Não sei qual dos dois escreve esta página.
terça-feira, 2 de março de 2010
BORGES E EU
Não sei qual dos dois escreve esta página.
-O furacão aproxima-se, diz ele. Conheço-o bem. Quando ele começa a rosnar, a puxar pelos pinheiros, a arrancá-los da terra, é uma coisa que faz calafrios. É o demónio da floresta que se enfurece - acrescentou ele, mais baixo.
-Como é que o sabes, avô?
-Ora essa, sei-o muito bem! Compreendo a linguagem das árvores. Vês tu? As árvores também têm medo. O álamo alpino, por exemplo, essa árvore maldita, está sempre a gemer. Mesmo quando não há vento, treme. O pinheiro também. Quando está bom tempo, canta docemente; mas logo que o vento começa a soprar, põe-se a gemer de angústia. Escuta. Eu vejo mal, mas tenho bom ouvido. Agora é a azinheira que começa a queixar-se. O demónio da floresta ataca as azinheiras. É sempre assim antes do furacão.
Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.98
- Eh! - e o velho fez um gesto negativo com a cabeça. Nem Zakar nem Máximo cá estão. Motria também partiu para a floresta, em busca da vaca. A vaca, provavelmente, extraviou-se. Talvez tenha sido devorada pelos ursos...Não, não está cá ninguém.
-Não faz mal, esperarei; e, enquanto espero, faço-lhe companhia.
-Como queiras.
Enquanto prendo o cavalo a uma azinheira, o velho olha-me com os seus olhos débeis e apagados. É muito, muito velho. Não vê quase nada, e as suas mãos são trémulas.
-Quem és tu, meu rapaz? -pergunta-me ele, depois de eu me ter sentado ao seu lado.
De cada vez que apareço faz idêntica pergunta.
-Ah! Agora caio em mim. É verdade, já me recordo, diz ele, contente, enquanto vai consertando uma velha bota rota - A minha velha cabeça já não conserva memória de nada. É como um crivo: dos que morreram há muito, recordo-me bem, mesmo muito bem; mas da gente nova esqueço-me sempre. Já se vê, como vivo neste mundo há tanto tempo...
-Vive nele assim há tanto tempo?
-Vamos, vamos, que há bastante. Já cá andava quando os franceses aqui vieram para batalhar com o nosso imperador.
-Então já tem visto muito, e já pode contar muita coisa.
O velho olha para mim com estranheza.
-Eu? Que tenho eu visto? Apenas a floresta, sempre rumorosa, seja de noite ou de dia, seja de inverno ou de verão. Tenho passado aqui toda a minha vida com estas árvores, e não tenho dado conta disso. Estou quase à hora da morte; mas às vezes, quando começo a pensar, pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente ou não. Talvez nunca tenha vivido...
Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.96/97
segunda-feira, 1 de março de 2010
Memórias De Um Louco
Já não vejo diante de mim o céu formoso. Uma estrela brilha ao longe. Sob a lua, passam bosques com as suas alamedas umbrosas, debaixo de uma neblina azulada. Dum lado, o mar; do outro, a Itália...
Eis as cabanas russas. É a minha casa que se vê à distância? Não é a minha mãi que está à janela? Mãi, mãi! Salva o teu pobre filho. Derrama uma lágrima sobre a sua pobre cabeça doente...Tu vês como o martirizam? Aperta ao teu peito o pobre órfão. Não há no mundo lugar para ele; expulsam-no de toda a parte. _ Mamã, mamã! Tem piedade do teu pobre filho doente...
Sabem que o Bey da Argélia tem uma verruga por baixo do nariz?...
Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.50
domingo, 28 de fevereiro de 2010
Memórias De Um Louco
data. Não havia mês. Só havia o
diabo!
Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.45
O Grande Inquisidor
Dostoiévski in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.26
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética.
Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986
terça-feira, 16 de fevereiro de 2010
Poema Conjectural
22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de
Aldao, pensa antes de morrer:
selecção de Ruy Belo. Dom Quixote, 2003., pp.17/19
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
tenuemente visto numa luz dourada
através do irresistível e negro curso do Tempo?
Sobre a terra curvados por uma cruel mágoa
ou a rir em espectáculos de qualquer feira,
agitamo-nos ociosos de um lado para o outro.
O curto Dia do Homem passamo-lo apressadamente
e, do seu alegre meio-dia, não enviámos
sequer um rápido olhar para o fim silencioso.
Lewis Carroll in Sylvie e Bruno. Trad. de Maria de Lourdes Guimarães. Prefácio de Fernando Guimarães. Relógio D'Água Editores, 2003
(notas de Fernando Guimarães)
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
A Morte
Ao despedir-me colhi
uma espiga de trigo (pp.39)
Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago (pp.51)
Tendo adoecido em viagem
em sonhos vagueio agora
na planície deserta
Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
pranto de crocodilo sincero...
Eu sou determinado, e Satanaz bem sabe
que não sei fazer o bem
e faço o mal que não quero...
Miguel Torga in O Outro livro de Job, 5ª edição revista. Coimbra, 1986., pp.52
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.34
Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.16/17
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Frederico García Lorca in Anjo & Duende.
Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 131
domingo, 31 de janeiro de 2010
Bill Fay - Time Of The Last Persecution - 1971
I must be where I know I must be
When you stand and face the gas masks and truncheons
You must know what it all really means
It is the time of the last persecution
And Caesar shall be raised
He will ask for his feet to be kissed by your sister
And your children will fear at his name
Do not avenge these deaths do not avenge them
You must know what it all really means
It is the time of the Anti-Christ know what I say
Make for your own secret place
And others will join you there
And you wait for the ships in the air
And you wait for a sign like a trumpet sounding
And you go out and walk to the Christ
And you go out and walk to the Christ
vídeo aqui
sábado, 30 de janeiro de 2010
Para poder expressá-lo.
Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 95 ;do poema Lua e Panorama dos Insectos (O poeta pede ajuda à Virgem).
Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
e todos os falcões são agora corvos!
Marina Tsvetáieva in Poetas Russos. Trad. Manuel Seabra. Relógio D'Água Editores, 1995., pp. 141
quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
Rita Nunes, 1997, curta-metragem Menos 9
Começou a mexer o café com leite com a colherzinha. O líquido quase transbordava, empurrado pelo movimento do utensílio de alumínio (o recipiente era vulgar, o sítio era ordinário e a colher estava gasta, viscosa de tanto ser usada). Ouvia-se o barulho do metal contra o vidro. Tim, tim, tim, tim. E o café com leite dava voltas e mais voltas, com uma cova no meio. Um maelstrom. E eu estava sentado mesmo em frente. O café estava à pinha. O homem continuava a mexer e a remexer, imóvel, e sorria ao olhar-me. Senti uma coisa subir por mim acima. Fitei-o de tal maneira que se sentiu na obrigação de se explicar:
-O açúcar ainda não se desfez todo.
Para mo provar, bateu com a colher várias vezes no fundo do copo. Recomeçou a mexer metodicamente a beberragem, com uma energia redobrada. Voltas e mais voltas, sem descanso, e o ruído da colher na borda do vidro. Trum, trum, trum. Incessante, incessante, sem descanso, eternamente. Voltas e mais voltas e mais voltas. E olhava para mim, sorrindo. Então puxei pela pistola e disparei.
Max Aub Mohrenwitz in Crimes Exemplares. Trad. Jorge Lima Alves. Antígona, 2008 (pp.24)
Max Aub Mohrenwitz, México, 1956
e nos meus olhos pessoas vestidas, sem nudez!
Frederico García Lorca in Anjo e Duende., (pp.77)
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
A Galinha (Conto para crianças malucas)
Todas as galinhas temem as raposas. Mas esta galinha queria que elas a devorassem. E portanto a galinha era uma idiota. Não era uma galinha. Era uma idiota.
Nas noites de Inverno, a lua das aldeias dá grandes bofetadas às galinhas. Umas bofetadas que se ouvem nas ruas. Dá muita vontade de rir. Os padres nunca serão capazes de compreender o porquê destas bofetadas, mas Deus sim. E as galinhas também.
Todos vós precisais de saber que Deus é um grande monte VIVO. Tem uma pele de moscas, e por cima uma pele de vespas, e por cima uma pele de andorinhas, e por cima uma pele de lagartos, e por cima uma pele de lombrigas, e por cima uma pele de homens, e por cima uma pele de leopardos,e tudo. Tudo, estais a ver? Por conseguinte tudo, e além disso uma pele de galinhas. Era isto o que a nossa amiga não sabia.
Dá vontade de rir, repararmos como as galinhas são simpáticas! Todas têm crista. Todas têm cu. Todas põem ovos. O que dizeis a isto?
A galinha idiota odiava os ovos. Gostava de galos, é certo, como as mãos direitas das pessoas gostam das picadas das silvas ou da iniciação da alfinetada. Mas ela odiava o seu próprio ovo. No entanto, nada é mais bonito do que um ovo.
Recém-tirado das espigas, ainda quente, é a perfeição da boca, da pálpebra e do lóbulo da orelha. A face quente daquela que acaba de morrer. É o rosto. Não estais a compreender? Eu compreendo. Dizem-no os contos japoneses, e também o sabem algumas mulheres ignorantes.
Não quero defender a beleza sem defeito do ovo, mas como toda a gente louva a pulcritude do espelho e a alegria dos que se espojam na relva, bem está que eu defenda um ovo contra uma galinha idiota.
Vou dizê-lo: uma galinha amiga dos homens.
Uma noite, a lua estava a repartir bofetadas pelas galinhas. O mar e os telhados e as carvoeiras tinham uma luz idêntica. Uma luz onde o besouro teria sido atingido pelas flechas de toda a gente. Ninguém dormia. As galinhas não podiam mais. Tinham as cristas cheias de orvalho e os piolhos tocavam as suas campainhas eléctricas no intervalo das bofetadas.
Por fim um galo decidiu-se.
A galinha idiota defendia-se.
O galo dançou três vezes, mas os galos não sabem enfiar bem as agulhas.
Os sinos das torres tocaram porque tinham que tocar, e os canais de rega, e os corredores, e os que jogam golfe três vezes ficaram cor de amora e a tilintar. A luta começou.
Galo preparado. Galinha idiota. Galinha preparada. Galo idiota. Ambos preparados. Ambos idiotas. Galo preparado. Galinha idiota.
Lutavam. Lutavam. Lutavam. Toda a noite nisto. E dez. E vinte. E um ano. E dez. E sempre.
Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 52/53
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Goldfrapp: eat yourself
Eat yourself
If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
You could longer life
Seen it on this town
You went south on the train
She wore plastic boots for rain
And you crawl along exhausted
When you dream in tears, call on me
Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life
If you don't eat yourself
No doubt the pain will instead
If you don't eat yourself
You will explode instead
Cause I love and love you so
When I know you don't love me
You wanted life, stay alone
Get wicked, anymore
Who will I be when I'm with you again
Silver jet in the sky
You are the pain
Got a song, got to sing
For life
Degolação dos Inocentes
Os guerreiros tinham raízes milenárias e o céu cabeleiras embaladas pelo hálito dos anfíbios. Era preciso fechar as portas. Pepito. Manolito. Enriquito. Jaimito. Emilito.
Quando ficarem loucas, as mães hão-de querer construir uma fábrica de chapéus de pórfiro, mas com esta crueldade nunca poderão atenuar a ternura dos seus peitos derramados.
Os tapetes eram enrolados. O ferrão da abelha tornava possível o manejo de espada,
Era necessário o ranger de ossos e o rebentar dos açudes dos rios. Uma bacia e basta. Mas uma bacia que não se assume com o jacto interminável que há-de soar durante três dias.
Subiam às torres e desciam até aos búzios. Por fim, uma luz de clínica venceu a untosa luz do hospital. Já era possível operar com todas as garantias, Iodofórmio e violeta, algodão e prata de ouro mundo.Vão entrando! Há pessoas que se atiram das torres para os pátios e outras, desesperadas, que espetam tachas nos joelhos. A luz da manhã era cortante e o vento oleoso tornava possível a ferida menos esperada.
Jorgito. Alvarito. Guilhermito. Leopoldito. Julito. Joseíto. Luisito. Inocentes. O aço precisa de calores para criar as nebulosas, e lá vamos à incansável lâmina! É melhor ser medusa e flutuar, do que ser criança. Alegríssima degolação! Função lógica do sangue sem luz, que sangra as suas paredes.
Chegavam das ruas mais distantes. Todos os cães levavam um pezinho na boca. O pianista louca apanhava unhas rosadas para construir um piano sem emoção, e os rebanhos baliam com os pescoços partidos.
É preciso ter duzentos filhos e entregá-los à degolação. Só desta forma seria possível a autonomia do lírio silvestre.
Vinde! Vinde! Aqui está o meu filho tão macio, o meu filho de pescoço fácil. Poderás degolá-lo facilmente no patamar da escada.
Dizem que está a ser inventada a navalha eléctrica, para reanimar a operação.
Recordais-vos do rouxinol com as duas patas partidas? Estava entre os insectos criadores dos frémitos e das cuspidelas. Pontas de agulha. E teias de aranha sobre as constelações. Dá vontade de um verdadeiro riso pensarmos como a água está fria. Água fria nas areias, nos céus frios e nos dorsos de caimão. Aqui, nas ruas, corre o mais escondido, o mais saboroso, o que bate os dentes e faz empalidecer as unhas. Sangue. Com toda a força do seu g.
Se medirmos e estivermos cheios de piedade verdadeira, a degolação parecer-nos-á uma das grandes obras de misericórdia. Misericórdia do sangue cego que, seguindo a lei da sua natureza, quer desaguar no mar. Nem sequer houve uma voz. O chefe dos hebreus atravessou a praça para acalmar a multidão.
Às seis da tarde não restavam mais de seis meninos por degolar. Os relógios de areia continuavam a sangrar mas as feridas já estavam todas secas.
Já todo o sangue cristalizara quando as lanternas começaram a aparecer. Nunca haverá no mundo outra noite igual àquela. Noite de vidros e mãozinhas geladas.
Os seios enchiam-se de leito inútil.
O leite materno e a lua travaram a batalha dos mármores e lá deixava espetadas as suas últimas raízes enlouquecidas.
Frederico García Lorca in Anjo & Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio & Alvim, 2007, pp 38/40
sábado, 23 de janeiro de 2010
História deste galo
Quatro velas. Four candles.
Ninguém no seu enterro. Sim. As andorinhas. The Swallows. Uma pena.
A seguir ao enterro, o galo saiu pela janela e atirou-se ao perigo da rua e à má vida. Chegou a pedir esmola aos ingleses na Porta do Vinho, e fez-se amigo de dois anões que tocavam flauta e vendiam touros de doce. Um verdadeiro vadio. E depois desapareceu. » (pp.36)
Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007
Fatalidade
José Mário Silva in Efeito Borboleta e outras histórias. Oficina do Livro, 2008
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
A Aia
Eça de Queiroz in Contos. Edição «Livros do Brasil», Lisboa.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Frederico García Lorca in Anjo e Duende. Trad. Aníbal Fernandes. Assírio&Alvim, 2007
domingo, 17 de janeiro de 2010
III Marânus, Eleonor e a Pastora
Uma nuvem o sol escureceu.
E Eleonor, essa Deusa, novamente,
Diante de Marânus aparece.
Um crepúsculo terno diluía
A nitidez cortante das arestas.
E no cinzento azul que se ouvia
Brumoso som de arrefecidas lágrimas.
Era a sagrada luz, naquele instante
Em que se torna sombra; e, sem deixar
De alumiar os campos, já permite
O nascer das estrelas e o cantar
Dos pássaros sedentos de penumbra.
Era o sol, comovido, e extasiado,
No seio duma nuvem, radiando
Com um fulgor anímico e velado.
E Eleonor, tão alta e inacessível,
No seu divino encanto e formosura,
Emanava outra luz espiritual,
Que as pedras embebia de ternura...
E Marânus olhava para aquela
Aparição! Sonho encarnado! Amor!
Alma tão evidente que era corpo,
Perfume tão intenso que era flor!
E a voz de Eleanor, etérea chama,
As trevas dissolvendo, assim falou:
«Sou aquela que é amada e que não ama,
Porque meu ser é eterno e virginal.
Eu vivo além do amor e da tristeza,
E destes belos montes solitários,
E de amplidão que envolve a Natureza:
O fluido mar, onde as estrelas nadam...
«Serras doiradas, cristalinas fontes,
Ondas, campos, manhãs, tudo o que abrange
A curva, em roxa cor, dos horizontes,
É para mim a Sombra originária;
Sombra de mãe, remota e dolorida,
Que ainda me traz ao peito e acaricia...
Morte de que descende a minha vida,
Como da noite morta a luz dos astros.
«Tu foste para mim o que a semente,
Na escuridão da terra sepultada,
É para a flor gentil da Primavera,
Apenas em perfume idealizada...
Tu és o meu passado, assim as árvores
São talvez teu passado; misterioso
Tempo em que o mundo trágico ensaiava
Seu anímico voo esplendoroso!
E, depois, tu nasceste, ó criatura!
E, sofrendo ideal melancolia,
Outra vida sonhaste, mais perfeita...
«Sonhaste-me...e fui dada à luz do dia...
«Vivo em teu coração; mas, em ti próprio
Há tão grandes distâncias como aquelas
Que inundam de penumbra e silêncio
O espaço que medeia entre as estrelas.
«E que importa a distância que separa
Teus lábios dos meus lábios? E que importa
Que eu seja luz eterna e sempre clara
E tu sombra carnal e transitória?
Que tu vivas, além, num outro mundo,
Se nos prende o olhar à estrela e o mar profundo
À sede que o sol tem das nossas lágrimas?
«Sou aquela que é amada; mas não amo,
Porque o amor odeia o que é eterno;
E as suas labaredas se alimentam
Do que é mudança, tempestade, inferno!»
Logo, a Pastora, inquieta: «És o demónio,
Que vais pisando a sombra caminhante
Deste homem que delira e tem, na fronte,
O Destino que o faz andar errante!
Ah, para que o persegues, sem piedade?
E para que roubá-lo aos meus carinhos?
Não és da nossa pobre humanidade,
Nem pertences à terra e à luz do sol!
Ignoras a alegria de quem ama
E se sente mortal em seu amor.
E nunca ardeu, em ti, aquela chama,
Que nos transforma em cinza e poeira vã!
Tu nunca foste esposa, filha ou mãe
De condenados, de mártires, desgraçados!
Nunca ergueste, nas mãos, saudando alguém
O cálice divino da Amargura!
Essa tua quimérica beleza,
De Deusa e não humana, desconhece
A sagrada volúpia da tristeza
E o antegosto abismático da morte.»
E Eleonor, sorrindo: «Eu te perdoo
Essas loucas palavras que disseste.
Tu viste-me, e não sabes quem eu sou.
Assim tenho vivido incompreendida.»
A Donzela, mais pálida, escutava
Aquela voz - tão séria! - de Eleonor
Que os ermos ventos frios imitava,
Quando perpassam na ramagem densa:
«Solitária Pastora, que eu avisto,
Encantada nas brumas da Natura,
Tu não vês o lugar onde eu existo
Nem a essência divina do meu rosto!
Nunca a alegria plena tu sentiste,
Nem o prazer infindo! E a doce luz
Dos teus olhos, às vezes, é tão triste
Que dá melancolia às próprias coisas...
És a beleza, sim, que a vária sorte
Em efémero barro quis moldar;
E os teus beijos, mulher, sabem às lágrimas
Que não podes, aflita, derramar!
Ah, sempre te contemplo da distância
Que separa dois reinos, como tu,
Contemplas uma rosa, nessa infância
De Abril que, no teu corpo, se insinua.
Quando olhas para uma árvore, talvez ela
Fique toda a tremer e tenha medo!
E as árvores talvez sejam como espectros
Para o nocturno e trágico rochedo...
E eu o que sou para ti? O mesmo que és
Para as flores do campo; o novo ser
Dum novo Reino; a lama, a esplendidez
Em que a vida, por fim, se converteu.
«Tu és o amor amante; eu sou o amor
Amado. Eu sou a vida e tu somente,
És aquilo que vive. Eu sou a dor
E a dor não sofre, não, mas é sofrida.»
E Marânus, depois: «Eu te prometo
A sublime e final revelação.
Para o grande silêncio vem comigo
E também para a grande solidão.»
E Eleonor, estendendo a mão direita,
Apontou-lhe o horizonte montanhoso,
De onde a florida aurora nos espreita,
Por entre névoas de íntimo fulgor.
Teixeira de Pascoaes in Marânus. Assírio & Alvim, 1990
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Os murmúrios da floresta
Naquela floresta havia sempre um murmúrio, um murmúrio regular, surdo como o eco de sinos longínquos, tranquilo e vago, como uma suave romança sem palavras, como uma recordação do passado. Aquela floresta estava sempre cheia de murmúrios, porque era muito velha e nunca tinha sido violada pelo machado dos lenhadores. Os altos pinheiros seculares erguiam os seus troncos vermelhos, como um exército sombrio, cerrando as copas verdes em espessas abóbadas.
Debaixo destas, tudo era calmo e cheirava a resina. Através do tapete de agulhas verdes, que cobria a terra, cresciam grandes fetos fantásticos, completamente imóveis. Nasciam ervas nos sítios húmidos. Florinhas humildes vergavam de cansadas as suas pesadas cabecitas. Mas nos cimos ouvia-se, incessantemente, sem interrupção, a selva a murmurar, soltando suspiros doloridos. (pp. 95)
A UMA RAZÃO
a nova harmonia.
Um passo teu é a sublevação dos novos homens e a sua arrancada.
Viras a cabeça: o novo amor! Voltas a cabeça, _ o novo amor!
«Troca os nossos lotes, livra-nos das pragas, a começar pela praga
do tempo», cantam-te estas crianças. «Ergue não importa onde a substância
dos nossos destinos e do nosso arbítrio», imploram-te.
Chegada a todas as horas partida para todos os lados.
Jean-Arthur Rimbaud in Iluminações Uma Cerveja no Inferno. Trad. Mário Cesariny. Assírio&Alvim, 1999.
domingo, 10 de janeiro de 2010
Pranto de Ménon Por Diotima (6)
Hölderlin. Elegias. Edição Bilingue. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Led Zeppelin-Stairway to Heaven
There's a lady who's sure all that glitters is gold
And she's buying a stairway to heaven
And when she gets there she knows if the stores are all closed
With a word she can get what she came for
Oh, and she's buying a stairway to heaven
There's a sign on the wall but she wants to be sure
'Cause you know sometimes words have two meanings
In the tree by the brook there's a songbird who sings
Sometimes all of our thoughts are misgiving
(2x)
Oh, it makes me wonder
There's a feeling I get when I look to the west
And my spirit is crying for leaving
In my thoughts I have seen rings of smoke through the trees
And the voices of those who stand looking
Oh, it makes me wonder
Oh, and it makes me wonder
And it's whispered that soon, if we all called the tune
Then the piper will lead us to reason
And a new day will dawn for those who stand long
And the forest will echo with laughter
Woe, oh
If there's a bustle in your hedgerow
Don't be alarmed now
It's just a spring clean for the May Queen
Yes there are two paths you can go by
But in the long run
There's still time to change the road you're on
And it makes me wonder
Oh
Your head is humming and it won't go, in case you don´t know
The piper's calling you to join him
Dear lady can you hear the wind blow and did you know
Your stairway lies on the whispering wind
And as we wind on down the road
Our shadows taller than our souls
There walks a lady we all know
Who shines white light and wants to show
How everything still turns to gold
And if you listen very hard
The tune will come to you at last
When all are one and one is all, yeah
To be a rock and not to roll
Oh
And she's buying a stairway to heaven
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Florbela Espanca
«Faleceu no dia 8 de Dezembro de 1930, em Matosinhos, onde foi sepultada. Na sua mesa de cabeceira estava um copo de leite e debaixo do colchão da sua cama foram encontrados dois frascos vazios de Veronal.
Em 1949, João Maria Espanca perfilha Florbela. Em 1964, um grupo de admiradores de Florbela e o Grupo de Amigos de Vila Viçosa procedem à trasladação dos restos mortais de Florbela para o cemitério de Vila Viçosa, julgando assim cumprir uma vontade da poetisa. No entanto, alguns anos depois, surge manuscrito um poema seu que manifesta:
“Eu quero, quando morrer, ser enterrada
Ao pé do Oceano ingénuo e manso,
Que reze à meia-noite em voz magoada,
As orações finais em meu descanso…” »
Daqui
A Perfeição
terça-feira, 5 de janeiro de 2010
A Perfeição
Assim bradava, à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente...Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E caminhando para o herói, correndo os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez:
_Oh maravilhoso Ulisses - disse - tu és, bem na verdade, o mais refalsado e manhoso dos homens, pois que nem concebes que exista espírito sem manha e sem falsidade! Meu pai ilustre não me gerou com um coração de ferro! Apesar de imortal, compreendo as desventuras mortais. Só te aconselhei o que eu, deusa, empreenderia, se o fado me obrigasse a sair de Ogígia através do mar incerto!...
O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
_Mas jura...Oh deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
_Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, que é a maior invocação que podem lançar os imortais, juro, oh homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda, nem misérias maiores...
O valente Ulisses respirou largamente. E arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas das mãos robustas:
_Onde está o machado do teu pai magnífico? Mostra as árvores, oh deusa!...O dia baixa e o trabalho é longo!
_Sossega, oh homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino....Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força...Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.
Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa .(pp.234/5)
A Perfeição
A Perfeição
Eça de Queiroz. Contos. Edição «Livros do Brasil» Lisboa
Jeunesse
Postos de lado os problemas, a inevitável descida do céu e a visi-
tação da memória e a sessão de ritmos ocupam a casa, a cabeça
e o mundo do espírito.
-Um cavalo lança-se no turf suburbano ao longo das culturas
e dos arvoredos, atacado pela peste bubónica. Uma pobre mulher de
comédia, algures no mundo, chora improváveis abandonos. Os des-
peradoes languescem depois da trovoada, da bebedeira e das feri-
das. Crianças sufocam maldições nas margens dos rios.
Retomemos o estudo ao som da obra devorante que alastra e
sobe as massas.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
Brotaram em mistério três nascentes:
A da juventude, célere e rebelde,
Ferve, corre, mareja e cintila.
A de Castália, fonte de inspiração,
Mata a sede ao desterrado na estepe.
A última - a fria, do olvido - mata
Ânsias do coração, mais doce e estreme.
[1827]
Aleksandr Púchkin in O Cavaleiro de Bronze e Outros Poemas. Selecção, Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra. Assírio & Alvim. Lisboa, 1999
Ante mim o ruidoso Aragva.
Estou triste e leve; desta mágoa é clara a fonte;
Cheia de ti é minha mágoa.
De ti, só de ti...Não me tortura o quebranto,
Nada inquieta este pesar,
Meu coração outra vez arde e ama tanto
Porque não sabe não amar.
[1829]
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Antes de Começar*
O BONECO - (A ralhar.) Pareces mais uma menina que uma boneca!!!
A BONECA - Mas o que é que queres?...Eu sou assim...A ti que és boneco, não te ficava mal levantares-te por tua própria iniciativa e sem que ninguém saiba... (A crescer de interesse.) Mas
achas que me ficava bem a mim uma boneca, levantar-me por minha própria vontade, sem mais nem menos?
O BONECO - Estou-te a dizer que todas as noites me fartei de puxar por ti!...
A BONECA - Eu julgava que era o Homem!
O BONECO - Ora aí está! De que serviu eu ter puxado tanto por ti, se tu te punhas a julgar outras coisas!...
A BONECA - (Perfil.) Chiu!...Supõe tu que era o Homem.
O BONECO - Mas não era o Homem, era eu!!!
A BONECA - (3/4.) Mas eu é que não sabia!...
O BONECO - Olha! digo-te outra vez: Pareces mais uma menina do que uma boneca!
A BONECA - E não dizes nada mal!...pois quantas vezes eu me esqueço de que sou uma boneca e me ponho a pensar, exactamente como se fosse uma menina!
O BONECO - (Ri.) Isso é mesmo de boneca!
A BONECA - Mas que queres que eu faça? Eu sou assim...Não fui eu que me fiz!...E tu também não podes falar!...Tu levantas-te quando te apetece e mexes-te à tua vontade, como se fosses uma pessoa...e isto, para um boneco parece a mais!...
O BONECO - És mesmo parvinha de todo! É o que eu te digo: nem pareces uma boneca! Então tu não sabes, minha estupidazinha, que um boneco, quando não está ninguém a ver se mexe à sua vontade?
A BONECA - Já me quis parecer isso ...tenho pensado muito a esse respeito...mas a certa altura começa-me a doer a cabeça e nunca consegui, até hoje, pensar esse assunto todo até ao fim!
O BONECO - Tu és uma fraca!
A BONECA - Pois sou...Não tenho coragem nenhuma! Eu nem tive nunca coragem para me mexer de posição em que o Homem me deixasse!...E tu? Lembravas-te sempre, exactamente, da posição em que o Homem te tinha deixado?
O BONECO - Sempre!
Almada Negreiros in Antes de Começar. Colecção BARATINHA. Raiz Editora. Lisboa, 1995
Casa
dirigi-lo para a passagem. Com a cabeça abria o sono devagar como se nas-
cesse.
Não sei exactamente o que morria ou morreria nessa casa, sob a lâmpada
pálida.
Gastão Cruz, in Órgão de Luzes (poesia reunida), Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Madrugada
e ao lume de águas o rancor da vida.
Levar connosco mortos o desejo
e o senso de existir que penetrando
além dos lodos sob as águas fundas
hão-de ser verdes como a velha esperança
nos prados de amargura já floridos.
Deixar no mundo as árvores erguidas,
e da tremente carne as vãs cavernas
aos outros destinadas e às montanhas
que a neve cobrirá de álgida ausência
Levar connosco em ossos que resistam
não sabemos o quê de paz tranquila.
E ao lume de águas o rancor da vida.
Madrid, 4/9/1972
Jorge de Sena in Obras de Jorge de Sena Antologia Poética. Edições Asa, 1ª ed. 1999
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Menons Klagen Um Diotima/ Pranto de Ménon Por Diotima
Todos os dias saio em busca de algo diferente,
Demandei-o há muito por todos os atalhos destes campos;
Além nos cumes frescos visito as sombras,
E as fontes; o espírito erra dos cimos para a planície,
Implorando sossego; tal como o animal ferido se refugia nas florestas,
Onde antes repousava pelo meio-dia à sombra, fora de perigo;
Mas o seu verde abrigo já não lhe dá novas forças,
O espinho cravado fá-lo gemer e tira-lhe o sono,
De nada servem o calor da luz nem a frescura da noite,
E em vão mergulha as feridas nas ondas da corrente.
E tal como é inútil à terra oferecer-lhe a agradável
Erva curativa e nenhum zéfiro consegue estancar o sangue que fermenta,
O mesmo me acontece, caríssimos! Assim parece, e não haverá ninguém
Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?
2
De nada serve, ó deuses da morte, enquanto tiverdes
Em vosso poder, prisioneiro, o homem acossado pelo destino,
Enquanto, no vosso furor, o tiverdes lançado na noite tenebrosa,
De nada serve então procurar-vos, suplicar-vos ou queixarmo-nos,
Ou viver pacientemente neste desterro de temor,
E escutar sorrindo o vosso canto sóbrio.
Se assim for, esquece a tua felicidade e dormita silenciosamente.
No entanto brota no teu peito uma réstea de esperança,
Tu ainda não podes, ó minha alma! Não podes ainda
Habituar-te e sonhas dentro de um sonho férreo!
Não estou em festa, mas gostaria de coroar-me de flores;
Não me encontro eu só?Mas algo apaziguador deve
Aproximar-se de mim vindo de longe e sou forçado a sorrir e a admirar-me
Por experimentar alegria no meio de tão grande sofrimento
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Luz do amor! Também envolves os mortos no ouro do teu brilho!
Imagens de um tempo mais radioso, sois vós que me iluminais pela noite fora?
Sede bem-vindos vós jardins suaves, vós montes do poente,
E vós silenciosos caminhos do bosque,
Testemunhos de felicidade celestial, e vós estrelas que do alto olhais,
E que outrora me abençoáveis, olhando-me!
E vós também, amantes, vós belos filhos de Maio,
Rosas discretas e vós, lírios, invoco-vos ainda tantas vezes!
É verdade que as Primaveras se desvanecem, um ano sucede a outro,
E assim o tempo rodopia em mudança e luta
Sobre as nossas cabeças mortais, mas não perante olhos bem-aventurados,
E aos amantes uma outra vida é concedida.
Pois todos os dias e anos estelares, Diotima!
Estavam em nosso redor intimamente unidos para sempre;
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Mas nos caminhávamos juntos pela terra, num mútuo contentamento,
Como os cisnes amantes, ao repousarem no lago,
Ou embalados pelas ondas, olhando as águas,
Espelho de nuvens de prata e esteira de azul etéreo
Rasgada pelos barcos de passagem. E quando o vento norte ameaçava,
Inimigo dos amantes espalhando lamentos, e as folhas
Caíam dos ramos e a chuva caía ao sabor do vento,
Sorríamos serenos, experimentando Deus em nós
Em diálogo confiante, num uníssono canto interior,
Num âmbito de paz, em solidão alegre de meninos.
Mas na minha casa está agora o vazio, levaram-me
Os meus olhos e a mim, tal como a ela, me perdi.
Por isso ando errante e é forçoso que viva como
As sombras e tudo o mais há muito perdeu o sentido.
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Desejo festejar, mas para quê?E cantar com outros,
Mas assim sozinho tudo o que é divino me falta.
É este o meu mal, sei-o, uma maldição paralisa-me
Os tendões e abate-me ao menor movimento,
E assim passo o dia insensível e mudo como os meninos,
Apenas me brotam dos olhos frias lágrimas,
E a verdura dos campos entristece-me e o canto dos pássaros
Porque na sua alegria são também mensageiros do céu,
Mas o sol que reanima cai frio e esterilmente
No meu peito convulso como se fossem raios nocturnos,
Ai! E inútil e vazio como paredes de uma prisão o céu
É um peso excessivo que paira sobre a minha cabeça!
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Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura de luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os seus tesouros,
E, subindo à tona de ribeiros, o ouro enterrado cintila.
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Mas tu, que dantes, já nas encruzilhadas, quando
A teus pés caí, consolando-me, me apontavas para algo mais belo,
Tu que me ensinaste a ver a grandeza e a cantar aos deuses mais alegremente,
Silencioso, como eles, contendo o meu entusiasmo,
Filha dos deuses! Voltarei a ver-te, voltarás a saudar-se, como dantes,
Voltarás, como dantes, a falar-me de coisas sublimes?
Olha, tenho que chorar e lamentar-me diante de ti, pelo menos,
Ao pensar em momentos mais felizes, dos quais a alma se envergonha.
Porque demorei tanto, tanto tempo a procurar-te por pálidos caminhos terrestres,
Habituado a ti, errante,
Anjo de alegria! Mas em vão e os anos escoaram-se,
Desde que, cheios de pressentimentos, à nossa volta víamos o fulgor crepuscular.
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Apenas a ti, heroína, a tua luz te mantém na luz
E a tua paciência, amável, te mantém no amor;
E nem sequer estás só; estás acompanhada nos teus jogos,
Onde quer que floresças e descanses entre as rosas do ano;
E o próprio Pai te envia ternas canções de embalar
Pelas mãos de musas que respiram suavidade.
Sim, é ela mesma! Ainda vejo diante dos meus olhos a Ateniense,
Em corpo inteiro, pairando e aproximando-se em silêncio, como dantes.
Espírito amável! E tal como da fonte dos teus pensamentos serenos
O teu raio de luz recai, abençoado, sobre os mortais;
Do mesmo modo mo demonstras e dizes, para que eu a outros
O repita, pois também outros há que não o crêem,
Que a alegria, mais imortal do que os cuidados e a fúria,
Num dia áureo se tornará por fim quotidiana.
9
Por isso vos quero também agradecer, deuses celestes, e finalmente
No peito mais aliviado respira de novo a oração do vate.
E tal como quando com ela me encontrava nos cumes soalheiros,
Há um Deus que, interpelando-me do interior do templo, me devolve à vida.
Também quero viver! O verde surge! E como que dedilhado numa lira sagrada
Chega o apelo dos montes argênteos de Apolo!
Vem! Tudo foi como num sonho! As asas ensanguentadas já estão
Saradas e todas as esperanças renascem.
Ainda há muita grandeza por achar e quem assim
Amou é forçoso que entre na órbita dos deuses.
Acompanhai-vos, horas sagradas! E vós, solenes
Jovens! Permanecei, santos pressentimentos, e vós,
Súplicas ardentes! E vós, entusiasmos e todos vós,
Génios bons, a quem é grato estar entre os amantes;
Permanecei junto de nós até pisarmos o mesmo solo
Onde todos os deuses do Alto se preparam para regressar,
Onde estão as águias, as constelações, os mensageiros do Pai
Onde as musas se encontram e donde provêm os heróis e os amantes,
Que aí, ou também aqui, nos encontremos sobre uma ilha orvalhada,
Onde todos os nossos estarão, florescendo juntos em jardins,
Onde os cânticos serão verdadeiros e as Primaveras por mais tempo belas,
E de novo comece um ano para as nossas almas
Friedrich Hölderlin in Elegias. Trad. Maria Teresa Dias Furtado. Assírio&Alvim, 1992