«Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.»
Carlos de Oliveira. Obras de Carlos de Oliveira. Editorial Caminho, Lisboa, 1992., p. 203