(história desse homem antigo)
Um homem muito antigo, caminhando,
ocupando demoradamente a rua.
É de noite. Uma plúmbea noite de Janeiro,
ou o Janeiro denso e severo prostrado numa só noite.
Caminha de forma velha, o homem.
É muito antigo o seu caminhar.
É um homem louco, uma loucura muito atenta.
Caminha durante uma hora inteira
em redor desta mesa. Procura.
Traz ao pescoço as chaves. Todas as chaves.
Uma hora, desta noite dura de Janeiro,
caminhando à volta desta mesa
com as pesadas chaves vergando-lhe as costas.
É muito antigo o caminhar do homem louco e atento, procurando.
É Janeiro nesta aguda noite e ele caminha louco,
muito atento,
com os ferros minguando-lhe a face de muitas estações.
É demasiado tempo para se ter dentro.
Os olhos atentos do homem, procurando no chão
em redor desta mesa.
Encontra. A sua louca atenção
encontra uma fenda no chão, perto desta mesa,
nesta noite muito antiga de Janeiro.
Retira da sua loucura muito atenta
uma chave muito grande
e lança-se longamente ao chão da rua
demoradamente ocupada.
Introduz a chave velha e grande na fenda encontrada,
roda algumas vezes:
primeiro para a direita e depois
para a esquerda da sua atenta loucura, muito antiga.
Chove um pouco
sobre o peito aberto da noite velha de Janeiro…
e o homem muito antigo está deitado
sobre a chave muito grande
cravada na fenda da sua loucura. hoca-a durante semanas. Talvez mesmo anos.
Mas é sempre aquela noite. É sempre Janeiro naquela rua.
Dorme muito tempo, muito antigo, o homem na sua loucura.
Dir-se-ia que descansa ou que aos poucos deixa de ser louco: que morre…
Mas apenas sonha.
Tem em si muito tempo, muito ferro na face.
A atenção da sua loucura vira-se para dentro.
É de noite e ele chegara muito antigo,
caminhando, demoradamente, pelo Janeiro desta rua.
Uma hora inteira em redor desta mesa
muito atento, procurando.
Agora está deitado, há muito tempo,
com a loucura por dentro, sonhando, germinando.
Janeiro é um mês que nunca acaba nesta noite.
Olho para o homem muito antigo
e não sei se voltará à noite dura de Janeiro.
Não sei se o fragor de cavalos batendo, loucos,
com as ferraduras nos olhos
é som de coisa que quer entrar ou sair.
Não sei.
Chove cada vez mais sobre as coisas da rua e nada parece acabar.
O tumulto do metal batendo nos olhos…
o som entrando e saindo,
germinando a loucura por dentro.
Penso em levantar-me.
O homem - muito antigo, atento,
demoradamente deitado sobre a chave muito grande,
cravada na fenda do chão molhado da noite louca de Janeiro - está frio.
É cada vez mais noite. Cada vez mais Janeiro. É demasiado, o tempo.
Os cavalos batem, soterrados, a loucura que sabem nos olhos.
Os cavalos aterrados batendo, loucos, o Janeiro eterno da noite.
Um homem muito antigo, deitado
chocando na loucura atenta os sonhos por dentro. Incubando.
Levanto-me.
Caminho demoradamente. Caminho o Janeiro desta rua:
a sua noite interminável.
O peso verga-me as costas. As chaves são muito pesadas ao pescoço.
É muito longa, a louca noite de Janeiro.
Procuro, muito atento, o som dos cavalos loucos,
batendo nos olhos os ferros muito antigos. hove cada vez mais. Caminho.
Já não vejo o homem muito antigo
sonhando, por dentro, a sua loucura.
A rua é muito longa quando se anda à roda.
É sempre Janeiro naquela noite louca.
Procuro pelo chão os cavalos batendo nos olhos
a sua loucura demoradamente nova.
As chaves são muito grandes.
É de noite na rua interminável de Janeiro.
Caminho muito atento, com a loucura procurando,
germinando por dentro…
…muito antigo, demoradamente.
(Tavira, Janeiro)
Nuno Mangas-Viegas