sábado, 18 de dezembro de 2010

Fantasia do Anoitecer

(...)

«Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?

No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece
O mundo áureo; oh! levai-me pra lá,
Nuvens purpúreas! e que lá em cima

Em luz e ar se dissolvem meu amor e dor! -
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro. -

Vem tu agora, sono suave! demasiada cobiça
O coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,
Sonhadora, inquieta!
Serena e pacífica é então a velhice.



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 133/135

Deuses andaram outrora...

Deuses andaram outrora entre os homens, as Musas
[magníficas
E o jovem Apolo, sarando, inspirando, como tu;
E tu és para mim como eles, como se um dos Venturosos
Me tivesse mandado pra a Vida: se eu ando, anda comigo
A imagem da minha Heroína, quando sofro e crio, com amor
Até à morte; pois isto foi que aprendi dela e dela tenho.

Vivamos, pois, ó tu com quem eu sofro, tu com quem
Íntima - e crente - e fielmente luto por tempo mais belo.
Pois nós somos! E se em anos vindouros ainda soubessem
De nós ambos, quando outra vez o Génio valer,
Diriam: «Estes solitários criaram pra si em amor,
Só sabido dos Deuses, o seu mais secreto mundo.
Pois os que só do que morre cuidaram, a terra os recebe;
Mas mais se aproximam da Luz e do Éter
Os que, fiéis ao íntimo amor e ao divino espírito,
Esperando e sofrendo e com calma o Destino venceram.»


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 119
«Olha, até a mim mesmo rejuvenesceram as palavras da
                                                                       [infância,
E, como outrora, me correm dos olhos as lágrimas;
E em pensamento volto aos dias há muito passados,»
 
  (...)
 
Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 117

'Foi nos braços dos deuses que eu cresci.'

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 107

A família do sábio

Ao ruído de uma nascente de noite, sob uma campânula de folhas, com uma mesma árvore contra o tronco, calmo e frio - Pai - assim, num quarto frio, um dia a tua presença nos foi.

    Tu estavas frio, sob um único lençol, velado, uma janela aberta.

   Que equilíbrio nós quatro juntos, sem horas sentados, tu próprio ainda melhor em repouso, estendido, morto.

   Que pura saúde a do verde-frondoso, do solo, e do líquido.

   Igual em nós corria uma água em silêncio do pescoço sem cessar para o dorso até aos membros sob a erva. Pela janela surda, um sopro, derramado do fundo obscuro do céu, secava nas têmporas das mulheres o suor do anoitecer.

 E que também uma estrela, parecida com o olho do filho,
se avive,
 Sem o dizeres. daí tiravas teu gozo, Pai!



Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 57
«(...) quero reaproximar-vos da substância e afastar-vos da qualidade. Quero fazer com que vos amem por vós mesmos mais do que pela vossa significação.»




Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 53

O ciclo das estações

   Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação...As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão tudo para assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! - A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito esta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudança moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o Outono.


Francis Ponge.  Alguns poemas. Edição bilingue. Selecção, introdução e tradução de Manuel Gusmão. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 39
«Perdoa-me!, agora que o meu coração está morto...»

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

“E o mais fundo de mim
Me diz apenas: Canta,
Porque à tua volta
É noite. O ser descansa.
Ousa.”



Hilda Hilst..Exercícios. São Paulo: Globo, 2002. p 29/30

Ática

“No continente grego, junto às Cíclades e ao Mar Egeu, o promontório de Sounion é um avanço do território Ático. Quando se distancia do promontório vê-se, no topo, o templo de Atenas Sounias, navegando-se mais adiante vê-se Laurion, onde os atenienses tiveram outrora as suas minas de prata; há em seguida uma ilha deserta, mas não muito extensa, chamada ilha de Pátroclo, porque Pátroclo lá construíra uma muralha e fundara um campo fortificado”.



Pausânias. Description de la Gréce, p. 20.
«O pai é aquele que, mesmo no Sabat, quando a ovelha
que ele encontrara caiu no fosso, cuidou dela e a manteve viva, depois de tirá-la
do fosso.»


Layton, As Escrituras Gnósticas, p. 308.


''Acima de tudo procurem sentir no mais profundo de vocês qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a mais bela qualidade de um revolucionário.''

Em contrapartida...

« Em contrapartida, ela, habituada à liberdade e ao ambiente aberto das feiras, sentia-se abatida na desolação daquela casa imensa, e elanguescia de prostração. Pois Dionizio Pinzón mantinha-a sempre prostrada no canto da sala, onde permanecia noite após noite, presenciando os jogadores, afastada do sol e da luz do dia, pois a partida terminava ao amanhecer e começava ao cair da tarde. Deste modo, escureciam-se-lhe os dias e em vez de respirar ares diferentes, sorvia fumo e vapores alcoólicos.
   Antes de Dionisio Pinzón ter transformado a sua humildade em soberba, ela colocara as suas condições e impusera a sua vontade. Agora, porém, já decaída a sua voz, mortas as suas forças. não lhe restava senão obedecer a uma vontade alheia e esquecer a própria existência.
   - Ouve-me bem, Dionisio - dissera-lhe quando este lhe propusera casamento, - eu estou habituada a que ninguém mande em mim. Por isso escolhi esta vida...e também sou eu quem escolhe os homens que quero e deixo-os quando me dá na gana. Tu és como os outros, nem mais nem menos. Desde já to digo.
    - Está bem, Bernarda, far-se-á aquilo que tu mandares.
    - Isso também não. Aquilo que eu preciso é de um homem. Não da sua protecção, que eu sei proteger-me sozinha; mas, isso sim, que saiba responder por mim e por ele diante de quem for...E que não se espante se eu lhe der má vida.
     Mas na realidade foi ele quem lha deu a ela. Assim que sentiu o poder que o dinheiro lhe dava, o seu carácter  mudou. Subiu de condição e procurou demonstrá-lo em todas as suas relações. E mesmo quando ela lutou por todos os meios que tinha ao seu alcance para não perder a sua liberdade e independência de vida, ao fim e ao cabo não o conseguiu e teve de se submeter. Mas lutou. (...)»
 
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 349

Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer...

«Casou-se com la Caponera numa manhã qualquer, numa aldeia qualquer, honrando assim a sua promessa de nunca mais se separar dela.
      Ela não queria matrimónio; mas algo no fundo lhe dizia que aquele homem não era como os outros, e movida pela conveniência de se associar a alguém, sobretudo a um fulano como Dionisio Pinzón, cheia de codícia e do qual estava certa que continuaria com ela, a andar de um lado para o outro, enquanto batessem as asas dos seus galos, concordou em casar, pois assim teria, ao menos, em que apoiar a sua solitária vida.
     Aldeias, cidades, ranchos, tudo percorreram. Ela, pelo seu próprio gosto. Ele, movido pela ambição: por um afã ilimitado de acumular riqueza.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 344
«Na primeira tarde, dos três galos jogados, Dionizio Pinzón só ergueu um vivo. Na segunda tarde, deu «capote» nas três lutas. Descansou um dia; para no quarto dia voltar à cercadura, onde ficou claro que os seus animais não serviam nem para galos de galinheiro pois todos ficaram pendurados no gancho onde é costume deixar que os galos mortos destilem a sua última gota de sangue.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 334

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

«- Vivias morto de fome. Eu vou dizer-to. Sei avaliar as pessoas com uma simples vista de olhos. E tu és daqueles, perdoa-me que to diga, daqueles que evitam o trabalho duro...Não, Pinzón, tu és como eu. O trabalho não foi feito para nós, por isso procuramos uma profissão mais ligeirinha. E qual melhor do que esta jogatana, em que esperamos sentados que a sorte nos mantenha?»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 332

Canção do destino de Hyperion

Andais lá em cima na luz
Em chão macio, génios venturosos!
Ares divinos resplandecentes
Vos tocam de leve,
Como os dedos da artista
Cordas sagradas.

Sem destino, como dormente
Menino, respiram os deuses;
Pudicamente guardado
Em casto botão,
Eternamente
Lhes floresce o Espírito,
E os olhos felizes
Olham em serena
Claridade eterna,

Mas a nós foi-nos dado
Não repousar em parte alguma,
Desfalecem, caem
Os homens sofredores
Às cegas de uma
Hora para a outra,
Como água atirada
De rochedo em rochedo,
Anos a fio para o Incerto.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 101/2
«Pois mais livres respiram as aves do bosque,
Embora mais magnífico arqueje o peito do Homem,
E ele, que vê o escuro futuro, tem também
De ver a morte, e entre todos sozinho ter-lhe medo.

E contra todos os que respiram usa o Homem
Armas em seu orgulho e medo eternos; no dissídio
Se consome, e a flor da sua paz,
Delicada, é breve e passageira.»



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 99

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

VANINI

Blasfemo te chamaram? com maldições
Te carregaram o coração e te amarraram
E te entregaram às chamas,
Santo homem! Oh, porque não voltaste

Em chamas do céu, pra ferir a fronte
Dos ímpios e mandar à tempestade
Que atirasse a cinza dos bárbaros
Pra fora da terra e da pátria?

Mas aquela que em vida amaste, a que te acolheu
Moribundo, a Natureza sagrada esquece
As acções dos homens, e os teus inimigos
Entraram, como tu, na paz antiga.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 93

Imperdoável

Se vós amigos, esqueceis, se escarneceis o artista,
E entendeis mesquinho e vulgar o espírito mais fundo,
Deus perdoa-vo-lo; mas não perturbeis
Nunca a paz dos que se amam.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 79

Perdão!

Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei
A dourada paz dos deuses, e das mais secretas,
Das mais fundas dores da vida
Muitas de mim aprendeste.

Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens
Passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu
Repousas depois e brilhas de novo
Na tua beleza, ó luz suave!


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 69

Ao Éter

(...)


Pelas zonas da terra, ó Pai Éter! em vão,
Pois a ânsia nos impele de morar em teus jardins.
Na corrente marinha nos lançamos, pra nos saciarmos
Nas planuras mais livres, e a vaga infinita nos rodeia
A quilha, e o peito alegra-se co'as forças do deus do mar.
Mas não lhe basta; pois Oceano mais fundo nos atraí,
Lá onde se agita a onda mais leve - oh quem pudesse
Levar o barco errante àquelas praias de ouro!

Mas enquanto eu anseio ao longe do crepúsculo
Onde co'a vaga azulada abraças 'stranhas praias,
Desces sussurrante da coroa florida da árvore de fruto,
Pai Éter! e suavizas-me até o coração ansioso,
E de bom grado vivo, como dantes, co'as flores da terra.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 57

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Bernarda Cutiño

«A tal Bernarda Cutiño era uma cantadeira de fama corrida, de muito brio e que os tinha no sítio; tal como cantava era boa para alvoroços, embora não se deixasse manusear por ninguém, pois se alguém o tentava, era rude e de mau trato. Forte, bonita, expansiva e de génio inconstante, sabia, contudo entregar a sua amizade a quem lhe demonstrava ser seu amigo. Tinha uns olhos faiscantes, sempre humedecidos, e a voz rouca. O seu corpo era ágil, duro e quando erguia os braços os seios queriam rebentar o corpete. Usava sempre amplas saias de fino algodão estampado, de cores berrantes e cheias de folhos, que completava com um xaile de seda e flores nas tranças. (...)»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 329/330
« Enquanto aguardava o regresso do «padrinho», Dionisio Pinzón fixou-se nelas, sobretudo naquela que estava à sua frente e que tinha a certeza de conhecer. Foi-se aproximando até se colocar ao pé do estrado e olhou-a a seu gosto, enquanto ela lançava os versos da sua canção:

Ontem à noite sonhei que te amava,
como se ama uma vez na vida
despertei e tudo era mentira,
nem sequer me lembro de ti...

(...)

...Se te quis, não foi porque te quis,
se te amei, foi para passar o tempo,
aqui te mando o teu triste retrato
para nunca me lembrar de ti...»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 317
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:
- Não há mais remédio senão liquidá-lo.
E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:
- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.
O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.
Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310
« O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as primeiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, reflectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, tentando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu com as asas com força para manter o equilíbrio e por fim conseguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.
O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem misericórdia o «eriçado», que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio-voo ao sentir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 309

Che Guevara: 'Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura'

As parcas

Concedei-me um só verão, poderosas!
E um só Outono ao meu canto maduro,
Que o meu coração mais pronto, do doce
Jogo farto, então morra!

A alma, que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repousa lá baixo no orco;
Mas se uma vez o sagrado, aquilo
Que ao peito me é caro, o poema, atingir,

Bem-vindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
terei, como os deuses, vivido, e mais além não preciso.


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 49
« Por isso foi […] dada ao homem, a língua, o mais perigoso dos bens […] para que ele dê testemunho de o que ele é […]»


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 30

...«como se conta dos heróis, posso bem dizer que Apolo me feriu».

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 24

Amor de Hölderlin a Susette Gontard a...

grega «perdida num século pobre sem espírito e sem ordem»


(carta a Neuffeer, de 16 de Fev. de 1797)




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21

domingo, 12 de dezembro de 2010

«(...) as razões da poesia não são sempre as mesmas da razão.»
 
 
 
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14

As flores

 
«Há escritores que se servem delas pelo simples prestígio dos seus nomes, sem prestarem muita atenção ao facto de corresponderem, ou não, ao lugar e à estação do ano. De modo que não é raro encontrar bons livros onde florescem gerânios na praia e túlipas na neve. Em Pedro Páramo, onde é impossível estabelecer de uma forma definitiva onde está a linha de demarcação entre os mortos e os vivos, as exactidões são ainda mais quiméricas. Ninguém pode saber, na realidade, quanto duram os anos da morte.»
 
 
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14
«Eu sempre pensei, por pura intuição poética, que quando Pedro Páramo conseguiu por fim levar Susana San Juan para o seu vasto reino da Meia-Lua, ela já era uma mulher de 62 anos. Pedro Páramo devia ser uns cinco anos mais velho do que ela. Na realidade, o drama parecia-me maior, mais terrível e bonito, se se precipitasse pelo precipício de uma paixão senil sem alívio


Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 13
«Tive uma infância muito dura, muito difícil. Uma família que se desintegrou muito facilmente num lugar que foi totalmente destruído. Desde o meu pai e a minha mãe, inclusive todos os irmãos de meu pai foram assassinados. Vivi, portanto, numa zona devastada. Não apenas de devassidão humana, mas devassidão geográfica. Nunca encontrei até à data uma lógica que explique tudo isto. Não se pode atribuir à Revolução. Foi mais uma coisa atávica, uma coisa de destino, uma coisa ilógica. Até hoje ainda não encontrei um ponto de apoio que me mostre porque nesta minha família sucederam nessa forma, e tão sistematicamente, essa série de assassinatos e de crueldades.»

in Los muertos no tienen ni tiempo ni espacio, diálogo com Juan Rulfo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Aos poetas jovens

 Queridos Irmãos! Talvez a nossa arte amadureça,
Pois, como o jovem, há muito ela fermenta já.
Em breve em beleza serena;
Sede, então, devotos, como o grego o foi.

Amai os deuses e pensai nos mortais com amizade!
Odiai a ebriedade como o gelo! não ensineis nem descrevais!
Se o mestre vos assusta,
Pedi conselho à grande Natureza!



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
«Feriu-me singularmente a atenção o verdadeiro modo de ser do público de uma grande cidade. Vive numa constante vertigem do lucro e do gozo, e aquilo a que nós chamamos atmosfera (Stimmung) não se pode criar nem comunicar; todos os prazeres, mesmo o teatro, devem apenas distrair, e a grande inclinação do público ledor de jornais e romances provém de que aqueles, sempre, e estes muitas vezes, trazem distracção à distracção. - Suponho mesmo ter notado uma espécie de timidez em face das produções poéticas, pelo menos enquanto poéticas, timidez que, por essas mesmas razões, me parece muito natural. A poesia requer, exige mesmo, concentração; isola o homem contra a sua vontade, torna-se por vezes molesta e importuna nas suas exigências e é no largo mundo (para não dizer no grande mundo) tão incómoda como uma amante fiel.»


Goethe, carta a 9 de Agosto de 1797



in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 19
Remexer de novo, com as carumas nos púcaros de resina. Retirar de lá o baço das imagens, o luto que não termina. Estarás sentado, aconchegado ao peito dela, a minha primeira treva? Que verás, quando na madrugada silenciosa, a minha alma vagueia, recua, até ao dia desse desmoronamento...As árvores conservam o frio; não aguentar este pulsar, este não-sentido que parece empalidecer perante ruínas. Estarás comigo, escutando-me este coração sem forças para se aguentar na haste dum tão grande cansaço sem margens? Estou só, dentro de mim mesma, entregue ao golpe incómodo desse sangue, desse rio que nunca mais regressou, e aguento todas as memórias, as misérias que corróiem este caminho para profundas distâncias. Olho-me distanciada, e vejo outra entregue ao incompreendido labor de lavar feridas na laje iluminada pela lua em carne viva. Crepita um embalo rude. Um pássaro abandona uma leve pena no parapeito. Fecho as pálpebras. Mornos fios de sal encontram os lábios. Amarga o que nos é saudade e, talvez me pese esse olhar cínzeo entregue ao lugar desconhecido que nos vigia, ao além das nuvens, que nos ensina a viver com enlutada chama. E, baixinho, muito baixinho, rastejando os pés sobre o mármore branco, volto para o meu leito. Aguento este cerrado nevoeiro e, talvez, amanhã divague por colheita tranquila. O que nos pertence? O desejar de um rio.

Um poeta é...

«um homem que fala a outros homens»



Wordsworth

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A estepe


«Durante as tardes e as noites de Julho já não se ouvem as codornizes, nem as galinholas, nem o rouxinol, nas ravinas da floresta; as flores já não embalsamam o ar. No entanto, a estepe continua ainda muito bela e cheia de vida. Basta que o Sol se ponha e a terra mergulhe na sombra para que a tristeza do dia seja esquecida e tudo seja perdoado; a estepe suspira suavemente pelo seu grande peito. A obscuridade da noite esconde o seu estigma, a erva anima-se numa alegre confusão juvenil que durante o dia ela nunca consegue ter; os estalidos, os assobios, as arranhadelas, os baixos, os tenores e os sopranos da estepe, tudo se funde num zumbido contínuo que convida à saudade e à melancolia. Esta ressonância adormece como uma canção de embalar; rola-se através da estepe e sente-se que vai adormecer, mas de repente é o grito inquieto e sacudido dum pássaro que ainda não adormeceu, ou num barulho indefinível semelhante a uma voz humana, como um «aaah» de espanto, e lá se vai o sono das pálpebras.»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 46/47
« - À noite não dorme, só pensa, pensa, pensa; mas em quê só Deus é que o sabe. Se nos aproximamos dele, enfurece-se e ri. Nem de mim gosta...Não deseja nada. Quando morreu o nosso pai, deixou-nos seis mil rublos a cada um. Eu comprei esta estalagem, casei e agora tenho filhos. Ele queimou o dinheiro todo na lareira. Que dó! Porque é que o queimou? Se não o queria, desse-mo, mas agora queimá-lo...»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 42
«- Como podes tu, meu imbecil, comparar-te a Varlamov.
-Não sou tão imbecil que me compare com Varlamov -respondeu Salomão, examinando os seus interlocutores com olhar irónico. - Varlamov bem quer ser russo, mas, no fundo do seu coração, é um porco judeu. A vida dele é o dinheiro e os benefícios que ele lhe traz, enquanto eu queimei todo o meu dinheiro na lareira. Nem tenho necessidade de dinheiro, nem de terras, nem de carneiros e também não tenho necessidade de que tenham medo de mim, nem que se descubram à minha passagem. Então eu sou mais inteligente que o vosso Varlamov e pareço-me mais com um ser humano do que ele.»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 40

Princípios de Novembro de 1910

«Mas esquecer não é a palavra que convém aqui...A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto de calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos (....)»
 
 
 
 
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 29

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Anna Magnani and a child see eye to eye.

Domingo, 19 de Julho de 1910

«Durmo, acordo, readormeço, reacordo, miserável vida.
Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»


Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 28
«(...) Não ganharias nada em deixar o teu círculo e na verdade o que perderias em permanecer dentro dele? A isto limito-me a responder: também preferia deixar-me moer com pancadas no círculo a ser aquele que bate no exterior, mas onde diabo está o círculo? Houve um tempo em que eu o via no solo como traçado por salpicos de cal, mas presentemente apenas flutua em torno de mim, que digo, nem flutua sequer»

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27
Por que não habito eu dentro de mim mesmo?

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

História

Aconteça o que acontecer, aqui fico - murmurou
ele.
A margem é imensa, as pedras
alteram a sua cor à passagem da hora.
Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,
verás o último filho de Tiestes
sem espada, sem coroa, apenas
no flanco direito a cicatriz duma estrela.
Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito
o amor, o massacre e o regresso,
o poder efémero, a ausência de descendentes,
e a minúscula cruz de ferro
pendurada num fio, nessa mesma noite,
e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99

As mulheres

As mulheres estão muito distantes. As suas rou-
pas, o cheiro de «Boa Noite».
Pousam o pão na mesa para que não se sinta
como estão ausentes.
É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos
da cadeira e dizemos:
«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu
acendo o candeeiro».
Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-
mente
e dirige-se para a cozinha com uma aplicação
inexplicável. As costas
são uma pequena colina de amargura carregada
de mortos sem fim,
os mortos da família, os mortos dela e a nossa
morte.
Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,
ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois
ouve-se
o comboio que transporta os soldados para a
frente.


Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85

domingo, 5 de dezembro de 2010

Hölderlin

Detença, mesmo com as coisas mais íntimas,
não nos é dada; das imagens
cumpridas o espírito arroja-se repentino de mais para as que se
[querem cumprir; lagos
há-os só no eterno. Aqui, é a queda
o mais próprio. Do sentimento sabido
precipitar-nos para baixo para o pressentido, mais além.

A ti, ó magnífico Invocador, a ti toda uma vida
te foi dada a instante imagem, e, quando a exprimias,
o verso fechava-se como um destino, havia uma morte
mesmo no mais suave, e tu entravas nela; mas o deus
que ia à tua frente guiava-te para lá, pra fora dela.

Ó tu espírito errante, o mais errante! Como elas todas
moram no poema quente, agasalhadas, e ficam
longamente na comparação estreita. Partícipes. Só tu
vagueias como a Lua. E em baixo aclara-se e escurece
a tua paisagem nocturna, santamente assustada,
que tu sentes em despedidas. Ninguém
a deu mais sublimemente, a restituiu ao Todo
mais inteira, menos pobre. Assim também
brincaste teu jogo santo por anos já não contados
com a infinita ventura, como se ela não fosse interior, mas jazesse
por aí, pertença de ninguém, na macia
relva da Terra, abandonada por crianças divinas.
Ai, o por que os Altíssimos anseiam, puseste-o tu, sem desejo,
pedra sobre pedra: e ficou. Mas mesmo a sua queda
te não perturbaria.

Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós
desconfiamos ainda do terrestre? em vez de no transitório
seriamente aprender os sentimentos de qualquer
inclinação, futura no espaço?

(Irschenhausen, Setembro de 1914)


Rainer Maria Rilke


in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 9
[...]vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.

Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.

Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?

Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76


Fifteen-year-old Maria Dolezalova is sworn in as a prosecution witness at the RuSHA Trial. Dolezalova was among the children kidnapped by German forces after they destroyed the town of Lidice, Czechoslovakia. Nuremberg, October 30, 1947.
 
— United States Holocaust Memorial Museum
Esta noite de espera deixa-me uma aberta para
o exterior
e o interior. Não distingo claramente. Talvez
grandes máscaras deterioradas, agrafes metálicos;
as sandálias dos mortos torcem-se na humidade,
movem-se sozinhas como se caminhassem sem pés
 - não caminham;
e essa grande rede do banho, quem a teceu?
nó a nó - não se desfaz -, negra - não é a mãe.

Uma sombra imensa alonga-se por cima das ar-
cadas;
uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto
ninguém caminhou -
e depois nada; e subitamente um ramo quebrado
pelo peso ligeiro do céu. As rãs
saltam, ágeis e mudas, na erva húmida. Silêncio.
No poço caem ratos cor de cinza, afogam-se;
constelações espessas movem-se lentamente; dei-
tam-se fora
coisas que os banquetes abandonam, ânforas, taças,
espelhos e cadeiras.
ossos de animais, liras e diálogos inteligentes. Os
poços nunca enchem.
Dir-se-ia que dedos de fogo, dedos de orvalho
passam sucessivamente pelo nosso peito,
descrevendo círculos inquiridores em torno dos
nossos mamilos
e também nós flutuamos de círculo em círculo,
em torno dum centro
desconhecido, indefinido e no entanto definido;
círculos infindáveis
em torno dum grito mudo, em torno duma facada;
e a faca
mergulha, creio, no nosso coração e este torna-se
o centro
como o poste no meio da eira, na colina,

e em torno os cavalos, as espigas, os malhadores,
os condutores
e as ceifeiras entre as medas, com a cabeça da
lua nos ombros,
ouvindo o relincho dos cavalos até ao extremo
do seu sono,
ouvindo os touros urinar nos salgueiros e nas
silvas
e os pés inumeráveis da centopeia e do cântaro,
o rastejar da serpente tranquila nos olivais
e o crepitar da pedra ardente que se contrai ao
arrefecer.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.72/3
Também possuo uma vida e devo vivê-la. Nada
de vinganças;
que poderia, mais uma morte, arrancar à morte,
sobretudo uma morte violenta? E que poderia
acrescentar à vida? Os anos
passaram. Não sinto ódio; esqueci, talvez?, estou
cansado? Não sei.
Até sinto uma relativa simpatia pela criminosa;
ela mediu abismos imensos,
um grande crescimento fez crescer-lhe os olhos
na obscuridade
e ela vê - vê o inesgotável, o irrealizável, o imu-
tável. Ela vê-me.
Também eu quero ver o assassínio de meu pai na
totalidade apaziguadora da morte,
esquecê-lo na morte completa
que também nos espera. Esta noite revelou-me
a inocência de todos os usurpadores. E todos somos,
de um modo ou outro, usurpadores - estes dos
povos, dos tronos,
aqueles do amor ou da morte; minha irmã
usurpadora da minha única vida; e eu da tua.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.66
E ela teima em preparar o hidromel e a comida
para os mortos
que já não têm sede e não têm fome e não têm
boca
e já não sonham reabilitações ou vinganças. Ela
invoca sempre
a sua infabilidade (que espécie de infabilidade,
realmente?) talvez para fugir
à responsabilidade duma escolha sua, duma deci-
são sua
- quando os dentes dos mortos, descarnados, dis-
persos pela terra,
são a semente branca, num imenso vale negro,
que faz nascer os únicos infalíveis, invisíveis, as
árvores brancas,
o brilho do fósforo no luar até ao fim dos anos.
Ah, como pode a sua boca suportar essas palavras
desenterradas, sim, de velhas malas (essas malas
ornamentadas com grandes pregos), desen-
terradas
no meio de velhos chapéus da mãe, fora da moda,
a mãe já não os usa - não os quereria. Viste-a
no jardim
esta tarde? - Como é ainda bela! - não envelhe-
ceu nada
talvez porque vigia o tempo, age sobre o tempo
a cada momento - quero dizer: rejuvenesce,
sabendo a juventude que perde; e talvez por isso
a ganha novamente.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.60/1

Forma da ausência

XII
 
Este quarto tornou-se um poço profundo.
O candeeiro é uma estrela pregada na água.
A cama infantil no seu lugar; os lençóis, por agora
lançam reflexos circulares
enquanto à superfície da toalha
as horas lentas, imponderáveis, caem como fetos
de palha,
nela traçando círculos invisíveis. Ninguém fala
no interior - e se falasse ninguém ouviria. Quando
um copo
tomba, cai sem fazer ruído na palma do silêncio.
Não se quebra.
Sozinho, dissolvido da na água, o antigo grito da
separação
torna o poço mais sombrio e mais profundo.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.36

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

« O excesso desta dor na alma é-me um castigo.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 137

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Smiling nude with skull to her right [Salomé]

Fenícia

Pois, Senhora!,
É preciso mostrar quão grande alma em vós mora.
Decerto o golpe é rude e a vós deve espantar.


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 109
«São fracas distracções para esta dor tão grande!»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 73
«Parti, sem ver-me nunca mais.»



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 73

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Lou

«(...) Esbofeteei-a cegamente. Ela abriu de novo os olhos. Amanhecia e eu via-os brilhar de lágrimas e de raiva; debrucei-me sobre ela; acho que estava a fungar como um animal e ela pôs-se aos berros. Mordi-a em cheio entre as coxas. Tinha a boca cheia dos seus pêlos negros e duros; larguei-a um pouco e depois recomecei mais abaixo onde era mais tenro. Eu nadava no seu perfume, ela espalhara-o também aí, e cerrei os dentes. Tentava pôr-lhe uma mão sobre a boca, mas ela berrava como um porco, gritos de arrepiar. Então cerrei os dentes com todas as minhas forças e cravei-lhos. Senti o sangue esguichar-me na boca e os seus rins agitavam-se apesar das cordas. Tinha a cara cheia de sangue e recuei um pouco sobre os joelhos. Nunca ouvira uma mulher gritar daquela maneira; de repente, reparei que nas minhas cuecas tudo se retesava; isso alvoraçou-me como nunca, mas tive medo que alguém aparecesse. Risquei um fósforo e vi que ela estava a sangrar muito. Por fim, desatei a bater-lhe, primeiro só com o punho direito, no maxilar, senti os dentes a partirem-se-lhe e continuei, queria que ela parasse de gritar. Bati com mais força, e depois recolhi a saia dela, colei-lha contra a boca e sentei-me em cima da sua cabeça. Ela retorcia-se como um verme. Nunca pensei que ela custasse tanto a morrer; fez um movimento tão violento que julguei que o meu antebraço esquerdo ia desprender-se; apercebi-me de que estava agora sob uma fúria tal que seria capaz de a esfolar; então levantei-me para acabar com ela ao pontapé, e calquei-a com todo o meu peso pondo-lhe um sapato de través na garganta. Quando ela deixou de se mexer, fui outra vez tomado pela mesma sensação. Agora tremiam-me os joelhos e tive medo de que fosse agora a minha vez de desmaiar.»
 
 
 
 
Boris Vian. Irei cuspir-vos nos túmulos. Sob o pseudónimo de Vernon Sullivan. Trad. Maria João Costa Pereira. Relógio D'Água, 2003, p.132/133
«Senhor, esse ódio é ainda orgulho e há-de
nos peitos resistir depois da liberdade.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 65

Berenice

Tão pronta retirada,
confesso, deixa em mim alguma dor marcada.



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 53
Todo aquele que nasce nas águas do luto, pressagia a chama
a ruína oculta da palavra, que há-de buscar no deserto
o véu mais pesado dos céus
«Imaginai-me a dor, em mim, a arder em chama»



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 43

Antíoco

Não, nunca a odiei tão pouco em toda a minha vida.



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 37
«E o que responderia eu a um Homem que não pensa nada e não sabe mesmo construir aquilo que pensa.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 23

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

«Só uma coisa conta, que é vingarmo-nos e vingarmo-nos da forma mais completa.»


Boris Vian. Irei cuspir-vos nos túmulos. Sob o pseudónimo de Vernon Sullivan. Trad. Maria João Costa Pereira. Relógio D'Água, 2003, p.64

KAIROS

“A arte é longa, o tempo curto, a ocasião (KAIROS) fugidia, a experiência enganosa.”
«O prazer da destruição é ao mesmo tempo o prazer da criação.»


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 183

sábado, 27 de novembro de 2010

«Mas da casca nasce uma concha dura
que protege o corpo como uma carapaça.
Por isso não tenho nada a relatar
da minha vida a não ser
as minhas publicações.
 
Resumo diário: quatro horas de trabalho, no máximo,
depois da visita às estufas.
Longa sesta, enrolado num cachecol,
no sofá. Muda de roupa. Depois do jantar
alguém toca uma sonata ao piano.
 
Cedo para a cama. Insónias:
Passava quase sempre mal as noites,
ficava acordado ou sentado na cama.»
 
 
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 179
 
«Ides embora? Boa-noite. Não irei. Boa-noite.
Sairei mais tarde. Obrigada. Porque afinal
necessito de sair desta casa degradada,
ver um pouco a cidade - não, não a lua -,
a cidade de mãos calosas, a cidade do salário,
a cidade que jura em nome do pão e do seu punho,
a cidade que a todos nos sustenta no seu dorso,
com a nossa pequenez, os nosso vícios, os nossos
ódios,
as nossas ambições, a nossa ignorância, a nossa
velhice,
ouvir os grandes passos da cidade,
não mais ouvir os vossos passos ou os de Deus:
nem sequer os meus. Boa-noite.»
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.27/8

Nude with a vase of Flowers

 
«Esta casa já não pode suportar-me.
Eu já não posso carregá-la no dorso.
É necessário ter sempre cuidado, ter muito cuidado,
escorar a parede com o armário grande
escorar o armário com a velha mesa entalhada
escorar a mesa com cadeiras
escorar as cadeiras com as mãos
meter o ombro na trave que acaba de ceder.
E o piano com um soturno caixão fechado. Sem
coragem para o abrir,
estar sempre com cuidado, sempre atenta que
nada caia, que eu própria não caia. Não posso
mais.
Deixai-me ir convosco.
 
Esta casa, apesar de todos os seus mortos, não
deseja morrer.
Obstina-se a viver com os seus mortos
a viver dos seus mortos
a viver da certeza da sua morte
e a colocar os seus mortos em camas e em prate-
leiras demolidas.
Deixai-me ir convosco.
Aqui, por mais macios que sejam os meus passos
na bruma da tarde,
que eu ande de pantufas ou com os pés descalços,
alguma coisa estilhaçará - um vidro de janela ou
um espelho.
Ouvem-se certos passos - não são os meus.
É possível que fora, na rua, tais passos não se
ouçam
 - dizem que o arrependimento calça tamancos -
e se nos voltarmos e nos olhamos nesta ou naquela
vidraça
apercebemos, atrás da poeira e das fendas,
o nosso rosto ainda mais embaciado e estilhaçado,
o rosto para o qual, na vida, tínhamos pedido
apenas
a possibilidade de o manter puro e indivisível.»
 
(...)
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.22
(...)
 
Deixai-me ir convosco.
 
Quando há luar as sombras alongam-se pela casa,
mãos invisíveis afastam as cortinas,
um dedo pálido escreve na poeira do piano
palavras esquecidas - não quero ouvi-las. Calai-
-vos.
 
Deixai-me ir convosco.
um pouco mais abaixo, até ao muro da fábrica
de tijolos,
até ao lugar onde a rua se encurva e parece
uma cidade de cimento e imaterial
tão positiva e quase metafísica
que se torna enfim possível crer que existimos
ou que não existimos,
que nunca existimos, que o tempo e a sua usura
nunca existiram.
Deixai-me ir convosco
 
Sentar-nos-emos um momento no banco de pedra,
em cima, no cômoro,
e enquanto a brisa primaveril nos acaricia
sonharemos talvez que levantamos voo,
porque muitas vezes, mesmo agora, ouço o ruído
do meu vestido
como o ruído de duas asas poderosas no seu
ímpeto,
e quando se é apanhado nesse ruído de voo
sente-se a garganta apertada, os flancos, a carne,
e apertada assim nos músculos do ar azulado,
apanhado nos robustos nervos da altura,
pouco importa que se chegue ou se parta,
pouco importa ter os cabelos brancos
(não é esse o meu desgosto; o meu desgosto
é que o coração não queira embranquecer também).
Deixai-me ir convosco
 
Sei bem que caminhamos sozinhos para o amor,
sozinhos para a glória, sozinhos para a morte.
Sei-o. Experimentei-o. De nada serve.
Deixai-me ir convosco.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.17/18
«Versos há - poemas inteiros às vezes/ quem nem eu
mesmo sei o que querem dizer./ O que não sei me detém
ainda./ Tens razão para me perguntar. Não me pergun-
tes./ Digo-te que não sei.»
(...»

Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.14

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

« A metamorfose procurámo-la na nossa juventude »


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 105

« existem acaso
aqui onde se encontra a passagem da chuva do vento
e do desgaste
existem o movimento do rosto traçado do carinho
daqueles que diminuíram tão estranhamente dentro da nossa vida
desses que ficaram sombras de vagas e reflexões com
a imensidade do mar
ou porventura não nada fica a não ser apenas o peso
a saudade do peso duma existência viva
aí onde agora sem substância ficamos vergando
como hastes do salgueiro abominável amontoadas dentro
da duração do desespero
enquanto lenta a amarela torrente arrasta para baixo dentro da lama
juncaria arrancada
imagem de rosto que se tornou mármore na decisão de uma
amargura para sempre.
O poeta um vazio.»


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 101

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Smoking in Bed

«(...) Todas as suas obras apodreceram e enferrujaram, e ele próprio queimou os seus papéis, desenhos e projectos. Desempenhou um papel importante na história do pão.

IV


Muitas das palavras que utilizou (era construtor de carruagens) desapareceram: lança, tamancos, copa e albas. Teria sido capaz de nos explicar o que é um céu recolhido.

V

...uma espécie que manipula a sua própria evolução por meio de intervenções planificadas nas suas condições de vida e no seu programa genético. A este processo chama-se auto-evolução. (Exemplo: o construtor de carruagens que desaparece enquanto tal ao inventar um carro a vapor. Também o moleiro não se extingue por si próprio.) Desconhece-se o fim último daquela intervenção planificada.

VI

O grão é levado da carrada de taleigos para a moega; daqui passa pelo orifício fundo da moega e corre pelo olho da mó para a caleira; escoa-se da caleira, para ser comprimido entre a mó andadeira e a fixa, cai pelo veio, vai dar ao tremonhado, acaba no limpador, a farinha é levada para a eira, peneirada, passa depois à câmara de mistura, junta-se no silo, passa pela mangueira de enchimento e cai na barrica. O moinho está cheio de moleiros suados; mestres-moleiros, homens com horas de moer, ajudantes; numa roda viva, vão movimentando os carolos, a farinha macia e a áspera, a farinha de primeira, de segunda, de resíduo, a flor-de-farinha, levantam-na e carregam-na, arrumam e transportam.
Depois aparece o inventor e constrói um moinho de onde desaparecem os moleiros. A única agitação no edifício sem vivalma é a das correias transportadoras de alcatruzes, dos monta-cargas, dos alimentadores, dos hélices da moagem: aparelhos pelos quais o grão, ora na horizontal, ora na vertical vai passando de um dispositivo para o outro através da máquina, evitando assim todo o trabalho manual e toda a sujidade.»


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 121/123
« ... Lembremo-nos, pois, como é difícil
fazer bem à espécie humana sem que ela nos pague
com maldade o bem que lhe fizemos.»




Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 113

terça-feira, 23 de novembro de 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Micenas

Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
dá-me as tuas mãos.
 
Vi dentro da noite
o cimo agudo do monte
vi além a planície inundada
com a luz de uma lua por aparecer
vi, ao voltar a cabeça
as pedras negras contraídas
e a minha vida tensa como corda
princípio e fim
o último momento;
as minhas mãos.
 
Afunda-se quem levanta as grandes pedras;
estas pedras levantei-as enquanto suportei
estas pedras amei-as enquanto suportei
estas pedras, o meu destino.
Ferido pelo meu solo
tiranizado pela minha túnica
condenado pelos meus próprios deuses,
estas pedras.
 
Sei que não sabem, porém eu
que segui tantas vezes
o caminho do assassino ao assassinado
do assassinado à paga
da paga ao outro assassínio,
a púrpura inesgotável
aquela tarde do regresso
quando as Solenes começaram a silvar
na erva escassa -
vi as serpentes em cruz com as víboras
entretecidas sobre a linguagem má
o nosso destino.
 
Vozes de pedra e do sono
mais fundas aqui onde o mundo escurece,
memória da fadiga enraizada no ritmo
que bateu na terra com pés
esquecidos.
Corpos afundados nos alicerces
do outro tempo, nus. Olhos
fixos fixos, num sinal
que por mais que queiras não distingues;
a alma
que luta por tornar-se tua alma.
 
Nem já sequer o silêncio é teu
aqui onde as mós pararam.
 
Outubro 1935
 
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.49/51

XV

 
Quid campo de plátanos opacissimus?
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvore, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do ouro
mundo que te deixava e te prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
se de afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora o sono, a serenidade.
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.35/37
« O que restar da carne e do pão, queimá-lo-eis no fogo.»


(Levítico; p. 144)

domingo, 21 de novembro de 2010

«Voltamos a embarcar com os nossos remos partidos.»
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.33

III

Lembra-te dos banhos em que foste afogado


Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23

Ossessione

Lei da oblação

«O fogo do altar deverá ali arder sem se extinguir. O sacerdote ateá-lo-á com lenha todas as manhãs, disporá sobre ela o holocausto e queimará a gordura do sacrifício da acção de graças. O fogo arderá ininterruptamente sobre o altar, sem nunca se extinguir. Esta é a lei da oblação.»


(Levítico; p. 141)
«(...) receberá o perdão da falta de que se tornou culpado.»

(Levítico; p. 141)
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