segunda-feira, 22 de julho de 2013

«HELENA - Chega! Mas como tu és cansativo! Que cansativos se tornaram todos os homens desta terra, desde os reis ao mais enlouquecido vagabundo! A falta que lhes faz a guerra! O mais parecido que agora acharam para se entreterem é insultarem as mulheres!»



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 64/5
«ORESTES - É um grito que o tempo, por si só, nunca terá poder para apagar. É o grito do homem que morre atraiçoado pela própria mulher. O que se houve em Micenas não é a dor da carne que a faca dilacera. É a do coração. E essa perdura. Como se o ar em volta da cidade fosse de bronze e o grito não achasse saída. Embate às cegas, fere-se, recua, e atravessa os ouvidos de cada cidadão.»




Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 63

engodo

 
«Dentro da solidão os espantalhos (não lhes fora dada
A companhia dos pássaros)
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 289

«As pessoas que nos querem bem têm direito a odiar-nos de vez em quando.»

 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 40
 
«Repare como é a minha senhora. Até na sua loucura se mostrava vivaça e tem resposta para tudo.»
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 24
«Diana falava com tal velocidade que se eu não mostrava discordar, as afirmações dela iam por ali fora e eu tinha de fazê-la tornar atrás para as discutirmos. E depois, estava tão nervosa (e eu tinha-lhe tanto amor) que, para não a contrariar, muitas vezes não a desenganei. Se a tivesse contrariado, pobre de mim. É muito severa quando se irrita e garanto-lhe que não faz as pazes enquanto a gente se não tiver arrastado de remorso e pedido perdão até ao esgotamento.»
 
 
 
 
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 24

''vantagens e inconvenientes da coleira de adestramento''

Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 20

 «Esclareço que, até ultimamente, as piores  coisas tinham sido disputas com Diana e acessos de ciúmes por deslizes que apenas existiram na minha imaginação.»



Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 20

«Também não nego que várias vezes eu e a minha senhora nos zangámos e que uma noite - receio que toda a viela tenha ouvido o alvoroço -,  pensando a sério ir-me embora, desarvorei até Los Incas, à espera do autocarro, que por sorte tardou e me deu tempo para reconsiderar. Provavelmente muitos casais conhecem semelhantes aflições. É a vida moderna, a velocidade. Posso é dizer-lhe que a nós os azedumes e as diferenças não chegaram para separar-nos.»



Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p.12

domingo, 21 de julho de 2013


«ETRA (com malícia) - Vê como falas. Mesmo que isso seja verdade, é uma das verdades que nunca se declaram. Não podia viver-se num mundo em que as palavras não passassem primeiro pelo crivo do bom senso.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 55

Somente as inocentes enlouquecem.

« HELENA (insistindo) - Veio agarrado a mim todo este sangue, escorreu-me pelas pernas à medida que eu ia caminhando. Olha ali, olha, a marca de uma sandália minha. Está o meu rasto a sangue em toda a parte.

ETRA - Estás a ver tanto sangue como eu. Helena, pára.  Só estou eu aqui. Já não caio nessa história há muito tempo.

HELENA  (parando, olha para Etra como uma criança) - O sangue está em toda a parte. Em toda a parte. Nunca mais deixa de escorrer por mim abaixo.

ETRA - Ela e as suas grandes atitudes! Imitas muito bem as loucas, querida. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente as inocentes enlouquecem. (Tira-lhe o balde com violência)



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 48
(...) Pirro agride e domina Helena, numa ambiguidade de intenções

PIRRO - O meu pai! O meu pai não é para aqui chamado. Julgas que não se sabe que também ele te desejou que nem um doido?  Tu porque não o aceitaste, tu, que dormiste com todo o cão vadio?

HELENA - Deixa-me. Que queres tu? Fazer-me medo? Se é o medo que tu amas, nunca, mas nunca, ouviste? o verás  nos meus olhos.»



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 46

pau-mandado

« HELENA (rindo) - Que bebedeira, que exagero, ó deuses! A falta que lhe fez a mão da mãe assente a tempo próprio no focinho.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 38

displicência


nome feminino

1. estado de quem se acha triste ou aborrecido
2. desprazer; desgosto
3. tédio; sensaboria
4. indiferença
5. indolência

(Do latim displicentĭa-, «desprazer; desgosto»)

pasmaceira

por dá cá aquela palha


«MENELAU - (...) O meu genro tem lá o seu feitio, já o pai era assim. Só estava bem, zangado.»


Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 24
(...)

«HELENA - Eu tinha de fazer qualquer coisa...

HERMÍONE - Estraçalhar maridos é um bom passatempo.

PIRRO - Minha mulher Hermíone tem carácter. Sai à mãe.

ETRA - Se é carácter andar de uma cama para a outra...

HELENA - Que dizes?

ETRA - Nada, Helena. Orava aos deuses. Para que entre nós a paz não seja breve e esta doméstica alegria se prolongue pelos restantes dias da nossa vida.»



Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 23

A fisherman at home, 1887


apascentar


verbo transitivo

1. dar pasto a (gado)
2. levar ao pasto; pastorear
3. figurado doutrinar


verbo pronominal

 1. deleitar-se
2. instruir-se

(Do latim *appascentāre, «apascentar»)

''Escrevo do lado mais invisível das imagens''

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 271

''Vejo o pedreiro à chuva a abrir aquedutos para o coração''

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 267

paveia

nome feminino
 
 1. feixe pequeno de palha ou de feno
2. monte de mato roçado
 
 
 

domingo, 14 de julho de 2013

''coração enfraquecido''


esquecê-lo-ás

«Deixarás aqui o que te atormenta e pode provocar a tua destruição e esquecê-lo-ás só pelo facto de o não veres. O remédio é infalível: é suficiente deixar de ver, porque não existe nenhum caso em que se não possa esquecer.»



Thomas Mann. O Cisne Negro. Tradução de Domingos Monteiro. Estúdios Cor, Lisboa., p. 93
«Já então meu coração se contraiu de dor. Mas não compreendi, nem pensei que era ciúme, nem me supunha capaz de o experimentar. Mas eu estou com ciúmes. Agora compreendo e deixei de o negar.»


Thomas Mann. O Cisne Negro. Tradução de Domingos Monteiro. Estúdios Cor, Lisboa., p. 63

domingo, 7 de julho de 2013

Solidão


«Deus seja louvado por nos ter dado a solidão...Agora estou só.»



Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 236

«É estranho que nós, que somos capazes de sofrer tanto, possamos infligir aos outros tanto sofrimento.»


Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 236

26


«Mas como descrever um mundo de que o eu está ausente?»

Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 231

sem peso e sem ilusões

«Fui uma sombra ocupada a registar sombras. Mas como prosseguir agora, sem um eu, sem peso e sem ilusões, num mundo sem ilusões e sem peso?»


Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 229

«Separamo-nos, perdemo-nos na escuridão das árvores, (...)»

Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 223

Os nossos amigos

 
«Os nossos amigos, como os visitamos pouco, como os conhecemos pouco - é verdade.»
 
 
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 221

Colourful Rock Formations in the Zhangye Danxia Landform Geological Park, China



daqui

continuo sentado na solidão

«Visitei cada um dos meus amigos, tentando com dedos inseguros abrir os seus pequenos cofres fechados. Expus-lhes a minha dor - não, não a dor, mas o sentimento do incompreensível mistério da vida - e pedi-lhes que a examinassem comigo. Alguns procuram os sacerdotes; outros a poesia. Eu refugio-me junto dos meus amigos, vou procurar o meu próprio coração, busco qualquer coisa intacta entre frases e fragmentos, eu a quem o contacto de uma pessoa com outra é tudo, mas que nem sequer isso consigo estabelecer, permanentemente imperfeito, frágil e indizivelmente solitário. E por isso, continuo sentado na solidão.»
 
 
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 214

''a erva queimada pela geada''

Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 214

O que era ardente e furtivo...

«Crescemos pela acumulação de sucessivas camadas até nos tornarmos robustos. O que era ardente e furtivo como um punhado de grãos lançados no ar e dispersos em todas as direcções pelos desordenados ventos da vida, é agora metódico e ordenado, semeado com um objectivo. Ou pelo menos assim parece.»
 
 
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 210

quarta-feira, 3 de julho de 2013

''tranças cor de linho''

Home

bacia de cobre

«Tinha uma bacia de cobre onde punha a flutuar pétalas brancas.»

''dossel formado pelas folhas da groselheira''

Peter Emerson


As ondas de escuridão

   O sol descera finalmente no horizonte, e era agora impossível distinguir o céu do mar. Ao desfazerem-se, as ondas espalhavam na praia os seus grandes leques, enviavam sombras brancas para as profundezas das cavernas e refluíam suspirando sobre os seixos.
   A árvore sacudiu os ramos espargindo folhas pelo chão. As folhas pousaram com perfeito rigor no local onde vão esperar a sua decomposição. O vaso quebrado, que antes contivera a luz vermelha, derramava agora no jardim tons cinzentos e negros. Escuras sombras enegreciam ainda mais os túneis abertos entre os caules das plantas. O tordo estava agora silencioso e o verme encolhido no seu pequeno buraco. Às vezes, uma palha esbranquiçada, arrancada a algum ninho abandonado, caía na erva escura onde as maçãs apodreciam. A luz desaparecera da casa das ferramentas e a pele de víbora pendia de um prego. Todas as cores do quarto tinham transbordado os seus limites. As pinceladas do artista tinham-se tornado demasiado cheias e oblíquas: os armários e as cadeiras misturavam as massas castanhas numa vasta obscuridade. Do soalho ao tecto, pendiam grandes cortinados de trémula escuridão. O espelho estava pálido como a entrada de uma caverna sombreada por trepadeiras.
    As sólidas colinas pareciam ter perdido substância. Luzes errantes arrastavam os seus penachos por invisíveis estradas submersas. Mas nem uma só luz surgia por entre as asas dobradas das colinas e nenhum som se ouvia além do grito do pássaro procurando uma árvore solitária. Na borda da falésia, o murmúrio do vento que atravessara as florestas encontrava-se com o da água arrefecida nas inumeráveis e vítreas profundidades do oceano.
     Como se existissem ondas de escuridão, a noite avançava cobrindo as casas, as colinas e as árvores, como as ondas do mar varrem os flancos de um navio naufragado. A escuridão cobria as ruas, rodeava os seres isolados e submergia-os. Envolvia também os amantes abraçados à sombra da folhagem densa dos olmos de Verão. As ondas de escuridão avançavam pelos caminhos cobertos de erva e pela terra ressequida, envolvendo o espinheiro solitário e as casas vazias dos caracóis. Depois a escuridão subiu, soprando pelos flancos nus das colinas e atingindo os eruditos cumes das montanhas onde a neve se aloja na dura rocha, mesmo quando os vales estão repletos de arroios e de folhas amarelas das videiras e as raparigas sentadas nas varandas olham a neve protegendo o rosto com leques. Depois a escuridão cobriu também as raparigas.



Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.189/190

segunda-feira, 1 de julho de 2013

segador

Edward Sharpe & Jade Castrinos


Ele tem a giesta onde faz nascer a neblina

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 260

1

 
 
Consomes-te, não podes apagar-te
Com o bater da mão sobre o teu peito
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 253

Transforma o coração na coisa desamada


Transforma o coração na coisa desamada
No vaso a transbordar que quebras com a boca
E asperge
                        a tua pulsão no meu sangue
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 251

domingo, 30 de junho de 2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013


 
DEVANEIO E EMBRIAGUEZ
  DE UMA RAPARIGA



Clarice Lispector. Laços de Família. Contos. Prefácio de Lídia Jorge. Relógio D' Água. Lisboa., P. 7
«Neste momento estou morta. É do meu túmulo que vos falo.»


Clarice Lispector

domingo, 16 de junho de 2013

O fio de água no olhar de quem amei.

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 229

DO SACRIFÍCIO DE ISAAC

Queimará o monte, o filho, a lenha
A morte, as areias, a viagem
O deserto, a túnica, as estrelas
 
Nunca será bastante o incêndio
 
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 226

''A boca é um alimento''

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 221
«A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido»
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 218
«Apedrejas-me com a mesma pedra que me dás
Para o descanso»
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 212

Sweet Springtime, 1891-22


tarambola



nome feminino

1. ORNITOLOGIA nome vulgar de uma ave pernalta, pertencente à família dos Caradriídeos, por vezes frequente em Portugal, nas suas passagens migratórias, também conhecida por pildra, dourada, douradinha, marinho, marinho-branco, pildra-preta, pildra-dourada, tordeira-do-mar, etc.

2. regionalismo grande roda hidráulica munida de alcatruzes para tirar água dos rios
 
      O sol baixava no horizonte. O dia estilhaçara-se como uma pedra dura e a luz derramava-se pelas suas fendas. Como rápidas flechas emplumadas de trevas, os raios vermelhos e dourados trespassavam as ondas. Cintilações luminosas erravam no espaço como sinais de ilhas que se afundavam ou dardos lançados através das folhas de um loureiro por rapazes sorridentes e desavergonhados. Mas as ondas revestiam-se de um ruído prolongado e surdo, como o de um muro desabando, um muro de pedras cinzentas que nenhuma luz poderia atravessar.
     Uma brisa ergueu-se; um frémito percorreu as folhas que perderam a sua compacta cor castanha, tornando-se cinzentas ou brancas, quando a árvore se moveu, perdendo a forma da cúpula. O falcão pousado no ramo mais alto bateu as pálpebras, elevou-se nos ares e ficou a planar ao longe. A tarambola silvestre gemeu nas terras pantanosas, fugindo, traçando círculos e gritando cada vez mais longe, na solidão. O fumo dos comboios e das chaminés subia no ar e desfazia-se convertendo-se em parte do dossel que parecia pairar sobre o mar e os campos.
    O trigo já fora ceifado. Agora, das suas ondulações, só restava aqui e ali, o restolho cintilante. Lentamente, uma enorme coruja pousada no olmo, balouçou-se e elevou-se numa sucessão de curvas até ao cimo do cedro. Sombras lentas alargavam-se e estreitavam-se ao passar sobre as colinas. O charco no meio das terras pantanosas repousava sem vida. Nenhum rosto hirsuto fitava a sua imagem, nenhum casco chapinava nele, nenhum focinho quente agitava as suas águas. Um pássaro pousado num ramo cinzento bebeu um sorvo de água fria. Não havia sons de colheitas, nem ruídos de rodas, mas apenas o clamor do vento enchendo as velas e varrendo as ervas. Um osso jazia no solo, gasto pela chuva e esbranquiçado pelo sol, brilhando como um ramo polido pelo mar. A árvore que na Primavera se recobria de reflexos vermelhos e no Verão deixava as folhas ondularem ao vento sul, estava agora negra e nua como o ferro.
     O horizonte estava tão distante que já não se podiam ver os telhados brilhantes e as janelas cintilantes. A terrível densidade da terra envolta em sombras, tinha absorvido esses frágeis grilhões, esses obstáculos tão frágeis como as conchas dos caracóis. Subsistia apenas a sombra líquida de uma nuvem, o ruído da chuva, um isolado raio de sol, ou a brusca aparição da tempestade. Nas colinas distantes, as árvores erguiam-se como obeliscos.
     O sol do entardecer, difuso e sem calor, dava suavidade às cadeiras e às mesas e marcava-as com losangos castanhos e amarelos. Duplicados pelas próprias sombras os objectos pareciam mais pesados, como se a cor tivesse escorrido obliquamente para um dos lados. As facas, os copos e os garfos davam a ilusão de ser mais longos, mais maciços, adquirindo um aspecto majestoso. Debruado no seu círculo dourado, o espelho parecia olhar a cena como se a quisesse fixar para a eternidade.
     Entretanto, as sombras alongavam-se sobre a praia e a escuridão aumentava. O velho sapato, de um negro cor de ferro, era agora uma sombria mancha de azul. As rochas perdiam a sua dureza. A água em volta do velho barco era negra, como se estivesse repleta de mexilhões. A espuma tornava-se lívida e, aqui e ali, deixava brancas cintilações de pérola na praia envolta em bruma.




Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.166/7

Eleanore


''Viver tem sido terrível para mim.''

Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.161

''acha de lenha''


«Devemos ser cépticos, mas também saber prescindir de todas as cautelas e aceitar o que surge quando a porta se abre.»



Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.159

nenúfares

 
    O sol declinara no horizonte. As ilhas de nuvens haviam-se feito mais densas e deslizavam diante do sol. Os rochedos tornavam-se subitamente sombrios. O trémulo cardo marinho passava de azul a prateado e sombras impelidas pelo vento deslizavam sobe o mar como pedaços de tecido cinzento. As ondas já não atingiam as poças mais distantes, nem alcançavam a linha negra que estendia o seu traçado irregular sobre a praia. A areia tinha uma cor de pérola, suave e brilhante.
    Os pássaros volteavam em pleno céu. Alguns deslizavam velozmente nos corredores de vento, giravam e separavam-se como se fossem mil fragmentos de um mesmo corpo. Tombavam do cimo das árvores como uma rede. Um deles voou solitariamente em direcção aos campos e pousou numa estaca branca, abrindo e fechando as asas.
     No jardim, algumas pétalas tinham caído. Repousavam sobre a terra como conchas. A folha morta já  não jazia na beirada; o vento apoderara-se dela, elevando-a e deixando-a cair e tinha-a largado junto dum silvado. Em todas as flores passava a mesma onda de luz, num repentino frémito e esplendor, como se uma barbatana fendesse o verde cristal de um lago. Às vezes uma forte rajada de vento fazia balouçar simultaneamente as inumeráveis folhas; depois, quando o vento passava, cada folha recuperava a sua identidade. Os claros discos das flores brilhavam ao sol; afastavam-se da luz ao serem agitadas pelo vento e algumas cabeças demasiado pesadas para voltarem a erguer-se ficavam ligeiramente inclinadas.
     O sol da tarde aquecia os campos, azulava as sombras. avermelhava o trigo. Os campos brilhavam ao sol como se tivessem sido envernizados. Uma carroça , um cavalo, um bando de gralhas, tudo o que se movia sob a luz do sol parecia banhado a ouro. Ao moverem as patas, as vacas provocavam ondulações de ouro avermelhado e os seus chifres pareciam revestidos de luz. Feixes de trigo louro jaziam nas sebes, perdidos pelos carros baixos e primitivos que chegavam dos campos. As nuvens arredondadas no céu sem perderem sequer o átomo da sua forma. Ao passarem numa aldeia colhiam-na por inteiro na sua rede de sombras e ao afastarem-se deixavam-na de novo livre. Longe, muito longe no horizonte, entre milhões de grãos de poeira de um azul-cinza, via-se arder um vidro ou destacar-se uma silhueta solitária de um campanário ou de uma árvore.
     As cortinas vermelhas e as persianas brancas agitavam-se embatendo no rebordo da janela e a luz que entrava em convulsões irregulares tinha um tom acastanhado e um certo ar de abandono ao passar pelas cortinas atormentadas pelo vento. Dava um tom acastanhado a um armário, avermelhava uma cadeira e fazia a janela ondular no flanco do jarro verde.
    Por um instante tudo vacilou, tudo mergulhou numa atmosfera de ambígua incerteza, como se uma  grande mariposa flutuando no quarto tivesse ensombrecido com as suas asas trementes a imensa solidez das cadeiras e das mesas.
  


Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.146/7


«É um grande alívio ter alguém a quem podemos chamar a atenção para qualquer coisa. Ou então com que se possa estar em silêncio. Ou com ele seguir as obscuras veredas da mente e penetrar no passado, visitar livros, afastar os seus ramos e colher os frutos.»



Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144

''um pôr do sol invernal na extensão dos campos''

Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144

cabra montês


«De todos os nossos encontros foi esse o mais perfeito. Mas estes encontros e separações vão acabar por destruir-nos.»



Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.143
 

«Sim, o tempo passa. E envelhecemos. Mas estar sentado junto de ti, sozinho contigo, em pleno coração de Londres, neste quarto iluminado pelo fogo, é tudo o que posso desejar.»

Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.142

« (...) permaneço pouco tempo no mesmo sítio; a ninguém me ligo em particular;»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.140

sábado, 15 de junho de 2013



Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares

Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior

Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 195

Porque a morte tem o seu tempo

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 184

amendoeira

Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 175

Preparou o coração com a lenha do arado

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 158

dedal


Para encontrar golpe no sono

 
Agora és um animal que pensa
Amanhã um animal que dorme
Mas tens uma noite inteira para dormires do mesmo lado
 
Hoje és um dia que começa outra vez
Como se hoje pudesses plantar o dia que não acaba
Um animal que come a sombra diurna daquilo que é pensado
 
És um alimento
Agora és um alimento que dorme
Do mesmo lado da mão direita de quem colhe
 
Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica
E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada
Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive
Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga
 
Agora és um animal que se propaga no sono
Que pesa menos do que o sonho ou um pássaro
Um animal que se eleva em seu instinto de máquina
 
És agora uma máquina montada para a morte
Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta.
E fabricas um homem que se afasta
 
Do mundo
 

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 138

Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores

Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes de visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito os olhos cobertos
Por escamas


Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas

Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver


Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado

E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre de Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 136/7

«Como se amansam as fúrias?»
 
 
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 77

«(...) não prefiras o orgulho à sensatez.»

 
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 76

«Bem melhor é morrer uma só vez do que sofrer todos os dias.»

Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 58
 

sexta-feira, 14 de junho de 2013

carrosséis

sábado, 8 de junho de 2013

 
«Digo-te a verdade: nunca foi do meu agrado cativar os espíritos com palavras fúteis.»
 
 
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 34
 

«O peso da presente dor sempre te há-de consumir e está ainda para nascer quem será capaz de consolar-te.»
 
 
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa

Winter



«Amarro espigas molhos de espigas »

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 104
 

Homens que são como Lugares mal Situados


Explicação do amor e do orvalho

Uma fogueira no meio da noite cercada
Por um homem com olhos rasos de água
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 113
 

«Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência? »


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 111






«Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.»


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 100

EXPLICAÇÃO DA MADRUGADA

Água entre muralhas:
O orvalho
 
 
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 89

«-Mais interior do que o sangue no coração que me darás -»


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 86

«Com os teus lábios podes destruir-me.»

 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 77
 
 

«Regressou como que repetiu o caminho cada dia »

 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 75
O homem lança a rede e não divide a água
O pobre estende a mão e não divide o reino

É tempo de colheitas e não tenho uma seara
Nem um pequeno rebento de oliveira
 

 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 74

pousio

domingo, 2 de junho de 2013


«Júlio - (...) Prudências e astúcias de uma velha, dissimuladas sob os riscos e prantos de uma criancinha...Isso é o que tu és!»




José Echegaray. Mancha que Limpa. Tradução de R. Magalhães Júnior. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1971., p.  94


«Lourenço - Quando encontro um coração compassivo como o seu, deixo que transbordem todas as amarguras da minha existência.»




José Echegaray. Mancha que Limpa. Tradução de R. Magalhães Júnior. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1971

''a melancolia dos sonhos impossíveis''

 
«Lembra-se - continuou Ernst - do que nos dizia muitas vezes: que a saúde mental de uma pessoa não estava no que ela fazia, mas sim naquilo em que ela pensava? Lembra-se de perguntar a cada um de nós: em que tens pensado? Lembra-se dessa pergunta, que nos metia medo? Se agora me fizesse de novo essa pergunta, agora que me sinto equilibrado, sabe o que lhe respondia? Que nos últimos dias tenho pensado em matá-lo.»
 


Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 139

Pedra de Sísifo II

Agora medirei o tempo
Pela vara erguida ao meio-dia
Pela areia a descer o coração
E o sono
 
Pela cinza no cabelo de Jacob
Pelas agulhas no colo de Penélope
 
Agora lavarei a minha face
Sem perturbar os círculos da água
Medirei o tempo pelo peso da pedra
De Sísifo, perto do cimo
E pelo musgo que dificulta
A firmeza dos seus pés
 
Partirei sozinho na viagem
Sem nenhuma pedra ou senda repetida
E no tempo repetido acharei uma saída
Uma manhã depois de uma manhã
 
 
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 70

''A viagem sempre repetida''

Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 69

Labirinto II

«(...)



A teia é movimento que persiste
Em sua paciência.
Como Ariadne costurando umbrais
Para que Teseu possa vir do nada.»


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 67

AQUILES E PÁTROCLO


Nem sucessivas e sucessivas migrações de aves
Perfarão a distância que agora nos separa
Mas esta nau não me levará a casa
E seguir-te não será morrer



Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 65

«Naquilo que não fui vim a encontrar-me
E sempre que te vi recomecei»



Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 59

indigência


nome feminino

1. situação de quem vive em condições de miséria, sofrendo necessidades básicas (comida, vestuário, abrigo, etc.); pobreza extrema
2. falta de alguma coisa; carência
3. conjunto de pessoas que vivem em grande pobreza


(Do latim indigentĭa-, «carência»)

''ideia ensimesmada''

Explicação da pedra enquanto lume


Tenho aflição por tudo o que morre
Como tenho pavor por cada noite que cai.
Como fui esquecer o caminho para fora?

Infeliz que esqueci as sendas da caça.
Comerei erva? Sol? Comerei estepes e estepes
A arder?

Vou-me pôr à mesa  e esperar.

Tenho aflição por toda a ausência não anunciada
Acendi a luz por toda a casa e electrifiquei a voz
Agora posso ampliar o clarão dos gritos.

Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta
Que fez o povo atravessar enxuto o interior da água.

Vou-me encostar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.
Fazer de conta que estou a esperar.



Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 40
Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida irrompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.


Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 19
               Nas pálpebras
da noite
Chorei
cadências
que me ensinaram
que o Amor     Ama-se
 
 
Assim teus
Olhos.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

domingo, 26 de maio de 2013


O sobrevivente de um campo de concentração disse:

«Os homens normais não sabem que tudo é possível.»


Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 139

«Não precisavam um do outro, pareciam pois preparados, se necessário, para o ódio.»



Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 108

curado de

«Estar curado não era apenas deixar de ter determinados comportamentos, era ainda esquecer o trajecto que de novo os poderia recuperar.»




Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 104

«Wisliz traz uma ligadura na cabeça.
  Fui operado à cabeça, diz Wisliz.
  Tiraram-me a inteligência.
  Dizem que sou estúpido, que não percebo.
  Eu fico cansado, não me consigo concentrar.
  Preciso de dormir muito, diz Wisliz.»


Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 85/6

quinta-feira, 16 de maio de 2013


«A Noiva»

   «A Noiva», chamavam-lhe, uma argentina com um físico que não era mau de todo embora tivesse, quanto à moral, uma única ideia: casar com o pai. E então dava sumiço às flores dos canteiros, uma a uma, para serem espetadas no grande véu branco que usava dia e noite, onde quer que estivesse. Um caso de que a família, religiosamente fanática, tinha uma horrível vergonha. Escondiam do mundo a filha mais a sua ideia. »
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 392

«Enfeitiçava-me de estupidez.»

«Eu nunca mais voltaria a dormir profundamente. Tinha como que perdido o hábito daquela confiança, da que é bastante necessário nós termos, e em grande quantidade, para adormecer profundamente entre os homens. »
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 390

Parapine

«(...) Parapine é um rapaz que tenho na conta de inteligente, bem entendido...Mas apesar de tudo um rapaz com uma inteligência inteiramente arbitrária! Não acha, Ferdinand? - entièremeng, como ele dizia. - Antes de mais, é um rapaz que não quer adaptar-se...É coisa que se nota logo...Nem sempre está à vontade na profissão...Não está sequer à vontade neste mundo! ...Confesse!...E neste ponto ele não tem razão! Nenhuma razão!...E então sofre!...A prova é esta. Olhe para mim, veja como eu me adapto, Ferdinand!... - batia no esterno. - Que a terra comece amanhã a girar ao contrário, por exemplo. Muito bem, e eu? Adapto-me, Ferdinand! E logo de seguida! Sabe como, Ferdinand? Dormindo mais umas dozes horas, e acabou-se! E pronto! Para a frente! Não é mais esperteza que isto! E a coisa fica arrumada! Estou adaptado! Enquanto o seu amigo Parapine, esse, sabe o que ele faz numa aventura semelhante? Põe-se a ruminar projectos e azedumes durante mais cem anos!...Tenho a certeza!»
 
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 381
«Em suma, a grande fadiga da existência talvez não passe do enorme esforço que fazemos para continuar vinte, quarenta anos ou mais razoáveis, para não sermos simplesmente, profundamente nós próprios, isto é, imundos, atrozes, absurdos. Pesadelo de termos sempre que apresentar como ideal universal, e super-homem de manhã à noite, o infra-homem claudicante que nos deram.»
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 380
«Por vezes, os loucos vinham às janelas do refeitório que davam para a rua berrar e alvoraçar a vizinhança, mas principalmente dentro deles próprios é que o horror continuava. Ocupavam-se pessoalmente desse horror e preservavam-no contra os nossos cometimentos terapêuticos. Apaixonava-os, essa resistência.»
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 379

O manicómio de Vigny-sur-Seine

 
          O manicómio de Vigny-sur-Seine nunca desenchia lá muito. Nos jornais intitulavam-no «Casa de Saúde» por causa de um grande jardim que o rodeava e onde os nossos loucos passeavam quando fazia bom tempo. Passeavam, os loucos, com um estranho ar de quem achava difícil equilibrar a cabeça sobre os ombros, como se tivessem constantemente medo de tropeçar e espalhar o seu conteúdo no chão. Lá dentro tinham fechada toda a espécie de coisas saltitantes e patuscas a que estavam horrivelmente agarrados.
          Só nos falavam dos seus tesouros mentais, os alienados, com uma porção de contorções horrorizadas ou ares condescendentes e protectores, como se fossem muito poderosos e meticulosos administradores. Nem um império faria aquela gente abdicar das suas cabeças. Um louco não passa de vulgares ideias de homem, embora bem fechadas numa cabeça. O mundo não lhe atravessa a cabeça, e isso basta. Uma cabeça fechada transforma-se numa espécie de lago sem rio, numa infecção.
          Baryton abastecia-se de massas e legumes em Paris, a grosso. Por isso os comerciantes de Vigny-sur-Seine não gostavam lá muito de nós. Nem sequer nos podiam ver, pode mesmo dizer-se. Mas esta animosidade não nos tirava o apetite. À mesa, quando o meu estágio começou, Baryton extraía regularmente conclusões e filosofia das nossas desconchavadas conversas. Mas como tinha passado a vida entre alienados, a ganhar o pão com o seu tráfico, a partilhar a sua sopa, a neutralizar-lhes como podia a insânia, nada lhe parecia mais entendiante do que às vezes ter de falar das manias deles durante as refeições. «Não devem estar presentes na conversa de pessoas normais!», afirmava defensivo e peremptório. Pela parte que lhe tocava, agarrava-se a esta higiene mental.
       Gostava de conversa, ele, e de uma forma quase inquieta, gostava dela divertida, sobretudo tranquilizadora e bastante sensata. No que respeitava a tolinhos não queria insistências.»
 
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 378

quarta-feira, 15 de maio de 2013


cabra montês


»(...): sabia que perceber os hábitos de pensamento do louco é normalizá-lo, é prever o seu comportamento, é, enfim, controlá-lo enquanto indivíduo.»


Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 59
 
 
«Dois tipos de educação recebera Mylia: a educação para ver e a educação para ouvir. Por ela, ou talvez pela sua doença,havia aprendido a tocar. Não se toca assim nas pessoas - escutava uma e outra vez. E assustava-se. Não se toca assim nas pessoas? Ela não o repetiria.»



Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 44


«A nossa filha não tem saúde - esta foi a primeira frase que ouviu sobre Mylia, aquela que viria a ser a sua única mulher.»



Gonçalo M.Tavares. Jerusalém. Editorial Caminho, 7ª edição, 2005., p. 31

domingo, 12 de maio de 2013

Todas as terras enraízaram seus grandes
medos debaixo dos meus pés
e eles pendem poços-de-corda pesados e velhíssimos
enchendo sempre a transbordar a noite
a palavra mortífera -

Assim não posso eu viver
só na queda -



Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 228

II

Visões de crepúsculo
Coisas perdidas dos mortos
também nós deixamos
o mais solitário de nós aos recém-nascidos -


Um volta-se
e olha pra o deserto -
a alucinação abre
a parede do ermo solar
onde um par de avós
fala a língua do pó descoberto
longe como voz de búzio sob o selo -

Trememos de frio
e lutamos com o passo próximo
pra o futuro -



Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 225

Sempre de novo dilúvio novo
com as letras arrancadas a tormentos
os peixes falando presos ao anzol
para no esqueleto do sal
fazerem legível a ferida -

Sempre de novo aprender a morrer
pela vida velha
Fuga pela porta de ar
pra buscar pecado novo de planetas dormentes
Exercício extremo no velho elemento do respirar
assustado com a nova morte
Pra onde vai a lágrima
Se a Terra desapareceu?




Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 223

Chant Sacrè


''Vide que dá seu vinho à chama''

''Deserdaddos nós choramos o pó -''

«Não fazer nada
visível murchar
As minhas mãos pertencem a um bater de asas roubado
Com elas vou cosendo um buraco
mas elas suspiram junto a este abismo aberto - »



Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 197
«No Norte azul da rosa-dos-ventos
vigilante à noite
já um botão de Morte sobre as pálpebras

caminhando para a fonte -»




Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 192


Ela dança -
mas com um grande peso -
Porque dança ela com um grande peso?
Ela quer ser inconsolável -

Gemendo vai puxando o seu amado
pelos cabelos da fundura do Oceano
Hábito de inquietação sopra
sobre as traves salvadoras dos seus braços
Um peixe sofredor estrebucha sem fala
com o seu amor -

Mas de repente
pela nuca
o sono dobra-a para diante -

Libertos
são Vida -
são Morte -



Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 184

''as idades da noite''


«Fundo-escuro é a cor da nostalgia sempre
assim a noite toma
de novo de mim posse.»



Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 164

''unicórnio-dor''

Morte
Cântico do mar
banhando-me o corpo em volta
uva salgada
a atrair sede na minha boca -

Feres as cordas das minhas veias
até que elas cantando rebentam
desabrochando das chagas
pra tocar a música do meu amor -

Os teus horizontes em leque desdobrados
com a coroa dentada do morrer
já posta em volta do teu pescoço
o ritual de partida
com o som regougado da respiração
começado
abandonaste como um sedutor
antes do casamento a vítima enfeitiçada
despida quase já até à areia
expulsa
de dois reinos
já só suspiros
entre noite e noite -


Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 160

quarta-feira, 1 de maio de 2013




«Um estranho tem sempre
a pátria nos braços
como uma órfã
para a qual talvez nada mais
busque do que uma sepultura.» 




Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 155

Caçador
a minha constelação
aponta
a ponto secreto do sangue: desassossego...
e o passo voa sem asilo -

Mas o vento não é uma casa
lambe apenas como os bichos
as feridas do corpo -

Como se há de puxar o tempo
dos fios de ouro do Sol?
Enrolá-lo
pra o casulo da borboleta-da-seda
Noite?

Ó escuridão
estende a tua mensagem
só por um bater de pestanas:

Repouso na fuga.




Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 147
Isto é o hálito escuro
de Sodoma
e a carga
de Nínive
pousada
junto à ferida aberta
da nossa porta.

Isto é a Escrita sagrada
em fuga pela terra
trepando ao céu
com todas as letras,
escondendo a emplumada
ventura num favo de mel.

Isto é o negro Laocoonte
lançando à nossa pálpebra
perfurando milénios
a retorcida árvore da dor
rebentando na nossa pupila.

Isto são dedos inteiriçados em sal
gotejando lágrimas na oração.

Isto é a Sua causa marinha
recolhida
para a cápsula marulhante dos mistérios.

Isto é o nosso refluxo
Constelação da dor
da nossa areia a desfazer-se





Nelly Sachs. Poesias. Tradução de Paulo Quintela. Editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1975,. p. 145/6

''flores infecundas''


«Numa curva do rio ouvimos um acordeão.»

Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 364

''cortina de choupos''

Chegou mesmo a fazer-me uma espécie de cena...

«Que era séria...Que era uma vergonha da minha parte...Que eu tinha uma pavorosa opinião a seu respeito...Que isso não, porque só era comigo e mais ninguém!...Que eu a desprezava...Que os homens eram todos uns sujos...»
   Enfim, o que elas, as mulheres, dizem todas em casos destes. Era de esperar. Poeira nos olhos. Para mim, o mais importante é que tivesse escutado bem os meus conselhos e retido o essencial. O resto não tinha importância nenhuma.»
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 362

desmancha-prazeres

«(...) Uma vez por outra, Madelon e eu arranjávamos os nossos momentos antes do jantar, no seu quarto. Mas não eram fáceis de combinar, as entrevistas. Não falávamos delas. Éramos o que havia de mais discreto.
     Com isto não deve imaginar-se que não amava o seu Robinson. Não tinha nada a ver uma coisa com a outra. O caso é que ele brincava aos noivados enquanto ela, naturalmente, ia brincando às fidelidades. Era este o sentimento que entre eles existia. Nestes casos, tudo vai de se entenderem. Ele estava à espera de casar para lhe tocar, e a mim  o para-já. Falara-me aliás de um projecto que também tinha, estabelecer-se com um restaurante mais ela, e largar a velha Henrouille. Tudo muito a sério, claro. «É graciosa, há-de agradar à clientela», previa nos seus melhores momentos. «E de resto provaste-lhe a cozinha, hem? Não teme seja quem for quanto à paparoca!»
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 360

ensosso

femeeiro

 

«(...)Nascera durante a guerra, tempo de morte fácil. Sabia bem, eu, como se morre. Tinha aprendido. Faz sofrer enormemente. »
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 355
«A vida é muitíssimo curta. Não desejaríamos ser injustos para ninguém. Sentimos escrúpulos, hesitamos em julgar tudo isto de repente, e sobretudo tememos que seja preciso morrer enquanto hesitamos, porque então teríamos vindo ao mundo para absolutamente nada. O pior dos piores.»
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 349
«Se vivêssemos muito tempo, deixaríamos de poder respirar. Os verdadeiros abortos, os que estão nos museus, conseguem pôr as pessoas doentes e prestes a vomitar só de os verem. As nossas tentativas para sermos felizes, bem nossas mas muito ascorosas, são capazes de nos deixar doentes por serem assim tão falhadas, e isto muito antes de morrermos de vez.»
 
 
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 348

sem tugir nem mugir



Gerard Philippe and Maria Casares in ''Les Epiphanies''
by Henri Pichette, directed by Georges Vitaly, Paris 1974

ganha-pão

***

 
«Os jovens, que pressa têm de fazer amor, como são rápidos a deitar a mão a tudo aquilo que lhes fazemos crer que os diverte, quando se trata de sensações nem olham para trás. Fazem lembrar aqueles viajantes que devoram tudo quanto lhes oferecem no bufete da estação, entre dois apitos. Desde que se forneçam aos jovens as duas ou três canções que servem para puxar as conversas da foda, isso basta e é vê-los todos contentes. São de alegria fácil, os jovens, é bem verdade que gozam quanto querem!»
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 345

Tomamos tudo por desgostos de amor, quando somos jovens

«Tomamos tudo por desgostos de amor, quando somos jovens e ainda não sabemos...
 
                      Where I go...where I look...
                       It's only for you... u....
                       Only for you...  u...»
 
 
Louis-Ferdinand Céline. Viagem ao Fim da Noite. Tradução, apresentação e notas Aníbal Fernandes, Edição Babel, 2010, Lisboa p. 333

matagais

Olarila!

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