domingo, 22 de junho de 2014


O mundo de André e. Teodósio é, sobretudo, um mundo que esteve sempre aberto para o desconhecido. Podia empunhar um cartaz a dizer: “All you need is love!” O love é o seu assunto.
O Expresso apontou-o como um dos portugueses mais influentes de 2012. A informação tem tanta importância quanto: “O meu pai comprava livros ilegais na Barateira. Esta sede de informação estava nele desde cedo.” As duas estão ligadas. Para compreender o percurso — e a cabeça singularíssima deste alien barroco —, é preciso fazer arqueologia. Conhecer as fundações onde tudo começou por fervilhar e se descobriu o mundo com espanto.
Encontrámo-nos em casa. Tem uma biblioteca poderosa que organizou por cores. Puro gesto excêntrico. Veste uma camisa de leopardo, um colar oferecido pela mãe. Foi também a mãe que ofereceu a colcha que está sobre a cama, de algodão, estampado dourado. Está no chão da sala um vinil da Concha (lembram-se dela no Festival da Canção a cantar: “Qualquer dia, quem diria”?). À entrada, um Apolo de cartão, elegante, inspirador. Tudo conjugado, parece uma conjugação impossível. Artificiosa e impossível. E depois não é. É original, surpreende, abre para o infinito. Como o seu teatro. Que não procura nada, mas que está sempre a encontrar — e a integrar.
A casa fica a dois passos do Teatro Praga, num bairro popular de Lisboa. Corredor directo entre uma coisa e outra. A vida como ela é na pastelaria da esquina. Pastelaria de “sai um galão bem quente” e balcão de metal. E pérolas ditas pelas pessoas de todos os dias que olham para a vida sem peneiras. Pérolas que ele rapina e encaixa numa espécie de puzzle onde está também a vida dos livros. André e. Teodósio é... como qualificá-lo numa palavra? Talvez artista. Um verdadeiro artista. Músico, cantor, actor, encenador, dramaturgo. E amante (i.e., aquele que ama).
Com quem tem afinidade de sangue?
Estive a estudar a minha árvore genealógica e descobri que sou descendente directo de Adão e Eva. A minha afinidade de sangue é o mundo. Está cá tudo inscrito. Isso ajuda-me a fugir de uma ideia de nação, de família.
Como se a sua pertença fosse a qualquer coisa mais abrangente?
Sim. Sintetizo o caos inicial. Todos sintetizamos o caos inicial, temos em nós as estrelas, o hélio. É muito importante fugir de qualquer naturalização, de qualquer essência. Claro que é uma falsa questão…
Provimos de um sítio que é mais circunscrito do que isso. O que é que importa da sua árvore genealógica mais estreita para compreender a sua cabeça?
Venho de duas famílias díspares da Beira Baixa. Os meus pais conheceram-se num comboio, a vir para Lisboa. A família do meu pai é de latifundiários que trabalhavam com as pessoas do campo. A família da minha mãe é aristocrata, de mistura escocesa e espanhola, e é tudo maluco. Realizadores, escritores. Há histórias de a minha bisavó desenhar ovnis.
Aberta ao infinito.
Sim. Sou descendente de Adão e Eva mas virado para o infinito — para não fazer sentido nenhum. Sou muito ligado à terra, sendo que a terra não faz sentido nenhum. É só uma parte de uma totalidade caótica.
Procura o sentido no que lê, no que faz?
É o contrário. Estou aqui e sei que nada faz muito sentido. Estou aqui e não quero que isto tenha um sentido. A ter, que tenha muitos sentidos. Até não fazer sentido. É como se em vez de ser só uma coisa, fosse capaz de estar sempre a mudar de ficção. É uma fusão estranha... Sou um barroco alien [risos].

A sua mãe falava consigo em português?
Sim, ela é portuguesa. Quando era nova, assinava nos livros Lúcia Scott. (O apelido é Escoto. Foram traduzindo o Scott para português.) Nunca pertenceu a Penamacor. Era uma cidadã do mundo.
O seu percurso é marcado por viagens constantes e por um período que passou fora. Sente-se estrangeiro em relação a quê?
Não me sinto estrangeiro em relação à língua. Apesar de não a dominar e não a ter aprendido bem. Estive até ao 6.º ano em Portugal. Depois, fui para os Estados Unidos e aprendi Inglês. Não sei como é que as palavras são feitas, qual é a sua etimologia, como é que estão relacionadas. Nunca me senti de um só lugar. Os meus pais sempre me incentivaram a pensar o fora.
A sua geografia, em Lisboa, era qual?
Nasci na Lapa, depois estive em Paço de Arcos, depois Olivais. Frequentei uma escola católica. Os meus pais não são católicos. Acho que me puseram lá para não gostar da escola católica [risos].
O que é que foram fazer para os Estados Unidos?
O meu pai era militar e concorreu a um cargo na NATO. Tornou-se administrador da base de dados da NATO. Nos anos [19]80 tinham uma vida muito boa.
Quando é que teve a noção de que era artista e de que a sua vida ia ser esta?
Sempre tive um fascínio por artes. Desde novo queria ser músico. Lia muito porque o meu pai queria ser escritor. Desenhava caras de pessoas, olhos. E tinha jeito para as composições e para os teatrinhos da escola. Tive uma bolsa nos Estados Unidos, estudei flauta transversal, tuba, toquei trombone. Em Portugal, deu-me uma traquitana qualquer e pensei: “Vou para Direito.” Não correu bem. Fui para Música e tornei-me músico profissional. Tocava em orquestras. Depois integrei o coro Gulbenkian e fui estudar canto.
Percebe a traquitana do Direito?
Estava meio perdido. O Direito parecia-me assim regrado, como a vida militar do meu pai. E dava-me a ilusão de poder fazer justiça. Uma coisa muito importante, fazer justiça. Depois conheci um rapaz. Convidaram-me para fazer um espectáculo no Teatro Nacional e conheci o Pedro Penim. Apaixonámo-nos e pensei: “Isto agora não vai correr bem. Ele não pode ir estudar Música, ele faz teatro. Não quero estar com ele só à noite como as famílias normais. Quero estar com ele a vida toda. Vou estudar Teatro.” Os meus pais: “Teatro? É Direito, é Música, tens de ter tino e decidir.” Fui para Teatro. Tinha 21 ou 22 anos.
O amor a decidir a vida toda.
Faço por isso. Para mim, a vida é o amor. É o que interessa. Tudo o resto são placebos para evitar entrar numa depressão. (Sou muito dado à tristeza.) Tudo o resto são placebos para ir continuando.
Ensaio para Sonho de uma Noite de Verão (CCB, 2010) Nuno Ferreira Santos

O Pedro era da formação do Teatro Praga?
Era. Era uma companhia ainda conservadora, de alguma forma. Quando entrei, consegui trazer uma certa dose de desprendimento em relação ao teatro. Nunca gostei muito de teatro, na verdade.
Como assim?
Tinha lido sempre imenso, ficção, ficção. Não conseguia ver pessoas a fingir que eram coisas em palco. Não percebia aquele tipo de representação mimética, caricatural. Diziam o texto de uma forma que não me interessava. Adormecia.
Mas o enredo, a força vital da palavra, que tanto existe nos livros como no teatro, isso interessava-o.
Sim. Mas não a representação daquilo que podia ler em livros. Preferia ler, sublinhar.
Sublinhar é uma maneira de se projectar naquilo, de se identificar mais intimamente com o que lê?
Sim. De tornar aquilo meu. Os livros que leio têm de ser meus, já não são do autor.
O encontro com o Pedro fê-lo encontrar um fio condutor? Foi um princípio organizador da sua diversidade?
O que ele me ofereceu foi o sítio que eu recusava e que ele defendia como sendo o sítio onde todo o caos podia conviver. E que não existia na música. A música tinha uma herança histórica. Não era tão permeável como o teatro.
Quando entro na Praga, digo isto: “Temos de pensar o texto de uma forma musical, fora da musicalidade que está associada a um dizer teatral.” Os cenários não deviam ser tão teatrais. Deviam ser como a casa dos meus avós ou ter a lógica de decoração da minha mãe, que mudava de três em três segundos (agora a casa é gótica, agora é nova-rica). São assumidamente ficções [no caso da minha mãe], tão ficcionais como no teatro. O teatro permitiu trazer um bocado de real perante a lógica do texto.
Parecendo a fantasia, o desvario, trata-se, no fundo, de trazer o real.
Exacto. E ali conseguia ter tudo. Tocar, fazer artes plásticas, escrever. E, para além disto, tudo o que não tinha pensado ainda, podia trazer também, quer fosse filosofia, culinária, roupa, televisão.
Esse é o lado da genealogia Adão e Eva? Tudo pertence a tudo, tudo vai dar a todo o lado.
É isso.
O que sabotou a sua vida linear? Que grãos de areia se intrometeram na engrenagem? Na verdade, ela nunca foi linear.
Não, nada. Tive muita sorte. A info-exclusão: é importante saber que há pessoas que não tiveram esta oportunidade. É isso que me faz ser defensor do Estado social e defensor de uma certa ideia de esquerda. Mais próxima agora do Livre.

É simpatizante?
Completamente. Tive essa sorte, nos anos [19]80, de poder viajar, ter os livros que queria. O dinheiro possibilitava, como hoje, ter acesso à informação. Não quer dizer que produza conhecimento, mas experimentar é atravessar o fogo.
“O Homem nada sabe até queimar os pés no fogo ardente”, diz Antígona.
É. Todas as pessoas deviam ter acesso a uma vida não linear. Ou, mesmo que essa linearidade exista, que alguém lhes diga que é só uma parte de uma totalidade.
O que acaba de dizer traduz uma ausência de medo. Aquilo que faz as pessoas escolher, ou serem escolhidas, por uma vida linear, tem que ver com uma ideia de controlo sobre os acontecimentos da sua vida.
Escrevi uma vez num texto: “Quando as nossas mães nos dão à luz, nascemos nós e o nosso medo.” Tem-se sempre medo. Mas ou o medo toma conta de nós ou tentamos domar o medo. Nunca se sabe se se vai flipar, se se vai ficar doido. [O desafio] é não ficar perplexo perante aquela sombra gigante, delinear os contornos daquela sombra, perceber que é só um padrão.
Porque é que não reproduziu o caminho dos seus pais? Casar, ter filhos, uma vida razoavelmente arrumada.
Os meus pais, apesar de terem tido uma profissão, nunca tiveram uma vida muito linear, afectivamente. Tiveram as suas coisas, com certeza [risos]. Não tiveram uma vida como a dos filmes. Havia ali qualquer coisa a quebrar a jarra de cristal perfeita. E isso ajudou-me muito.
Perguntou-se: o que é que faço com estes cacos?
Exacto. É arte. Antes era uma jarra, agora são cacos, é uma escultura. Seria impossível para mim ter uma vida muito linear. Se bem que afectivamente seja hiperlinear. Não namorei muito, quero é namorar para o resto da vida.
Romântico.
O amor interessa-me como ideologia. É o rubi que quero talhar. Consigo falar sobre milhares de coisas, de filosofia, biologia, teatro, estética. Sobre o amor não consigo falar, e tenho uma obsessão com o amor. Não sei muito bem porquê… é porque me faz feliz.
Ou então porque o amor é o detonador, é o motor.
Sim, o amor é o detonador. Tem coisas que nem sei o que são porque não tenho palavras para elas. Não é dependente do meu conhecimento do mundo — está lá. É muito bonito, reduz outra vez a importância do eu.
Madame Sade (Teatro Taborda, 2000) Rui Gaudêncio

Ao mesmo tempo, tudo aquilo que se faz é afirmação do eu, da singularidade. O que faz profissionalmente anda muito à volta das questões da identidade.
É verdade. Mas isso é um erro táctico meu [risos], ainda estou preso a uma lógica primitiva. Quero estar no futuro. Há aquela coisa dos gender bender, das pessoas sem género. Eu digo que o próximo passo é a identity bender. A identidade é que está a mudar. Agora posso ser uma cadeira, amanhã sou uma flor. E depois sou um ser humano e depois um cão. Amanhã ou numa questão de segundos.
A palavra “metamorfose”, o que é que lhe ocorre dizer sobre ela?
Ocorre-me essa escolha deliberada de ficções. De irmos mudando as nossas ficções. Gosto da palavra “metamorfose”. Tenho medo de que isto também seja representativo de um tipo de histeria que possa ter em mim. Não é muito agradável. Não queria achar que estou à procura de ter alguma coisa e que vou mudando até a encontrar.
Explique melhor.
Não é que queira saber o que sou como ser humano, mas tenho medo de que esta ideia de mudança de identidade, de metamorfose constante daquilo que sou, represente, não aquilo que sou, mas uma histeria em busca de poder ser alguma coisa. E como não quero definir-me, como não quero ser como o Heidegger e estar à procura de uma essência, não quero achar que há uma essência ou um início.
Não tem um fascínio pelo momento inaugural, pelo instante da deflagração?
O momento inaugural não é uma coisa, é uma relação de coisas. Por isso é que me interessa mais a relação do que um particular.
Interessa-lhe a constelação.
Exacto. Não quero achar que estou na constelação à procura de uma estrela. Quero manter-me só no plano da experiência, de queimar os pés com o fogo.
Não lhe interessa o que se extrai disso? O que se extrai da rasura, da cicatriz.
Interessa-me como processo de experiência, mas não quero deixar muita informação, muitas marcas. Ela pode perpetuar-se, pode tornar-se essencial, tradição, e não quero que isso aconteça. Isso é o que leva as pessoas, ou que já me levou a mim em determinadas alturas, a não conseguir relacionar-se com o medo. Como se existisse uma origem para aquela sombra que ali está presente. Não me quero preocupar com grandes respostas. Tenho dificuldade com escolas, academias. Muitas vezes estão alicerçadas nesse saber verdadeiro. E ele não é verdadeiro, está é em relação com o outro.
Há pouco fotografámos na sua biblioteca. Os livros estão alinhados por cores! Lembrei-me da biblioteca do David Mourão Ferreira, que estava organizada numa sequência cronológica e não por estilos ou ordem alfabética.
É, as coisas estão em relação umas com as outras, no mesmo momento. O tempo não interessa, mas estão todas sequenciais. Não há uma que seja a origem.
Está a apanhar uma grande seca? Às vezes não digo nada com sentido. Vivo numa bolha qualquer. Os meus amigos dizem sempre que não saio de casa, não falo com ninguém. Estou sempre fechado. Na Internet, a ler livros, a ver filmes. Viver numa bolha protege-me muito. É muito difícil entregar-me ou conhecer uma pessoa. Ninguém sabe nada da minha vida.
Agora vai ficar-se com um vislumbre.
Sim. Mas ninguém sabe como falo com os meus amigos, como é que estou com eles, a intimidade.
Essa palavra- rubi, essa palavra-jóia, intimidade...
É muito cara, a intimidade. É o sítio onde se une tudo, é na intimidade.
Se fosse uma flor, seria qual, a intimidade? Ou uma pedra preciosa.
Âmbar. A intimidade é âmbar. Fecha-se, cristaliza-se, mas consegue-se ver tudo lá dentro.

Eu chamaria a isso “essência”, mas não gosta da palavra “essência”. Recusa-a.
Tenho um problema histórico com a palavra “essência”. Já representou tanta coisa negativa. Sempre que a oiço, é como se houvesse uma origem. Começo a ficar tolhido. Começo a disparar: “Não há razão, não há essência. Podes ser o que quiseres! Não és, estás a ser.”
Não há ser, estamos a ser?
É. E vamos estando a ser. Estamos a ser em relação, simétrica ou assimetricamente com as coisas no mundo.
Voltando à genealogia de que comecei por falar: tem afinidade de sangue, está em relação com Zizek, Bela Lugosi, Antígona, Cleópatra, Susana Pomba, Concha, Tony de Matos. Shakespeare, claro. Fellini, muitíssimo. Tudo faz parte do mesmo?
Sim, somos todos primos [risos].
Há primos em primeiro grau, em segundo grau. Estas são filiações mais íntimas? O seu mundo é essa coisa sincrética onde entra tudo?
Não posso dizer que não. Sou feito deles. Os meus pais, os meus amigos, o Godard, o Zizek, o Fellini, nem sequer consigo pensar o que é que poderia ser se não existissem. Não tinha sobrevivido. Tinham-me posto em bebé na relva e eu morria. De certeza que estava lá o Fellini a dizer: “Agora tens de caminhar até ao supermercado” [risos].
O que é que deve ao Fellini? Há uma peça encenada pelo Teatro Praga que tem um excerto do filme Cidade das Mulheres.
Nossa? Já não me lembro. Não tenho boa memória, esqueço-me de tudo. Passa a ser tudo meu, está cá mas não sei o que fiz, de onde é que vem. Reciclo-me muito nos textos, têm sempre frases repetidas. O que eles têm todos em comum é esta desnaturalização.
Passam a ter outra natureza. Muda a perspectiva.
E não muda a perspectiva através da alienação, é através da inclusão. Todos fazem uma espécie de exaustão daquilo que já existe e que se consegue reconhecer. Mas nada daquilo bate certo, está sempre tudo disforme.
Fellini tem um lado grotesco e disforme muito acentuado.
O que tenho com ele é esse lado disforme, a capacidade de encontrar na coisa mais prosaica um outro ponto de vista. As pinturas de Picasso foram importantíssimas para mim. De repente, há um quadro que em vez de ser o ponto de vista do pintor é o da criança que está a ser amamentada.
Ainda que pareça, não é fácil mudar o ponto de vista. Exige distância crítica, pormo-nos em causa.
Será que conseguimos? Às vezes, não se produz pensamento nenhum, não se chega a lado nenhum. Sou bélico, gosto de ganhar conversas, mas não tenho problema em admitir que estou errado, que estou a pensar ancorado num conhecimento hegemónico, que não permite diferença. Uma vez entrevistaram o Godard e perguntaram: “Porque é que faz uns filmes tão diferentes dos outros?” O Godard responde: “Não faço filmes diferentes. Os outros é que fazem os filmes todos iguais.”
Top Models: Paula Sá Nogueira (Culturgest, 2011 — um espectáculo de Teodósio para a companhia Cão Solteiro) Joana Dilão

Interessa-lhe, claro, mais que tudo fazer a pergunta.
Sempre. Ou ver que a pergunta estava errada. O que é teatro? É uma pergunta errada porque significa que o teatro é alguma coisa. E o teatro não é nada, é aquilo que quisermos que seja. É como a primeira frase do Tractatus do Wittgenstein: o mundo é tudo o que quisermos que ele seja. Eu quero é o infinito! Quero é que não haja respostas e que toda a gente seja muito feliz e que estejamos todos a viver e a fazer amor. [risos]
Fazer amor ou fazer o amor?
As duas coisas, obviamente [risos]. Gosto muito de fazer amor.
A conversa estava quase abstracta, e ficou concreta, com o fazer amor. Porque é que está a dizer isso?
Porque é verdade.
É o tipo de frase que as pessoas não dizem habitualmente. Não dizem por pudor, por convenção social.
Não deve haver pudor em relação a nada.
Gosto de pensar espectáculos, mas não gosto de fazer espectáculos. Gosto de ter ideias, mas não gosto de as fazer. Não quero entrar em espectáculos, não quero escrever textos, não quero fazer nada.
O seu trabalho é pensar e a sua diferença assenta nisso?
Em relação ao amor, não gosto só de o pensar [risos].
As peças são um lugar de pensamento?
Claro.
Lugares de compreensão do mundo?
Sim, de disponibilização de ferramentas para a compreensão do mundo. A arte é um legado do pensamento, não é da materialização. Não precisávamos da materialização, toda a gente sabe.
Sabe que são três pessoas que sabem? Tem noção disso?
[risos e comoção] Não quero aceitar isso. Quero aceitar que toda a gente pode pensar isto. Gostava mesmo de estar com as pessoas todas. A maneira como a cultura se foi desenvolvendo no Ocidente é que castra muito.
Por falar em castração. Quando é que deixou de ser criança?
Nunca fui muito criança. Era puto e fazia campanhas políticas. “É coisa de adulto, tomar conta do mundo.” Nunca me dava com os filhos. Queria era plasmar o mundo dos adultos. Tipo Kidzania avant la lettre.
Queria crescer depressa?
Sim. E agora sofro de uma coisa: quero desaparecer muito depressa. Já cresci e estou em “rame-rame”.

Está numa fase deprimida?
Não, estou bem. Ao crescer, sempre quis mudar o mundo. E quero disponibilizar coisas para que o mundo mude. A realidade desmente isso a toda a hora. Vemos a Rússia a invadir a Ucrânia, passos históricos atrás. O que perdi foi uma ingenuidade vital que tinha. Não a perdi há muito tempo.
Estive a ler excertos de peças suas. Gostava de devolver-lhe algumas ideias que sublinhei. Uma está na Cenofobia: “Ah, cair em mim, ah, finalmente ser eu.”
Esse foi o primeiro texto que escrevi para ser editado. Cenofobia, a palavra é estranha. Ao mesmo tempo que quer dizer medo de estar em espaços muito abertos, pode descrever o medo de estar em cena.
Fale-me deste cair em si.
Decidi fazer um texto em que me concentrava em mim, como entidade, como sujeito. Sendo que esse sujeito, durante todo o texto, está a tentar fugir dele, a matá-lo. É a ideia de que cá dentro não há nada, mas que consigo articular estas coisas todas e afirmar: “Se calhar, isto sou eu.” Estou a ser qualquer coisa. A única coisa que posso fazer é cair em mim. Deixar de ter medo de estar em espaços abertos e deixar de ter medo de estar em cena. Um amigo meu diz que vivemos em solidões partilhadas. É um bom caminho. Esta é a minha solidão, eu partilho-a consigo, você partilha a sua solidão, e é nesta relação que vão surgindo coisas.
Na peça Terceira Idade, diz assim: “Avança-se na trama e eu fico tramado.” É o que sente?
Sim. Vamos ficando tramados porque [a vida] é cada vez mais complexa. É como escrever um texto. Vai-se tentando sintetizar e simplificar para que não polua, para retribuir aquilo que se consumiu. Quanto mais se avança, quanto mais se vai pensando e conhecendo, mais tramado se fica: fica-se enredado.
Em 2012, foi considerado pelo Expresso uma das 100 personalidades mais influentes do país.
Em 2013, caí [risos].
Tropa-Fandanga (D. Maria II, 2014) Nuno Ferreira Santos

Em 2014, apresentou no Teatro Nacional, essa instituição, uma peça de grande sucesso, a Tropa-Fandanga. A expectativa em relação a si e ao seu trabalho é um peso?
A Praga começou com um grupo circunscrito de pessoas que achavam a companhia curiosa. Hoje há uns milhares que a conhecem e que precisam dos nossos espectáculos como matéria de pensamento. Nunca deixei de arriscar como arrisco. É diferente falar da Tropa Fandanga, feita por várias pessoas, e falar de espectáculos só meus. Quando são espectáculos só meus, é claríssimo que são quase sempre mal recebidos.
Porquê?
Sou muito ditador quando sou eu a fazer. Nunca deixei de querer experimentar. As obras que faço são mal recebidas pela crítica, apesar de serem bem recebidas pelo público. Isso interessa-me muito. Quer dizer que nunca estamos de acordo com uma ideia de ver teatro, ópera, dança.
Quer dizer que fogem ao cânone.
Sim. Que estamos sempre meio fora e que as pessoas estão a receber isso.
Foi uma surpresa ver-se entre os mais poderosos?
Penso que resultou de, com a minha idade, ter feito coisas que ninguém tinha feito. Em Portugal, fiz espectáculos para a Companhia Nacional de Bailado, o São Carlos, o Teatro Nacional Dona Maria, o São Luiz, o CCB. Tinha 33 anos, é meio inédito.
A sua carreira internacional é pujante. Fazemos esta entrevista depois de regressar da Alemanha e Suécia, dentro de dias parte para a Bélgica e depois Finlândia.
E vamos para o Théâtre de la Ville [Paris]. A trama vai-se adensando. As instituições estavam cristalizadas e apanhei uma época em que estava tudo em mudança, com novas pessoas, novas maneiras de pensar. Tenho facilidade porque fui músico, escrevo, consigo estar em vários sítios ao mesmo tempo. Como a ideia de teatro que temos não é dependente de uma técnica, a teatral, mas sim de pensar, isto [que fazemos] é aplicável a tudo, às artes plásticas, à dança, à ópera. Consigo pensar sobre todos estes suportes artísticos porque não tenho suporte.
A não ser a sua cabeça.
Sim. Que é a cabeça do Fellini, do Bela Lugosi, do Godard, do Zizek, do realismo especulativo.
“O que se quer é o desconhecido, andar para lá do horizonte a caminho do caos.” A frase consta de outra peça, escrita por José Maria Vieira Mendes. Olhemos para o fio do horizonte. O que é que há para lá?
É o abismo. Conhece a pintura do Caspar David Friedrich? Sou como esse senhor. Gosto de estar ali, nem muito atrás, para não deixar de ver, nem muito à frente, para não cair. Mas tenho medo do abismo. O que é paradoxal. Tenho medo, ainda, de deixar de me entender com os outros, de estar cada um por si.
É uma imagem tremenda de abismo: deixar de se entender com os outros, deixar de se entender com o mundo, ficar cada um por si. Como se as estrelas ficassem sozinhas e se acabasse a constelação.
Uma coisa são as coisas circunscritas aos sujeitos, à sua praxis. Tem de haver um arco fundamental que as una e que as emoldure num determinado tipo de agir ou de estar. Os direitos universais. Se está cada um por si, a experimentar o seu mundo, entramos num jogo alienado.
Desafiaram o crítico Augusto M. Seabra a linchar o Teatro Praga para a revista que a companhia edita. Então, como é que o lincho? (Parêntesis: vocês dizem “a Praga” como se se referissem a uma peste. Uma peste boa.)
Linchar é pôr em causa. É porem-me um espelho à frente e ter de lidar com isso. Adoro o espírito crítico. Adoro pessoas que estão constantemente a pôr espelhos umas às outras, que se criticam e põem em causa. Que não vão dar festinhas às outras nem vão confirmar que elas têm razão.
Quer dizer mais alguma coisa sobre o amor?
Roma ao contrário é amor. Não sei muito bem o que é que o amor é, mas sei que quando ele não existe é horrível. Não quero nem Roma nem o horrível, quero o amor, que está ali no meio. É a palavra que sobrevive a este jogo de pensamento.
Há outra ainda entre Roma e Amor: romã.
Isso é muito judaico, é um fruto sagrado. É um fruto maravilhoso.
É também uma imagem da multiplicidade de mundos de que estivemos a falar. Tantas partículas dentro da unidade da romã...
Vou deixar de dizer que vivo numa bolha e passar a dizer que vivo numa romã [risos].

Frances Farmer Will Have Her Revenge On Seattle Lyrics - Nirvana

It's so relieving
To know that you're leaving as soon as you get paid
It's so relaxing
To hear that you're asking whenever you get your way
It's so soothing
To know that you'll sue me, this is starting to sound the same

I miss the comfort in being sad(x2)
I miss the comfort in being saddd-aaaddd-aaaddd-aaaddd yeah....

In her false witness, we hope you're still with us,
To see if they float or drown
My favorite patient, a display of patience,
Disease-covered Puget Sound
She'll come back as fire, And burn all the liars,
leave a blanket of ash on the ground

I miss the comfort in being sad(x2)
I miss the comfort in being saddd-aaaddd-aaaddd-aaaddd yeah....

It's so relieving
To know that you're leaving as soon as you get paid
It's so relaxing
To know that you're asking wherever you get your way
It's so soothing
To know that you'll sue me, this is starting to sound the same

I miss the comfort in being sad(x2)
I miss the comfort in being saddd-aaaddd-aaaddd-aaaddd yeah....

sábado, 21 de junho de 2014


(...)

«I've had enough of watching scenes
Of schizophrenic egocentric paranoic prima donnas
All I want is the truth now
Just gimme some truth»



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 74

JEALOUS GUY

I was dreaming of the past
And my heart was beating fast
I began to lose control
I beagan to lose control

I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't want to hurt you
I'm just a jealous guy

I was feeling insecure
You might not love me any more
I was shivering inside
I was shivering inside

I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't want to hurt you
I'm just a jealous guy

I was trying to catch your eyes
Thought that you were trying to hide
I was swallowing my pain
I was swallowing my pain


I didn't mean to hurt you
I'm sorry that I made you cry
I didn't want to hurt you
I'm just a jealous guy
Watch out
I'm just a jealous guy
Look at babe
I'm just a jealous guy


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 68

“Most Of Them, I’m Not Writing About Me”


GOD

«God is a concept
By Which we measure our pain
I'll say it again
God is a concept
By which we measure our pain, yeah, yeah


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 59

Love is Knowing we can be

Love is needing to be loved


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 27

UMA EVIDÊNCIA SEM REVERSO (sobre Body Heat de Lawrence Kasdan)

 
«Porque o filme arranca com uma linha temática extremamente sublinhada: a linha do fogo. É o incêndio da sequência inicial, é o calor que domina a cidade, são as camisas suadas, é a respiração sufocada, é o pedido de Ned («fale-me de tudo, menos do calor»), é o isqueiro que brinca nas mãos dela, é este cigarro silenciosamente apagado, é a mancha crepitante da imagem, e tudo isto funciona como uma imensa metáfora sexual: tudo isto é, no fundo, um calor que vem do corpo.»
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 187

William Mortensen. Death of Hypatia


o devir-mulher da alma

«O cinema, acrescentaremos, é, para Manoel de Oliveira, uma tentativa de se identificar com o devir-mulher da alma
 
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 183

O orgulho

«O orgulho é desprovido de alma; e, no entanto, em tudo a imita. As mulheres possuem esse orgulho angélico e bestial.»
«Que a alma seja um vício quer dizer tudo e não quer dizer nada.»

João Bénard da Costa
« a Loucura e qualquer coisa de que não sei bem o nome. Começarei por chamar-lhe: o sofrimento do amor.»

Barthes

parálise

«Chamar-se-á parálise ao modo de abordar o que vem pela escrita.»

Jacques Derrida, «Pas (préambule)», Gramma, 3/4

«desleitura» - Eduardo Lourenço

Dancer Ben Magid Rabinovitch-Tamaris in 'Dirge' , 1931


AMOR. DESPREZO.

Assim compreendo
o meu perfeito
acabamento.


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 64
«À beira dos teus olhos,
por acaso detenho-me,
que acontecimentos serão produzidos
em mim e em ti?

Não há resposta.
Sabem-se os nascimentos
quando já foram sofridos.

Tão pouco somos, -  e tanto causamos,
com tão longos ecos! »

...


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 62
«(...)

Porque não há mais ninguém,
não, não haverá mais ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.»



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 57
«Que procuras? - Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 54

LUA ADVERSA

Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 52

«O pensamento é triste; o amor, insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 50

André da Loba (Portugal)


há mãos de amor para a tua ausência.

No estrondo das guerras, que valem meus pulsos?

CANÇÃO DE ALTA NOITE

Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente-
Não necessita de nada.


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 37

TIMIDEZ

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

-mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

-uma palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos nocturnos,

-que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

-e um dia me acabarei.


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 32

TEOLOGAL


Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão noites em claro
rendidos à forma prima:
a rosa é mística.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p. 124

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA

Conheci a cólera de Deus,

«Os escritores são insuportáveis
                          menos os sagrados,»


Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.97

quarta-feira, 18 de junho de 2014

A culpa. Repensar a culpa.


ARTEFATO NIPÔNICO

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.96

A FORMALÍSTICA

 
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
                    que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
     o efeito respeitoso que produz
                           seu trato com dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato
A serva de Deus sai de sua cela à noite
                            e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
                                            e ela caminha.
O jovem poeta,
                                  fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
                                   ''Deus é impecável''.
As rãs pulam sobressaltadas
                                     e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas
 
 
 
 
 
Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.94

«Eu vi morrer um homem e caminho»

 
«Sublinhemos eu vi. Existir, para Ruy Belo, é ser olhado, é ser coberto pela força de um olhar, mas é também resistir ao olhar dos outros, conseguir que o olhar dos outros não destrua o nosso olhar. Só no lugar da Mãe, ou de Deus, o olhar assimétrico. «Somos seres olhados » (p.41), «Não mais o teu olhar te defende / Tu és um ser exposto a todos os olhares » (p.43) - e esta é talvez, para Ruy Belo, a definição da morte.»
 
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 159

«Eu não dispenso a morte eu quero morrer muito »

««nunca até hoje eu morrera tanto em alguém»

«ele vai só não tem ninguém / onde morrer um pouco toda a morte que o espera»


«No teu amor por mim há uma rua que começa»

   «Depois, os ombros. Há toda uma relação com a amada e o amigo que passa por esta valorização dos ombros como lugar de apoio para duas pessoas que caminham lado a lado: «Há no meu ombro lugar/para o teu cansaço » (p.29), «tu és uma presença redonda no meu ombro de morte» (p.45), «uma mulher, alguém capaz de partilhar / o peso que nos ombros de cada dia puser » (p.101). E o homem isolado na cidade é aquele que não tem «um ombro para o seu ombro » (p.19).
 
sobre o poeta Ruy Belo
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 156

ESTIRPE

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e exaustivo. Deixem-se estar. Deixem-se
                                                                                             estar.
Deixem-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de
                                                                           completa coragem,
longe do corpo que fica em qualquer lugar.



Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.
Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.


Oh! não gemiam, não...Os mendigos maiores são todos
                                                                                       estóicos.
Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz
mas não querem que, do outro lado, tenham notícia da
                                                                                      estranha sorte
que anda por eles como um rio num país.


Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.
Têm seu reino vazio, de altas estrelas que não cobiçam.
Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem
                                                                                          pede.
E seu coração é uma coisa que, se existiu, já esqueceu.
Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai conver-
                                                                                        tendo em pedra.

Esse povo é que é o meu.



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 31

terça-feira, 17 de junho de 2014

''lábios brancos de medo''

«Quando penso no teu rosto
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.»



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 27

« -por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.»



Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 20
«Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 18
«O choro foge sem vestígios,
mas levando náufragos dentro.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 18


«(...)

Nunca ninguém viu ninguém
que o amor pusesse tão triste.
Essa tristeza não viste,
e eu sei que ela se vê bem...
Sé se aquele mesmo vento
fechou teus olhos, também...


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 16

«(...)

Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.»


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 15

RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão parada e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
a minha face?


Cecília Meireles. Antologia Poética. Colecção Poesia e Verdade. Guimarães Editores. Lisboa, 1968, p. 13

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A LUME

''Entre os ruídos apaixonantes, deves acrescentar a voz de um ser que se deseja, atrás da sebe,atrás da cortina da liteira, atrás da porta ou da tapeçaria de brocado.
 Quando escuto o ruído apaixonante do copo de dados, fico toda ruborizada,o meu coração torna-se uma espécie de odre de vinho que o cabreiro tira da ribeira e leva avidamente à boca."

  Pascal Quignard
As Tábuas de Buxo de Apronenia Avitia

sábado, 14 de junho de 2014


A CÓLERA DIVINA

Quando fui ferida,
por Deus, pelo diabo, ou por mim mesma,
- ainda não sei -
percebi que não morrera, após três dias,
ao rever pardais
e moitinhas de trevo.
Quando era jovem,
só estes passarinhos.
estas folhinhas bastavam
para eu cantar louvores,
dedicar óperas ao Rei.
Mas um cachorro batido
demora um pouco a latir,
a festejar seu dono
 - ele, um bicho que não é gente -
tanto mais eu que posso perguntar:
por que razão me bates?
Por isso, apesar dos pardais e das reviçosas folhinhas
uma tênue sombra ainda sobre meu espírito.
Quem me feriu perdoe-me.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.71
''neste quarto meu pai morreu,
aqui deu a corda ao relógio
e apoiou os cotovelos
no que pensava ser uma janela
e eram os beirais da morte''

Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p. 66

Comecei a chorar de prazer e vergonha.

buracos negros no peito



ISOLATION

People say we've got it made
Don't they Know we're so afraid
Isolation

We've afraid to be alone
Everybody got to have a home
Isolation

Just a boy and a little girl
Trying to change the whole wide world
Isolation

The world is just a little town
Everybody trying to put us down
Isolation

I don't expect you to understand
After you've caused so much pain
But then again you're not to blame
You're just a human
A victim of the insane

We're afraid of everyone
Afraid of the sun
Isolation

The sun will never disappear
But the world may not have many years
Isolation


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 48
As soon as you're born they make you feel smanll
By giving you no time instead of it all
Till the pain is so big you feel nothing at all



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 47
«I've seen thru junkies I've been thru it all
I've seen religion from Jesus to Paul
Don't let them fool you with dope and cocaine
No one can hang you feel your own pain»

John Lennon

Bagism, Shagism, Madism, Tagism

sexta-feira, 13 de junho de 2014


E devagar tornei-me transparente

Poesia das palavras envergonhadas
Poesia dos problemas de consciência das palavras

Poesia das palavras arrependidas


Sophia de Mello Breyner Andresen

E eu fecho os olhos para não te ver

Eu sei que trago em mim a minha morte.
Mas perdi o meu ser em tantos seres,
Tantas vezes morri a minha vida,
Tantas vezes beijei os meus fantasmas,
Tantas vezes não soube dos meus actos
Que a morte será simples como ir
Do interior da casa para a rua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

É Janeiro muito tempo na noite

(história desse homem antigo)

Um homem muito antigo, caminhando,
ocupando demoradamente a rua.
É de noite. Uma plúmbea noite de Janeiro,
ou o Janeiro denso e severo prostrado numa só noite.
Caminha de forma velha, o homem.
É muito antigo o seu caminhar.
É um homem louco, uma loucura muito atenta.
Caminha durante uma hora inteira
em redor desta mesa. Procura.
Traz ao pescoço as chaves. Todas as chaves.
Uma hora, desta noite dura de Janeiro,
caminhando à volta desta mesa
com as pesadas chaves vergando-lhe as costas.
É muito antigo o caminhar do homem louco e atento, procurando.
É Janeiro nesta aguda noite e ele caminha louco,
muito atento,
com os ferros minguando-lhe a face de muitas estações.
É demasiado tempo para se ter dentro.
Os olhos atentos do homem, procurando no chão
em redor desta mesa.
Encontra. A sua louca atenção
encontra uma fenda no chão, perto desta mesa,
nesta noite muito antiga de Janeiro.
Retira da sua loucura muito atenta
uma chave muito grande
e lança-se longamente ao chão da rua
demoradamente ocupada.
Introduz a chave velha e grande na fenda encontrada,
roda algumas vezes:
primeiro para a direita e depois
para a esquerda da sua atenta loucura, muito antiga.
Chove um pouco
sobre o peito aberto da noite velha de Janeiro…
e o homem muito antigo está deitado
sobre a chave muito grande
cravada na fenda da sua loucura. hoca-a durante semanas. Talvez mesmo anos.
Mas é sempre aquela noite. É sempre Janeiro naquela rua.
Dorme muito tempo, muito antigo, o homem na sua loucura.
Dir-se-ia que descansa ou que aos poucos deixa de ser louco: que morre…
Mas apenas sonha.
Tem em si muito tempo, muito ferro na face.
A atenção da sua loucura vira-se para dentro.
É de noite e ele chegara muito antigo,
caminhando, demoradamente, pelo Janeiro desta rua.
Uma hora inteira em redor desta mesa
muito atento, procurando.
Agora está deitado, há muito tempo,
com a loucura por dentro, sonhando, germinando.
Janeiro é um mês que nunca acaba nesta noite.
Olho para o homem muito antigo
e não sei se voltará à noite dura de Janeiro.
Não sei se o fragor de cavalos batendo, loucos,
com as ferraduras nos olhos
é som de coisa que quer entrar ou sair.
Não sei.
Chove cada vez mais sobre as coisas da rua e nada parece acabar.
O tumulto do metal batendo nos olhos…
o som entrando e saindo,
germinando a loucura por dentro.
Penso em levantar-me.
O homem - muito antigo, atento,
demoradamente deitado sobre a chave muito grande,
cravada na fenda do chão molhado da noite louca de Janeiro - está frio.
É cada vez mais noite. Cada vez mais Janeiro. É demasiado, o tempo.
Os cavalos batem, soterrados, a loucura que sabem nos olhos.
Os cavalos aterrados batendo, loucos, o Janeiro eterno da noite.
Um homem muito antigo, deitado
chocando na loucura atenta os sonhos por dentro. Incubando.
Levanto-me.
Caminho demoradamente. Caminho o Janeiro desta rua:
a sua noite interminável.
O peso verga-me as costas. As chaves são muito pesadas ao pescoço.
É muito longa, a louca noite de Janeiro.
Procuro, muito atento, o som dos cavalos loucos,
batendo nos olhos os ferros muito antigos. hove cada vez mais. Caminho.
Já não vejo o homem muito antigo
sonhando, por dentro, a sua loucura.
A rua é muito longa quando se anda à roda.
É sempre Janeiro naquela noite louca.
Procuro pelo chão os cavalos batendo nos olhos
a sua loucura demoradamente nova.
As chaves são muito grandes.
É de noite na rua interminável de Janeiro.
Caminho muito atento, com a loucura procurando,
germinando por dentro…
…muito antigo, demoradamente.

 (Tavira, Janeiro)

Nuno Mangas-Viegas

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Le pouvoir des mots

Catherine Clément

''Era a carne da árvores (...)''


« o medo foi a minha única paixão.»

Hobbes
«Quem quiser entrar na alma, deve passar pelo nada, isto é, pelo medo.»

(da epígrafe de Burnier)
 «Eis a única certeza: «não saber onde estou.»
Definitivamente perdido, definitivamente encontrado.
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 107
«Il parle de soi-même comme d'un autre. Il dit en parlant de soi. Il parle de soi comme d'un autre.»

Beckett

um devir-feminino do segredo

Luísa Costa Gomes
«uma mulher pode ser secreta não escondendo nada, à força da transparência, de inocência e de velocidade.»

Luísa Costa Gomes

sensações claustrais

 «(...) a língua-tal-qual-se-fala, a palavra à flor da boca, por vezes numa coloquialidade tão intensa e sofisticada que se recriam artificias de discurso. »
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 102

A MAÇÃ NO ESCURO

Era um cômodo grande, talvez um armazém antigo,
empilhado até o meio de seu comprimento e altura
com sacas de cereais.
Eu estava lá dentro, era escuro,
estando as portas fechadas
como uma ilha de sombra em meio do dia aberto.
De uma telha quebrada, ou de exígua janela,
vinha a notícia da luz.
Eu balançava as pernas,
em cima da pilha sentada,
vivendo um cheiro como um rato o vive
no momento em que estaca.
O grão dentro das sacas,
as sacas dentro do cómodo,
o cómodo dentro do dia
dentro de mim sobre as pilhas
dentro da boca fechando-se de fera felicidade.
Meu sexo, de modo doce,
turgindo-se em sapiência,
pleno de si, mas com fome,
em forte poder contendo-se,
iluminando sem chama a minha bacia andrógina.
Eu era muito pequena,
uma menina-crisálida.
Até hoje sei quem me pensa
com pensamento de homem:
a parte que em mim não pensa e vai da cintura aos pés
reage em vagas excêntricas,
vagas de doce quentura
de um vulcão que fosse ameno,
me põe inocente e ofertada,
madura pra olfato e dentes,
em carne de amor, a fruta.














Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p. 41
«Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.»



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.38
(...)

«A alegria dele desertava, quase, do que fosse
uma alegria humana e não estávamos à altura de entendê-la.
Sofrer era muito mais fácil.»



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.27

gesticular o pensamento



«(...)

Quem entender a linguagem entende Deus
cujo filho é o Verbo. Morre quem entender.



Adélia Prado. Com Licença Poética. Selecção e prefácio de Abel Barros Baptista. edições Cotovia, Lisboa, 2003., p.6

terça-feira, 10 de junho de 2014

IV

os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e amor se tocam

 dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome

 os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?


 Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 74

sombrias gaivotas

«ó pura dissonância, amor humano,
morte de amantes transformados em beijos
o tempo só de dois corpos unidos
que então conhecem tudo ou pelo menos
conhecem a ilusão de conhecerem.
se é isto o que há a fazer e um breve frémito
perpassa as flores do bosque, das veredas
recomeçadas, se era só isto o tempo
cruzando a origem, a pura dissonância,
um eco triste ao fim do sono escuro,
é cansaço ou ventura ou desespero
esse silêncio íntimo que invade
os que jogam o jogo, o próprio jogo,
os corpos nus e a sua circunstância?

de conhecermos tudo: a tensa sombra
da juventude e os lugares da cinza,
amargurado amor, de termos visto
o amador a transformar-se em sombra
a coisa amada a transformar-se em cinza,
tétanos, podridões, desastres, tudo
o que foi vão e vil, a urina e esta
pobre matéria de alegria póstuma,
os lugares da loucura e da miséria,
os retratos torcidos, tudo visto
contado e dividido, já previsto
por infames motivos.
             e de querermos
por conhecermos tudo, dizer tudo.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 67

 «ah, mas estamos vivos! arriscamos
tudo o que somos, tudo o que podemos
nesta vã tarantela.
               os amantes também
apostam corpo e alma já sabendo
que perdem de antemão.
                 magro lucro
o momento do jogo e só ele
a ciência possível.
                 o jogo e a dança.
tudo o mais é tão pouco e desfigura
a substância dúplice que somos:
vivermos de arriscar e de perder.
também a morte espera paciente
e já cresceu connosco e perde tempo
mas só enquanto nós esbracejamos.»


 Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 65
«(...)

mas foi há tanto tempo.
              tudo mudou depois,
a começar por nós, que queríamos, depois
de tanto tempo, tantos sobressaltos,
saber ainda como podia a noite
cumular-nos.»


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 64

o sempre aflito envelhecer das rosas


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 51

segunda-feira, 9 de junho de 2014

«Perdeste a direcção de casa
Com a tua sede de perfeição»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 233

«Vejo o fundo da garrafa
Acendo mais outro cigarro
Tudo serve de cinzeiro
Quando os deuses brincam é para magoar!»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 220

Quantas vezes te odiei com medo de te amar...

«Casos graves de bem estar
Por mais que tenham, nunca têm a mais»


«O pior não é estar triste
O pior é não saber porquê»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 196
«Não é por nos desviarmos
Que evitaremos o nosso fim»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 193

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar

Só por ter dois sóis
Só por hesitar
Fiz a cama na encruzilhada
E chamei casa a esse lugar

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por inventar
Só por destruir
Tenho as chaves do céu e do inferno
E deixo o tempo decidir

E anda sempre alguém por lá
Junto à tempestade
Onde os pés não têm chão
E as mãos perdem a razão

Só por existir
Só por duvidar
Tenho duas almas em guerra
E sei que nenhuma vai ganhar
Eu sei que nenhuma vai ganhar



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 182
Esse teu passo inseguro
E o teu paraíso no olhar


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 181

A nossa história começa na total escuridão


«Ela sabe dizer-te quem foste, quem és e quem hás-de ser
Dás  por ti acenando a tudo o que ela disser »


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 166

Sou o vagabundo mais feliz que existe

«(...)

Não consigo pensar
Deve ser do cansaço de me ocupar demais
De coisas banais  »



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 162

O LADO ERRADO DA NOITE

«Procuro na escuridão o centro da carne»


«(...)

Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração.»




Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 145

domingo, 8 de junho de 2014



JOHN: O pensamento do Beatle de cabelo comprido no santuário do século XIX. Por favor, parem com esse disparate. Vai para casa. Não gostamos de pessoas como tu. Vai ao médico para seres normal, estás a perceber? Vai ao médico. Nós vamos hoje ao psiquiatra, talvez ele nos ponha bons. Não nos entendemos a certos níveis, como viste. Estava com marijuana. Lindo, lindo. Continua a fumar. Não é ilegal. Lindo, lindo. Hey, aqueles tipos são tão duros como a imprensa real.



John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 27

GENESIS, CHAPTER 2

21. And the LORD GOD caused a deep sleep to fall upon Adam, and he slept; and he took one of his ribs, and closed up the flesh instead thereof;

22. And the rib, which the LORD GOD had token from man,
made he a woman, and brought her unto the man.

23. And Adam said, This ''is'' now bone of my bonés, and flesh
of my flesh: she shall be called Woman, because she was token
out of man.

24. Therefore shall a man leave his father and his mother, and
shall cleave unto his wife: and they shall be one flesh.

25. And they were both naked, the man and his wife, and went
not ashamed.


John Lennon. Canções (1968-1980) Colecção Rock On n.º 5. Centelha., p. 8

domingo, 1 de junho de 2014

terça-feira, 27 de maio de 2014

PAISAGEM
                         Uma
                          rede
                          verde
                          escreve
                          a sede.



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 124

Gaivota de pedra

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 104

TRANSMISSÃO DA NOITE



 "Ele diz com os braços que há uma coisa viva que possui a razão no interior da razão.

Ele diz: A luz noite. Diz com os seus braços: o tempo não existe. ...
Diz: se os animais pudessem falar não teriam nada para dizer.
Diz: até na noite a palavra se transmite.
Ele diz: também a palavra transmite a noite com ela.

Também a luz, se deixarmos de falar, acaba e desaparece."
Valère Novarina. Sud- Express : Poesia Fancesa Hoje
«(...), que me pintavam como tendo um carácter taciturno e fechado, e quis saber a minha opinião a este respeito. Respondi: «É que, como nunca tenho quase nada a dizer, prefiro calar-me.»


Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 84

interrogatórios de identidade


«Há muito tempo, há muito tempo...
Nós passamos tanto tempo
A estragar o tempo.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 144

''missa dos pássaros''


Quando um homem tem vida de cão mais lhe vale ser morto

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 105
«Dói se pensarmos que isto é o fim
Mas resta sempre alguma coisa.»



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 101

«(...)

Tu que foste traído
Tu que atraiçoaste
Tu que deixaste cair
Aquilo em que acreditaste
Tu desesperado que andas a monte
Não faltes ao teu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte

Leva o teu corpo e leva a dor
Não esqueças os teus desejos
Sê violento se acaso
Te amedrontarem os seus beijos
Mas não te faças rogado, é por ti que ela espera
Vai, corre ao seu encontro
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte
Amanhã ao fim da tarde
Junto à ponte





Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 94/5

domingo, 25 de maio de 2014

BALADA DUM ESTRANHO

Hoje acordaste duma forma diferente dos outros dias
Sentes-te estranho, tens as mãos húmidas e frias
Tentas lembrar-te de algum pesadelo mas o esforço é em vão
Parece-te ouvir passos dentro de casa mas não sabes de quem são

Deixas o quarto e vais à sala espreitar atrás do sofá
Mas aí tu já suspeitas que os fantasmas não estão lá
Vais à janela e ao olhares para fora sentes que perdeste o teu centro
E de repente descobres que chegou a hora de olhares para dentro

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu

Vês o teu nome escrito num envelope que rasgas nervosamente
Tu já tinhas lido essa carta antecipadamente
E os teus olhos ignoram as letras e fixam as entrelinhas
E exclamas: ''Afinal...estas palavras são minhas!''

O caminho para trás está vedado e tens um muro à tua frente
E quando olhas p'rós lados vês a mobília indiferente
E abandonas esta casa onde sentiste o chão a fugir
Arquitectas outra morada mas sabes que estás a mentir

Porque há qualquer coisa que não bate certo
Qualquer coisa que deixaste para trás em aberto
Qualquer coisa que te impede de te veres ao espelho nu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu
E não podes deixar de sentir que o culpado és tu



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 93

MAL E BEM/ ESTAÇÕES/SÓ MAIS UM BEIJO (COPENHAGA, 78)

Tu tens que estar sempre atento
Se queres sobreviver
Tens de saber travar
Não basta saberes correr

E quando deres por ti na rua errada
Não percas tempo a tentar disfarçar
Apressa-te a encontrar a rua certa
A vida é uma enorme encruzilhada
E qualquer um se pode enganar

Tu tens que ser muito rápido
Senão vais-te afundar
Tens de saber cair
Se é que te queres levantar

E quando tiveres monstros na cabeça
Não penses mais nisso
Há tanta coisa gira para fazer
Não te esqueças que tu és o que tu pensas
Um pensamento feio é como um cancro
Se o guardas, ele não pára de crescer

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Tens de trazer a cabeça
Bem junto ao coração
Que é para poderes saber
Qual é a tua missão
Tudo o que se passa à tua volta
Está bem ligado ao fundo do teu ser,
E custa vermos tanta gente à espera
De frutos que, afinal, eles não merecem
Quem não semeia, não tem direito a colher

Mal e bem
Estamos sempre a mexer
Mal e bem
A ganhar e a perder
Mal e bem
Agora a subir, mais logo a descer

E o que está mal neste instante
Pode estar bem a seguir
E, na verdade, o importante é o que tu estás a sentir
Irmão, tu não sejas tonto
Que tarde ou cedo chega a hora de partir

Só mais um beijo
Antes de eu me abrir
Só mais um beijo
Antes de eu partir



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 77
«Eu sei que um dia acabamos por nos reencontrar
Nalguma esquina sem luz onde se queimem ilusões
Eu sei que um dia acabamos por nos cruzar
E dizer de novo...adeus»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 55

ALEGORIA SEGUNDA

De poetas e filósofos tu sabes,
sabes também por ti. Por isso eu digo:
esta pedra é vermelha, esta pedra é sangue.
Toca-lhe: saberás
como em segredo florescem as acácias
ao redor dos muros, como fluem
suas concêntricas artérias. Acaricia-as: tocas
a parte mais sensível de ti mesmo.

Dizias ontem que o verão ardia
nesta pedra. Nela
queimavas tuas mãos. Onde
as aqueces hoje? Eu digo:
o verão não morreu, esta pedra é o verão.

E tudo permanece. E tudo é teu.
Tu és o sangue, o verão e a pedra.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 90
«a distraída
erosão dos lábios.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 86
«Escrevo contra o vento,
frente ao mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 63
«É preciso, amor,
dar um nome a este instante.»



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 57
«e adormecemos, hirtos, de costas para o
        mar.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 51

Évora, 8 de Setembro de 1967

Ao Manuel Patrício

Os mortos
comem flores
e granadas
e lágrimas
e beijos
que os devoram.
Enxutos,
os olhos
dos mortos
choram.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 48-49

Uma gaiola partiu à procura dum pássaro.



«Resta-me o abandono passivo a uma íntima ternura, à sua obscura beleza, para lá de tudo o que é belo e que me humedece o olhar. Como quem ama ainda uma mulher e lhe não pode tocar. Como quem envelhece e entende a vida apenas na sua longa melancolia.» 
 
Vergílio Ferreira
  «Todo o trabalho da arte procura assegurar a aparição de si a si mesmo a colmatar todos os vazios, os escoamentos, as rupturas do eu, as quebras da memória, os espacejamentos da consciência:


 « Que a distância de ti a ti seja por ti preenchida.» Vergílio Ferreira


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 75
   «Valerá a pena destruir Deus, o Deus da Religião ou o Deus da Política? «Derrubar o deus do altar. E depois, o altar. E depois, o sítio dele. E depois, a memória dele. E tudo ficar certo como se não. Derrubar o sinal e o signo. O visível e o invisível. E tudo ser como se. (...) E tudo funcionar como se não. Como se o invisível fosse ainda.»
 


Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 64
«Procuram no sítio das casas a memória do que lá ficou, dos deuses e da sua ordem com que se organizava a vida e ela tinha sentido e era verdade, da tranquilidade do sono à noite quando o dia se cumprira.»
 
Vergílio Ferreira
 
  «Esta imagem é tanto mais exaltante quanto a ela se vem contrapor a multiplicidade incontrolada do presente pós-terramoto e pós-revolução: é a desordem instalada no inferno das ideologias e no alarido tempestuoso das opiniões, é a ramificação de cada coisa no seu contrário e no contrário do seu contrário, é a bifurcação demente de todas as evidências em verdades e contraverdades sem prova nem acalmia.»  Eduardo Prado Coelho p. 62
 
 
«(...) Carolina, a prostituta, o ser mais divinamente animal desta galeria de sonâmbulos, reivindica para sua aldeia a reconstruir: « O que eu penso é que devia ficar tudo como estava. Não é preciso pensar muito. Tal e qual como estava. Eu por mim queria a nossa terra como era.» Vergílio Ferreira




Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 62

«atacar uma mulher na boca» - Vergílio Ferreira

as hemorragias do eu


«Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, estendeu-me a mão num gesto envergonhado e eu senti-lhe as escamas da pele. Teve um sorriso breve e, antes de sair, disse: «Espero que os cães não ladrem esta noite. Julgo sempre que é o meu.»
 
 
Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 67

de tempos a tempos zangávamo-nos

«Não fora feliz com a sua mulher, mas, por fim, habituara-se a ela. Quando esta morrera, sentira-se muito só. Pedira então, a um colega de escritório, que lhe desse um cão, e fora-lhe oferecido a este, quase recém-nascido. Tivera que o alimentar a biberão. Mas como o cão vive menos do que o homem, tinham acabado por envelhecer juntos. «Tinha mau feitio», disse Salamanco. «De tempos a tempos zangávamo-nos. «Mas apesar disso, era um bom cão.»
 
 

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 66
«Instantes depois, perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que não queria dizer nada, mas que me parecia que não. Ficou com um ar triste.»

Albert Camus. O Estrangeiro. Tradução de António Quadros. Editora Livros do Brasil, Lisboa, 2006., p. 58

''sopro húmido e escuro''

'' a carne branca das raízes''

quinta-feira, 22 de maio de 2014


calar ou adoçar

«Que horas, ó companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram nossas ali!...»

Fernando Pessoa/Bernardo Soares

insónia: equivalente do tédio, do cansaço, da dor ou desassossego

«O tédio...Pensar sem que se pense, com o cansaço de pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir; não querer sem que se não queira, com a náusea de não querer - tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que uma paráfrase ou uma translação. (...) O tédio...Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio...É como a possessão por um demónio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma.»

Fernando Pessoa

não-amor; não-ódio

in-diferença

« O que dói e pesa em Pessoa dói e pesa fisicamente - algo de que nem sempre os literatos que o viam como cerebral se deram conta. »
 
 
Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

o humor é a versão diurna do desassossego

Eduardo Prado Coelho. A Mecânica dos Fluidos. Literatura, cinema, teoria. Imprensa Nacional - Casa da Moeda. p. 31

às vezes dizemos


às vezes dizemos
                            uma jarra
       pensando nas flores que lá
       poderiam crescer

às vezes dizemos
                          summertime
      como se um negro
      nos pudesse ouvir

às vezes dizemos
                        palavras
      como se as prisões
      pudessem ter sentido


Vasco Graça MouraPoemas Escolhidos 1963-1995. Apresentação Fernando Pinto do Amaral. Bertrand Editora, 1996., p. 36
«(...)

Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.»


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 30

aves nocturnas


a amante e a amada

*


Há em teus olhos, dados ao momento,
uma tristeza de água reprimida,
que é como o pressentimento
duma próxima despedida.

Tristeza que faz lembrar
dias perdidos de outono
com luz pálida a incidir
nas folhas, mortas de sono.

Deixa que a esperança os molhe,
os inunde de alegria.
Cada noite passa e colhe
o gosto de um novo dia.


Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 21
«Só terás remorso
do que possas fazer e o não fizeres.»

Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 20

Vens cheia de orvalho, lágrimas da noite



Albano Martins. Assim são as Algas. Poesia 1950-2000. Campo das Letras, Porto., p. 18

terça-feira, 20 de maio de 2014



«Sei que estás a sofrer
O teu homem foi-se embora outra vez
Partiu como um furacão
O que só pensas no bem que ele te fez...

Tentas dormir
Mas o teu sono parece ter voado com ele
E a noite colou-se às tuas costas
Ai, disforme como um pesadelo

Mas, ouve bem, meu amor:
Não é tarde para sorrires outra vez
Ainda há estrelas  no teu olhar

(...)»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 53

O VELHO NO JARDIM

Está um velho no jardim
Com cabelos de algodão
Tem dois olhos cor de mar
E uma cruz em cada mão
Uma cresce dum altar
Outra é a uma ilusão
Continuo a subir

Vejo um milhão de ideias falsas
Num crucifixo conjectural
Concebido para salvar almas
Da asfixia existencial

Está um velho no jardim
Que me olha com rancor
Tem dois olhos de marfim
Afiados no pudor
Mas as coisas que ele faz
Não parecem ter calor
Continuo a subir

Vejo uma vela adulterada
Feita de sangue e de cetim
Garantida por dois mil anos
Mas que está a chegar ao fim



Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 51
«Um dia entrei demais nos teus olhos
E vi o rancor
Que te anda a suicidar
E te impede de ver
Por trás do teu sorriso sem nome
Cresce a frustração
E eu já não tenho saco
Para te compreender.»


Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 49
«Não me masturbo mais
Com Cristos de cordel»

Jorge Palma. Na terra dos sonhos [poemas]. Organização de João Carlos Callixto. Edições Quasi., p. 47
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