(...)
Deixai-me ir convosco.
Quando há luar as sombras alongam-se pela casa,
mãos invisíveis afastam as cortinas,
um dedo pálido escreve na poeira do piano
palavras esquecidas - não quero ouvi-las. Calai-
-vos.
Deixai-me ir convosco.
um pouco mais abaixo, até ao muro da fábrica
de tijolos,
até ao lugar onde a rua se encurva e parece
uma cidade de cimento e imaterial
tão positiva e quase metafísica
que se torna enfim possível crer que existimos
ou que não existimos,
que nunca existimos, que o tempo e a sua usura
nunca existiram.
Deixai-me ir convosco
Sentar-nos-emos um momento no banco de pedra,
em cima, no cômoro,
e enquanto a brisa primaveril nos acaricia
sonharemos talvez que levantamos voo,
porque muitas vezes, mesmo agora, ouço o ruído
do meu vestido
como o ruído de duas asas poderosas no seu
ímpeto,
e quando se é apanhado nesse ruído de voo
sente-se a garganta apertada, os flancos, a carne,
e apertada assim nos músculos do ar azulado,
apanhado nos robustos nervos da altura,
pouco importa que se chegue ou se parta,
pouco importa ter os cabelos brancos
(não é esse o meu desgosto; o meu desgosto
é que o coração não queira embranquecer também).
Deixai-me ir convosco
Sei bem que caminhamos sozinhos para o amor,
sozinhos para a glória, sozinhos para a morte.
Sei-o. Experimentei-o. De nada serve.
Deixai-me ir convosco.
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.17/18
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