«É o que lhe digo, minha senhora, se alguém fizesse nascer um coração num prato ele diria «Amor» e agitar-se-ia como uma pata de rã cortada.»
Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 40
terça-feira, 6 de agosto de 2013
«-Vocês discutem demasiado facilmente sobre a dor e a confusão, disse Nora.
-Espere! Respondeu o doutor. A dor de um homem corre com dificuldade, é verdade que lhe é difícil suportá-la, mas é igualmente difícil guardá-la. No que me diz respeito, enquanto médico, sei em que bolso um homem guarda o coração e a alma, e qual é a sacudidela do fígado, dos rins e dos testículos que faz com que esses bolsos sejam visitados. Só existem confusões; a esse respeito dou-lhe toda a razão. Nora, minha filha, confusões e inquietações vencidas - é isso que nos forma a todos e a cada um. Quando se é um gimnosofista é possível passar sem roupas e se tivermos as pernas em alamar sentimos mais vento entre os joelhos do que qualquer outra pessoa; e isso ainda é confusão; a via escolhida por Deus, vai ter a um muro.»
Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 35
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sábado, 3 de agosto de 2013
«Não sou nem um malabarista, nem um frade, nem sequer uma Salomé do século XIII dançando de rabo para o ar sobre um par de lâminas de toledo - experimente fazer isso hoje a uma rapariga com desgosto de amor, macho ou fêmea!»
Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p. 32
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''Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio , Hígia e Panacea, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo o meu poder e a minha razão, a promessa que se segue''
Juramento médico
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«Apoiava, por detrás das costas, as mãos contra a mesa. Parecia constrangida.
-Dizem realmente o que pensam, um e outro, ou estão apenas a manter a conversa?
Depois de falar, o rosto enrubesceu e (...)»
Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p.
-Dizem realmente o que pensam, um e outro, ou estão apenas a manter a conversa?
Depois de falar, o rosto enrubesceu e (...)»
Djuna Barnes. O Bosque da Noite. Tradução de Paula Castro e Manuel Alberto. Relógio D'Água Editores, Lisboa, p.
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«(...) diz pequenas frases fascinadas, precipitadamente.»
Manuel Gusmão. Dois sóis, A rosa. A arquitectura do mundo. Editorial Caminho, Lisboa, 2ª Edição, 1990., p. 44
palimpsesto
nome masculino
1. pergaminho cujo manuscrito os copistas medievais raspavam para sobre ele escreverem de novo, mas do qual se tem conseguido, em parte, fazer reaparecer os caracteres primitivos
2. figurado texto que existe sob outro texto
(Do grego palímpsestos, «raspado de novo», pelo latim palimpsestu-, «idem»)
terça-feira, 30 de julho de 2013
Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível.
«Porque, se tento alcançar este «eu» de que me apodero, se tento defini-lo e resumi-lo, ele não é mais do que a água a escorrer-me por entre os dedos. Posso desenhar um a um todos os rostos que ele sabe tomar, e também todos aqueles que lhes foram dados, a educação, a origem, o ardor ou os silêncios, a grandeza ou a baixeza. Mas não se podem adicionar rostos. Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível. O fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa certeza, nunca estará cheio. Serei para sempre estranho a mim mesmo.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 29
«Acontece que os cenários desabam. Os gestos de levantar-se, o carro-eléctrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, carro-eléctrico, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, esta estrada segue-se com facilidade a maior parte do tempo. Só um dia o «porquê» se levanta e tudo recomeça nessa lassidão tingida de espanto. «Começa», isto é importante. A lassidão está no fim dos actos de uma vida maquinal, mas inaugura, ao mesmo tempo, o movimento da consciência.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 24
«Ganhamos o hábito de viver, antes de adquirirmos o pensar.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 20
segunda-feira, 29 de julho de 2013
O suicídio
«O suicídio nunca foi tratado senão como fenómeno social. Aqui, pelo contrário, para começar, importa a relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este prepara-se, tal como acontece com uma grande obra, no silêncio do coração. O próprio homem o ignora. Uma bela noite, dá um tiro ou atira-se à água. De um gerente de prédios de rendimento que se matara, diziam-me certo dia que ele perdera a filha havia cinco anos, que mudara muito desde então e que essa história « o havia consumido». Não se pode desejar palavra mais exacta. Começar a pensar é começar a ser consumido. A sociedade não tem grande coisa a ver com estes princípios. O veneno está no coração do homem.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 18
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«Em todos os problemas essenciais (e por tal entendo os que podem fazer morrer e os que decuplicam a paixão de viver) só há provavelmente dois métodos de pensamento, o de La Palisse e o de Don Quixote.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 17
O absurdo e o suicídio
«Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, depois.»
Albert Camus. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues. Livros do Brasil, Lisboa., p. 17
domingo, 28 de julho de 2013
«-Há casais que têm quartos separados - dizia Stefan. - Eu preciso de um lugar onde possa fechar-me de quando em quando sem que ninguém saiba onde estou.
-...Imaginas que lá, no teu quarto secreto, eu não posso acompanhar-te em espírito...Como se eu não tivesse adivinhado...Como se eu não soubesse que te fechas lá para fazer outra coisa que não seja ler romances!...
Stefan evitava falar de literatura quando estavam sós. Ao entrar em casa, a meio da noite, encontrava-a muitas vezes a ler. Ioana notava às vezes que ele lançava um olhar ao título, mas nunca lhe perguntava o que lia. Em casa, junto dela, Stefan nunca lia romances. E no entanto a sua cultura espantava Ioana. Ela não podia avaliá-la senão por acaso, quando paravam em frente de uma montra ou então quando ela folheava uma revista e lia o título de um livro.
«Não presta», dizia ela, ou então: «Já li. É bastante interessante. Empresto-te, se quiseres.»
«Ele pensa que gosto de romances porque estive noiva de Partenie», pensava ela.
-...Claro! - continuara Ioana - adivinhei há muito tempo o que tu fazes lá no teu quarto secreto...Não devia dizer-to. Mas tu julgas-me mesmo assim muito ingénua. Há muito tempo que adivinhei! Adivinhei, na noite em que tu entraste com um cheiro de terebintina nas nãos. Tens lá um laboratório. Até é possível que não seja um quarto de hotel. Tu trabalhas num laboratório...»
Mircea Eliade. Bosque Proibido. Tradução de Maria Leonor Buescu. Editora Ulisseia, Lisboa, 1963., p. 18-19
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«Uma vez li um livro», prosseguira ele, como se não tivesse ouvido, « um livro em que falava de um rapaz que chamava as serpentes pelo nome e conversava com elas. Tenho a certeza de que essas coisas são possíveis». Mas é preciso que alguém as ensine...O meu ouriço, por exemplo, rebolava-se na minha presença, encolhia os espinhos e deixava-me fazer-lhe festas. Tenho a certeza de que eu podia ter aprendido muitas coisas com ele, mas não sabia falar-lhe...»
Mircea Eliade. Bosque Proibido. Tradução de Maria Leonor Buescu. Editora Ulisseia, Lisboa, 1963., p. 15
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imperecível
1. que não perece ou deixa de existir; eterno; imortal
2. que dura muito tempo; imorredoiro
(De in-+perecível)
«Fechava os olhos quando sorria, por coquetterie. Sempre que Stefan a tinha encontrado na escada, tinha-a surpreendido a puxar a blusa, tentando dar algum relevo ao peito ressequido.
-Que gostaria eu de ser? Eu? - respondeu Vadastra levantando a voz. - Deputado? Qualquer pode sê-lo. Até um tipo como Voinea pode vir a ser deputado...
-Então, ministro?
-Talvez - respondeu Vadastra depois de curta hesitação. - Mas para que serve ser ministro? Hoje é-se ministro, amanhã já não. Depois passa-se para a opisição, à espera que torne a vir a nossa vez!...Sim, ministro não é mau...talvez eu lá chegue. Mas, de qualquer maneira, que é isso? Há tantas coisas a fazer! ...
Mircea Eliade. Bosque Proibido. Tradução de Maria Leonor Buescu. Editora Ulisseia, Lisboa, 1963., p. 9-10
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FOSSES TU
Fosses tu uma ave ou uma folha
E o Outono te viria desprender
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 423
PÓRTICO
Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 389
eremitério
masculino
1. lugar ou casa onde vive um eremita
2. figurado lugar afastado do povoado; ermo
(De eremita+-tério, por influência de cemitério)
1. lugar ou casa onde vive um eremita
2. figurado lugar afastado do povoado; ermo
(De eremita+-tério, por influência de cemitério)
náiade
nome feminino
NA MITOLOGIA
Divindade secundária que presidia às fontes e aos rios, na mitologia greco-romana; ninfa dos rios e das fontes
Ítaca
O que dói
É não poder apagar a tua existência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo e mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 369
8
Prometo-te a palma da minha mão para a escrita.
Cerca-a de magnólias, cerca-me. Podes fechar a escrita
No interior da mão ou na boca dos livros
Podes esquecê-la ou libertá-la dos mil botões
Que ela sopra no interior dos homens.
Podes mandá-la àqueles que mais amas
Ou como pétalas e mensagens nas anilhas das aves
Aos teus próprios inimigos.
Podes desarmá-la para propagares as chamas.
Dou-te, como desde sempre, o poder
De escreveres na pele da minha mão
As promessas que te fiz. Sabes que existo
E que vou repetir-te todas as coisas outra vez.
As estações, por exemplo - não sou o único que o digo -,
Não rodam à maneira dos carrosséis no largo. No Outono
A magnólia é pensativa como o homem
Que te olha por detrás da janela onde te escrevo.
No Inverno os vidros vão embaciando - aproxima
A tua mão da paisagem que resta
Como se fora o lado do verbo que encarnou. Repara
No banco de pedra - ele está
Sobre ti.
Tu és a criança sentada
Que olha para o céu. Há um tesouro
No céu - um coração novo. Reconheces
A magnólia estelar? O interstício solar
Da pupila celeste? Ela está sobre ti
E contempla - é verdade que é pelas lágrimas
Que começam as visões
Sim. Agora posso explicar-te o mistério das águas
Debruça-te como ele quando escreveu no chão
Irás entender - elas jorram das palavras.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 332/3
sábado, 27 de julho de 2013
«Sei que não posso chamá-la das margens»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 312
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A mulher muitas vezes avança
A mulher muitas vezes caminha pela borda
Do vestido. Pudesse tocar
A fímbria ou a franja de toda a casa
Ela a sararia. Ela sairia
Com o cabelo solto
Muitas vezes a mulher prende o cabelo com as mãos
Cose muitas vezes com a lâmpada por dentro - a agulha
A cerzir o brilho. A mulher remenda
A lâmpada apagada. Por dentro
O coração ponteia alguma luz
A vida roda, o vestido rompe-se
A mulher é um barco quando se afunda
A hélice gira - gera como planta
Em redor da luz. A mulher
Anda em redor como corola
Sem pólen
A azenha anda à volta na memória e a água corre-lhe
Dos olhos. Põe o coração para a frente como os fuzilados
Enxuga os olhos como se espalhasse. A mulher
Varre infinitamente mais do que o que vemos ou somos capazes de
imaginar
E há imagens na terra
Que nunca lembram o céu
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 311
«Quero ver-te mesmo quando sangro»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 307
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Sem o agasalho das asas
Agrilhoado no lado de fora do fogo, ao frio,
Desatado pela diária lâmina
Na condição da luz encarcerada no astro
Para ser nas viagens sinal. Um aviso, um dedo no céu
Acordado pela sempre quotidiana órbita do lume
Acocorado sempre na cinza para foco
Sem qualquer intermitência
Gume
Invejando o relâmpago
Rápido
De longe descobre a semelhança
Do amor
Com o pássaro
Que não faz ninho
Que não segue a presa
Que não deixa o corpo por um pouco
Desejar
Qualquer coisa diferente de morrer
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 299
Agrilhoado no lado de fora do fogo, ao frio,
Desatado pela diária lâmina
Na condição da luz encarcerada no astro
Para ser nas viagens sinal. Um aviso, um dedo no céu
Acordado pela sempre quotidiana órbita do lume
Acocorado sempre na cinza para foco
Sem qualquer intermitência
Gume
Invejando o relâmpago
Rápido
De longe descobre a semelhança
Do amor
Com o pássaro
Que não faz ninho
Que não segue a presa
Que não deixa o corpo por um pouco
Desejar
Qualquer coisa diferente de morrer
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 299
«Cansa-me muito estar como a pedra entre as mãos»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 296
(incluindo eu)
«Há gente que tem sempre à mão a sua reserva de irritação.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 111
mutismos
«Acto contínuo, Zeferina fechou-se num desses mutismos que lhe são tão próprios.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 102
«No homem ciumento pouco dura a bondade.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 74
«Por alguma razão se diz que da boca dos loucos se ouve a verdade.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 48
ETRA (reflectindo) - Talvez haja momentos em que as coisas se soltam da mentira, como os frutos se desprendem do ramos que os sustinha. E vão rolando até ao sol, no meio da estrada, sob os olhares de todos. E não há nisso acção de deuses nem de humanos, mas tão-só a passagem da própria natureza. E uma vez caído o fruto, nunca mais ninguém conseguirá uni-lo à árvore. (Para Helena) A partir do instante em que eu to diga, tudo será diferente. Queres saber?
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 80/1
segunda-feira, 22 de julho de 2013
«HELENA - Chega! Mas como tu és cansativo! Que cansativos se tornaram todos os homens desta terra, desde os reis ao mais enlouquecido vagabundo! A falta que lhes faz a guerra! O mais parecido que agora acharam para se entreterem é insultarem as mulheres!»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 64/5
«ORESTES - É um grito que o tempo, por si só, nunca terá poder para apagar. É o grito do homem que morre atraiçoado pela própria mulher. O que se houve em Micenas não é a dor da carne que a faca dilacera. É a do coração. E essa perdura. Como se o ar em volta da cidade fosse de bronze e o grito não achasse saída. Embate às cegas, fere-se, recua, e atravessa os ouvidos de cada cidadão.»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 63
«As pessoas que nos querem bem têm direito a odiar-nos de vez em quando.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 40
«Diana falava com tal velocidade que se eu não mostrava discordar, as afirmações dela iam por ali fora e eu tinha de fazê-la tornar atrás para as discutirmos. E depois, estava tão nervosa (e eu tinha-lhe tanto amor) que, para não a contrariar, muitas vezes não a desenganei. Se a tivesse contrariado, pobre de mim. É muito severa quando se irrita e garanto-lhe que não faz as pazes enquanto a gente se não tiver arrastado de remorso e pedido perdão até ao esgotamento.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 24
''vantagens e inconvenientes da coleira de adestramento''
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p. 20
«Também não nego que várias vezes eu e a minha senhora nos zangámos e que uma noite - receio que toda a viela tenha ouvido o alvoroço -, pensando a sério ir-me embora, desarvorei até Los Incas, à espera do autocarro, que por sorte tardou e me deu tempo para reconsiderar. Provavelmente muitos casais conhecem semelhantes aflições. É a vida moderna, a velocidade. Posso é dizer-lhe que a nós os azedumes e as diferenças não chegaram para separar-nos.»
Adolfo Bioy Casares. dormir ao sol. Tradução de António Sabler. Editorial Estampa, Lisboa, 1980., p.12
domingo, 21 de julho de 2013
Somente as inocentes enlouquecem.
« HELENA (insistindo) - Veio agarrado a mim todo este sangue, escorreu-me pelas pernas à medida que eu ia caminhando. Olha ali, olha, a marca de uma sandália minha. Está o meu rasto a sangue em toda a parte.
ETRA - Estás a ver tanto sangue como eu. Helena, pára. Só estou eu aqui. Já não caio nessa história há muito tempo.
HELENA (parando, olha para Etra como uma criança) - O sangue está em toda a parte. Em toda a parte. Nunca mais deixa de escorrer por mim abaixo.
ETRA - Ela e as suas grandes atitudes! Imitas muito bem as loucas, querida. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente as inocentes enlouquecem. (Tira-lhe o balde com violência)
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 48
ETRA - Estás a ver tanto sangue como eu. Helena, pára. Só estou eu aqui. Já não caio nessa história há muito tempo.
HELENA (parando, olha para Etra como uma criança) - O sangue está em toda a parte. Em toda a parte. Nunca mais deixa de escorrer por mim abaixo.
ETRA - Ela e as suas grandes atitudes! Imitas muito bem as loucas, querida. Mas não conseguirás enlouquecer. Somente as inocentes enlouquecem. (Tira-lhe o balde com violência)
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 48
(...) Pirro agride e domina Helena, numa ambiguidade de intenções
PIRRO - O meu pai! O meu pai não é para aqui chamado. Julgas que não se sabe que também ele te desejou que nem um doido? Tu porque não o aceitaste, tu, que dormiste com todo o cão vadio?
HELENA - Deixa-me. Que queres tu? Fazer-me medo? Se é o medo que tu amas, nunca, mas nunca, ouviste? o verás nos meus olhos.»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 46
PIRRO - O meu pai! O meu pai não é para aqui chamado. Julgas que não se sabe que também ele te desejou que nem um doido? Tu porque não o aceitaste, tu, que dormiste com todo o cão vadio?
HELENA - Deixa-me. Que queres tu? Fazer-me medo? Se é o medo que tu amas, nunca, mas nunca, ouviste? o verás nos meus olhos.»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 46
displicência
nome feminino
1. estado de quem se acha triste ou aborrecido
2. desprazer; desgosto
3. tédio; sensaboria
4. indiferença
5. indolência
(Do latim displicentĭa-, «desprazer; desgosto»)
(...)
«HELENA - Eu tinha de fazer qualquer coisa...
HERMÍONE - Estraçalhar maridos é um bom passatempo.
PIRRO - Minha mulher Hermíone tem carácter. Sai à mãe.
ETRA - Se é carácter andar de uma cama para a outra...
HELENA - Que dizes?
ETRA - Nada, Helena. Orava aos deuses. Para que entre nós a paz não seja breve e esta doméstica alegria se prolongue pelos restantes dias da nossa vida.»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 23
«HELENA - Eu tinha de fazer qualquer coisa...
HERMÍONE - Estraçalhar maridos é um bom passatempo.
PIRRO - Minha mulher Hermíone tem carácter. Sai à mãe.
ETRA - Se é carácter andar de uma cama para a outra...
HELENA - Que dizes?
ETRA - Nada, Helena. Orava aos deuses. Para que entre nós a paz não seja breve e esta doméstica alegria se prolongue pelos restantes dias da nossa vida.»
Hélia Correia. O Rancor. Exercício sobre Helena. Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000., p. 23
apascentar
verbo transitivo
1. dar pasto a (gado)
2. levar ao pasto; pastorear
3. figurado doutrinar
verbo pronominal
1. deleitar-se
2. instruir-se
(Do latim *appascentāre, «apascentar»)
''Escrevo do lado mais invisível das imagens''
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 271
''Vejo o pedreiro à chuva a abrir aquedutos para o coração''
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 267
domingo, 14 de julho de 2013
esquecê-lo-ás
«Deixarás aqui o que te atormenta e pode provocar a tua destruição e esquecê-lo-ás só pelo facto de o não veres. O remédio é infalível: é suficiente deixar de ver, porque não existe nenhum caso em que se não possa esquecer.»
Thomas Mann. O Cisne Negro. Tradução de Domingos Monteiro. Estúdios Cor, Lisboa., p. 93
Thomas Mann. O Cisne Negro. Tradução de Domingos Monteiro. Estúdios Cor, Lisboa., p. 93
domingo, 7 de julho de 2013
Solidão
«Deus seja louvado por nos ter dado a solidão...Agora estou só.»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 236
«É estranho que nós, que somos capazes de sofrer tanto, possamos infligir aos outros tanto sofrimento.»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 236
«Mas como descrever um mundo de que o eu está ausente?»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 231
sem peso e sem ilusões
«Fui uma sombra ocupada a registar sombras. Mas como prosseguir agora, sem um eu, sem peso e sem ilusões, num mundo sem ilusões e sem peso?»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 229
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 229
«Separamo-nos, perdemo-nos na escuridão das árvores, (...)»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 223
Os nossos amigos
«Os nossos amigos, como os visitamos pouco, como os conhecemos pouco - é verdade.»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 221
continuo sentado na solidão
«Visitei cada um dos meus amigos, tentando com dedos inseguros abrir os seus pequenos cofres fechados. Expus-lhes a minha dor - não, não a dor, mas o sentimento do incompreensível mistério da vida - e pedi-lhes que a examinassem comigo. Alguns procuram os sacerdotes; outros a poesia. Eu refugio-me junto dos meus amigos, vou procurar o meu próprio coração, busco qualquer coisa intacta entre frases e fragmentos, eu a quem o contacto de uma pessoa com outra é tudo, mas que nem sequer isso consigo estabelecer, permanentemente imperfeito, frágil e indizivelmente solitário. E por isso, continuo sentado na solidão.»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 214
''a erva queimada pela geada''
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 214
O que era ardente e furtivo...
«Crescemos pela acumulação de sucessivas camadas até nos tornarmos robustos. O que era ardente e furtivo como um punhado de grãos lançados no ar e dispersos em todas as direcções pelos desordenados ventos da vida, é agora metódico e ordenado, semeado com um objectivo. Ou pelo menos assim parece.»
Virgínia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p. 210
sábado, 6 de julho de 2013
quarta-feira, 3 de julho de 2013
As ondas de escuridão
O sol descera finalmente no horizonte, e era agora impossível distinguir o céu do mar. Ao desfazerem-se, as ondas espalhavam na praia os seus grandes leques, enviavam sombras brancas para as profundezas das cavernas e refluíam suspirando sobre os seixos.
A árvore sacudiu os ramos espargindo folhas pelo chão. As folhas pousaram com perfeito rigor no local onde vão esperar a sua decomposição. O vaso quebrado, que antes contivera a luz vermelha, derramava agora no jardim tons cinzentos e negros. Escuras sombras enegreciam ainda mais os túneis abertos entre os caules das plantas. O tordo estava agora silencioso e o verme encolhido no seu pequeno buraco. Às vezes, uma palha esbranquiçada, arrancada a algum ninho abandonado, caía na erva escura onde as maçãs apodreciam. A luz desaparecera da casa das ferramentas e a pele de víbora pendia de um prego. Todas as cores do quarto tinham transbordado os seus limites. As pinceladas do artista tinham-se tornado demasiado cheias e oblíquas: os armários e as cadeiras misturavam as massas castanhas numa vasta obscuridade. Do soalho ao tecto, pendiam grandes cortinados de trémula escuridão. O espelho estava pálido como a entrada de uma caverna sombreada por trepadeiras.
As sólidas colinas pareciam ter perdido substância. Luzes errantes arrastavam os seus penachos por invisíveis estradas submersas. Mas nem uma só luz surgia por entre as asas dobradas das colinas e nenhum som se ouvia além do grito do pássaro procurando uma árvore solitária. Na borda da falésia, o murmúrio do vento que atravessara as florestas encontrava-se com o da água arrefecida nas inumeráveis e vítreas profundidades do oceano.
Como se existissem ondas de escuridão, a noite avançava cobrindo as casas, as colinas e as árvores, como as ondas do mar varrem os flancos de um navio naufragado. A escuridão cobria as ruas, rodeava os seres isolados e submergia-os. Envolvia também os amantes abraçados à sombra da folhagem densa dos olmos de Verão. As ondas de escuridão avançavam pelos caminhos cobertos de erva e pela terra ressequida, envolvendo o espinheiro solitário e as casas vazias dos caracóis. Depois a escuridão subiu, soprando pelos flancos nus das colinas e atingindo os eruditos cumes das montanhas onde a neve se aloja na dura rocha, mesmo quando os vales estão repletos de arroios e de folhas amarelas das videiras e as raparigas sentadas nas varandas olham a neve protegendo o rosto com leques. Depois a escuridão cobriu também as raparigas.
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.189/190
segunda-feira, 1 de julho de 2013
Ele tem a giesta onde faz nascer a neblina
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 260
1
Consomes-te, não podes apagar-te
Com o bater da mão sobre o teu peito
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 253
Transforma o coração na coisa desamada
Transforma o coração na coisa desamada
No vaso a transbordar que quebras com a boca
E asperge
a tua pulsão no meu sangue
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 251
domingo, 30 de junho de 2013
segunda-feira, 24 de junho de 2013
domingo, 16 de junho de 2013
O fio de água no olhar de quem amei.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 229
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DO SACRIFÍCIO DE ISAAC
Queimará o monte, o filho, a lenha
A morte, as areias, a viagem
O deserto, a túnica, as estrelas
Nunca será bastante o incêndio
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 226
''A boca é um alimento''
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 221
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«A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 218
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«Apedrejas-me com a mesma pedra que me dás
Para o descanso»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 212
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tarambola
nome feminino
1. ORNITOLOGIA nome vulgar de uma ave pernalta, pertencente à família dos Caradriídeos, por vezes frequente em Portugal, nas suas passagens migratórias, também conhecida por pildra, dourada, douradinha, marinho, marinho-branco, pildra-preta, pildra-dourada, tordeira-do-mar, etc.
2. regionalismo grande roda hidráulica munida de alcatruzes para tirar água dos rios
O sol baixava no horizonte. O dia estilhaçara-se como uma pedra dura e a luz derramava-se pelas suas fendas. Como rápidas flechas emplumadas de trevas, os raios vermelhos e dourados trespassavam as ondas. Cintilações luminosas erravam no espaço como sinais de ilhas que se afundavam ou dardos lançados através das folhas de um loureiro por rapazes sorridentes e desavergonhados. Mas as ondas revestiam-se de um ruído prolongado e surdo, como o de um muro desabando, um muro de pedras cinzentas que nenhuma luz poderia atravessar.
Uma brisa ergueu-se; um frémito percorreu as folhas que perderam a sua compacta cor castanha, tornando-se cinzentas ou brancas, quando a árvore se moveu, perdendo a forma da cúpula. O falcão pousado no ramo mais alto bateu as pálpebras, elevou-se nos ares e ficou a planar ao longe. A tarambola silvestre gemeu nas terras pantanosas, fugindo, traçando círculos e gritando cada vez mais longe, na solidão. O fumo dos comboios e das chaminés subia no ar e desfazia-se convertendo-se em parte do dossel que parecia pairar sobre o mar e os campos.
O trigo já fora ceifado. Agora, das suas ondulações, só restava aqui e ali, o restolho cintilante. Lentamente, uma enorme coruja pousada no olmo, balouçou-se e elevou-se numa sucessão de curvas até ao cimo do cedro. Sombras lentas alargavam-se e estreitavam-se ao passar sobre as colinas. O charco no meio das terras pantanosas repousava sem vida. Nenhum rosto hirsuto fitava a sua imagem, nenhum casco chapinava nele, nenhum focinho quente agitava as suas águas. Um pássaro pousado num ramo cinzento bebeu um sorvo de água fria. Não havia sons de colheitas, nem ruídos de rodas, mas apenas o clamor do vento enchendo as velas e varrendo as ervas. Um osso jazia no solo, gasto pela chuva e esbranquiçado pelo sol, brilhando como um ramo polido pelo mar. A árvore que na Primavera se recobria de reflexos vermelhos e no Verão deixava as folhas ondularem ao vento sul, estava agora negra e nua como o ferro.
O horizonte estava tão distante que já não se podiam ver os telhados brilhantes e as janelas cintilantes. A terrível densidade da terra envolta em sombras, tinha absorvido esses frágeis grilhões, esses obstáculos tão frágeis como as conchas dos caracóis. Subsistia apenas a sombra líquida de uma nuvem, o ruído da chuva, um isolado raio de sol, ou a brusca aparição da tempestade. Nas colinas distantes, as árvores erguiam-se como obeliscos.
O sol do entardecer, difuso e sem calor, dava suavidade às cadeiras e às mesas e marcava-as com losangos castanhos e amarelos. Duplicados pelas próprias sombras os objectos pareciam mais pesados, como se a cor tivesse escorrido obliquamente para um dos lados. As facas, os copos e os garfos davam a ilusão de ser mais longos, mais maciços, adquirindo um aspecto majestoso. Debruado no seu círculo dourado, o espelho parecia olhar a cena como se a quisesse fixar para a eternidade.
Entretanto, as sombras alongavam-se sobre a praia e a escuridão aumentava. O velho sapato, de um negro cor de ferro, era agora uma sombria mancha de azul. As rochas perdiam a sua dureza. A água em volta do velho barco era negra, como se estivesse repleta de mexilhões. A espuma tornava-se lívida e, aqui e ali, deixava brancas cintilações de pérola na praia envolta em bruma.
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.166/7
''Viver tem sido terrível para mim.''
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.161
O sol declinara no horizonte. As ilhas de nuvens haviam-se feito mais densas e deslizavam diante do sol. Os rochedos tornavam-se subitamente sombrios. O trémulo cardo marinho passava de azul a prateado e sombras impelidas pelo vento deslizavam sobe o mar como pedaços de tecido cinzento. As ondas já não atingiam as poças mais distantes, nem alcançavam a linha negra que estendia o seu traçado irregular sobre a praia. A areia tinha uma cor de pérola, suave e brilhante.
Os pássaros volteavam em pleno céu. Alguns deslizavam velozmente nos corredores de vento, giravam e separavam-se como se fossem mil fragmentos de um mesmo corpo. Tombavam do cimo das árvores como uma rede. Um deles voou solitariamente em direcção aos campos e pousou numa estaca branca, abrindo e fechando as asas.
No jardim, algumas pétalas tinham caído. Repousavam sobre a terra como conchas. A folha morta já não jazia na beirada; o vento apoderara-se dela, elevando-a e deixando-a cair e tinha-a largado junto dum silvado. Em todas as flores passava a mesma onda de luz, num repentino frémito e esplendor, como se uma barbatana fendesse o verde cristal de um lago. Às vezes uma forte rajada de vento fazia balouçar simultaneamente as inumeráveis folhas; depois, quando o vento passava, cada folha recuperava a sua identidade. Os claros discos das flores brilhavam ao sol; afastavam-se da luz ao serem agitadas pelo vento e algumas cabeças demasiado pesadas para voltarem a erguer-se ficavam ligeiramente inclinadas.
O sol da tarde aquecia os campos, azulava as sombras. avermelhava o trigo. Os campos brilhavam ao sol como se tivessem sido envernizados. Uma carroça , um cavalo, um bando de gralhas, tudo o que se movia sob a luz do sol parecia banhado a ouro. Ao moverem as patas, as vacas provocavam ondulações de ouro avermelhado e os seus chifres pareciam revestidos de luz. Feixes de trigo louro jaziam nas sebes, perdidos pelos carros baixos e primitivos que chegavam dos campos. As nuvens arredondadas no céu sem perderem sequer o átomo da sua forma. Ao passarem numa aldeia colhiam-na por inteiro na sua rede de sombras e ao afastarem-se deixavam-na de novo livre. Longe, muito longe no horizonte, entre milhões de grãos de poeira de um azul-cinza, via-se arder um vidro ou destacar-se uma silhueta solitária de um campanário ou de uma árvore.
As cortinas vermelhas e as persianas brancas agitavam-se embatendo no rebordo da janela e a luz que entrava em convulsões irregulares tinha um tom acastanhado e um certo ar de abandono ao passar pelas cortinas atormentadas pelo vento. Dava um tom acastanhado a um armário, avermelhava uma cadeira e fazia a janela ondular no flanco do jarro verde.
Por um instante tudo vacilou, tudo mergulhou numa atmosfera de ambígua incerteza, como se uma grande mariposa flutuando no quarto tivesse ensombrecido com as suas asas trementes a imensa solidez das cadeiras e das mesas.
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.146/7
«É um grande alívio ter alguém a quem podemos chamar a atenção para qualquer coisa. Ou então com que se possa estar em silêncio. Ou com ele seguir as obscuras veredas da mente e penetrar no passado, visitar livros, afastar os seus ramos e colher os frutos.»
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144
''um pôr do sol invernal na extensão dos campos''
Virginia Woolf. As ondas. Tradução de Francisco Vale. Relógio D'Água., p.144
sábado, 15 de junho de 2013
Para que nasças no mês anterior
Para que nasças muito antes de chegares
Para que amanheças já aberta e recortada
No tempo anterior à tua vinda
Para que amanheças
Ó rosa anterior
Para que venhas
Mesmo antes de seres compreendida. Ainda
Antes da terra te poder gerar. Ó rosa
Já florida
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 195
Porque a morte tem o seu tempo
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 184
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Tinha umas sandálias de sangue para caminhar livre
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 175
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Preparou o coração com a lenha do arado
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 158
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Agora és um animal que pensa
Amanhã um animal que dorme
Mas tens uma noite inteira para dormires do mesmo lado
Hoje és um dia que começa outra vez
Como se hoje pudesses plantar o dia que não acaba
Um animal que come a sombra diurna daquilo que é pensado
És um alimento
Agora és um alimento que dorme
Do mesmo lado da mão direita de quem colhe
Como se hoje pudesses plantar-te no que frutifica
E igualares-te no silêncio a uma pedra fechada
Uma pedra em sua natureza humilde de coisa que vive
Em seu mistério de coisa que sem sementes se propaga
Agora és um animal que se propaga no sono
Que pesa menos do que o sonho ou um pássaro
Um animal que se eleva em seu instinto de máquina
És agora uma máquina montada para a morte
Uma avaria dentro dela que lentamente desgasta.
E fabricas um homem que se afasta
Do mundo
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 138
Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens
Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes de visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência
Afoguei os olhos no meio das águas
Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito os olhos cobertos
Por escamas
Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens
E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas
Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,
Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
Dinamitei depois tudo o que em mim tinha forma de aquário
Um aquário sem nada dentro dele, dinamitei de vazio
Aquilo que na transparência tinha material explosivo
Uma força concreta, a capacidade de um cenário
Devastado
E dinamitei o vazio e encontrei um peso
Humano que não se afundava:
Era um milagre de Lázaro vindo para fora!
Era um homem que nos levava por um caminho desconhecido para casa
E que partia o pão. E eu vi que era ele
Que partia
O pão.
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 136/7
«(...) não prefiras o orgulho à sensatez.»
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 76
«Bem melhor é morrer uma só vez do que sofrer todos os dias.»
Ésquilo. Prometeu Agrilhoado. Tradução, prefácio e notas de Fernando Melro. Editorial Inquérito, Lisboa., p. 58
sexta-feira, 14 de junho de 2013
sábado, 8 de junho de 2013
«Amarro espigas molhos de espigas »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 104
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«Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência? »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 111
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«Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 100
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EXPLICAÇÃO DA MADRUGADA
Água entre muralhas:
O orvalho
O orvalho
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 89
«-Mais interior do que o sangue no coração que me darás -»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 86
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«Com os teus lábios podes destruir-me.»
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 77
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«Regressou como que repetiu o caminho cada dia »
Daniel Faria. Poesia. Edição de Vera Vouga. Editora Quasi., p. 75
domingo, 2 de junho de 2013
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