação de que se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer coisa... Ultimamente, acho que é uma honra tão grande estar vivo... E um acaso...  
> Diz que deixou muita gente para trás, para se dedicar à escrita...
Não percebo. Explique-me melhor essa ideia... 
> A ideia é sua.
Então, mais uma razão para me explicar melhor. [Risos.]
> Pôs sempre a escrita primeiro?
[Pausa.] Sim, pus em primeiro lugar a escrita. Para ser honesto, é verdade. Pus à frente das miúdas, até. Lembro-me de uma delas me dizer "O pai quando está a escrever é um chato, porque não faz mais nada, e quando não está a escrever ainda é pior porque está sempre a olhar para o teto." Quando estou com um livro estou sempre agarrado a ele e sobra pouco para os outros. 
 > O seu livro abre com uma crónica chamada Zezinha, em que fala da mágoa de estar longe, na guerra, em Angola, quando a sua filha nasceu...
Foi das coisas que mais me custou, na ditadura. Até isso me roubaram, já viu? A miúda nasceu e soube três dias depois, por um telegrama cifrado R... A... P... A... e pensava que a seguir vinha um Z, para lhe chamar António, porque achava que ia morrer lá. Estava tão furioso, que fui para o arame farpado chorar como uma Madalena... É um milagre tão grande fazer um filho, depois ficam uns adultos chatos, mas ali são só nossos, ou talvez não sejam nossos, mas não são de mais ninguém. Mandavam-me retratos, mas os bebés estão sempre a mudar e quando, meses depois, a vi, disse "mas esta não é a minha filha" e aí foi a mãe que se fartou de chorar... 
> Numa outra crónica conta como a sua filha o desarmou com uma palavra inventada: "Aborrecente".
Quis fazer com ela o que o meu pai fez comigo. Levei-a a um museu e ela sempre muito caladinha. No final, perguntei-lhe se gostava dos quadros e ela respondeu-me "achei um bocado aborrecente" [risos]. E se calhar tinha razão, nunca mais a levei a um museu, é aborrecente.  
> Escreveu: "Ainda não aprenderam a ler-me. Tentam abrir a porta com a chave que trazem no bolso, pequenina, estreita. E surpreende-me que não vejam que basta empurrar com um dedo." Não se sente bem lido?
Os bons escritores ensinam-nos a lê-los. As primeiras vezes que li Conrad achava aquilo muito complicado e percebia mal. O problema não era dele, era meu. Que estava a ler aquilo com a minha chave, com os meus valores, com as minhas noções... 
E não estava a deixá-lo levar-me para onde eu tinha de ser levado... Ontem, estava a ler a história da literatura inglesa a partir do Dickens, e os ingleses são tão diferentes dos portugueses a falarem de literatura, tão mais profundos, com uma aparente simplicidade nos termos, na forma como expõem... Nós, portugueses, parece que arranjámos uma metalinguagem... Quem somos nós para julgar?
> Mas já citou Joyce, dizendo que gostava de "dar trabalho aos críticos por 500 anos"...
Fico sempre insatisfeito - até que ponto é possível falar sobre um livro? Posso dizer gostei, mas nós confundimos ideias com paixões: há livros que sei que são bons e de que não gosto. Não gosto do Musil e do Thomas Mann, mas sei que são bons. Há outros que são maus e de que gosto... 
> É uma questão de charme?
Um livro de que eu goste tem de ter charme e o Musil não tem charme nenhum... Ler um livro bom é uma alegria tão grande. Por isso, eu não entendo a inveja e a rivalidade entre escritores, porque isto não é nenhum desporto de competição. Não faz sentido a inveja em arte.  
> Sente que ela existe?
Estava a lembrar-me do Nabokov, que era um homem com muito talento... Não é um escritor de que eu goste muito mas tenho de reconhecer que é bom, embora tivesse ciúmes de toda a gente - dizia mal do Conrad, dizia mal do Hemingway, dizia mal do Faulkner. Só dizia bem de escritores que ele achava maus e muito mais  pequenos. Não entendo, nunca tive ciúmes nem inveja. Para mim é uma alegria encontrar-me com um livro bom.  
> Mas há livros que ficam e outros que se evaporam?
E depois? O Bach não esteve 200 anos esquecido? O Proust morre em 1922 e só é recuperado para aí nos anos 60...
> E o Balzac que era desprezado...
O Balzac era espantoso, não era? E tinha aquela bengala com uma bola de vidro com os caracóis dos cabelos das admiradoras, sabia?
> Não. 
O que me importa é o que eles deixam. Vou à feira do livro e vejo os escritores sentados com os livros à frente e fico espantado, é extraordinário, repare, eles escrevem! Quando era miúdo, vinha do liceu Camões e passava a pé por uma cervejaria, onde almoçavam o David Mourão-Ferreira e a Natália Correia e uma data de escritores... E eu ficava cá fora, a olhá-los, a vê-los comer - porque eles escreviam... 
> Mas também manifesta o seu desapreço: "Leio livros maus uns atrás dos outros: a quantidade de tralha que se imprime deixa-me de boca aberta. O que pensarão os autores destas coisas, das bodegas que fizeram? Se calhar andam felizes..."
Pois, vemos muita porcaria, é tremendo... Ainda ontem, a minha editora [Maria da Piedade Ferreira] esteve a mostrar-me os tops. Não há lá um único livro de literatura. São só livros de autoajuda, biografias muito mal escritas. Os livros bons não se vendem, porque será isto?  
> Mas há romances portugueses que o Lobo Antunes não considera muito e que vendem que se fartam... 
O que é um romance, não sei muito bem... O Guerra e Paz é um romance? O Tolstoi resolvia a coisa dizendo que um livro é aquilo que um escritor põe por baixo do título, ou como fez o Gogol que escreveu "poema" por baixo do Almas Mortas. Até que ponto será legítimo haver distinção por géneros, conto, romance, novela, eu digo sempre livros... 

Entrevista a António Lobo Antunes

> Parece-me que lhe agrada que haja uma distinção como fazem na grande casa alemã onde edita... Entre literatura e best-seller...
Sim, de um lado põem muitas coisas nórdicas, policiais e aquele género de leitura de aeroporto americano. Mudei-me para lá, porque havia um editor com quem me agradava trabalhar: é mais difícil encontrar um bom editor do que um bom escritor. Embora também não haja grandes editores sem grandes escritores. Mas vejo, sim, a quantidade de biografias mal escritas, o que é que quer? As pessoas não sabem gramática... 
> O que torna um livro bem escrito é apenas a sua consonância com a gramática?
Claro que não. Estava a tentar responder de uma forma rápida para as pessoas. O que é que o leitor encontrará lá? Eu não consigo compreender... 
> Talvez a facilidade os seduza ou algum embalo da previsibilidade...
Pois, não sei. Acho o Hermann Hesse um escritor para adolescentes; a gente, depois, cresce e começa a gostar de outras coisas. Noutro dia, puxei-o da estante e li esta frase "É estranho caminhar no nevoeiro, as árvores não se conhecem umas às outras". Isto é muito bom, fiquei cheio de inveja, eu que já tinha arrumado o Hesse em "escritores para adolescentes"... Ali, no corredor, passei pelo Dickens, uma parte em que um homem vai visitar a mãe num hospital e pergunta-lhe: "Tens dores, querida mãezinha?", e ela diz: "Tenho a impressão de que há uma dor aqui no quarto mas não sei se sou eu que a tenho." Isto é extraordinário, porque quando se está doente é exatamente isto. Bom, eu não sabia se ia viver ou morrer, mas a sensação é essa: ele consegue exprimir exatamente o que se sente num quarto de hospital. Onde se passa a noite a olhar pela janela à espera da manhã, como se ela nos viesse salvar. Mas a manhã nunca nos salva de nada... Se a gente trabalha muito, há milagres assim... 

Entrevista a António Lobo Antunes

> Por outro lado, afirma que sem talento nada feito...
Tem de se trabalhar muito, mas de onde vem aquilo que se escreve? Vem de nós? Até que ponto é legítimo a gente assinar com o nome? De que parte nossa ou não nossa vem? Os momentos bons parecem-me a mim que me são ditados, não há motivo para ser vaidoso, e julgo não ter vaidade. Julgo saber também o que os meus livros valem, mas não tenho vaidade nenhuma porque, sinceramente, não acho que seja o dono deles. Uma vez, um tipo disse ao Bach: "Ah, como eu gostava de ter composto essa tocata" e ele respondeu "se você tivesse trabalhado tanto como eu..." Não há talentos, há bois, pessoas que marram e marram e marram...
> Mas não tem dúvidas de que as suas obras são das que ficam...
Não me serve de nada... porque eu morro. Quando estava doente, e não sabia se ia viver ou morrer, estava-me bem nas tintas para os livros, e deram-me o Prémio Camões.  Eu queria lá saber, acabavam-me de dizer que tinha um cancro. Aliás, o que é um prémio literário? Um prémio não honra um escritor, os escritores é que honram os prémios. Devíamos dar os parabéns ao Nobel por alguns grandes escritores o terem ganho... 
> Há pouco disse não sentir vaidade mas parece ter noção do fascínio que provoca nas mulheres, por exemplo: "A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo."
Às vezes faz-me impressão ver, nos restaurantes, casais que não trocam uma palavra, ou vão os dois no carro a olhar em frente. Nós sonhamos sempre com um amor absoluto e sem fim. Eu vi isso nos meus avós. As minhas tias, já adultas, tinham de andar com os pés a bater no chão antes de entrarem numa divisão onde eles estavam para não os surpreenderem aos beijos e aos abraços. E não me lembro de ver os meus pais tocarem-se. O Freud defendia que numa relação sexual havia sempre quatro pessoas, às vezes até pode haver mais. Chega-se a uma altura em que a gente compreende que, às vezes, é mais importante estar de mão dada no sofá do que a fazer amor. E que isso pode ser mais íntimo, mais profundo e dar um prazer de uma intensidade muito grande. Pudesse eu andar de mão dada com o meu avô... [risos]. 
> O tal avô de que falava no início desta entrevista...
O meu avô paterno. Era monárquico, fascista, salazarista e era a pessoa mais tolerante, mais aberta e extraordinária. Foi o homem de quem eu mais gostei. Morreu quando eu tinha 18 anos e tenho muitas saudades dele. Era tropa de cavalaria, vivia apavorado que eu fosse maricas, porque escrevia coisas, o que era, para ele, uma coisa inconcebível. Chamava-se 
António Lobo Antunes, tal como eu, o meu nome todo. O avô dele passava fome na Póvoa do Lanhoso e o pai meteu-o, com 12 anos, num barco para o Brasil, num veleiro, por isso, veja as minhas origens: o primeiro Lobo 
Antunes, cujo pai era o tal Antunes que foi no veleiro e a mãe era uma senhora do Brasil que se chamava Lobo, que era evidentemente judia... O meu avô devia ser duro, porque era muito corajoso, muito forte fisicamente, mas nunca o vi ser violento. Não era muito inteligente, mas tinha uma grande bondade e generosidade. Dava-me beijos na rua e eu tinha imensa vergonha. Imagine a estupidez, um miúdo de 13 anos a ser beijado pelo avô, com medo de julgarem que éramos dois maricas. Fazia-me festas. Chegavam as férias e ia para casa dele, e, à noite, na cama, ia-me dar um beijo e levava-me bolachas e água... Mas, ao mesmo tempo, queria que aprendesse a disparar uma espingarda horrível e eu tinha um medo... tinha medo de tudo...  
> Fala muitas vezes de já estar "a rapar o fundo ao tacho", de não conseguir escrever mais...
Eu sinto que tenho livros para fazer, às vezes penso que sou como uma vaca, ou égua, ou cabra, que ainda pode engravidar mais três ou quatro vezes. Gostava de continuar a escrever. Às vezes penso que talvez tenhamos nascido com certo número de livros cá dentro. Se eu não os escrever, a minha vida não tem sentido. 
> Não pensa em fazer uma autobiografia, mas tem memórias tão marcantes e tão presentes na sua literatura... 
Em todos nós. Ortega y Gasset dizia que a vida adulta era a infância fermentada. A minha vida já está toda nos meus livros. Sobretudo nos últimos. Nos primeiros, tive de fazer aquela catarse, de me libertar da guerra e das coisas horríveis que vivi. E do sofrimento muito grande que sempre me acompanhou, para grande indignação da minha mãe que dizia "nasceste com tudo: és bonito, és inteligente, tens uma família que gosta de ti, não passas fome e nunca estás satisfeito..." Eu não sou grande espingarda na alegria, de facto. Nunca fui extrovertido nem alegre e sinto esta sede de amor e de ternura inextinguível... 
> A proximidade da morte mudou-lhe a vida? 
O que passei nos últimos seis anos, fez-me estar nas tintas para que os livros fiquem ou não. Passei por coisas muito duras, diante da morte. Aquele encontro com o [George] Steiner foi maravilhoso, nunca nenhum homem me impressionou tanto como aquele: pequeno, aleijado, com o braço direito com metade do tamanho do esquerdo, e a mãe, que odiava a autopiedade, obrigava-o a escrever com a mão direita... Nunca vi um homem tão culto, inteligente, luminoso... Disse-me: "Sabe porque é que eu não quero morrer? Porque depois não posso ler o jornal do dia seguinte." Quando ele sorria era extraordinário: tornava-se tão atraente. Ele é daquelas pessoas raras que, quando estão a falar connosco, parece que mais ninguém existe a não sermos nós e que nos fazem sentir únicos, está a ver?  
> Sim.
É tão raro isso, ele estava a olhar para mim e nada mais existia a não ser nós dois. E eu a dizer bem do Monte dos Vendavais e ele "mas não acha aquilo um bocadinho histérico?" e, de repente, dei por mim a olhar para o Monte dos Vendavais com os olhos dele e a achar que, de facto, é um bocadinho histérico [risos]. Quando leio 
Nabokov parece que ele me está sempre a dizer "repara como eu sou inteligente, repara como eu sou inteligente"... E isso irrita-me, não quero sentir o autor. Pois, disse o Steiner, mas ele inventou uma coisa: as Lolitas, que agora há por todo o lado. É verdade, ele é que as inventou... Passei uma tarde maravilhosa, foi tão bom, um prazer intenso, ele tinha em casa o piano do Darwin, e cartas do Freud para o pai... Em Harvard, o gabinete dele ficava ao pé do  de um grande físico, um homem de grande beleza, com um cachimbo, e que toda a gente tentava imitar, os gestos e tal. Uma vez, Steiner ouviu-o a dar uma descompostura a um outro físico: "Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco?" Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco... É extraordinário. 
> Mas já afirmou que não acredita em bons romances antes dos 30 anos...
Porque é preciso ter vivido. Quem teve, como eu, uma infância isolada, em Benfica, que era um arrabalde, com pouca gente, onde todos se conheciam... A minha mãe sabia as horas pelas pessoas que passavam nos elétricos, e dizia-se "ir a Lisboa"... Saí dali para o liceu. Do liceu para a faculdade. Da faculdade para a guerra. Não tinha vivido nada. Não havia raparigas, não tinha irmãs, era o filho mais velho de dois filhos mais velhos, não tinha primas, só nasceram muito depois. Não sabia o que era uma rapariga, tinha imensas fantasias, mas não sabia o que era. Os liceus não eram mistos, só na faculdade é que havia raparigas, mas era tímido demais para meter conversa e fui virgem até muito tarde. Tinha uma vida solitária. Foi só na guerra que me apercebi de que não era o centro do mundo. Era um como os outros, ali. E os rapazes portugueses eram extraordinários, vi-os na guerra, na doença, com uma dignidade... "Abraça-me que é o último abraço que me dás", já viu isto?... E como a morte é injusta e cruel o sofrimento... O condutor do rebenta-minas era sorteado, tinha mais chances de morrer, e vinham ter comigo, porque queriam fazer o testamento: tinham um fio, um anel e um relógio, quando tinham... Uma vez, numa emboscada, um rapaz sem pernas só dizia: "Quando o meu pai souber mata-se, quando o meu pai souber mata-se..." E foi aí que comecei a tornar-me pessoa crescida. Na faculdade, havia aquele movimento contra a ditadura, mas eu era cobarde e tinha medo. E então em África, os soldados só admiravam as pessoas quando eram duras e eu queria ganhar o seu respeito, porque me tinha comportado sempre como um cobarde: na faculdade tinha medo da polícia de choque, tinha medo da Pide, tinha medo de tudo... Era um cobarde. E agora a coisa em que eu tenho mais orgulho é no amor dos meus soldados. Eu olho para eles e, de repente, eles têm outra vez 21 anos, quase todos do Norte, mas muito mais adultos do que eu, que, com 26, me achava um homem. Só então percebi porque fomos nós que andámos nas caravelas... Fazíamos uma guerra sem condições nenhumas, o stresse era constante, mas havia momentos bons, mesmo de alegria, foi lá que conheci pessoas extraordinárias, corajosas, generosas, boas. E eu que não sabia que as pessoas podiam ser tão boas. Se as minhas filhas estivessem aqui, começavam já a dizer em coro: "O pai tem a mania que toda a gente é boa"... [risos]. As pessoas sofrem tanto, e a vida é tão injusta, quase para toda a gente... e o que a gente sofre e ninguém sabe...  

Entrevista a António Lobo Antunes

> Há muitas crónicas em que parece que fala com amor da amizade...
É engraçado, eu beijo os meus amigos, que não são muitos, mas beijamo-nos sempre. Mas nunca tive um amigo homossexual que me beijasse. Esses estendem-me sempre a mão. Nunca percebi porquê. O Cardoso 
Pires beijava-me, o Eugénio de Andrade nunca. E, no entanto, eu sei que ele gostava muito de mim. Nunca o fui ver, porque a doença o tinha atacado naquilo que ele mais prezava: a sua beleza. Tinha sido muito bonito, uns olhos verdes lindíssimos. E sei que ele esperava por mim, porque dizia à senhora que tomava conta dele "ponha o meu fatinho aí, porque se calhar o meu amigo vem ver-me", e eu nunca o fui ver... E ele comigo foi sempre de uma ternura e doçura. Quando mataram o Dias Coelho teve a coragem de publicar um poema. Tinha, em relação aos amigos, uma imensa elegância. Numa ocasião, saíra um livro do Jorge de Sena, de quem ele era muito amigo, que era o Dedicácias, em que Sena atacava, de uma forma, a meu ver, reles, homens que tinham muito mais talento do que ele, o Mário Cesariny, o [Vitorino] Nemésio... Cheguei lá a casa do Eugénio de Andrade e disse-lhe: "Já viu o que o seu amigo Jorge escreveu?" Ele ajoelhou-se e tirou o livro de baixo do sofá e explicou-me que o tinha escondido ali para que eu não pensasse mal do Jorge. Acho isso extraordinário de amor. Arranquei a página de um livro com uma dedicatória de um escritor italiano que diz: "Para o António com amorzade."  
> Está ali na sua parede...
Achei tão bonita a frase que a emoldurei. A amizade é como o amor, a gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.  E o Zé [Cardoso Pires] faz-me muita falta. Ele dava-me o braço na rua, um homem seco e rugoso, com uma personalidade difícil, dava-me o braço na rua... imagine. Ele tinha gestos de uma infinita generosidade... Sempre que um pedinte o interpelava, ele, sempre com tão pouco dinheiro, parava e andava à procura nos bolsos... e dava. Uma vez, fez-me um telefonema tão bonito: "É para te dar os parabéns, porque ganhei um prémio." E depois tinha a mania do Nobel, e dizia "perdemos", porque ficava muito triste porque não me tinham dado o Nobel.  
> Já não pode mais com a conversa do Nobel, pois não?
Quero lá saber, já me deram tanta coisa. Prémios que eu nem sabia que existiam. Noutro dia, telefonaram-me de Espanha, foi uma barraca, porque me disseram que tinha ganho o prémio Rufo e a minha resposta foi "Quanto?" - e ouvi imensos risos de pessoas, estava em alta voz, em plena conferência de imprensa. Era uma pipa de massa.  
> Há bocado pareceu-me que fugiu à questão quando eu lhe perguntei, citando uma frase sua, se tinha noção do fascínio que exercia nas mulheres...
Aí voltamos ao Mozart. Se eu pudesse sentar-me ao colo da Maria Antonieta e pedir-lhe para ela gostar de mim...

Entrevista a António Lobo Antunes


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