domingo, 27 de dezembro de 2015

«A primeira palavra que conhecemos para Mar é Mori - chegados das montanhas, os primeiros povos da Europa conheciam apenas a terra, os seus declives e abismos. Depois de revelado, explorado, Mori não mais foi mar, e, no Latim, encontramo-la como Mortal; encontramo-la sempre como desconhecido ao humano, esse que vem da húmus.
Podemos imaginar a surpresa do primeiro homem a encontrar água e não poder caminhar sobre ela; podemos vê-lo apalpando-a, olhando-a; podemos ver os seus pés molhados, as suas mãos incapazes de a agarrar, contendo-a; sentir nele a sede e o apelo do desconhecido. Assim como  conseguimos sentir a dor e o espanto da primeira morte.
Prometeu roubou o fogo aos deuses e colocou-o, por Amor, nos homens de barro; o Génesis mostra-nos o pó feito Homem por Deus: e Deus amou os homens.  Só em terra podemos caminhar, expandir-nos; só nela estamos verdadeiramente seguros; só nela nos conhecemos, só nela podemos amar. E é sobre esta palavra que quero falar.
Talvez não seja inteiramente correcto fazer a divisão da palavra amar – pouco importa. O Amor está acima da Etimologia. Dividindo amar, temos: “a” – o prefixo latino de afastamento; e mar, o desconhecido. Amar é, então, estar longe do desconhecido. Aqueles que digam que o mar não nos é desconhecido, pois que lhe conhecemos as propriedades, esses que tentem construir um lar de pedra e tijolo no Atlântico; que tentem dançar sobre as ondas de um mar revolto, mas recordem o Rei Persa que o mandou chicotear por este lhe ter dado contenda sem aviso, e a terra sempre obediente à mão do escravo: recordem, se a música vos for agradável e os vossos dotes de dançarino o permitirem, os nossos Descobrimentos, história de novas terras por novos mares: navegaram-se os oceanos, para que pudéssemos desembarcar e construir outros lares em terra.
Tudo é, afinal, viagem, movimento, mudança, por mais insignificante que pareça: Portugal mudou-se para Império, os homens moveram-se para mares e terras longínquas, e o Tempo prosseguiu a sua viagem. Nós, mais pequenos do que um Império, mais fracos do que uma onda que nos leva e engole, somos mais vastos, mais poderosos do que todos os Grandes Reinos e Oceanos do Mundo, e também a nossa vida é constante partida e chegada.
Para que uma cidade imperial seja destruída quantos homens, quanta maquinaria, quanta morte é necessária? E, no entanto, com uma palavra podemos derrubar um homem. Diz-nos Zaratustra que são as palavras mais doces que trazem a tempestade: e não há palavra mais doce do que Amor. A tempestade é um exagero: o vento que nos afaga a cara na Primavera, sopra, agora, com força exagerada; a chuva, tão bem vinda aos cultivos, cai em demasia; o trovão que nos encanta ao longe e em sonhos, estremece e incendeia as nossas casas. É altura de procurar abrigo. Só que, no Amor, é precisamente o contrário: não é o exagero, mas a míngua, que destrói; não é a força, mas a fraqueza quem assusta e entristece. O abrigo é a rua, a música e o riso.  Onde há silêncio, há tempestade.
A tristeza de Narciso e Eco é a tristeza do silêncio. Cada um vive a sua solidão: Narciso não se quer dar; Eco não se pode dar. Um, porque recusa responder aos apelos de quem o deseja; outro, porque não pode chamar para o pé de si quem ama.  Ninguém pode provar que ama – quando alguém deixa de amar outro, afasta-se. O Oráculo é claro: Narciso teria vida longa se não se conhecesse. Na verdade, só quando ele está nas águas é que esse momento se dá – tarde demais. Só quando está sozinho,  afogando-se, desesperado, quando não tem ninguém que lhe dê a mão e o tire das águas do desconhecido, é que ele se reconhece a si, tendo ele o mesmo destino dos seus amantes: a sua própria imagem ignora-o. Em Eco dá-se a metamorfose: ela volta à raiz, à terra, será fonte de vida e de beleza para quem dela se aproxime.

Por vezes, na nossa vida, encontramos quem se parece com um enorme rochedo; quanto maior o nosso grito, maior o eco devolvido; também podemos encontrar quem nos abandone sem aviso, quem morra ou quem simplesmente não queira estar mais connosco: mas nunca, nunca nos devemos fazer pedra, o nosso coração, o coração do Homem deve bater como bate um sino de igreja: um sino que anuncie a Hora que chama e ajunta quem ama. Um dia seremos nós a abandoná-los.»


Só agora compreendo a grandeza de quem escreve e do amor. Só agora, ironicamente, ao tropeçar nas tuas palavras.
«(…)... a velha desatou num pranto desesperado mas sem erguer os olhos. Se calhar não podia, era uma questão só entre ela e a sua desgraça.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 48
«Toda a grandeza é um investimento em nós próprios e é por isso que os grandes têm uma grande solidão.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 46

«Deus fez-nos cheios de buracos na alma e o nosso dever é tapá-los todos para navegar.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 44
«As coisas do nosso uso, as pessoas das nossas relações, os hábitos da nossa monotonia, as ideias do nosso sustento mental. Tudo isso ocupa um espaço enorme do nosso ser.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 45

«(...)os filhos, Mónica, são uma invenção da nossa fraqueza para compensar a morte, o modo mais barato de se ser eterno. Um modo proletário de se ser Deus.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 44
«É a última probabilidade de terem um corpo e aproveitam-na. (...) São corpos sem mistério, não têm interior – que é que tendes ainda por dentro? São a carcaça de hominídeos. (...) São os despojos de uma grandeza, mesmo pequena, mesmo ao alcance de uma mão proletária. (...) São velhos, querida. (...) Faziam recortes de papel para a eternidade, são três velhas, enchem fronhas de papel, e havia um homem. (...) Era um homem que ainda tinha interior (...)»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 38

«Eras triste, mas estranhamente decidida, devia haver atrás de ti e da vida uma razão oculta no teu ser para a tua decisão.»


Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 33

«Porque uma relação, como sabes e se não sabes digo-to eu agora, é sempre a três, não a dois. Não somos só nós e outra coisa, é também ela, a relação.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 24
«Nada é meu – como posso? mas não tenho tempo de me queixar. Querida, queixarmo-nos é dizermos que temos direito ao que não temos – que é que não tenho? Tenho tudo. Nada me pertence, tenho. É a filosofia mais profunda da vida (...) Nada é nosso, Mónica, a gente é que tem a mania. É uma mania estúpida.»


Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 23
«Vi o homem inteiro estendido numa cama. Estava podre. Devia cheirar mal. Mas era humano na sua lixeira como eu de perna cortada um pouco acima do joelho a equilibrar-me mal no estupor das muletas.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 20
«O corpo. A sua urgência insofrida de se manifestar. Mas também ele nunca existira para mim, quem existia era eu.»

«E era altura de eu te falar do teu corpo, querida (...)»


«Vi-o de súbito como sempre se vê quando o real é muito forte, fiquei por isso a vê-lo mesmo depois de o ter visto. (...) Era um corpo velho deitado...»

 «Mas olha, nem sei se são ideias sobre ele, se calhar são já ideias sobre mim.»


Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 19
«(...) podres esqueléticos, mas não te comovas muito, as caveiras com pressa de serem visíveis, não se mexem, estão quietos na sua invalidez (...) os olhos mortais nas peles encarquilhadas caídos para o chão, que é o chão do seu destino...»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 18

«Era alta a mulher, digamos um pouco mais alta do que tu. De cima a baixo direita, vestida de escuro. De destino, pensei, vestida de destino, e era razoável pensá-lo. (...) que era talvez de mais, mas de todo o modo comprometida com o agoiro, fatalidade, coisas assim.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 17

«É duro morrer, querida.»



Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 16
«(...) – que palavra? Queria inventar-te uma agora para estar certa lá, não a sei. Sinto-a em mim mas não a digo para não existir de mais, é assim. Uma palavra é mortífera, querida.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 14
«Havia a frescura da água, o seu brilho trémulo e um desejo súbito de sermos deuses.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 14


«Não é contigo que estou a falar, não ouças. Hás-de vir ainda à conversa, descansa. E hás-de ter a tua verdade terrestre, agora tens só a minha que o não é. Porque eu podia ter tudo de ti, querida, mas havia o mais que não era para mim.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 11

«Queria dizer-te como me sinto agora humilde e infeliz na bruteza do meu ser.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 11
«Era um momento excessivo em que talvez Deus aparecesse. Era um desses instantes em que tudo oscila e é demais e só é plausível matarmo-nos. Não havia em nós humanidade bastante, era plausível. Estávamos tremendamente ao pé um do outro como nunca, e isso era terrível.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 11

«...como era da nossa obrigação... era uma noite de verão...Caminhávamos à beira-rio e éramos imensos. Gostava de saber agora bem o que éramos.»


Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p. 11
«Não sei amar-te aí, é o caso. Porque só se pode amar na perfeição, depois o amor perde o nome e é outra coisa. Devias ter morrido quando te conheci, para ser impossível morreres. Devias ser tudo então para não haver mais nada depois.»


Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p.10
«Ponho-me a lembrar o que passou e o que me lembra é só a tua presença forte ao pé de mim.»

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,
6ª edição, Bertrand, 1994., p.9

''O que é grande acontece no eterno e o amor é assim...''

Corpus de
“em nome da terra”
de Vergílio Ferreira,

6ª edição, Bertrand, 1994., p.9




Senti bater o coração novamente, empurrado pela angústia. Já havia esquecido como a maré traz e espalha os destroços.

Coração de Cão

"Um dia hei-de surgir, num sonho teu,
e perder eu a vida para ver-te."

António Franco Alexandre

sábado, 26 de dezembro de 2015

o não-Ser ou o vazio


''Quantas vezes vos perguntastes porque é que o meio milhão que vos falta importa assim aos muitos que já tendes? Quantas vezes reparastes que existíeis? (...) Porque sois ignorantes e só vistes o que vos permitiram as testeiras com que a vida vos arreou.''

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra
(...) – eu tocava-a e não era minha. (...) Mas agora ela estava diante de mim e eu tinha repugnância de a tocar porque era um pedaço de carne morta e eu não estava lá. Havia um mistério inquietante de um bocado do meu corpo não ser o meu corpo e eu ser eu no corpo que ainda tinha e não o ser já no pedaço que já o não era. A perna, o pé, os dedos tinham sido eu quando andava e os movia.

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra
''Vi o homem inteiro estendido numa cama. Estava podre. Devia cheirar mal. Mas era humano na sua lixeira como eu de perna cortada um pouco acima do joelho a equilibrar-me mal no estupor das muletas.''

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra

''A opressão dos outros era um modo de te dizerem que existias. Que é que te existe por fim num corpo em farrapos? Que é que te resta para pensares que estás em ti? E é só por isso que te lembro meu irmão. Não sei se isso te ofende, mas é assim. (...) E num pouco de divindade que puder ser.''

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra
''Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai, ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se num instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis?''

Vergílio Ferreira, in Em Nome da Terra

“fico à margem da história das principais festividades literárias”

O Caminho fica Longe

1943
Vergílio Ferreira
“Só para ter existido valeu a pena existir. A maior recompensa de vida é ela própria. Creio que em tudo o que disse não disse afinal outra coisa. Creio que de tudo o que me fascinou nada me fascinou mais do que a vida, o seu mistério, inesgotável maravilha. Dou o balanço a tudo quanto me acontece, e a vertigem de ter vivido absorve e aniquila o que aí falou e mentiu. Foi bom ter nascido. Foi bom ainda não ter acabado de nascer...”


Vergílio Ferreira, In Conta Corrente, Venda Nova: Bertrand Editora
«Anteontem, meia hora depois do enterro do irmão, Vergílio Ferreira soçobrava, em Lisboa, a uma crise cardíaca. Foi o adeus derradeiro do homem que tratava “a morte por tu” e que morreu a escrever.»

notas do Jornal de Notícias do dia 3 de Março de 1996

Onde Tudo foi Morrendo

''Não preferi a minha arte: calhou-me. Ou talvez que seja essa a sorte de todas as preferências: escolhe-se sempre o que nos coube, ou seja o que se é. Mas a verdade é que, se na escolha se escolhesse, escolheria a pintura.''


Vergílio Ferreira
“Toda a biografia é uma rede de sinais que apontam o vazio do que jamais poderemos saber. Mas é nesse vazio que falta que está a razão do que chegou até nós.”

Vergílio Ferreira

Uma esplanada sobre o mar

“Hoc est corpus meum”

este é o meu corpo 

expressão latina e retirada da Bíblia

escrita vergiliana

A prenda dos Radiohead



I'm lost, I'm a ghost
Dispossessed, taken host
My hunger burns a bullet hole
A spectre of my mortal soul
These rumors and suspicion
Anger is a poison
The only truth that I could see
Is when you put your lips to me
Futures tricked by the past
Spectre, how he laughs

Fear puts a spell on us
Always second-guessing love
My hunger burns a bullet hole
A spectre of my mortal soul
The only truth that I can see
Spectre has come for me

“Nascer é pôr a máscara. A criatura não desce ao mundo, sem vestir primeiro o seu hábito”

 Teixeira de Pascoaes, “Verbo Escuro”.
"Se estamos todos muito bem preparados para reclamar liberdade para nós próprios, menos dispostos parecemos para reclamar, sobretudo, liberdade para os outros, ou para lhes conceder a liberdade que está em nosso próprio poder. Se conhecêssemos melhor a máquina do mundo talvez descobríssemos que muita tirania se estabelece fora de nós como se fosse a projecção, ou como sendo realmente a projecção, das linhas autocráticas que temos dentro de nós. Primeiro oprimimos, depois nos oprimem. No fundo, quase sempre nos queixamos dos ditadores que nós mesmos somos para os outros"

Agostinho da Silva, "Sobre as Escolhas"
"Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor, o que temos pelos outros. De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos. E é por isso, talvez, que a grande amizade e o grande amor são aqueles que dão sem pedir, que fazem e não esperam ser feitos; que são sempre voz activa, não passiva"

 Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo.
"Any time I take a cover and wear it on my sleeve, it's because it had something to do with my life and still marks a time in my life when I needed that song more than anything ever."

Jeff Buckley

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015


procrastinar

"Em narrativa, elipse é a exclusão, pelo narrador, de determinados acontecimentos diegéticos, dando origem a vazios narrativos, mais ou menos extensos. A elipse é um processo fundamental da técnica narrativa, pois nenhum narrador pode relatar com estrita fidelidade todos os pormenores da diegese".


A diegese, se está a interrogar-se, é a realidade ficcional que criamos para os nossos personagens, o mundo em que eles habitam e se movem.

escaleta

Alfred Hitchcock, nas entrevistas que deu a Truffaut, diz preferir o suspense à surpresa.

potenciómetro



“Esqueça todas as regras que o Syd Field, Robert McKee ou qualquer outro guru da escrita lhe ensinaram. Todas menos uma: Nunca seja chato”.

David Mamet
(Hannibal, State and Main, The Winslow Boy, Ronin)

"show, don't tell"

Segundo John Truby, no livro The Anatomy of Story: 22 Steps to Becoming a Master Storyteller (que neste momento está em promoção para o Kindle) "O Tema é a visão do autor de como agir no mundo. É a sua visão moral."

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

“Uma das coisas mais importantes
acerca de escrever o primeiro argumento
é o fato de realmente termos terminado
um argumento. Ter feito isso é uma etapa muito
importante — mesmo que ele seja uma porcaria.
Dá-nos uma certa confiança para seguir em frente
e fazê-lo outra vez.”

Charlie Kaufman

''Todos estão longe e sentem: solidão.''

Alfred Wolfenstein
XIII


Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.


Alberto Caeiro em Poemas de Alberto Caeiro, introdução, organização e biobibliografia de António Quadros, Lisboa: Europa-América, colecção Livros de Bolso, 4ª edição, 1995, p. 109.
«É preciso arrancar as árvores,
impedir que a noite suba,
descalça, pelos seus ramos.
(...)»

Albano Martins

''envelheço com a nómada solidão das aves''

Maldito seja Eu




Hoje acordei dividido
na impossibilidade
de me transformar numa metáfora

Assim preso
a um muro de vídeo
cheio de imagens
feridas pelo impessoal

Restos de mim
espalhados pelo chão
de uma época
que não consigo destruir



A. da Silva O. em Revista A Mar Arte, Coimbra: A Mar Arte, nº 5, Outono de 1996, p. 32.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

"Poucos
dias
depois
Anne Sexton vai matar-se
nessa mesma casa;
vai deixar
os seus anéis
sobre uma mesa, na cozinha,
e a seguir
entrará na garagem
com um copo
de vodka
na mão,
ligará o motor
do carro - um Cougar vermelho - e ligará o rádio
- Imaginas o que poderá ter ouvido? James Taylor?
os Grateful Dead? Pink Floyd? -
E esperará a morte.
Fecho o livro.
Olhas para mim.
Sei o que estás a pensar:
- A vida é muito difícil.
Uma mulher é um relógio de areia."

-"Adivinha em que Mão Está a Moeda"
- Benjamín Prado
"Os cisnes desapareceram. Mas o rio
Ainda se lembra como eles eram brancos.
Corre atrás deles com as suas luzes.
Encontra as suas formas numa nuvem.
Que pássaro é aquele que grita
Com tal dor na voz?
Continuo jovem como sempre. O que estarei eu a perder?"

-"Três Mulheres: Poema a Três Vozes"
- Sylvia Plath

"Não devias empurrar fogo tao solitário
sob om umbrais de uma morada
nos carreiros que vão dar aos montes
sairás ainda em súplica
quando os incêndios ignorarem a ameaça
da tua vassoura de giestas
a sombra uma vez avulsa
não retorna a mesma
Não despertes o que não podes calar"

-"Longe Não Sabia"
- José Tolentino Mendonça
"Depois vinha o dia e a rasura
a repetida ordenação que os acentos concedem
às palavras
a quase paixão que jamais tocava os seres
sempre e só a sua representação"

-"Longe Não Sabia"
- José Tolentino Mendonça

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

''Esta garganta sem árvores''


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 251
«De facto, há apenas um livro  que não é feito de papel, que destila sangue e é amassado com carne e ossos: o Velho Testamento.»
Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 245

Mary Ellen Mark, Usman Holding His Son. Jumbo Circus, Bombay, India, 1992



«Senti repentinamente que era feliz. Uma decisão secreta amadurecia dentro de mim. Não lhe podia ainda ver o rosto mas tinha confiança.»



Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 243

«(...): a resposta - disse eu -, a resposta vem quando se deixa de fazer perguntas, quando desce o espírito inquieto e nos toma o coração e os rins.»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 243

«Fechei os olhos para que o sono viesse e acabasse com aquilo.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 242

« - Há muitas inquietações que te consomem, és muito exigente, fazes muitas perguntas, torturas o coração.»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 242
«Eu não tenho coração! Sou um bloco de granito negro, não há mão nenhuma que possa imprimir-se em mim. Tomei a minha decisão: Vou incendiar Sodoma e Gomorra!»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 240

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Os outros, os que padecem 
De doenças mais ou menos dramáticas,
Os que sofrem e que ainda assim
Sustentam o sorriso e a vontade
De respirar. Os outros, que se levantam
Em cada dia apesar da incerteza e da fome
Sempre possível, os que persistem,
Os que ultrapassam a desilusão
De serem eles próprios inúteis. Os outros,
Razoáveis, atrevidos, ousados, gente
A ir dando resposta à agonia toda
Que enche o mundo. E felizes, os outros.
Felizes sem razão, apenas por viverem,
Por se acomodarem à ilusão.
Os que vão por aí sem se queixarem,
Sem incomodarem com as suas dores e frustrações.
Os que limpam a cara antes de sair
Para não agredirem os outros com lágrimas.
Os culpados, os inocentes, os tão
Inseguros de tudo, os outros, todos os outros,
Sofrendo e respirando e tentando alegrias,
Gente a experimentar dor e alegria e sangue
Dentro do corpo. E os dementes,
Que já não sabem da própria desilusão,
Os que se arrastam
Automaticamente, isolados do mundo,
Demasiado outros. Os que não vivem,
Os que já morreram.


Rui Almeida



"O essencial na vida não é convencer ninguém, nem talvez isso seja possível. O que é preciso é que eles sejam nossos amigos. Para tal, seremos nós amigos deles. Que forças hão-de trabalhar o mundo se pusermos de parte a amizade?"

Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo.

Da Vida e da Morte

«A ideia de que todos os homens são iguais acarreta consequências muito perigosas. E perversas. Sobretudo porque todos os homens são diferentes ou muito diferentes. E nem são iguais perante a lei, nem iguais perante o mercado ou a publicidade, nem iguais perante a natureza, ou sequer iguais perante Deus. O único local onde essa igualdade pode estipular-se e observar-se é na teoria. Mas jamais na prática, e está aí a história de séculos para atestá-lo e as várias experimentações igualitárias. Há, todavia, uma excepção prática onde essa igualdade se verifica: perante a morte.Há, quer se queira quer não, uma indústria da morte neste planeta. Que é talvez a indústria mais sofisticada, desenvolvida e em acelaração nos últimos cem anos. Ontem, perante as balas e explosivos dos carniceiros de serviço, os homens foram todos iguais.»

domingo, 20 de dezembro de 2015

"Ser velho não é algo que me agrade, a perda da força física, da beleza, a fragilidade não me agradam nada. Ferem o meu narcisismo. Não vou dizer que é bom. É mentira. Ser velho é uma merda. Perdem-se os amigos. Todos os meus amigos morreram e agora eu é que tenho que aturar as viúvas deles."

 Helder Macedo


« - Não te ajoelhes, não estendas as mãos para me abraçar os joelhos. Eu não tenho joelhos! Não comeces os teus lamentos para me tentares comover! Eu não tenho coração! Sou um bloco de granito negro, não há mão nenhuma que possa imprimir-se em mim. Tomei a minha decisão: Vou incendiar Sodoma e Gomorra!»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 239

«A minha vontade é um abismo. Se a pudésseis olhar de frente o terror invadir-vos-ia.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 239

« - «Tomei a minha decisão», na tua boca, Senhor, significa: vou matar!»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 238

AQUI NÃO HÁ DEUS


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 238

''num bater de pálpebras''

Woman With Scarred Leg, 1976



« - Senhora Alma quero que te dispas. - Senhor, como é possível que me peças uma coisa dessas? Tenho vergonha. - Senhora Alma, não pode existir nada entre nós a separar-nos, nem o mais leve véu. É necessário, portanto, Senhora, que te dispas. - Eis-me, Senhor, estou nua, leva-me!»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 236

Deus incendiar-me-á


«(...), lá onde Deus sopra como um vento escaldante, e aí no despir-me-ei e Deus incendiar-me-á.»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 235

«(...), ardia em desejos de chegar as montanhas desertas, nuas, que se viam na minha frente, andar, andar, nada mais ver que o Sol, a Lua e as pedras.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 235

cascas de laranja

«Punham as mãos no fogo e esfregavam o rosto e o peito. Os homens começaram a dançar e as mulheres uivavam.»

Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 235

Photo by Cecil Beaton, 1956


«E se não tivesse havido o coração quente duma mulher teria permanecido estendido no túmulo, eternamente. A salvação do homem esteve por um fio, dependeu de um grito de amor.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 234

«Hoje, como há dois mil anos, a vida está novamente em decomposição, mas os problemas que agora perturbam o equilíbrio do espírito e do coração são mais complexos e a sua solução mais difícil e sangrenta.»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 232/3

«O mar faiscava, vivamente agitado, (...)»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 232

''edredões imundos''


«Fechei Homero, beijei a mão do antepassado imortal mas não ousei levantar a cabeça e olhá-lo de frente, olhos nos olhos. Diante dele tinha vergonha, medo, porque sabia que naquele momento estava a traí-lo»


Nikos Kazantzakis. Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 231

«(...), esmagava folhas de tabaco, limpava o pó de cima dos móveis; de manhã à noite, sentia-me sempre dominado por coisas desagradáveis e inúteis.»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 128

«À noite, o medo envolvia-me como uma nuvem de frio: vinha do canto da cozinha, onde, diante dos ícones sombrios, ardia uma vela durante todo o tempo.»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 122

''olhos encarquilhados''


«Algumas gotas de água tombavam do telhado e as lágrimas caíam, também, nos meus olhos.»

Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 119

«(...), nos momentos em que o coração se apertava com uma suave tristeza, sem razão definida, em que as pequenas ofensas do dia que acabava vinham ensombrá-lo e afligi-lo, eu tentava compor as minhas próprias orações;»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 117

contrassenso

«Eva iludiu o próprio Deus.»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 107

"Morrer assim,
como eu o vi morrer então -,
o Amigo qur atirou divinamente
relâmpagos e olhares à minha escura juventude:
arrogante e profundo,
um bailador na batalha -,


entre guerreiros o mais jovial,
entre vencedores o mais difícil,
erguendo-se, um destino sobre o meu destino,
duro, reflectindo o passado e o futuro .,

tremendo porque venceu,
exultando porque venceu morrendo...,

mandando enquanto morria
- e mandou que aniquilassem...

Morrer assim,
como eu o vi morrer então:
vencendo, aniquilando..."

-"Poemas"
- Nietzsche
- Tradução. Paulo Quintela

«Nunca antes nem depois vi qualquer pessoa enervar-se tão rápida e facilmente como ela, desatando depois a mostrar uma paixão lamurienta acerca de tudo e de todos.»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 103

«(...), olhou para a minha obra e disse para o marido:
-Dá-lhe uma boa chicotada!
Mas o patrão, conciliador, observou:
- Isto não é nada; eu mesmo quando comecei não fazia coisa melhor...
   Assinalou com um lápis vermelho as deformações existentes na fachada e deu-me outra folha de papel.
  -Vamos, recomeça! Vais desenhar sempre até chegares a fazer bem...»

Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 101

disformidade

És demasiado asseada. Falta-te a sujidade!


« - Que o diabo te faça em pequenos farrapos!»


Maximo Gorki. Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 96

saraquitar

"Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica o caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mas inocente
ou de um amor
Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos
Estamos sós com a noite
para salvar um coração"
-"De Igual Para Igual"
- José Tolentino Mendonça

Dia e noite te procurei…


Dia e noite te procurei
sem encontrar o sítio onde cantas.
Procurei-te pelo tempo acima e pelo rio abaixo.
Perdeste-te por entre as lágrimas.
Noite atrás de noite te procurei
sem encontrar o sítio de onde choras
porque sei que estás chorando.
Basta olhar-me num espelho
para saber que estás a chorar e me choraste.


Apenas tu salvas o pranto
e de um mendigo obscuro fazes,
pela tua mão, rei coroado.




em Mágica, selecção e tradução de Ricardo Marques, Lisboa: Língua Morta, 2011, p. 34.
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