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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Inferno, I, 32

Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos últimos anos do século XII, via umas tábuas de madeira, umas vigas verticais de ferro, homens e mulheres diversos, um paredão e talvez um beiral de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber que ansiava amor e crueldade e o cálido prazer de despedaçar e o vento com cheiro a veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus falou-lhe num sonho: Vives e morrerás nesta prisão, para que um homem que eu sei te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha a tua figura e o teu símbolo num poema, que tem o seu preciso lugar na trama do universo. Padeces de cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema.
Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou o seu destino, mas apenas houve nele, ao acordar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustificado e tão só como qualquer outro homem. Num sonho, Deus declarou-lhe o secreto propósito da sua vida e do seu labor; Dante, maravilhado, soube enfim quem era e o que era e bendisse as suas amarguras. A tradição refere que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem sequer vislumbrar, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade dos homens.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.55/56

sábado, 6 de novembro de 2010

«(...)
 - Você é um romântico - sentenciou. - A estima da posteridade não vale muito mais que o contemporâneo, que não vale nada e que se consegue com algumas moedas.
-Conheço a sua maneira de pensar - respondeu Quiroga. - Em 1852, o destino, que é generoso e que queria sondá-lo até ao fundo, ofereceu-lhe uma morte de homem, uma batalha. Você mostrou-se indigno desse dom porque a peleja e o sangue lhe causaram medo.
-Medo? - repetiu Rosas. - A mim, que domei potros no sul e depois todo um país?
Pela primeira vez, Quiroga sorriu.
- Sei bem, - disse com lentidão - que você executou mais de uma proeza equestre, segundo o testemunho imparcial dos seus capatazes e peões; mas naqueles dias, na América, e também a cavalo, executaram-se outras proezas que se chamam Chacabuco e Junín e Palma Redonda e Caseros.
Rosas ouviu-o sem se alterar e replicou assim:
-Eu não precisei de ser valente. Uma proeza minha, como você diz, foi conseguir que homens mais valentes que eu lutassem e morressem por mim. Santos Pérez, por exemplo, que acabou consigo. A coragem é uma questão de resistência; uns são mais resistentes, outros menos, mas tarde ou cedo todos afrouxam.
-Talvez seja assim - disse Quiroga, - mas eu vivi e morri, e até ao dia de hoje não soube o que é o medo. E agora vou para que me apaguem e dêem outra cara e outro destino, porque a história farta-se dos violentos. Não sei quem será o outro, o que farão de mim, mas sei que não terei medo.
- A mim basta-me ser quem sou - disse Rosas - e não quero ser outro.
- Também as pedras querem ser pedras para sempre - disse Quiroga - e são-no durante séculos, até que se desfazem em pó. Eu pensava como você quando entrei na morte, mas aqui aprendi muitas coisas. Repare bem, já estamos ambos a mudar.
Mas Rosas não fez caso dele e disse, como se pensasse em voz alta:
- Pode ser que não esteja habituado a estar morto, mas estes lugares e esta discussão parecem-me um sonho, e não um sonho sonhado por mim, mas por outro, que ainda está por nascer.
Não falaram mais, porque nesse momento Alguém os chamou.»



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30/31
« - Rosas, você nunca me compreendeu. E como poderia entender-me, se foram tão diversos os nossos destinos?»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30

Delia Elena San Marco

 
Despedimo-nos numa das esquinas do Once.
Da outra vereda voltei a olhar; você tinha-se voltado e disse-me adeus com a mão.
Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram cinco horas de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável.
Não nos vimos mais e um ano depois você tinha morrido.
E agora eu busco essa memória e olho-a e penso que era falsa e que por detrás da despedida trivial estava a infinita separação.
À noite saí depois de comer e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.
E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente.
Porque se não morrem as almas está certo que nas suas despedidas não haja qualquer ênfase.
Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fingimos que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.
Delia: um dia reataremos (junto a que rio?) esse diálogo incerto e perguntar-nos-emos se, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia.
 
 
 
 
Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.27
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