quarta-feira, 26 de março de 2014

    «Por que razão é que os cemitérios hão-de ficar sempre em lugares altos, sobranceiros aos mortais? Elias atribui isso a uma regra antiga: medo da peste. Vapores e podres de defunto só o chão das igrejas sossega e purifica. Ou então os ventos. Os ventos lá do alto levam tudo.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

voejares

«(...) no horizonte vê-se o Tejo em mar de escama de prata.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 97

Memento mori


    «Aquele que além vêdes, irmão, porventura com uma caveira a seus pés (Elias não distingue bem), aquele devora o pão dos mortos à beira da cova que o há-de devorar um dia. Está apoiado à enxada, alimenta-se a meditar. À sombra dele e dos ciprestes dormem as almas sofredoras em sua escrita de mármore e suas assinaturas de cruzes, e é o campo eterno dos humanos. Senhor como cresceu. Cemitério, jardim de lápides. Cresce e multiplica-se a cada hora diante do coveiro afadigado que come a triste côdea da manhã, ele é o pastor que conta o seu rebanho de pedra estendido ao sol pela colina; a sua vista só se detém na linha do rio, lá longe.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 96/7

terça-feira, 25 de março de 2014

releitura

   «Otelo vem à janela, está uma manhã de sol, o que não quer dizer que a merda esteja em repouso. Pelo contrário, o sol leveda o podre e multiplica as larvas e quando o cidadão menos se precata já só sobrevive em bicos de pés e com trampa até ao traço do lábio. Trampa subversiva, que é a mais viscosa. E nada de ondas, nada de ondas, para que a fossa não transborde: ao menor gesto, ao menor resmungo, a merda política escorre para dentro do corpo do desgraçado e depois de o encher até às entranhas seca rapidamente e endurece transformando-o em estátua para curiosos da tortura.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92/3
  «Tira um cigarro, bate-o na cigarreira, os punhos da camisa aparecem muito dignos e engomados. Isqueiro radioso, dupont de estalinho e chama pronta. Sopra duas lentas e refasteladas fumaças olhando de viés para o dossier: esterqueira.»



José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 92

'Comportou-se com brio e dignidade'

Benzeu-se

bei-jo

« Era correcto beijar a mãe, ou era incorrecto beijá-la? E que significava isso, beijar? Levanta-se a cara para cima, assim, para dizer boa noite, e a mãe inclinava o rosto. Era isso, beijar. A mãe punha os lábios na sua face; os seus lábios eram doces e humedeciam-lhe a face; e provocavam um ínfimo rumor: bei-jo. Por que razão as pessoas agiam assim com os seus rostos?»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32
  «Mas não era ali que se sentia doente. Pensou que a doença estava no coração, se era possível ter uma doença em semelhante órgão. Fleming era gentil querendo saber o que se passava. Ficou com vontade de chorar.»


James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 32

''lavagem suja''

Dava prazer pensar em rosas azul-pálido e creme ou rosa.

James Joyce. Retrato do artista quando jovem. Tradução e Prefácio de Alfredo Margarido, 2ª Edição. Editora Difel, 2002 p. 31
«Lembro-me que senti um país muito escuro (…), achei tudo muito triste. O que achei mais é que as pessoas não estavam a perceber nada do que se estava a passar. Percebiam a liberdade, mas não percebiam o que é que era», recordou. Foi por isso que fez o documentário «Deus, Pátria, Autoridade», o seu primeiro filme, em 1975, e que «correspondia ao que as pessoas queriam ouvir, para perceber o que era isto, o que era a sociedade, como funcionou o fascismo».
3.ª Voz

Tudo isto tem a ver com o conhecimento
de um pequeno jardim no meio da cidade
quando o sono e o silêncio despovoam a terra
e o último vagabundo entra a porta sem número
e vai desaparecer correndo pelo telhado

(breve pausa)


- MÁRIO CESARINY

'Nous deux encore'

Novas criaturas surgem da terra, com as narinas mordiscando o ar,
os esquilos abundam e repetem-se como perguntas,
os vermes continuam a investigar até as folhas repetirem quem são,
mas aqui temos apenas uma calma sem estações, 
e sem história, que é tédio interrompido pela guerra.
A civilização é impaciência, um frenesi de térmitas
em redor dos formigueiros de Babel, antenas transmissoras
e mensagens; mas aqui o caranguejo-eremita acobarda-se quando encontra
uma sombra e pára até a do eremita.
Um medo escuro da minha sombra alongada, confesso,
para este caranguejo escrever “Europa” é ver aquela criança agachada
junto a um canal sujo em Rimbaud, chaminés, e borboletas, pontes antigas
e as manchas sombrias de resignação à volta dos olhos de carvão
de crianças que se parecem todas com Kafka. Treblinka e Auschwitz
descendo o rio com o fumo de barcaças industriais
e a prosa de uma página a que sacudo as cinzas,
os túmulos dos buracos de caranguejo, a ampulheta dos séculos
que passaram sobre esta baía como o pó soprado pelo harmatão
das nossas tribos, dispersando-se sobre as ilhas,
e a lua erguendo-se na sua procura, como a lanterna de Diógenes
sobre a esfinge do promontório, de equilíbrio e justiça.


- DEREK WALCOTT
LUXÚRIA

Caí no hábito 
de ir às matinas. Hoje
descobri que estão a reparar
a igreja. As janelas laterais
foram retiradas. Fiquei chocado
com o som das andorinhas. Com o sol
e o cheiro da manhã.
Percebi que tem havido um engano.

- JACK GILBERT
NADA MAIS - RIEN NE VA PLUS

Na alienação que é o pensamento
as coisas escorrem pelos dedos abaixo
a matéria, a «phisis»
tudo nos escorre pelos dedos abaixo
na alienação que é o pensamento
Dominam-se as coisas até onde o céu
pode ser aberto
e a geometria uma realidade nossa
para limitar o espaço
A cabeça em limites
onde um limite um ser
uma coisa
e tudo cá dentro cá dentro cá dentro
até onde um limite
ainda torna possível a existência
dum outro por abrir
Hoje o céu é novo é diferente
é dormir e acordar de novo para as coisas
o céu os pássaros
a fantasia dos pássaros
Hoje é o céu novo o céu novo
hoje é a Grécia de ontem
foi ontem a Grécia
mas a Grécia ainda é hoje
é hoje porque é dormir e acordar de novo para as coisas
achá-las vê-las
cumprimentar as coisas com bons dias ao Sol
bom dia meu irmão
ressuscitar um morto
dizer aqui S. Francisco de Assis
aqui a cabeça cheia de vento
a graça as flores
o vento na cabeça
a cabeça a janela
aberta aberta
de S. Francisco de Assis
Hoje é dizer fui ontem mas ainda sou amanhã
amanhã amanhã
amanhã até onde o céu for aberto
e até onde a Estrela Polar distante distante
Hoje é dormir cantar
dormir com uma canção na cabeça
dizer boa noite meu amor meus astros minha esfera
amanhã outra vez amanhã de novo te conheço
ressuscito para as coisas
e assim o sono a existência o momento que passa
e nada mais
porque nada mais meu bom Sartre na verdade
nada mais que o momento
conta senão para nós.

- António Gancho, O AR DA MANHÃ,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1995
HOSPITAL CANTONAL DE PERREUX

Aqueles jardins tinham o gosto da anestesia
no céu da boca, havia longas alamedas
poluídas pelo segredo dos pavilhões proibidos.

Os internados dormiam toda a tarde sem ruído,
às seis vinham a tropeçar pelo refeitório,
cumprimentavam no seu francês turvado pelos químicos:
'Ça va, m'sieur?' Eu andava à procura de um acelerador
para a minha viagem, interrogava constantemente
os meus oráculos, o livro aberto sobre as sombras
no terraço.

Eram mesmo para mim as mensagens que encontrei
nos muros de algumas cidades, ou foram só ilusões
engendradas pelo acaso? Eu não sabia responder
naquela altura, tal como nunca soube. Às vezes
o silêncio de Perreux era confortável
para os meus sentidos, trazia-me depressa
o sono. Na manhã seguinte, eu voltaria a partir.

- Rui Pires Cabral, A SUPER-REALIDADE,
2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2011

segunda-feira, 24 de março de 2014


Para que serve a poesia?
Uma resposta.

"EM VEZ DE PREFÁCIO

Nos terríveis anos de Iezhov passei dezassete meses nas filas de prisão em Leninegrado. Certa vez alguém 'identificou-me'. Então uma mulher de olhos azuis que estava atrás de mim, que de certeza nunca ouvira o meu nome, saiu desse torpor próprio de todos nós naquela altura e perguntou-me ao ouvido (aí todos falavam num murmúrio):
- É capaz de descrever isto?
E eu respondi:
- Sou.
Então algo parecido com um sorriso perpassou por aquilo que outrora fora o seu rosto.

1 de Abril de 1957
Leninegrado"

_ ANNA AKHMATOVA
Gosto da brisa gelada
e do vapor que fala no Inverno:
Eu sou eu. A realidade é a realidade.

Um rapazinho, vermelho como um tomate,
dono e senhor do seu trenó,
lança-se encosta abaixo.

E eu, em desacordo com o mundo, com a liberdade,
aceito o contágio do trenó,
dos seus estriados braços de prata.

O século poderia ser mais leve que um esquilo,
mais leve que um esquilo no doce arroio.
Metade do céu é usar botas de inverno.

- OSSIP MANDELSTAM
in 'Um ateu no campo', versões de João Rodrigues,
Lisboa, edições pirata, 2000
O GATO

O meu não come ratos; não gosta disso. Só apanha um de vez em quando por brincadeira.
Quando já brincou o suficiente, poupa-lhe a vida e, inocentemente, vai sonhar para outro lado, sentado sobre o caracol da cauda, a cabeça insondável como um punho fechado.
Mas, por causa das suas garras, o rato morreu.

- JULES RENARD /Trad. Inês Dias 
[...]

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais para um verão interior.


- HERBERTO HELDER
SONETO PARA CESÁRIO

Se te encontrasse, agora, na paisagem 
nocturna dos fantasmas da cidade, 
contava-te dos nossos pobres versos 
no teu rasto de sombra e claridade. 

Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las.

Contava-te — sei lá! — desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas...

Duma história de luas e de esquinas,
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas.

- DINIS MACHADO
GIFT

You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
'This is not silence
this is another poem'
and you would hand it back to me.

- LEONARD COHEN
[Fotografia: Jim Wigler, 1960s]
[...]

As andorinhas pousadas nos cabos eléctricos
comentam entre si o périplo de Pound:
Odysseus que viajou 'Os Cantos' de 800 páginas
Sófocles numa gaiola, 'gorilla cage'
e mais treze anos sage num hospício
senhor do sangue contra o dinheiro

[...]

- António Barahona, PÁTRIA MINHA,
Lisboa, Averno, 2014
[...]

colecciono fotografias de família, vendidas em alfarrabistas
por pouco dinheiro, como prova de que estamos
a uma ou duas gerações do esquecimento.
invento dedicatórias, parentescos, datas e locais,
espalho-as em molduras pela casa para confundir visitas
e me vingar de uma memória que me atraiçoa sem descanso.
porque
este rosto me levou mais de três décadas a destruir,
para o abandonar à sua sorte, sem a gentil companhia de
desconhecidos, na descida aos infernos pelos túneis
das estações de metro ou num café quase vazio
de Alcântara, a meio da tarde, quando as mesas estão reservadas para os
que não têm ocupação ou pressa. os jornais do dia no balcão e
na parede do fundo o espelho convexo em que
Parmigianino e depois Ashbery se viram
sozinhos, rodeados de objectos, e a certeza de mais uma
morte fixada em auto-retrato.

Tiago Araújo, RESPIRAR DEBAIXO DE ÁGUA,
Lisboa, Averbo, 2013

ADMINIMISTÉRIO



Quando o mistério chegar, 
já vai me encontrar dormindo, 
metade dando pro sábado, 
outra metade, domingo. 
Não haja som nem silêncio,
quando o mistério aumentar.
Silêncio é coisa sem senso,
não cesso de observar.
Mistério, algo que, penso,
mais tempo, menos lugar.
Quando o mistério voltar,
meu sono esteja tão solto,
nem haja susto no mundo
que possa me sustentar.

Meia-noite, livro aberto.
Mariposas e mosquitos
pousam no texto incerto.
Seria o branco da folha,
luz que parece objeto?
Quem sabe o cheiro do preto,
que cai ali como um resto?
Ou seria que os insetos
descobriram parentesco
com as letras do alfabeto?

- Paulo Leminski, TODA POESIA,
São Paulo, Companhia das Letras, 2013

LADRÕES DE BICICLETAS — VITTORIO DE SICA (1948)


Mil quilómetros por dia pedalava meu pai, desde
a cama junto ao Douro até à próspera Cerâmica
de Valadares. Se qualquer homem recebe,
à nascença, uns sessenta inimigos por hora,
imaginem a jornada de um operário ciclista.
Tudo são despesas para ele: o rosário de geada
nas giestas, o jornal atropelado pelo vento, o verdor
da Primavera, a poalha do suor em cada mão.

Meu pai, é claro, não se queixa, ganha um conto
de réis, tem uma casa portuguesa e grandes sonhos
de amanhãs a gasolina. Pelo menos não trabalho
em nenhum matadouro, pensa ele, e com razão,
erguido nos pedais do seu veículo de sombra,
solitário trepador pela encosta de Avintes. Não
trabalha em nenhum matadouro. E nesse reconforto
passa à Quinta dos Frades, alcança o Freixieiro,
sente já o rumor de fumacentos camiões na nacional,
onde tudo, depois, será muito mais plano.

- JOSÉ MIGUEL SILVA
in 'Telhados de Vidro' n.º 4, Lisboa, Averno, Maio de 2005.

«A respiração dos seios empurra contra as paredes do quarto, em ondas lentas, o meu corpo afogado.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 226

FRUTO

   «Por um desvio semântico qualquer, que os filólogos ainda não estudaram, passámos a chamar manhã à infância das aves. De facto envelhecem quando a tarde cai e é por isso que ao anoitecer as árvores nos surgem tão carregadas de tempo.»



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 224

Annabel Lee

Caroline Blackwood, Walker Evans, February 1958


'' o poema esboroa-se no rasto da criança''


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 214
«(...) jurara nunca mais comer carne, mesmo que fosse condenado toda a vida às ampolas de soro nutritivo diluídas em leite.»


Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 214

II

    «Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura». 



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 212

«(...): na madrugada, a aprendizagem da criança começa pela dor, que se desdobra sem descanso a partir de si mesma.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 211

ESTÁTUA

a Jane L.


   Nos umbrais desta página recebo o poema que chegou de longe, duma memória escura, voluntária, atravessando lama, sono, olvido. Desvendo-lhe as feições, sílaba a sílaba. Quando grito por fim «eis uma cara nova», penso logo «afinal, eras tu». Reconheci apenas outro rosto esquecido na aridez do mundo, recolhi-o da sombra donde veio, e aqui lho deixo, adoradora de estátuas muito antigas, petrificado no papel.»

Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 209
«Deixe-o falar. Incline a cabeça  para o lado, altere o ângulo de visão.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 205

LOOK BACK IN ANGER

      «Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
    Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
   As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se  entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.»



Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 203

domingo, 23 de março de 2014


«Elias pega na corrente, põe-se a passá-la nos dedos e à volta do pulso. É uma cadeia delicada em forma de pulseira mas numa bela perna de mulher vale como um compromisso público de pacto de cama.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 87
«Disse isto e deitou-lhe um olhar certeiro, a ver o efeito. E depois, como quem não quer a coisa: Neste momento veio-me uma à ideia que não deixava de ter a sua graça.
   O advogado: Sim?
   Elias Chefe já com a mão na porta: A amante do major, senhor doutor. Não era nada do outro mundo se ela lhe aparecesse àquela porta um dia destes.
  O advogado em despedida de mão mole: Meu amigo, surpresas dessas nem ao diabo se desejam.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 85
«Mena. A porta fechada e ela cá dentro a escorrer chuva. Tremulava na água, muito hirta, havia um pequeno lago aos seus pés. E no entanto entrava sol pela janela e a cabeleira platinada irradiava luz gelada.»

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 83

A mim tanto se me dá.

falcatruas

« - Não preciso de esmolas! - disse o vadio, com uma dignidade que o emocionou a si próprio.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 46
«Entre as pessoas letradas da vila contava-se que D.Quitéria, numa das recepções do paço episcopal, discutira em voz alta  com outra senhora o emprego do há e do hão; D. Quitéria, por fim, pretendera esmagar a rival com exemplos concretos:
-Então a senhora diz «há coisas» ou «hão coisas»?
-«Há coisas», evidentemente.
-Pois diz mal. «Coisas» é plural.
 Contava-se que o bispo, ao ouvir o remate da conversa, concluíra para um abade que o acompanhava:
 -É estúpida, mas coerente.
E era, de facto.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 45

Fernando Namora, 1960


Com a face de uma rigidez sonâmbula



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 41

pergunta de algibeira

pergunta feita a uma pessoa com o objectivo de a confundir ou embaraçar

insulso

adjectivo

1. sem sal; insosso
2. figurado que não tem graça; desenxabido

(Do latim insulsu-, «insípido»)


«Cada um possuía uma intimidade de que ele era afastado. A sua alma, vazia de alegrias e sofrimentos, era afinal corroída pelo isolamento.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 42

«Dias lentos! Dias que pediam repouso e eternidade, sono e independência, tudo menos compromissos.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 33

«A tontinha da Alice estava ansiosa e fascinada. E, na verdade, seria engraçado domesticar um rato; mas que anos de paciência uma tarefa dessas exigia!»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 33

desacreditado

Dangerous Muse

marouva

nome feminino

BOTÂNICA espécie de cereja miúda e desenxabida

«Todo o homem verdadeiro traz da juventude uma direcção. Depois, só lhe resta ter vergonha e manter-se-lhe fiel; ou, então, apodrecer.»

Fernando Namora in ''O Homem Disfarçado''


«Bem: à falta de um bom espectáculo, com o gato, o vadio pôs essa coisinha arrepiada na palma da mão e logo sentiu o quanto era excitante ter uma vida fechada num capricho, mesmo tratando-se apenas de um frágil ratinho, tão miserável que bastaria um gesto para o sufocar. O coração do Barbaças, porém, não era o de um carnívoro: em vez de violências, afagou o ingénuo prisioneiro, sob a vigilância de Alice, vigilância que, de tão ardente, era aflitiva, poisando-o depois cuidadosamente na clareira de sol, enquanto procurava à volta, e um pouco à toa, qualquer coisa que pudesse fazer um ratinho feliz: migalhas, restos de bolota, talvez caracóis. Qual seria o manjar mais do apetite de um rato daquela idade? Trigo, alface? Que baralhada! A convivência do Loas fazia-lhe a cabeça parva.»



Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 31/2

Alice



«Alice estava deitada sobre a grama, o rosto ávido apoiando-se num cotovelo, num silêncio fascinado, devorando o rato com o seu pasmo. Alice e um ratinho parvo, à espera que um bichano lhe viesse roer o pêlo sedoso e os tenros ossos!»




Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 31

The Open Door, 1843


chousal


nome masculino

redil que os pastores armam no campo, no Verão, para o gado pernoitar

«(...) um sujeito relaxado como ele, que ainda não se civilizara o bastante para se mostrar humilde»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 29
«Barbaças sentiu fieiras de agulhas espetarem-lhe as entranhas. Estava angustiado. Aquele Loas falava de defuntos e de diabos como quem se refere a companheiros de taberna!»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 28

O Cesariny, à observação de uma senhora «O senhor fuma muito», respondeu «Eu fumo sempre».

sábado, 22 de março de 2014


sentia-me pouco à vontade, para não dizer infeliz


«É impressionante como o tempo nos faz compreender certas coisas, só agora é que percebo como isso já na altura me magoava, ele gostar de mim por essa necessidade de proteger. Verdade. Mesmo miúda tinha um pressentimento qualquer, sentia-me pouco à vontade, para não dizer infeliz. Enfim, tudo acabou como tinha que acabar, mas foram oito meses da minha vida que não é possível esquecer.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 77
«Mena passa a mão pela testa e pára a olhar por entre os dedos uma mancha de bolor que tinha descoberto nessa manhã a um canto do tecto. Tinha o feitio duma osga, o pardo e o repelente duma osga imóvel no cimento, com aqueles dedos abertos, minuciosos e arredondados em pontas de ventosa. Suspira. Depois conta: Ele estava tremendamente bêbado nessa noite.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 71


«Três homens à roda duma mesa e uma mulher que fumava, que fuma, com aquele aspirar arrastado que tanto incomoda o chefe de brigada (dentro em pouco a cela vai entrar em nebulosa, o prato da folha que faz de cinzeiro está a transbordar.) Aquilo não era uma casa, era uma insónia, recorda Mena. Fumávamos como cavalos.»




José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 68-9

   «Durante semanas e semanas Mena tinha-se queimado por dentro com cigarros, tinha-se embrutecido com valium num batalhar contra as insónias da Casa da Vereda. Temporal, ruídos de sobressalto lá fora, e ela de olhos acesos no escuro, deitada ao lado do major e a fixar o vulto dum gato de barro que estava em cima da cómoda com uma cabeleira de mulher. O gato com a peruca enfiada na cabeça, a peruca das viagens clandestinas de Mena, reflexos platinados, cinza e mescla. Até de noite o adivinhava. Mas estranhamente o sono voltou-lhe na própria noite do crime. Em cima dos tiros e do sangue o sono abateu-se sobre ela de pancada; e foi espesso e brutal, e durou uma noite, e só uma, porque dali em diante era ela que não queria adormecer. Tinha medo de sonhar com o morto.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 63

sexta-feira, 21 de março de 2014


«A presa sentada em solidão, sempre mais agarrada ao seu espaço íntimo, e ele a aproximar-se atrás de cada pergunta. Como que por acaso, como que por acaso. Pode fazer-se isso com pequenos movimentos de quem se inclina para ouvir melhor e avança um pouco a cadeira, ou no acto de se apanhar qualquer objecto que se deixou cair, ou indo à janela e ganhando mais um palmo ao sentar-se. Mil pretextos. Perguntas, sempre perguntas; às duas por três Elias já estava colado à prisioneira, cobria-a com o seu bafo de polícia. Invasão do espaço individual.»

José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 61/2

depuração narrativa


casse-tête

''o eterno cigarro nos dedos''

«Elias vai em salteado (conhece os textos). Pára e treslê, no tresler é que está a leitura, é assim que ele arruma a cabecinha, e de quando em quando queda-se a admirar a unha gigante. Também pensa de alto, às vezes diz coisas. Mas se fala e ao mesmo tempo lê, a unha escuta - e não há nisto nada de especial, não se pense, porque é uma unha do mindinho, o dedo que tudo adivinha, e porque é com ela que o chefe de brigada sublinha todos os momentos indecisos da pessoa e do caos.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 52

«É dia ou noite, tanto faz. Tanto fez. E agora estão a contas com uma jovem que fuma, que se enovela em fumo, e que fala a uma distância dela mesma.»


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 48

extrema-unção

insinceridade


obsessões passionais

ilimitado egoísmo

«Quando, na sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesquinho,egoísta, desonesto, carente de independência, alguém cujo único objectivo tem sido ocultar as fraquezas de sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos,que tenha chegado bem perto de se compreender a si mesmo; ficamos imaginando, tão-somente, por que um homem precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie.»

SIGMUND FREUD, “Luto e Melancolia”, 1917

quinta-feira, 20 de março de 2014

mise-en-scène

"Posso passar todo o dia encostado masturbando-me na contemplação da divina palavra que escreveste, e da coisa que dizes querer fazer com a tua língua"

9 de Dezembro de 1909

vertigem masturbatória

auto-degradação

James Joyce - Nora Barnacle

“há relação sexual entre eles – refere Lacan -, mas marcada por uma degradação  dum carácter particular: ele evita-a com a mais viva das repugnâncias, é por depreciação  que faz dela uma mulher eleita” (Lacan cit. p. Laurent 1986: 15).
«Que tipo tão desprezível sou! […] Querida Nora, peço-te humildemente perdão. Toma-me novamente nos teus braços. Faz-me digno de ti”


19 de Agosto de 1909

«Creio que estou um pouco louco. […] Num instante vejo-te como uma virgem  e no instante seguinte vejo-te desavergonhada, audaz, desnudada e obscena!"

2 de Setembro de 1909
Regressa à tu própria vida e deixa-me ir sozinho à minha ruína. Não é bom para ti viver com uma besta vil como eu, ou permitir que as minhas mãos toquem nos teus filhos. / [...] Não tenho direito de me queixar ou de jamais levantar os olhos para ti. […] / Deixa-me. Para ti é uma vergonha e uma humilhação viver com um pobre infeliz como eu. Age com coragem e abandona-me.


(18 de Novembro de 1909)
O melancólico exibe ainda uma outra coisa que está ausente no luto — uma diminuição extraordinária da sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. Noluto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O pacienterepresenta o seu ego para nós como sendo
 desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece,  esperando ser expulso e punido. Degrada-se perante todos, e sente comiseração pelos seus próprios parentes por estarem ligados a uma pessoa tão desprezível.


 (Freud 1917: [2])
S. Freud: “Quando amo um outro, ele terá de algum modo de merecer o meu amor.[…] E ele merece-o se for de tal modo semelhante a mim em  aspectos relevantes que nele eu possa amar o ideal que tenho de mim próprio” (Freud 2008 [1930]: 63)
7 de Setembro de 1909 

 “Estou todo o dia excitado. O amor é um maldito fastio, especialmente quando também está unido à luxúria. É uma provocação terrível pensar que neste momento tu estás à minha espera no outro extremo da Europa enquanto eu estou aqui”
«Ele avança a pouco e pouco; ainda está mergulhado na região paradisíaca dos signos subtis e clandestinos, como um predador silencioso. A desfocagem, evidente nas duas últimas imagens da série, onde o “ataque” finalmente se consumou (tomada abrupta da "presa"), parece significativamente simulara cegueira inerente ao arrebatamento pulsional do avanço predador masculino. Ela, petrificada na suapose imóvel, revela-se, por fim, como imagem fantasmática que subitamente se desvanece. Depois de possuído pela febre sexual que consubstanciou um momento de crise no seu isolamento, ele adia a volúpia, regressando à potencialidade (interior) agitada e fermente.»

estado de carência e solidão

''No lugar da mulher ficou a ausência.''

Tratamento para escoliose de Lewis Sayre


James Joyce <>Nora Barnacle: felação e sodomia

L'Escalade du Désir (1977)

''desassossego insaciável e insano'

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