domingo, 5 de dezembro de 2010

[...]vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.

Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.

Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?

Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76


Fifteen-year-old Maria Dolezalova is sworn in as a prosecution witness at the RuSHA Trial. Dolezalova was among the children kidnapped by German forces after they destroyed the town of Lidice, Czechoslovakia. Nuremberg, October 30, 1947.
 
— United States Holocaust Memorial Museum
Esta noite de espera deixa-me uma aberta para
o exterior
e o interior. Não distingo claramente. Talvez
grandes máscaras deterioradas, agrafes metálicos;
as sandálias dos mortos torcem-se na humidade,
movem-se sozinhas como se caminhassem sem pés
 - não caminham;
e essa grande rede do banho, quem a teceu?
nó a nó - não se desfaz -, negra - não é a mãe.

Uma sombra imensa alonga-se por cima das ar-
cadas;
uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto
ninguém caminhou -
e depois nada; e subitamente um ramo quebrado
pelo peso ligeiro do céu. As rãs
saltam, ágeis e mudas, na erva húmida. Silêncio.
No poço caem ratos cor de cinza, afogam-se;
constelações espessas movem-se lentamente; dei-
tam-se fora
coisas que os banquetes abandonam, ânforas, taças,
espelhos e cadeiras.
ossos de animais, liras e diálogos inteligentes. Os
poços nunca enchem.
Dir-se-ia que dedos de fogo, dedos de orvalho
passam sucessivamente pelo nosso peito,
descrevendo círculos inquiridores em torno dos
nossos mamilos
e também nós flutuamos de círculo em círculo,
em torno dum centro
desconhecido, indefinido e no entanto definido;
círculos infindáveis
em torno dum grito mudo, em torno duma facada;
e a faca
mergulha, creio, no nosso coração e este torna-se
o centro
como o poste no meio da eira, na colina,

e em torno os cavalos, as espigas, os malhadores,
os condutores
e as ceifeiras entre as medas, com a cabeça da
lua nos ombros,
ouvindo o relincho dos cavalos até ao extremo
do seu sono,
ouvindo os touros urinar nos salgueiros e nas
silvas
e os pés inumeráveis da centopeia e do cântaro,
o rastejar da serpente tranquila nos olivais
e o crepitar da pedra ardente que se contrai ao
arrefecer.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.72/3
Também possuo uma vida e devo vivê-la. Nada
de vinganças;
que poderia, mais uma morte, arrancar à morte,
sobretudo uma morte violenta? E que poderia
acrescentar à vida? Os anos
passaram. Não sinto ódio; esqueci, talvez?, estou
cansado? Não sei.
Até sinto uma relativa simpatia pela criminosa;
ela mediu abismos imensos,
um grande crescimento fez crescer-lhe os olhos
na obscuridade
e ela vê - vê o inesgotável, o irrealizável, o imu-
tável. Ela vê-me.
Também eu quero ver o assassínio de meu pai na
totalidade apaziguadora da morte,
esquecê-lo na morte completa
que também nos espera. Esta noite revelou-me
a inocência de todos os usurpadores. E todos somos,
de um modo ou outro, usurpadores - estes dos
povos, dos tronos,
aqueles do amor ou da morte; minha irmã
usurpadora da minha única vida; e eu da tua.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.66
E ela teima em preparar o hidromel e a comida
para os mortos
que já não têm sede e não têm fome e não têm
boca
e já não sonham reabilitações ou vinganças. Ela
invoca sempre
a sua infabilidade (que espécie de infabilidade,
realmente?) talvez para fugir
à responsabilidade duma escolha sua, duma deci-
são sua
- quando os dentes dos mortos, descarnados, dis-
persos pela terra,
são a semente branca, num imenso vale negro,
que faz nascer os únicos infalíveis, invisíveis, as
árvores brancas,
o brilho do fósforo no luar até ao fim dos anos.
Ah, como pode a sua boca suportar essas palavras
desenterradas, sim, de velhas malas (essas malas
ornamentadas com grandes pregos), desen-
terradas
no meio de velhos chapéus da mãe, fora da moda,
a mãe já não os usa - não os quereria. Viste-a
no jardim
esta tarde? - Como é ainda bela! - não envelhe-
ceu nada
talvez porque vigia o tempo, age sobre o tempo
a cada momento - quero dizer: rejuvenesce,
sabendo a juventude que perde; e talvez por isso
a ganha novamente.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.60/1

Forma da ausência

XII
 
Este quarto tornou-se um poço profundo.
O candeeiro é uma estrela pregada na água.
A cama infantil no seu lugar; os lençóis, por agora
lançam reflexos circulares
enquanto à superfície da toalha
as horas lentas, imponderáveis, caem como fetos
de palha,
nela traçando círculos invisíveis. Ninguém fala
no interior - e se falasse ninguém ouviria. Quando
um copo
tomba, cai sem fazer ruído na palma do silêncio.
Não se quebra.
Sozinho, dissolvido da na água, o antigo grito da
separação
torna o poço mais sombrio e mais profundo.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.36

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

« O excesso desta dor na alma é-me um castigo.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 137

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Smiling nude with skull to her right [Salomé]

Fenícia

Pois, Senhora!,
É preciso mostrar quão grande alma em vós mora.
Decerto o golpe é rude e a vós deve espantar.


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 109
«São fracas distracções para esta dor tão grande!»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 73
«Parti, sem ver-me nunca mais.»



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 73

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Lou

«(...) Esbofeteei-a cegamente. Ela abriu de novo os olhos. Amanhecia e eu via-os brilhar de lágrimas e de raiva; debrucei-me sobre ela; acho que estava a fungar como um animal e ela pôs-se aos berros. Mordi-a em cheio entre as coxas. Tinha a boca cheia dos seus pêlos negros e duros; larguei-a um pouco e depois recomecei mais abaixo onde era mais tenro. Eu nadava no seu perfume, ela espalhara-o também aí, e cerrei os dentes. Tentava pôr-lhe uma mão sobre a boca, mas ela berrava como um porco, gritos de arrepiar. Então cerrei os dentes com todas as minhas forças e cravei-lhos. Senti o sangue esguichar-me na boca e os seus rins agitavam-se apesar das cordas. Tinha a cara cheia de sangue e recuei um pouco sobre os joelhos. Nunca ouvira uma mulher gritar daquela maneira; de repente, reparei que nas minhas cuecas tudo se retesava; isso alvoraçou-me como nunca, mas tive medo que alguém aparecesse. Risquei um fósforo e vi que ela estava a sangrar muito. Por fim, desatei a bater-lhe, primeiro só com o punho direito, no maxilar, senti os dentes a partirem-se-lhe e continuei, queria que ela parasse de gritar. Bati com mais força, e depois recolhi a saia dela, colei-lha contra a boca e sentei-me em cima da sua cabeça. Ela retorcia-se como um verme. Nunca pensei que ela custasse tanto a morrer; fez um movimento tão violento que julguei que o meu antebraço esquerdo ia desprender-se; apercebi-me de que estava agora sob uma fúria tal que seria capaz de a esfolar; então levantei-me para acabar com ela ao pontapé, e calquei-a com todo o meu peso pondo-lhe um sapato de través na garganta. Quando ela deixou de se mexer, fui outra vez tomado pela mesma sensação. Agora tremiam-me os joelhos e tive medo de que fosse agora a minha vez de desmaiar.»
 
 
 
 
Boris Vian. Irei cuspir-vos nos túmulos. Sob o pseudónimo de Vernon Sullivan. Trad. Maria João Costa Pereira. Relógio D'Água, 2003, p.132/133
«Senhor, esse ódio é ainda orgulho e há-de
nos peitos resistir depois da liberdade.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 65

Berenice

Tão pronta retirada,
confesso, deixa em mim alguma dor marcada.



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 53
Todo aquele que nasce nas águas do luto, pressagia a chama
a ruína oculta da palavra, que há-de buscar no deserto
o véu mais pesado dos céus
«Imaginai-me a dor, em mim, a arder em chama»



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 43

Antíoco

Não, nunca a odiei tão pouco em toda a minha vida.



Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 37
«E o que responderia eu a um Homem que não pensa nada e não sabe mesmo construir aquilo que pensa.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 23

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

«Só uma coisa conta, que é vingarmo-nos e vingarmo-nos da forma mais completa.»


Boris Vian. Irei cuspir-vos nos túmulos. Sob o pseudónimo de Vernon Sullivan. Trad. Maria João Costa Pereira. Relógio D'Água, 2003, p.64

KAIROS

“A arte é longa, o tempo curto, a ocasião (KAIROS) fugidia, a experiência enganosa.”
«O prazer da destruição é ao mesmo tempo o prazer da criação.»


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 183

sábado, 27 de novembro de 2010

«Mas da casca nasce uma concha dura
que protege o corpo como uma carapaça.
Por isso não tenho nada a relatar
da minha vida a não ser
as minhas publicações.
 
Resumo diário: quatro horas de trabalho, no máximo,
depois da visita às estufas.
Longa sesta, enrolado num cachecol,
no sofá. Muda de roupa. Depois do jantar
alguém toca uma sonata ao piano.
 
Cedo para a cama. Insónias:
Passava quase sempre mal as noites,
ficava acordado ou sentado na cama.»
 
 
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 179
 
«Ides embora? Boa-noite. Não irei. Boa-noite.
Sairei mais tarde. Obrigada. Porque afinal
necessito de sair desta casa degradada,
ver um pouco a cidade - não, não a lua -,
a cidade de mãos calosas, a cidade do salário,
a cidade que jura em nome do pão e do seu punho,
a cidade que a todos nos sustenta no seu dorso,
com a nossa pequenez, os nosso vícios, os nossos
ódios,
as nossas ambições, a nossa ignorância, a nossa
velhice,
ouvir os grandes passos da cidade,
não mais ouvir os vossos passos ou os de Deus:
nem sequer os meus. Boa-noite.»
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.27/8

Nude with a vase of Flowers

 
«Esta casa já não pode suportar-me.
Eu já não posso carregá-la no dorso.
É necessário ter sempre cuidado, ter muito cuidado,
escorar a parede com o armário grande
escorar o armário com a velha mesa entalhada
escorar a mesa com cadeiras
escorar as cadeiras com as mãos
meter o ombro na trave que acaba de ceder.
E o piano com um soturno caixão fechado. Sem
coragem para o abrir,
estar sempre com cuidado, sempre atenta que
nada caia, que eu própria não caia. Não posso
mais.
Deixai-me ir convosco.
 
Esta casa, apesar de todos os seus mortos, não
deseja morrer.
Obstina-se a viver com os seus mortos
a viver dos seus mortos
a viver da certeza da sua morte
e a colocar os seus mortos em camas e em prate-
leiras demolidas.
Deixai-me ir convosco.
Aqui, por mais macios que sejam os meus passos
na bruma da tarde,
que eu ande de pantufas ou com os pés descalços,
alguma coisa estilhaçará - um vidro de janela ou
um espelho.
Ouvem-se certos passos - não são os meus.
É possível que fora, na rua, tais passos não se
ouçam
 - dizem que o arrependimento calça tamancos -
e se nos voltarmos e nos olhamos nesta ou naquela
vidraça
apercebemos, atrás da poeira e das fendas,
o nosso rosto ainda mais embaciado e estilhaçado,
o rosto para o qual, na vida, tínhamos pedido
apenas
a possibilidade de o manter puro e indivisível.»
 
(...)
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.22
(...)
 
Deixai-me ir convosco.
 
Quando há luar as sombras alongam-se pela casa,
mãos invisíveis afastam as cortinas,
um dedo pálido escreve na poeira do piano
palavras esquecidas - não quero ouvi-las. Calai-
-vos.
 
Deixai-me ir convosco.
um pouco mais abaixo, até ao muro da fábrica
de tijolos,
até ao lugar onde a rua se encurva e parece
uma cidade de cimento e imaterial
tão positiva e quase metafísica
que se torna enfim possível crer que existimos
ou que não existimos,
que nunca existimos, que o tempo e a sua usura
nunca existiram.
Deixai-me ir convosco
 
Sentar-nos-emos um momento no banco de pedra,
em cima, no cômoro,
e enquanto a brisa primaveril nos acaricia
sonharemos talvez que levantamos voo,
porque muitas vezes, mesmo agora, ouço o ruído
do meu vestido
como o ruído de duas asas poderosas no seu
ímpeto,
e quando se é apanhado nesse ruído de voo
sente-se a garganta apertada, os flancos, a carne,
e apertada assim nos músculos do ar azulado,
apanhado nos robustos nervos da altura,
pouco importa que se chegue ou se parta,
pouco importa ter os cabelos brancos
(não é esse o meu desgosto; o meu desgosto
é que o coração não queira embranquecer também).
Deixai-me ir convosco
 
Sei bem que caminhamos sozinhos para o amor,
sozinhos para a glória, sozinhos para a morte.
Sei-o. Experimentei-o. De nada serve.
Deixai-me ir convosco.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.17/18
«Versos há - poemas inteiros às vezes/ quem nem eu
mesmo sei o que querem dizer./ O que não sei me detém
ainda./ Tens razão para me perguntar. Não me pergun-
tes./ Digo-te que não sei.»
(...»

Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.14

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

« A metamorfose procurámo-la na nossa juventude »


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 105

« existem acaso
aqui onde se encontra a passagem da chuva do vento
e do desgaste
existem o movimento do rosto traçado do carinho
daqueles que diminuíram tão estranhamente dentro da nossa vida
desses que ficaram sombras de vagas e reflexões com
a imensidade do mar
ou porventura não nada fica a não ser apenas o peso
a saudade do peso duma existência viva
aí onde agora sem substância ficamos vergando
como hastes do salgueiro abominável amontoadas dentro
da duração do desespero
enquanto lenta a amarela torrente arrasta para baixo dentro da lama
juncaria arrancada
imagem de rosto que se tornou mármore na decisão de uma
amargura para sempre.
O poeta um vazio.»


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p. 101

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Smoking in Bed

«(...) Todas as suas obras apodreceram e enferrujaram, e ele próprio queimou os seus papéis, desenhos e projectos. Desempenhou um papel importante na história do pão.

IV


Muitas das palavras que utilizou (era construtor de carruagens) desapareceram: lança, tamancos, copa e albas. Teria sido capaz de nos explicar o que é um céu recolhido.

V

...uma espécie que manipula a sua própria evolução por meio de intervenções planificadas nas suas condições de vida e no seu programa genético. A este processo chama-se auto-evolução. (Exemplo: o construtor de carruagens que desaparece enquanto tal ao inventar um carro a vapor. Também o moleiro não se extingue por si próprio.) Desconhece-se o fim último daquela intervenção planificada.

VI

O grão é levado da carrada de taleigos para a moega; daqui passa pelo orifício fundo da moega e corre pelo olho da mó para a caleira; escoa-se da caleira, para ser comprimido entre a mó andadeira e a fixa, cai pelo veio, vai dar ao tremonhado, acaba no limpador, a farinha é levada para a eira, peneirada, passa depois à câmara de mistura, junta-se no silo, passa pela mangueira de enchimento e cai na barrica. O moinho está cheio de moleiros suados; mestres-moleiros, homens com horas de moer, ajudantes; numa roda viva, vão movimentando os carolos, a farinha macia e a áspera, a farinha de primeira, de segunda, de resíduo, a flor-de-farinha, levantam-na e carregam-na, arrumam e transportam.
Depois aparece o inventor e constrói um moinho de onde desaparecem os moleiros. A única agitação no edifício sem vivalma é a das correias transportadoras de alcatruzes, dos monta-cargas, dos alimentadores, dos hélices da moagem: aparelhos pelos quais o grão, ora na horizontal, ora na vertical vai passando de um dispositivo para o outro através da máquina, evitando assim todo o trabalho manual e toda a sujidade.»


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 121/123
« ... Lembremo-nos, pois, como é difícil
fazer bem à espécie humana sem que ela nos pague
com maldade o bem que lhe fizemos.»




Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 113

terça-feira, 23 de novembro de 2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Micenas

Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
dá-me as tuas mãos.
 
Vi dentro da noite
o cimo agudo do monte
vi além a planície inundada
com a luz de uma lua por aparecer
vi, ao voltar a cabeça
as pedras negras contraídas
e a minha vida tensa como corda
princípio e fim
o último momento;
as minhas mãos.
 
Afunda-se quem levanta as grandes pedras;
estas pedras levantei-as enquanto suportei
estas pedras amei-as enquanto suportei
estas pedras, o meu destino.
Ferido pelo meu solo
tiranizado pela minha túnica
condenado pelos meus próprios deuses,
estas pedras.
 
Sei que não sabem, porém eu
que segui tantas vezes
o caminho do assassino ao assassinado
do assassinado à paga
da paga ao outro assassínio,
a púrpura inesgotável
aquela tarde do regresso
quando as Solenes começaram a silvar
na erva escassa -
vi as serpentes em cruz com as víboras
entretecidas sobre a linguagem má
o nosso destino.
 
Vozes de pedra e do sono
mais fundas aqui onde o mundo escurece,
memória da fadiga enraizada no ritmo
que bateu na terra com pés
esquecidos.
Corpos afundados nos alicerces
do outro tempo, nus. Olhos
fixos fixos, num sinal
que por mais que queiras não distingues;
a alma
que luta por tornar-se tua alma.
 
Nem já sequer o silêncio é teu
aqui onde as mós pararam.
 
Outubro 1935
 
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.49/51

XV

 
Quid campo de plátanos opacissimus?
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvore, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do ouro
mundo que te deixava e te prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
se de afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora o sono, a serenidade.
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.35/37
« O que restar da carne e do pão, queimá-lo-eis no fogo.»


(Levítico; p. 144)

domingo, 21 de novembro de 2010

«Voltamos a embarcar com os nossos remos partidos.»
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.33

III

Lembra-te dos banhos em que foste afogado


Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23

Ossessione

Lei da oblação

«O fogo do altar deverá ali arder sem se extinguir. O sacerdote ateá-lo-á com lenha todas as manhãs, disporá sobre ela o holocausto e queimará a gordura do sacrifício da acção de graças. O fogo arderá ininterruptamente sobre o altar, sem nunca se extinguir. Esta é a lei da oblação.»


(Levítico; p. 141)
«(...) receberá o perdão da falta de que se tornou culpado.»

(Levítico; p. 141)

sábado, 20 de novembro de 2010

IV Tortura e indústria

Não, isto não é uma prisão. Deve ser uma oficina. Aqui trabalha-se. Não podes deixar de ver grandes ferramentas, guinchos, plataformas elevatórias e potros. Há guindastes em movimento nestes pavilhões, correntes rangem, giram sarilhos e rodas. Ao fundo arde ainda o fogo, o fumo sobe. Parece mesmo que estamos numa forja. Só os pregos além são difíceis de explicar, e as estacas; e aquelas construções de madeira - não sabemos se são andaimes, se patíbulos.
 
As semelhanças entre os instrumentos de tortura de uma época e os seus
instrumentos técnicos.
Primeiro grau, esmagamento dos polegares em tornos com ranhuras ou pon-
tas rombas: a tortura de Bamberg.
Segundo grau, torniquete violento nos braços, feito com cordões de pêlo, e
torção das pernas: o instrumento de Mecklemburgo.
Terceiro grau, alongamento do corpo no potro ou sobre uma escada de mão,
acompanhado de queimaduras nos flancos, nos braços e nas unhas; a lebre
lardeada.
E assim a tortura se manteve nos tribunais alemães até ao fim do século
XVIII, e mesmo depois.
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93
« Um século que pensa em libertação e imagina prisões.»
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93

'A Wooden Donkey' (2008)

C. v. L. (1707 -1778)

 Uma loucura diferente da nossa: a loucura de um clássico.
Claro, seco e lacónico. Naquele tempo era tudo mais pequeno.
Era quase um anão, nervoso, impaciente, rodopiante,
mas o olhar cor de âmbar sob a pesada cabeleira
era penetrante e frio: é preciso rejeitar tudo o que sejam
características acidentais. Coleccionar, definir, classificar.
Todas as parecenças obscuras foram apenas inventadas para
vergonha da ciência. Lâminas terminiológicas para extrair
o imutável da carne e de um mundo cego e trémulo.

Inventários, nomenclaturas, reportórios. A natureza,
um quadrado intemporal, uma quadrícula imóvel.
Gravuras coloridas à mão, árvores genealógicas, tabelas.
Na espuma dos fenómenos, esta linguagem não se mexe.
Uma gramática do mensurável: da espessura de um cabelo,
da fundura de um umbigo, com a forma de uma vulva,
espiralada como a concha de uma orelha. Classificando,
minuciosamente e «com sentido». Trabalhando dia e noite,
para não perder um minuto enquanto permanecesse em Upsala.

Num país pobre, no mais miserável dixhuitième:
juventude pedregosa, sem dinheiro para meias-solas, comendo
do prato alheio, uma cama sempre fria, subterfúgios
para obter títulos e táleres. Finalmente, a fuga para o inóspito.
Lá, onde quase nada mais vive, ele quase revive.

Lapónia, 1745: vi verão e inverno num só dia,
atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,
os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu
coração seco. Líquenes rangíferos, tundra, liberdade do Ártico.

Depois, regresso aos cortesãos, aos jardins e gabinetes.
Sonhos infernais, meditações, trevas «cheias de sentido».
Nos olhos âmbar o brilho da loucura. Estático.
Finalmente, professor, médico pessoal da rainha (a mão certa
para curar as doenças do peito), presidente da academia.
Condecorado: Estrela Polar com fita preta. Tudo tarde de mais.
Azedume, desconfiança, noites sombrias em estufas,
depois a apoplexia. Os últimos quatro anos com
paralisia parcial, numa triste fraqueza de corpo e espírito.

Ninguém sabia que ele, que tinha encontrado tantas provas
da providência divina entre as coisas naturais, há muitos anos
vinha coleccionando exemplos semelhantes nos destinos humanos;
e que também os milagres, os pecados, obedecem à taxonomia.
Mania das perseguições, alucinações. Paralelamente à histoire admirable
des plantes, a história natural de doenças e vícios:
Nemesis divina, o noctário, guardado num estojo,
cheio de premonições, augúrios, intuições, leitura para Strindberg.
Teologia empírica. O investigador como espião de Deus.

Tudo tem a sua ordem: fogo posto luxúria infanticídio traição
manha e envenenamento. Melander, professor de teologia,
tece intrigas no consistório, até que, às seis da tarde, a sua cabeça
se volta para as costas. Caí, é levado para casa, nunca mais
verá o dia da cura. Deus é um rectângulo intemporal,
a Sua retaliação uma quadrícula, imóvel: execução, fogo
defenestração cabeça cortada. A senhora Psilanderhjelm, leviana
deita-se com um cortesão em Estocolmo. Apanha uma doença do ventre,
morre em breve. Abrem-na, encontram uma pedra no lugar da criança.

E assim tudo se revela. O pecador apodrece em vida.
Um modo de vida bastante monótono. Os castigos
são coleccionados, definidos e classificados. Minuciosamente e «com sentido»,
como o mecanismo da reprodução: estame seco e pólen,
semente estilete e estigma. Systema sexualis: uma obsessão fatal.
A vida não existe; só existem seres vivos.
Cada vez mais pequeno, o grande ancião medita, imóvel,
sobre uma vingança divina que fosse lógica. «Com sentido».
Sem sentido. «Com sentido». «Nós» não fazemos parte da sua loucura.

A flor que traz o seu nome, linnaea borealis L.,
é insignificante, minúscula, e quase toda branca.


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 73-77

B. de S. (1499 - 1590)

«O vaticínio
Dez anos antes da vinda dos Espanhóis,
o primeiro sinal. Era como uma língua de fogo
no céu, como uma chama, como qualquer coisa faiscando
no crepúsculo. Ardia, largo, e disparava afunilando
para as alturas. Foi visto durante um ano, de noite.
E sempre que se iluminava ouviam-se gritos,
todos gritavam, todos batiam com a palma da mão
na boca, todos tinham medo,
se assustavam, esperavam, ficavam apavorados.


(...)

O monte
É uma coisa alta, pontiaguda; afilada em cima,
no cume, em bico, eleva-se e sobressai;
torna-se cómico, redondo; um monte redondo, baixo;
com muitos rochedos, rochoso; escarpado, fendido, rochoso;
feito de terra; com árvores; pastagens; com ervas; com água;
seco; recortado; com gargantas; com cavernas;
e lá dentro há gargantas, blocos de pedra.
Eu subo, escalo o monte. Vivo
no monte. Nasci no monte. Ninguém
se pode tornar monte. Ninguém se transforma
num monte. Por fim, também o monte se desfaz.

(...)

A caverna
Ali estende-se, ali torna-se longa e funda,
abre-se, estreita. É um lugar apertado,
um lugar de angústia. Ali é intransitável, áspera.
É um lugar terrível, um lugar de morte,
um lugar de trevas. Ali é sombria,
escura. A sua boca está escancarada, fauces abertas.
Fauces, largas, fauces estreitas.
Eu vou ficar na caverna.
Entro. Estou aqui. Estou na caverna.»


 Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p.43/45/47

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

«Poucas coisas me aconteceram e muitas li.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.137

Le regret d' Heraclite

Eu, que tantos homens fui, não fui jamais
Aquele em cujo abraço desfalecia Matilde Urbach.

Gaspar Camerarius, in DELICIAE
POETARUM BORUSSIAE, VII, 16




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.131

Quarteto

Morreram outros, mas isso aconteceu no passado,
Que é a estação (ninguém o ignora) mais propícia à morte.
É possível que eu, súbdito de Yaqub Almansur,
Morra como tiveram que morrer as rosas e Aristóteles?

Do DIVÃ DE ALMOTASIM EL MAGREBI (século XII)



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.123
«Este deserto inacessível
À sombra dos melancólicos ramos.»
-Como tu gostas.



George Orwell. Os dias da Birmânia. Trad. Maria da Graça Lima Gomes. Lisboa, Moraes Editores. 1ª ed. 1983.

O gnosticismo é a religião da literatura

Harold Bloom
''O meu espírito abriu-se pelo ventre (...) Que não se confunda isto com imagens'';


Artaud, ''Nouvelle lettre sur moi-même'', in (Euvres..., p.350.
''Estreei-me na literatura a escrever livros para dizer que não podia escrever absolutamente nada; tivesse eu qualquer coisa para dizer ou escrever, e o meu pensamento era o que mais via recusado (...) logo [os meus livros] me pareceram, cheios de fissuras, falhas, chatezas e como que repletos de abortos espontâneos (...) sempre a viajarem ao lado do que queria dizer de essencial e enorme (...) só escrevi para dizer que nunca tinha feito nada, não podia fazer nada (...). Toda a  minha obra foi e só poderá ser construída em cima deste nada'' (1); ''(...) as poucas coisas que lhe apresentei constituem farrapos que pude reconstruir sobre o nada completo''(2)


 (1) - Artaud. ''Carta a Peter Watson'' in Eu, Antonin Artaud, Hiena ed., pp.89 e 94
 (2) - Artaud, ''Correspondance avec Jacques Rivière'', op.cit., p. 31

Arte poética

Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes uma cara
Nos olhos desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo.
Heraclito inconstante, que é o mesmo.
E é ouro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.119/120
(...)

Como pude perder essa precisa
Ordem de humildes e queridas coisas,
Inacessíveis hoje como as rosas
Que deu ao primeiro Adão o Paraíso?

O antigo espanto da elegia
Me aflige quando penso nessa casa
E não compreendo como o tempo passa
Eu, que sou tempo e sangue e agonia.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.116/7

Os Borges

Bem pouco ou nada sei de meus maiores
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que prossegue em minha carne obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente formam parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua faina
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E deu-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura  que não está morto.




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.99

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Poema dos dons

A María Esther Vázquez

Ninguém rebaixe a lágrima ou a censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia,
Me deu os livros e a noite escura.

Desta cidade de livros fiz donos
Uns olhos sem luz, que podem
Decifrar nas bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

Albas ao seu afã. Em vão o dia
Lhes prodiga seus livros infinitos,
Árduos como aqueles árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (conta uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Desta alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, séculos, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento na sombra, na penumbra oca
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Sob uma espécie de biblioteca.

Algo, que certamente não se aponta
Na palavra acaso rege estas coisas;
Outro já recebeu noutras confusas
Tardes os muitos livros e a sombra.

Ao errar pelas lentas galerias
Sinto sempre com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, que terá dado
Os mesmos passos já, nos mesmos dias.

Qual dos dois escreve este poema
De um eu plural e de uma só sombra?
Que importa a palavra que me aponta
Se o anátema é uno e indiviso?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida cinza tão vaga
Semelhante ao sono e ao olvido.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.59/60

terça-feira, 16 de novembro de 2010

«O que se fez perfeito, o que está maduro - quer morrer!» dizes tu. Abençoada, abençoada seja a faca do podador! Mas tudo o que está ainda verde quer viver: ai!
A dor diz: «Morre! Vai-te, ó dor!» Mas tudo o que sofre quer viver, para amadurar, pra se alegrar e desejar,
- desejar o mais longínquo, mais alto, mais claro. «Quero herdeiros», diz tudo o que sofre, «quero filhos, não me quero a mim», -
mas a alegria não quer herdeiros nem filhos - a alegria quer-se a si mesma, quer eternidade, quer Retorno, quer Tudo-igual-a-si-mesmo.
A dor diz: «Quebra-te, sangra, coração! Anda, perna! Asa, voa! Avante! Pra o alto, Dor!» Pois bem, coragem! ó meu velho coração: A dor diz: «Passa e morre!»
 
 
 
 
F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 273
''Não voaste alto bastante: agora as sepulturas gaguejam: « Libertai os mortos! Porque é que a noite é tão longa? Não nos embriaga o luar?»''



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 267

Rosemary Kennedy,1938

Os Sete Selos

(Ou: A canção do Sim e Ámen)

1

Se sou profeta e cheio do espírito profético que vagueia sobre alta crista entre dois mares, -
entre passado e futuro como nuvem pesada, - hostil a planuras abafadas e a tudo o que é cansado e não sabe viver nem morrer:
nuvem pronta ao relâmpago em seu seio escuro e ao raio libertador, prenhe de relâmpagos que dizem: sim!, que riem: sim! aos raios proféticos:
- feliz quem assim está prenhe! E em verdade, longo tempo tem de ficar suspenso no flanco do monte como pesada tempestade quem tenha um dia de acender a luz do futuro! -
Oh, como não havia eu de arder de desejo pela Eternidade e pelo anel dos anéis - o anel de núpcias do Retorno!
Inda nunca encontrei a mulher de quem gostasse de ter filhos, a não ser esta mulher que eu amo: porque eu amo-te, ó Eternidade!
Porque eu amo-te, ó Eternidade!



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 249

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

''escreve-se porque não se sabe o que se quer dizer, para experimentar sabê-lo''


Lyotard, Moralités postmodernes, Galilée, 1993, p. 109
«Inexpressa e não-liberta me ficou a minha mais alta esperança! E morreram-me todas as visões e consolações da minha juventude!
Como pude eu suportar isto? Como superei e venci tais feridas? Como foi que a minha alma ressurgiu destes túmulos?
Sim, há em mim algo de invulnerável, de insusceptível de inumação, capaz de rebentar fragas; é a minha Vontade. Em silêncio e imutável ela avança através dos anos.
Quer seguir o seu caminho pelos meus pés, a minha velha Vontade; o seu ânimo é duro de coração e invulnerável.
Invulnerável só eu sou no calcanhar. Continuas a viver e a ser igual a ti mesma, ó pacientíssima  Vontade!
Continuas a irromper de todas as sepulturas!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 245

domingo, 14 de novembro de 2010

«Outro dia olhei pra os teus olhos, ó Vida! E pareceu-me que me afundava no insondável.
Mas tu pescaste-me cá pra fora como um anzol de ouro; riste escarninha, quando eu te chamei insondável.
«É o que dizem todos os peixes», disseste tu; « o que eles não podem sondar, é insondável».
Mas eu sou apenas mutável e bravia, e em tudo mulher, e nada virtuosa.
Embora vós homens me chameis «profunda» ou «fiel», ou «eterna», ou «misteriosa».
Mas vós, homens, presenteais sempre com as vossas próprias virtudes, ó virtuosos!»
Assim se ria ela, a incrível; mas eu nunca creio nela nem no seu riso quando diz mal de si mesma.
E quando um dia eu estava a falar a sós com a minha brava Sabedoria, disse-me ela, colérica: «Tu queres, tu desejas, tu amas, e é só por isso que tu louvas a Vida!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 233
«Por certo sou eu uma floresta e uma noite de árvores escuras: mas, quem não tiver medo da minha escuridão, encontrará também roseirais sob os meus ciprestres.»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 231
«É esta a minha pobreza: nunca a minha mão descansar de dar; é esta a minha inveja: ver olhos à espera e as noites iluminadas de saudade.

(...)

Quem sempre dá, corre o risco de perder o pudor; quem sempre reparte, as mãos e o coração lhe criam calos de tanto repartir.»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 227
«Voltais as costas? - Ó coração, já basta do teu fardo,
Forte ficou a tua esperança:
Conserva as portas abertas para novos amigos!
Deixa os velhos! Deixa a recordação!
Foste jovem outrora? Agora - és jovem de melhor
[ maneira!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 217

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Transfusões

“um verbo [que] anda [porque] é uma pessoa”


Luiza Neto Jorge

A respeito de alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge


Luís Miguel Nava (1989:58)  “o corpo [se] insinua, com as suas pulsões, o seu desejo, os seus espaços intersticiais onde o sentido é curtocircuitado”, num registo em que a “violência erótica” desfoca ou perturba, como uma lupa, “a imagem que temos do real”.


NAVA, Luís Miguel, 1989, “Acme a ser arte: alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge, in Colóquio/Letras, nº 108, Março/Abril.

“A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida / do
mundo.”
 
(Herberto Helder,1996)

A respeito da poesia pode ainda dizer-se:
- A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada.
E também à volta.
 
Herberto Helder  , Photomaton & Vox
 
 
 
Às vezes como uma cobra / a mão só deixa a pele
e então a verdade surge: / que não há mão por
baixo.
 
Luiza Neto Jorge, “A outra mão”
« (...) bebo para me obrigar a pensar melhor, para ir ao âmago do que leio, porque o que leio, leio não por diversão, ou para matar o tempo, ou para adormecer; eu, que vivo numa terra que sabe ler e escrever há quinze geracões, bebo para que a leitura me impeça de cair num sono eterno, me cause delirium tremens, porque compartilho com Hegel o ponto de vista de que um homem de coração nobre ainda não é um nobre, nem um criminoso é um assassino. Se eu soubesse escrever, escreveria um livro sobre as maiores alegrias e tristezas do homem.»




Bohumil Hrabal.Uma solidão ruidosa. Tradução de Bruno Gomide feita a partir da edição inglesa (Too loud a solitude). Companhia das letras, 2010
«(...) os inquisidores queimam livros em vão.»


Bohumil Hrabal.Uma solidão ruidosa. Tradução de Bruno Gomide feita a partir da edição inglesa (Too loud a solitude). Companhia das letras, 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010



Inferno, I, 32

Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos últimos anos do século XII, via umas tábuas de madeira, umas vigas verticais de ferro, homens e mulheres diversos, um paredão e talvez um beiral de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber que ansiava amor e crueldade e o cálido prazer de despedaçar e o vento com cheiro a veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus falou-lhe num sonho: Vives e morrerás nesta prisão, para que um homem que eu sei te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha a tua figura e o teu símbolo num poema, que tem o seu preciso lugar na trama do universo. Padeces de cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema.
Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou o seu destino, mas apenas houve nele, ao acordar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustificado e tão só como qualquer outro homem. Num sonho, Deus declarou-lhe o secreto propósito da sua vida e do seu labor; Dante, maravilhado, soube enfim quem era e o que era e bendisse as suas amarguras. A tradição refere que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem sequer vislumbrar, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade dos homens.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.55/56

Les Valseuses, 1974

«Teu coração que palpita
A sangrar, esconde-o, louco! em escárnio e gelo!»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 209
«Quem sofreu a perda amarga
Que tu sofreste, não lhe param os passos cansados!»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 209

O mais solitário

Agora que o dia
Se cansou do dia, e os arroios de toda a saudade
Murmuram novo conforto,
E todos os céus, pendentes de teias de aranha de ouro,
Dizem a todo o cansado: « Repousa!» -
Por que é que não descansas, coração escuro?
Que espinho te agrilhoa a fugir de pés em chaga?...
Por quem esperas?



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 205
«As nuvens estão muito perto de mim, -
estou à espera do primeiro raio.»


Poema: O pinheiro e o raio



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 193

Quem um dia há-de ter muito a proclamar...

Quem um dia há-de ter muito a proclamar,
tem de calar muita coisa dentro de si.
Quem um dia quiser acender um relâmpago,
tem de por muito tempo - ser só nuvem.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 191

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Children Learning in the Jewish Grade School

Juízos dos cansados

Todos os fatigados praguejam contra o Sol;
O valor das árvores para eles é - sombra!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 145

Almas estreitas

São-me odiosas as almas estreitas:
De nada bom, quase de nada mau são feitas.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 135

Sentença do violento

Nunca peças! Deixa essa lamúria!
Toma - peço-te! - toma sempre!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

PRA O ALTO

«Qual o melhor modo de subir a este monte?»
Sobe sempre, e não penses nisso.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

terça-feira, 9 de novembro de 2010




Quando um machado derruba uma árvore, há cinzas que ficam espalhadas. Hoje são as minhas, amanhã serão as tuas Pai.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Paraíso, XXXI, 108

Diodoro Sículo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável,  e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara de Deus de Jaén; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.47/48

domingo, 7 de novembro de 2010

«Porque no princípio da literatura está o mito, e também no fim.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.45

Mutações

Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.

 

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.43

A testemunha

Num estábulo que está quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e uma vala atulhada de folhas mortas e um rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra, o som dos sinos é já um dos hábitos da tarde, mas o homem, desde pequeno, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira recamado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício dos cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá, e com ele morrerão e não voltarão as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão tiver morrido.
Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre pode maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre, na gaveta de uma secretária de acaju?



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.39/40

Intrépido

Onde estiveres, cava fundo!
Lá em baixo é que está a fonte!
Deixa gritar os homens escuros:
«Sempre é lá baixo - o inferno!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 125

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