sábado, 9 de março de 2013


tabefe


«Discutia muito mas ninguém o compreendia, e ficava na dúvida se o homem perdera o juízo ou se  falava uma língua estrangeira.»


Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 148
(...)

«A folha de erva salvaga,
o meu fio.»




Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 63

A FIDELIDADE DAS PALAVRAS

A fidelidade das palavras
já não sonho com ela, vão
e vêem, fogem, troçam,
que terias, se não fôssemos nós,
na tua boca branca de calcário, na tua
língua seca, selas zumbem, sibilam,
até eu lhes dizerm a essas traidoras,
sonoras, ciciadas, mudas, que seríeis
vós se eu não insistisse
em seguir-vos o rasto leviano?




Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 58

PRIMEIRO AMOR


Uma boca que me tocava
Que me arrastava para as silvas
Aqui decapitei borboletas e moscas
Enterrei sob a erva daninha três desejos
Frios de gelo só eu os conheço



Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 56

quinta-feira, 7 de março de 2013

DESCOBERTA


Sentir? Nunca senti nada
Manhã nem noite
Alguma vivi
Sangro de uma ferida inventada
Que em mim próprio abri

Nada me vai ferir do que fizerdes
Nem o beijo nem o pontapé
Que podeis dar-me
Se em mil pedaços me despedaçardes
Eu é que não vou dilacerar-me





Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 46

NAS MARGENS DO DORDOGNE


Os cães uivam
chamam a noite. Com todo
o desespero dos animais.
O rio arrasta-se até
às estrelas. Nós pomos
as pedras no barco.

Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 43

«O sofrimento mais profundo, o tédio, (...)»

Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 32


(...)

«Esfregamo-nos até doer
nos lençóis salgados.»





Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 23

REGRAS DA CASA


Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.





Hans-Ulrich Treichel. Como se fosse a minha vida. Tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento. Quetzal Editores., p. 16

terça-feira, 5 de março de 2013

L'Atelier Julian de la rue du Dragon


Epicuro (341-270 a.C)


 "Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso, o que, igualmente, é contrário a Deus. Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que Deus não os impede?"

Ésquilo (525-456 a.C.)



O Pai da Tragédia



"O dever do poeta, diz Ésquilo a respeito do mito de Fedra, é ocultar o vício, não propagá-lo e trazê-lo à cena. Com efeito, se para as crianças o educador modelo é o professor, para os jovens o são os poetas. Temos o dever imperioso de dizer somente coisas honestas".

domingo, 17 de fevereiro de 2013


«Como seria bom ter no bosque um pequeno túmulo sossegado. Talvez ouvisse por cima de mim o canto das aves e o sussurro das árvores.»





Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 47

Em cada instante ele morria e, no entanto não conseguia morrer.


«Uma dor infinita tinha expressão no cansaço e lassidão dos seus movimentos. Não estava morto, mas não era vivo, não era velho, mas também não era novo. A mim parecia-me ter centenas de milhares de anos, mas também me parecia que devia estar vivo eternamente, e eternamente morto-vivo. Em cada instante ele morria e, no entanto não conseguia morrer.»


Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 45


«Naquele Inverno tinha havido pouco peixe. A aldeia das dunas tinha ficado despovoada. Os tectos de zinco e palha deixavam entrar a chuva. Um dia, o mar invadiu a taberna. Eu bebia aguardente. Segurei-me a uma mesa de junco, e conheci N. Andava nua nas noites de temporal. Os barcos conheciam-na. O último olhar dos afogados ia para ela.»

 

Nuno Júdice. Poesia Reunida. 1967-2000 Prefácio de Teresa Almeida. Publicações Dom Quixote, Lisboa., p. 65

longas pestanas orvalhadas


«A viúva ergueu os olhos de longas pestanas orvalhadas e fitou-o. Queria interrogá-lo e tinha medo, ouvi-lo e sentia vergonha.»



Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 67

''moo-te de pancada''

enxota-moscas


«(...) Mastrapas libertou o infeliz marido, que ela todas as noites prendia a uma coluna do leito, por era ciumenta e receava (oh, conhecia bem os homens!) que ele se escapulisse à socapa e fosse encontrar-se na cozinha com a gorda Amezina, de úberes de vaca. Amarrava-o à hora de se deitarem e desatava-o quando ele queria ir urinar durante a noite. Mas levava ainda a corda em volta do tornozelo, enquanto a mulher segurava a outra ponta, bem apertada na mão, com medo que o marido se desviasse do bom caminho.»



Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 50

timorato


adjetivo

1. que receia ofender alguém
2. tímido
3. que receia errar ou falhar; cuidadoso; escrupuloso
4. receoso; medroso


(Do latim timorātu-, «idem»)

sinal-da-cruz

«Em que mundo estonteante vivemos, ou vamos viver, se a comunidade, os cidadãos e a opinião pública não só admitem, mas, infelizmente, ainda aplaudem abertamente o que ofende a sensibilidade  requintada, o sentido do gosto, da beleza e da mediania, o que se impõe de forma doentia e, dando-lhe um ar ridiculamente acanalhado como que brada a mais de cem metros em redor, aos quatro ventos: ‘’Eu sou fulano tal. Tenho tanto e tanto dinheiro e posso permitir-me dar nas vistas com grosseria. É claro que, com as minhas exibições de fausto idiota, não passo de um labrego e dum simplório sem sensibilidade; mas ninguém pode proibir-me de ser grosseiro e presunçoso’’. Será que os caracteres dourados, brilhando e refulgindo ao longe de forma ignóbil, mantêm alguma relação aceitável e sinceramente plausível, ou algum laço de parentesco normal – com o pão? De modo nenhum! Mas o que acontece é que a odiosa jactância e a ostentação já começaram um pouco  por toda a parte e, com uma lamentável e terrível inundação, foram sempre acumulando progressos, arrastando consigo a insensatez, a impureza e a tolice, espalhando-as pelos quatros cantos do mundo, até que levaram na maré o meu honrado padeiro, corrompendo-lhe o bom gosto que até então manifestara e minando a sua tradicional modéstia. Não hesitaria em dar muito, em sacrificar mesmo o meu braço ou a minha perna esquerda, se assim pudesse contribuir para recuperar o antigo e bom sentido da probidade, a antiga e boa fragilidade, se pudesse devolver ao país e às pessoas aquela modéstia e honradez que, com pesar de todos os que sinceramente se importam, se perderam consideravelmente. Maldita seja a mórbida fantasia de se querer parecer mais do que se é. »


Robert Walser. O passeio e outras histórias. Granito Editores e Livreiros, 1ª edição, Porto, 2001, p., 31/32

frugalidade


nome feminino

1. moderação na alimentação
2. temperança; sobriedade
3. simplicidade de costumes

(Do latim frugalitāte-, «idem») frugalidade

''infantilmente feliz''


La, la, la.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ÁRIA I



Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas,
a noite iluminava-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.


Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.





Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 93
XV.

Tem o seu triunfo a morte, o amor é festejado,
e o grande Tempo e o tempo futuro.
A nós nenhum triunfo é dado.


À nossa volta só um afundar de astros. Eco de luz, sem voz.
Mas, sobre o pó, a canção do futuro
soará além de nós.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85-87

secret kiss


VI.



Instruída no amor
por dez mil livros,
ensinada pela transmissão
de gestos pouco mutáveis
e juras tolas –


mas só aqui
iniciada no amor –


quando a lava descia
e o seu bafo nos tocava
no sopé do monte,


quando por fim a cratera exausta
revelou a chave
para estes corpos fechados –


Entrámos em quartos amaldiçoados
e iluminámos o escuro
com as pontas dos dedos.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85-87


‘’Ninguém me ama, nem por mim
acendeu uma candeia.’’




Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 85

SOMBRAS ROSAS SOMBRAS



Sob um céu estranho
sombras rosas
sombras
numa terra estranha
entre rosas e sombras
numa água estranha
a minha sombra



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 81
*
Quando alguém parte, tem de deitar
ao mar o chapéu com as conchas
apanhadas ao longo do Verão,
e ir-se com o cabelo ao vento,
tem de lançar ao mar
a mesa que pôs para o seu amor,
tem de deitar ao mar
o resto de vinho que ficou  no copo,
tem de dar o seu pão aos peixes
e misturar no mar uma gota de sangue,
tem de espetar bem a faca nas ondas
e afundar o sapato,
coração, âncora e cruz,
e ir-se com o cabelo ao vento!
Depois, regressará,
Quando?
          Não perguntes.




Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 75

4.

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.


 Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 59

domingo, 10 de fevereiro de 2013


«Os carniceiros sustêm, enluvados,
a respiração dos despidos,
no umbral a lua cai ao chão.»



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 55

«Uma mão cheia de dor perde-se para lá da colina.»

Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 51

«(...)           Nos campos
crescemos ou morremos ao Deus dará,
obedientes à chuva e por fim também à luz.»


Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 43

DESPRENDE-TE, CORAÇÃO

Desprende-te, coração, da árvore do tempo,
soltai-vos, folhas, dos ramos esfriados,
outrora abraçados pelo sol,
soltai-vos como lágrimas de olhos largos de longes.

Esvoaça ainda a madeixa dias inteiros ao vento
na fronte tisnada do deus do campo,
sob a camisa aperta o punho
já a ferida aberta.

Por isso resiste, quando o dorso macio das nuvens
voltar a curvar-se para ti,
não te iludas se o Himeto te encher
de novo os favos.

De pouco vale o lavrador uma erva na seca,
de pouco um verão, face à nossa grande estirpe.

E que testemunha afinal o teu coração?
Entre ontem e amanhã balança,
silencioso e estranho,
e o seu bater
é já a sua queda para fora do tempo.



Ingeborg Bachmann. O Tempo Aprazado. Edição bilingue. Selecção, tradução e introdução Judite Berkemeier e João Barrento. Assírio & Alvim, Lisboa, 1992., p. 25

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

boa-fé

Há muitas viagens onde podemos nascer,
noutras, encostar o rosto numa noite de inverno e morrer.

domingo, 27 de janeiro de 2013

 


«Ela queria deixá-lo, mas sentia compaixão por ele.»

Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 113

«Que mulheres tão infelizes essas, que não têm um marido capaz de se encolerizar!Eu preferia ser enterrado vivo a ter um marido assim!»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 113

meia-luz


«Tem de se ter sido mau, para se sentir vontade de ser bom. E tem de se ter tido uma vida desordenada, para se desejar pôr a sua vida em ordem. Portanto, ser ordenado leva à desordem, ser virtuoso leva ao vício, ser monocórdico leva à eloquência, ser mentiroso leva à sinceridade, os últimos são os primeiros e o mundo e a vida das nossas qualidades têm forma redonda (...)»


Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 112
 
«Que homem, que porte, que denodo! Nunca uma palavra a mais, nem gabarolices, nem discussões com inferiores. Até perante a morte fica insubmisso. Feliz de quem possui tal inimigo.»



Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 24

''mãos calosas''

tabaqueira

«Por muito sólido que seja, o corpo do Cretense não pode suportar a sua alma, não pode...Deus fez mal em não nos conceder corpo de aço, a nós Cretenses, para nos ser possível resistir cem, duzentos anos e mais, até à liberdade da nossa ilha.»


Nikos Kazantzaki. Liberdade ou Morte. Estúdios Cor., p. 9

sábado, 26 de janeiro de 2013

Lolita’s reading Lolita


«Sobrevivi-te o suficiente
e apenas o suficiente
para pensar de longe.»


Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, introdução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 225
«(...)


Não me causa dor
que os amieiros junto à água
tenham novamente o que silvar.

Estou ciente de que
a margem daquele lago
permanece bonita
como se ainda vivesses.»



Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, introdução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 221

Um parecer na questão da pornografia


Não há maior devassidão que o pensamento.
É uma frivolidade que, semelhante à erva daninha
polinizada pelo vento, invade o canteiro das margaridas.

Nada é sagrado para quem pensa.
O chamar atrevido das coisas pelo nome,
as análises dissolutas, as sínteses perniciosas,
a perseguição feroz foliã do facto nu e cru,
o apalpar lascivo de assuntos controversos,
a desova das ideias - disso é que eles gostam.

À luz do dia  ou pela calada da noite,
encontram-se a dois, em triângulos ou círculos.
Não importa a idade ou o sexo do parceiro.
Os olhos brilham, as faces ardem.
O amigo desencaminha o amigo.
Filhas degeneradas corrompem o pai.
O irmão prostitui a irmã mais jovem.

É-lhes mais doce
o fruto proibido da árvore do conhecimento
do que as nádegas cor-de-rosa das revistas ilustradas,
no fundo, ingénua pornografia.
Os livros que os divertem não têm figuras.
A única variedade está em certas frases
com o lápis ou a unha marcadas.



Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, introdução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 199

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Pois o meu outrora delicado] corpo, já a velhice
me arrebatou, e brancos] se tornaram os cabelos, negros que eram.
Pesado o meu coração se tornou, não me suportam já as pernas,
em tempos ligeiras na dança, como pequenas corças.
Isso lamento a toda a hora; mas que fazer?
alguém que não envelhece é algo que não pode existir.


Safo

Nós somos como as folhas que cria a florida estação
da Primavera, quando crescem depressa sob os raios do sol.
Como elas nos deleitamos num braço de tempo com as flores
da juventude, sem sabermos o que de mau ou de bom
nos virá dos deuses. Mas as negras Desgraças estão
ao nosso lado: uma delas segura o desfecho da áspera velhice;
a outra, o da morte. O fruto da juventude é tão breve
quanto é o tempo de o sol se espalhar sobre a terra.
Porém quando passa este fim de estação,
melhor do que ficar vivo é morrer logo.


Mimnermo

dois pequenos fragmentos de Arquíloco de Paros


Tal foi o desejo de amor, que me cobriu o coração
e cerrada treva sobre meus olhos derramou,
arrebatando do meu peito as débeis forças.



Miserável, jazo atolado no desejo,
inânime, e penosas dores, por vontade dos deuses,
me percorrem os ossos.

Na literatura grega...



«Na literatura grega, a imagem mais comum é a do homem (identificado com o poeta) que persegue a sua presa por campos verdejantes, desejando tão só a consumação do amor. Ela foge, mas sabem ambos que a própria fuga é um esquema para aumentar o desejo e dar mais prazer ao encontro, que no fim se revelará inevitável.»

“cantigas do rio e dos desejos de amar”



o que é a vida? O que é o prazer, sem a dourada Afrodite?
Que eu morra, quando estas coisas já não me interessarem.

Mimnermo

domingo, 20 de janeiro de 2013

''Passa uma rapariga de fita verde no cabelo''

Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 175

o poder da humilhação

''não há dois beijos parecidos''

Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 111
«O que é pior? A consciência ou a falta dela?
Pois bem, no Paraíso não havia espelhos.»



Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 105
''I don't remember
lighting this cigarette
and I don't remember
if I'm here alone
or waiting for someone."


— Leonard Cohen

sábado, 19 de janeiro de 2013


«Um poeta disse um dia, de uma forma muito bonita, que o coração mais pesado consegue atingir o maior alívio de alma.»


Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 94

«Idiota», cochichou ela..

«Idiota», cochichou ela ao salteador num tom sibilante, e quem assim cochichou sofria da doença do orgulho e estava linda de morrer quando disse aquilo.


Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 91

O orgulho é muitas vezes o nosso único refúgio, mas não devemos recorrer a ele.

«O orgulho é muitas vezes o nosso único refúgio, mas não devemos recorrer a ele. Devemos libertar-nos do nosso orgulho, porque não passa de uma prisão gradeada, devemos falar com os mais humildes e tornarmo-nos livres. »




Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 91

Ai-ai!

 
«Enquanto iam andando, ela, felizmente - valha-nos isso -, falou de Rilke, mas esse conhecimento que ela tinha de Rilke jamais seria suficiente para fazer dela a noiva ideal. Ai-ai! E, no entanto...!


Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 91

'' o simplório de bom coração''

«Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo:  não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deveriam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com que mil raios, para que serve ser saudável? Simplesmente para, num determinado dia, morrer de boa saúde? Que diabo de destino mais desconsolador...!»




Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 81
«Ele assegurou-nos expressamente que te estava muito grato. Antes de te ter conhecido, nunca sentira necessidade de chorar, mas agora sabia como se sente uma pessoa que chora, a dor da alma parecia-lhe um paraíso. Durante muito tempo não percebemos o que ele queria dizer, mas ele devia saber bem o que nos dizia e a expressão do seu rosto mostrava que o que dizia era uma evidência inequívoca. Foste, afinal, um anjo para ele, conquanto não o tenhas sabido, e foste-o precisamente por essa razão. Um dia, negaste-lhe qualquer coisa, ou seja, recusaste-te ocasionalmente a aceder a um pedido dele, e ele então foi-se embora, mas logo regressou. Isto não deve ter tido uma especial importância. És para ele, pois, o amor para lá de todas as palavras, só que tu própria nunca o percebeste. Para todos nós é sempre incómodo que nos atribuam um alto significado, Preferimos ser amados de uma forma moderada. Gostamos todos mais da comodidade. Ninguém gosta que o outro o considere como que sagrado, porque isso o obriga a ser um modelo.»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 79
«Quem não vive plena e devidamente a sua sexualidade, fica atrofiado espiritualmente.» Sofre assim uma espécie de imbecilização, foi a expressão dele.



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 78

«Já estou enamorado de alguém que não conheço», disse o salteador. «Tens de aprender a conhecê-la», ribombou dentro dele, como um trovão, a alma universal.



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 63/4

On a boat

«(...) adoro-a tanto, que estou a ponto de me despenhar nos abismos horrendos da loucura.»

Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 62
«Todos nos atormentamos uns aos outros, porque todos nós somos, de certo modo, atormentados pela vida. Quando não nos sentimos bem é quando, na verdade, sentimos mais vontade de nos vingar. As pessoas vingam-se mais por causa de se sentirem mal do que por maldade, e é a sina de todos nós não estamos livres do mal.»


Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 60

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

«Uma conduta bonita faz-nos bonitos, e não apenas por dentro, por fora também.»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 44

''mão enluvada''


«E muitos aspectos, os nossos próprios sentimentos são os nosso inimigos, e não aquelas pessoas que competem connosco. Aqueles a quem chamamos adversários são-no, apenas, se temermos o seu merecimento, merecimento que, no entanto, tem também de renovar-se continuamente, tem de sofrer uma contínua evolução, sob pena de enfraquecer e morrer.»




Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 43
«Haveria, porventura, latente na parvinha uma metade masculina, pelo que suportar o marido significava para ela a destruição da sua própria alma?»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 40
«Ela calou-se e assumiu um ar tal como o que paira em volta de uma figura de mulher desenhada por
Dürer, um ar esquivo como o de uma ave nocturna sobrevoando os mares por entre a treva, algo como um gemido reprimido no seu íntimo. Ele nunca mais ouviu falar desse casamento. As parvinhas sabem, melhor do que ninguém, mergulhar num silêncio obstinado, são mestras no prazer que sentem em proceder com o maior dos tactos. Comportam-se, perante a obstinação, com o mesmo tacto com que se comportam perante o desprezo, e vão engolindo a sua dor, pedaço a pedaço, ultrapassando as desilusões que lhes são infligidas, sempre com suave elegância.» 
 
 
 
Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 39
«E ela, então, fora casada com um homem como há milhares deles por aí - e, decerto, muitas outras mulheres teriam sido felizes com um homem assim - só que ela não foi feliz, porque era uma parvinha, assim chamada. Lá no fundo, mesmo no fundo, ela tinha orgulho na parvinha que nela habitava. Achava-se superior com esse seu pequeno toque de parvoíce.»
 
 
Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 38

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

«nuvem sonolenta»

«O cinto da castidade com horríveis dentes eriçados.»


Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 79

Deitava-me nu junto ao mar
Nas ilhas desertas.

Arrastava-me para o pélago
A baleia branca do mundo.

E agora não sei
O que foi verdade.



Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 67

A tua voz

Maldiz a morte. É-nos injustamente dada.
Implora aos deuses por uma morte santa.
Quem és tu? Um pouco de ambição, de desejo e de sonhos
que não merece o castigo da agonia prolongada.
Só não sei o que podes fazer sozinho com a morte dos outros:
das crianças envoltas em chamas, das mulheres baleadas,
dos soldados feitos cegos
e que agonizam dias e dias, aqui e agora, ao teu lado.
Sem abrigo é a tua piedade, muda é a tua voz
e temes a sentença porque nada pudeste fazer.



Czeslaw Milosz e Wislawa Szymborska. Alguns gostam de poesia. Selecção, instrodução e tradução do polaco Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves. Cavalo de Ferro, Lisboa, 1ª ed. 2004., p. 53

"Die Young"


«às vezes, numa raiva de apetite,
lanço os meus fios de caça, e apanho
algum bicho menor, algum mosquito,»




António Franco Alexandre. Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 13
«E quem me diz que, belo então que fosse,
conservaria ainda o privilégio
de me sentar no teu joelho, e ver
os exactos mistérios do teu sexo?»



António Franco Alexandre. Aracne. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 11

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Relieved. They walked a long way together...


''murmúrios melancólicos''


 
«O que certamente não veríeis eram as lágrimas, que humediam a carta, e outras que desciam as faces, e paravam aos cantos dos lábios, como se aí esperassem que um sorriso de esperança outra vez as embebesse no coração.»



Camilo Castelo Branco. Estrelas Propícias. Obras Completas. Publicadas sob a direcção de Justino Mendes de Almeida. Vol. IV Romances/Novelas. Lello & Irmão Editores, Porto, 1985., p. 184/5

terça-feira, 1 de janeiro de 2013


trigo vermelho

«Se tu soubesses», disse Deus,
«como pode ser longa a eternidade

(---)



Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 84

«Não tenho língua própria:
eu comunico
sem estar certo que me compreendam.»



Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 81
«Pergunto-me quem sou»,
disse Deus, «o espírito, a carne ou o que na carne
se quer espírito;
a noite, o dia ou o que no dia
experimenta pela noite mais ternura.
Talvez que seja eu um compromisso
entre o ser e o não ser,
à custa de mim mesmo:
o vazio e o de mais do vazio,
nada mais que o meu nome,
uma sílaba de sangue
que não se deveria enunciar,
ou um verbo que mata.
Sou a tua vogal, ó música;
ó silêncio, a tua consoante.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 77

Ferenc Berko - Bombay, 1942



Deus disse: «Eu sou teu alimento mais saudável,
o trigo, o vinho e a palurda,
o anho, o mel e a amora selvagem.
Para me comeres, lava as mãos e a alma,
veste as melhores roupas
e toma-me depois entre os teus lábios.
Deverás mastigar-me muito tempo,
pois meus sabores são tantos!
Trarei assim a força aos teus pulmões,
aos teus joelhos,
e aos subúrbios do teu cérebro.
Mal te tenha alimentado o coração,
tornar-me-ei teu sangue.
Eu sou a tua química mais pura.»




Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 75
«Para crer, é preciso sangrar», disse Deus,
«e que a plenitude provoque o conflito,
e que a eternidade seja intragável.
Para aceder a mim, deve a alma arrastar-se,
como um boi, até esse matadouro
que é a esperança.
Para ser-se digno
de um absoluto que jamais conhecerás,
é preciso nascer e morrer,
três vezes por dia, até à volúpia.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 66
«Vai ao deserto», disse Deus,
«e prosterna-te, a fronte sobre a pedra:
três noites depois tornar-te-ás teu duplo.
Vai a um monte,
saúda a neve e as suas lavas,
para mereceres ser monte.
Vai a ti mesmo,
perguntando-te se a tua aorta,
e os teus pulmões, são habitáveis:
tornar-te-ás teu próprio sangue.
Vai além do desconhecido
e dize, lento, a palavra deus:
ou morrerás aí,
ou serei eu a cair morto.»
 
 
 
 
Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 61

«Reconhecer-me-ás: sou simples e vulgar.»

Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 57

O homem queixa-se:
«Tu deste-me um corpo
mais pequeno que o corpo da montanha.
Deste-me um cérebro
com que não posso compreender-me.
Deste-me um coração
que não serve para me aceitar.
Deste-me palavras
que são um luxo na minha desordem.
deste-me um deus
o qual não sei quem é, se eu, se tu.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 56

«tu incomodas-me.»


«Deus decidiu que o homem, tendo razão,
deveria morrer.»



Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 52
Deus disse:
«A minha angústia é profunda:
criei este universo, e não sei porquê.
O sol canta, cercado pelas poldras.
O sol saúda-me
com suas ilhas ténues,
e o poeta escreve uma ode
para me explicar quem devo ser.
A minha angústia é profunda e as estrelas
estão longe de mais para consolar-me.»



Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 37

«Se eu envelheci», disse Deus, «substituam-me:
não se deve guardar um soberano
que se afunda em incerteza.
Apresentar-vos-ei a deuses competentes,
com três, quatro lições dadas por mim
de tacto e divindade.
Irei só para o hospício,
levando algumas almas,
algumas músicas.
Não me lamentem:
tomei, junto de vós, gosto por ser.»



Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 36

Inferno

 
« - O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, que e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.»



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 166

«,(...) sorriem, um com o outro com a boca suja de amoras.»



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 148

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Kublai

Pensou: «Se todas as cidades forem como um jogo de xadrez, no dia em que eu chegar a conhecer as suas regras possuirei finalmente o meu império, mesmo que nunca consiga conhecer todas as cidades que contém.»
 
 
 
Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 123

quinquilharias

 
KUBLAI: - Assim demonstrámos que se nós existíssemos, não existiríamos.
POLO: - De facto, aqui estamos.
 
 
 
Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 120

 
«É claro que são os vivos que pedem para depois de mortos um destino diferente do que lhes calhou»
 
 
Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 111

domingo, 30 de dezembro de 2012

brocado


nome masculino

 tecido de seda com motivos em relevo, de fio de prata ou ouro

(Do italiano broccato, «fazenda bordada»)

''tábuas cheias de pregos''

''ruas betuminosas''

'' a forma das coisas distingue-se melhor com a distância.»

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 102
«Uma vendedeira de hortaliças pesava uma couve na balança e punha-a num cesto pendurado numa corda que uma rapariga deitara de uma varanda. A rapariga era igual a uma da minha terra que enlouquecera por amor e se matara. A vendedeira levantou a cabeça: era a minha avó.»


Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 97

Nancy L. Safford. Limousin, France. 1977 - 1983.


funâmbulo


nome masculino

 1. equilibrista que anda ou dança em corda bamba
2. figurado o que muda de opinião ou partido; indivíduo inconstante
3. ZOOLOGIA espécie de esquilo indiano

(Do latim funambŭlu-, «funâmbulo»)

«-As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se - disse Polo. - Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela.Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.»


Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 90

motejo

  nome masculino

1. acto ou efeito de motejar; zombaria, troça
2. dito picante ou jocoso; dichote

  (Derivação regressiva de motejar, ou do castelhano motejo, «idem»)

 
   «Ora muitos anos de abundância tinham atulhado os celeiros. Os rios em cheia arrastaram florestas de traves destinadas a suster tectos de bronze de templos e palácios. Caravanas de escravos deslocaram montanhas de mármore serpentino através do continente. O Grão Kan contempla um império recoberto de cidades que têm peso sobre a terra e sobre os homens, a abarrotar de riquezas e de movimento, repleto de ornamentos e de incumbências, complicado de mecanismos e de hierarquias, inchado, largo, pesado.
   «É o seu próprio peso que está a esmagar o império», pensa Kublai, e nos seus sonhos ora surgem cidades leves como papagaios de papel, cidades perfuradas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades nervuras de folhas, cidades linhas da mão, cidades filigrana para ver através da sua opaca e fictícia espessura.»



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 75

contrassenso

«Quando o ar sobre as túlipas é doce,
sou eu», disse Deus.
«Quando o peixe dourado
pede ao lago que se anime
para uma serenata,
sou eu.
Quando o vento do estio adormece sob as pedras
e explode no fundo das antigas torres
arrastando consigo a cabeça das estátuas,
sou eu.
Quando o verbo todo o poderoso
larga os seus lobos, que somam dez mil,
nos oásis, nas florestas, na escuma das vagas,
sou eu.
Quando a dúvida,
como escura ferrugem,
rói a estrela
até ao fim do esqueleto,
eu não sei
se sois vós
se sou eu, se é um outro deus.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 30


«Deixem-me só
na minha dificuldade: evoluo dia e noite
condeno-me à metamorfose.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 24
Deus disse
«Quero ser um fardo a todo o incréu.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 22

«Estou triste», disse Deus,
«por ter nascido adulto.
Jamais tive uma infância
nem alguma vez me permitiram
a descoberta de um mundo
já formado.
Não encontrei ninguém
a quem dizer: 'Bom dia, meu pai',
nem 'Minha mãe, como é que tem passado?'
Não me sinto sem culpa.
Todos eles - o silex, a lava, a peónia,
o mosquito, o homem, o zéfiro,
exigiam que eu fosse activo e responsável.
Estou triste:
falta-me um passado.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 14

Bohemian Cigarmakers at Work in Their Tenement


La Belle Dame Sans Merci

Ah, what can ail thee, wretched wight,

Alone and palely loitering;

The sedge is wither'd from the lake,

And no birds sing.



Ah, what can ail thee, wretched wight,

So haggard and so woe-begone?

The squirrel's granary is full,

And the harvest's done.



I see a lily on thy brow,

With anguish moist and fever dew;

And on thy cheek a fading rose

Fast withereth too.



I met a lady in the meads

Full beautiful, a faery's child;

Her hair was long, her foot was light,

And her eyes were wild.



I set her on my pacing steed,

And nothing else saw all day long;

For sideways would she lean, and sing

A faery's song.



I made a garland for her head,

And bracelets too, and fragrant zone;

She look'd at me as she did love,

And made sweet moan.



She found me roots of relish sweet,

And honey wild, and manna dew;

And sure in language strange she said,

I love thee true.



She took me to her elfin grot,

And there she gaz'd and sighed deep,

And there I shut her wild sad eyes—

So kiss'd to sleep.



And there we slumber'd on the moss,

And there I dream'd, ah woe betide,

The latest dream I ever dream'd

On the cold hill side.



I saw pale kings, and princes too,

Pale warriors, death-pale were they all;

Who cry'd — "La belle Dame sans merci

Hath thee in thrall!"



I saw their starv'd lips in the gloam

With horrid warning gaped wide,

And I awoke, and found me here

On the cold hill side.



And this is why I sojourn here

Alone and palely loitering,

Though the sedge is wither'd from the lake,

And no birds sing.
 
 
 
 



La Belle Dame Sans Merci / Valentin Silvestrov: Silent Songs
«Prometo-vos corrigir,
assim que eu possa, tantos erros.»


Alain Bosquet. O Tormento de Deus. Tradução de Jorge Guimarães. Quetzal Editores, Lisboa, 1992., p. 13

''Estoutro deus''


fuligem

«Porque te deténs com melancolias inessenciais?»

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 62
«Que hora é esta, que erva cresce na nossa juventude?»
 
Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 61

sábado, 29 de dezembro de 2012


«Cada distância tem o seu silêncio»

Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 43
 
«O outono expressa-se como pássaros invisíveis. Que farias tu se a tua memória estivesse cheia de esquecimento, que farias tu num país ao qual não querias chegar?»
 
 
Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 39
«Que lugar é este, que lugar é este? Como estás ainda no meu coração?»
 
 
Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 38

armistício

armistício

nome masculino
cessação das hostilidades por comum acordo dos beligerantes por um prazo determinado, a partir de certo dia e hora; trégua ou suspensão de hostilidades
(Do latim diplomático armistitĭu-, «deposição das armas»)


armistício In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-12-29].
Disponível na www: http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/armist%C3%ADcio
armistício
nome masculino
cessação das hostilidades por comum acordo dos beligerantes por um prazo determinado, a partir de certo dia e hora; trégua ou suspensão de hostilidades
(Do latim diplomático armistitĭu-, «deposição das armas


armistício In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-12-29].
Disponível na www: http://www.infopedia.pt/pesquisa-global/armist%C3%ADcio
nome masculino

 cessação das hostilidades por comum acordo dos beligerantes por um prazo determinado, a partir de certo dia e hora; trégua ou suspensão de hostilidades

(Do latim diplomático armistitĭu-, «deposição das armas»)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

«Muitas vezes, não queremos que percebam o que dizemos e nem sequer queremos perceber-nos a nós próprios.»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 32

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

''(...), viúva expulsa dos teus lençóis.''

Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 34

hortênsia

 ou hidrângea

                      ou hortense

''Aquilo que aconteceu não é mais que destruição.''

Antonio Gamoneda. Descrição da Mentira. Tradução de Vasco Gato. Edições Quasi, 2003., p. 30

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012


Adão e Eva

Olhámo-nos um dia,
E cada um de nós sonhou que achara
O par que a alma e a cara lhe pedia.

- E cada um de nós sonhou que o achara...

E entre nós dois
Se deu, depois, o caso da maçã e da serpente,
... Se deu, e se dará continuamente:

Na palma da tua mão,
Me ofertaste, e eu mordi, o fruto do pecado.

- Meu nome é Adão...

E em que furor sagrado
Os nossos corpos nus e desejosos
Como serpentes brancas se enroscaram,
Tentando ser um só!

Ó beijos angustiados e raivosos
Que as nossas pobres bocas se atiraram
Sobre um leito de terra, cinza e pó!

Ó abraços que os braços apertaram,
Dedos que se misturaram!

Ó ânsia que sofreste, ó ânsia que sofri,
Sede que nada mata, ânsia sem fim!
- Tu de entrar em mim,
Eu de entrar em ti.

Assim toda te deste,
E assim todo me dei:

Sobre o teu longo corpo agonizante,
Meu inferno celeste,
Cem vezes morri, prostrado...
Cem vezes ressuscitei
Para uma dor mais vibrante
E um prazer mais torturado.

E enquanto as nossas bocas se esmagavam,
E as doces curvas do teu corpo se ajustavam
Às linhas fortes do meu,
Os nossos olhos muito perto, imensos,
No desespero desse abraço mudo,
Confessaram-se tudo!
... Enquanto nós pairávamos, suspensos
Entre a terra e o céu.

Assim as almas se entregaram,
Como os corpos se tinham entregado,
Assim duas metades se amoldaram
Ante as barbas, que tremeram,
Do velho Pai desprezado!

E assim Eva e Adão se conheceram:

Tu conheceste a força dos meus pulsos,
A miséria do meu ser,
Os recantos da minha humanidade,
A grandeza do meu amor cruel,
Os veios de oiro que o meu barro trouxe...

Eu, os teus nervos convulsos,
O teu poder,
A tua fragilidade
Os sinais da tua pele,
O gosto do teu sangue doce...

Depois...

Depois o quê, amor? Depois, mais nada,
- Que Jeová não sabe perdoar!

O Arcanjo entre nós dois abrira a longa espada...

Continuamos a ser dois,
E nunca nos pudemos penetrar!
 
José Régio

O vinho...

 
«O vinho dá-nos o conhecimento dos estados de alma. Tomamos conhecimento de tudo e de nada, ao mesmo tempo. O vinho confere novo brilho à cortesia. Se fores apreciador de vinho és também apreciador de mulheres e um defensor daquilo que lhes é caro. As relações entre homem e mulher, mesmo as mais complexas, revelam-se com toda a simplicidade, desabrochando de dentro de um copo de vinho como se fossem flores. Todas as canções dedicadas ao vinho devem ser reconhecidas como legítimas.»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 24

''lava-pés''

 
«Muitas pessoas que se mostram arrogantes sofrem de falta de coragem, muitas que são orgulhosas sofrem de falta de orgulho e muitas, ainda, que são fracas, não possuem força de ânimo para reconhecer a sua fraqueza. Muitas vezes os fracos comportam-se como fortes, os despeitados como satisfeitos, os humilhados como orgulhosos, os vaidosos como modestos; é o que acontece comigo, por exemplo, que nunca me vejo ao espelho, e isso apenas por vaidade, posto que o espelho é para mim insolente e malcriado.»



Robert Walser. O Salteador. Tradução de Leopoldina Almeida. Relógio D' Água, Lisboa, 2003., p. 14

domingo, 16 de dezembro de 2012

 
«Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a imagem especular, q que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. Mesmo quando os amantes dão voltas aos corpos nus pele contra pele procurando a maneira de se colocarem para ter um do outro maior prazer, mesmo quando os assassinos empurram a faca para dentro das veias negras do pescoço e quanto mais sangue grumoso jorrar mais afundam a lâmina que desliza entre os tendões, não é tanto o seu unir-se ou trucidar-se que importa quanto o unir-se ou o trucidar-se das suas imagens límpidas e frias no espelho.»



Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 55

''carrocel das fantasias''

malentendidos

 
«Assim entre os que por acaso se encontram juntos a abrigar-se da chuva debaixo de um pórtico, ou se apinham devaixo dos toldos de um bazar, ou param para ouvir a banda no coreto da praça, consumam-se encontros, seduções, ligações, cópulas, orgias, sem que troquem uma palavra, sem que se toquem com um dedo, quase sem se olharem.»


Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.Tradução de José Colaço Barreiros.Editorial Teorema, Lisboa, 1990., p. 53


“I meet you. I remember you. Who are you? You’re destroying me. You’re good for me. How could I know this city was tailor-made for love? How could I know you fit my body like a glove? I like you. How unlikely. I like you. How slow all of a sudden. How sweet. You cannot know. You’re destroying me. You’re good for me. You’re destroying me. You’re good for me. I have time. Please, devour me. Deform me to the point of ugliness. Why not you? Why not you in this city and in this night, so like other cities and other nights you can hardly tell the difference? I beg of you.''

Marguerite Duras, Hiroshima mon amour
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