«A primeira palavra que conhecemos para Mar é Mori
- chegados das montanhas, os primeiros povos da Europa conheciam apenas a
terra, os seus declives e abismos. Depois de revelado, explorado, Mori não mais
foi mar, e, no Latim, encontramo-la como Mortal; encontramo-la sempre como
desconhecido ao humano, esse que vem da húmus.
Podemos imaginar a surpresa do primeiro homem a
encontrar água e não poder caminhar sobre ela; podemos vê-lo apalpando-a,
olhando-a; podemos ver os seus pés molhados, as suas mãos incapazes de a
agarrar, contendo-a; sentir nele a sede e o apelo do desconhecido. Assim
como conseguimos sentir a dor e o
espanto da primeira morte.
Prometeu roubou o fogo aos deuses e colocou-o, por
Amor, nos homens de barro; o Génesis mostra-nos o pó feito Homem por Deus: e
Deus amou os homens. Só em terra podemos
caminhar, expandir-nos; só nela estamos verdadeiramente seguros; só nela nos
conhecemos, só nela podemos amar. E é sobre esta palavra que quero falar.
Talvez não seja inteiramente correcto fazer a divisão
da palavra amar – pouco importa. O Amor está acima da Etimologia. Dividindo
amar, temos: “a” – o prefixo latino de afastamento; e mar, o desconhecido. Amar
é, então, estar longe do desconhecido. Aqueles que digam que o mar não nos é
desconhecido, pois que lhe conhecemos as propriedades, esses que tentem
construir um lar de pedra e tijolo no Atlântico; que tentem dançar sobre as
ondas de um mar revolto, mas recordem o Rei Persa que o mandou chicotear por
este lhe ter dado contenda sem aviso, e a terra sempre obediente à mão do
escravo: recordem, se a música vos for agradável e os vossos dotes de dançarino
o permitirem, os nossos Descobrimentos, história de novas terras por novos
mares: navegaram-se os oceanos, para que pudéssemos desembarcar e construir
outros lares em terra.
Tudo é, afinal, viagem, movimento, mudança, por
mais insignificante que pareça: Portugal mudou-se para Império, os homens
moveram-se para mares e terras longínquas, e o Tempo prosseguiu a sua viagem.
Nós, mais pequenos do que um Império, mais fracos do que uma onda que nos leva
e engole, somos mais vastos, mais poderosos do que todos os Grandes Reinos e
Oceanos do Mundo, e também a nossa vida é constante partida e chegada.
Para que uma cidade imperial seja destruída
quantos homens, quanta maquinaria, quanta morte é necessária? E, no entanto,
com uma palavra podemos derrubar um homem. Diz-nos Zaratustra que são as
palavras mais doces que trazem a tempestade: e não há palavra mais doce do que
Amor. A tempestade é um exagero: o vento que nos afaga a cara na Primavera,
sopra, agora, com força exagerada; a chuva, tão bem vinda aos cultivos, cai em
demasia; o trovão que nos encanta ao longe e em sonhos, estremece e incendeia
as nossas casas. É altura de procurar abrigo. Só que, no Amor, é precisamente o
contrário: não é o exagero, mas a míngua, que destrói; não é a força, mas a
fraqueza quem assusta e entristece. O abrigo é a rua, a música e o riso. Onde há silêncio, há tempestade.
A tristeza de Narciso e Eco é a tristeza do
silêncio. Cada um vive a sua solidão: Narciso não se quer dar; Eco não se pode
dar. Um, porque recusa responder aos apelos de quem o deseja; outro, porque não
pode chamar para o pé de si quem ama.
Ninguém pode provar que ama – quando alguém deixa de amar outro, afasta-se.
O Oráculo é claro: Narciso teria vida longa se não se conhecesse. Na verdade,
só quando ele está nas águas é que esse momento se dá – tarde demais. Só quando
está sozinho, afogando-se, desesperado,
quando não tem ninguém que lhe dê a mão e o tire das águas do desconhecido, é
que ele se reconhece a si, tendo ele o mesmo destino dos seus amantes: a sua
própria imagem ignora-o. Em Eco dá-se a metamorfose: ela volta à raiz, à terra,
será fonte de vida e de beleza para quem dela se aproxime.
Por vezes, na nossa vida, encontramos quem se
parece com um enorme rochedo; quanto maior o nosso grito, maior o eco
devolvido; também podemos encontrar quem nos abandone sem aviso, quem morra ou
quem simplesmente não queira estar mais connosco: mas nunca, nunca nos devemos
fazer pedra, o nosso coração, o coração do Homem deve bater como bate um sino
de igreja: um sino que anuncie a Hora que chama e ajunta quem ama. Um dia
seremos nós a abandoná-los.»
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