sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Rua de Camões

A minha infância 
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe


Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho


Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva


Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto


E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça


O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia


Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão


A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes


Não olhes para os rapazes
que é feio.




Estendais


Em alguns invernos mais chuvosos,
em Miragaia que foi a Madragoa de
Pedro Homem de Mello, o Douro
salta a margem e entra pelos arcos
onde se demora no rés-do-chão
das casas, por duas madrugadas.

Mas são os estendais, à janela
agitados pelo vento nas abertas da chuva,
que nos trazem a urgência e a constância 
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,
onde os poliesteres aboliram os felpos, os linhos
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol
e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam
heróicas barrelas na espuma inocente do sabão.


Ícaro 


Um cão pertence mais á Terra,
aos seus limites, até ao  último
rio. Mas ao que vive na casa
em frente, foi dado este nome
volátil. Quando só, ele constrói,
como quase todos os cães,
aquele  som agudo de sobrevoar
ausências, que faz do regresso
de qualquer lazarento dono,
o latido solar da alegria.


Satélite 


Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
 prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os  rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde, 
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite,onde 
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.


Guilhermina Suggia 
(variações sobre um retrato)

1.

No escarlate do vestido
entre os joelhos avulta
o versátil companheiro
que em voz grave lhe responde
desde esse Porto marítimo
da infância, muito antes
da era dos petroleiros e
da boçalidade dos banhistas.

2.

O arco descreve
o intenso itinerário
de Leipzig a Paris,
de Berlim a Varsóvia,
o fascínio dos palcos, o
secretismo dos camarins,
na arritmia do pulso
que o fulgor persegue.

3.

Num crescendo vibrátil
desenha o andamento,
seus motivos ascendentes de
harmónica tensão. E na pausa
final, que um ímpeto antecede
o arco se suspende
augúrio e êxtase.


4.

No atelier londrino
de Mallord Street,
o pintor fixa o instante
de uma metamorfose.
Na tela cresce a silhueta
unida ao Stradivarius,
num corpo mútuo
de exótica mariposa,
olhos cerrados no meridional
abraço. Nem Pablo,
o virtuoso, nem qualquer outro
amante, desatará jamais
esse abraço sem fim.


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

« - sangue nas mãos duma estátua, a emoção da história duma tortura antiga -,  o dar ou tirar sangue no acto da cópula.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 185

«Isso tudo são palavras para vestir uma coisa nua; e essa coisa, vestida, torna-se ridícula.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 184

'' o mar andou escuro e danado''

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 181
“[…] tanto na religião como no amor, o crente aspirará a uma beatitude sem limites; devora-o uma apetência de imortalidade, queima-o uma ânsia de fusão total unificadora, de transformação ou liquefacção do amante no amado. 
Ambos os amorosos vivem alheios de si próprios, “mortos” para eles mesmos porque “vivos” respectivamente um no outro. O amor religioso acompanha-se dos mesmos sacrifícios ascéticos que o amor profano, e crepita nos mesmos transportes extáticos. A expressão verbal ou literária dum é a expressão verbal ou literária do outro”



Sílvio Lima, O Amor Místico (noção e valor da experiência religiosa) (1935), in Obras Completas, I, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp.558-559.

«Querias-me?», perguntou ele.

   «Queria, sim querido. Não dormi o bastante, mas queria falar contigo antes de tornar a adormecer. Podia esquecer-me do que te quero dizer. Tens de te lembrar por mim.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 128

domingo, 23 de agosto de 2015

Born To Die



Feet don't fail me now
Take me to the finish line
All my heart it breaks every step that I take
But I'm hoping that the gates
They'll tell me that you're mine

Walking through the city streets
Is it by mistake or desire?
I feel so alone on a friday night
Can you make it feel like home
If I tell you you're mine

It's like I told you honey

Don't make me sad, don't make me cry
Sometimes love's not enough
When the road gets tough
I don't know why
Keep making me laugh,
Let's go get high
Road's long, we carry on
Try to have fun in the meantime

Come and take a walk on the wild side
Let me kiss you hard in the pouring rain
You like your girls insane
Choose your last words
This is the last time
Cause you and I

We were born to die

Lost but now I am found
I can see but once I was blind
I was so confused as a little child
Tried to take what I could get
Scared that I couldn't find
All the answers honey

Don't make me sad, don't make me cry
Sometimes love's not enough
When the road gets tough
I don't know why
Keep making me laugh
Let's go get high
Road's long, we carry on
Try to have fun in the meantime

Come and take a walk on the wild side
Let me kiss you hard in the pouring rain
You like your girls insane
Choose your last words,
This is the last time
Cause you and I

We were born to die
We were born to die
We were born to die

Come and take a walk on the wild side
Let me kiss you hard in the pouring rain
You like your girls insane

Don't make me sad, don't make me cry
Sometimes love's not enough
When the road gets tough
I don't know why
Keep making me laugh,
Let's go get high
Road's long, we carry on
Try to have fun in the meantime

Come and take a walk on the wild side
Let me kiss you hard in the pouring rain
You like your girls insane
Choose your last words
This is the last time
Cause You and I

We were born to die

We were born to die

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O CAÇADOR

(...)

«E até reles serventes torna os cães.»

António Osório. A ignorância da morte. Colecção forma.Editorial Presença, Lisboa., p. 33
É-me doloroso falar, mas calar-me também
o é; quer fale, quer me cale, para mim só
há dor.

Prometeu agrilhoado, Esquilo

DIZERES

Apodrecer é simples: basta
ceder do coração apenas
a parte mais sombria.

Guardar o resto para inúteis
coisas que não acontecem.


Alberto Soares. Escrito para a noite. Gota de Água. Imprensa Nacional - Casa da Moeda., p. 25

Adágio

«Não é tranquilo o coração dos lobos
fazem mau uso da morte e da ternura.»


Alberto Soares. Escrito para a noite. Gota de Água. Imprensa Nacional - Casa da Moeda., p. 21

«La joie n'est pas un sentiment poétique.»

E. M. Cioran

FRACTURA

Difícil
é recordar todas as palavras
de outro modo. Ou reflectir
a noite.


Alberto Soares. Escrito para a noite. Gota de Água. Imprensa Nacional - Casa da Moeda., p. 9

«Os loucos da casa exageram no volume de seus discos,
                                                                  gritam para além dos sacos
                                                                   de lixo, esbofeteiam-se, fun-
                                                                   dam paralelos lares de com-
                                                                   panheiros sós e felizes.
Telefonam-se a altas horas, marcam encontros impos-
                                                                   síveis, roem-se tranquila-
                                                                   mente as unhas.
Mas o mar os conhece como ninguém, embate contra
                                                                  seus quadris, fica sereno, e
                                                                  é a noite acampada à beira
                                                                   das marés.
Entre esmagar conchas ou beijar um pescoço húmido de
                                                                  suor, só a história fica des-
                                                                  ses, vomitando nos lugares
                                                                  públicos as públicas e de
                                                                  pasta mulheres dos profis-
                                                                  sionais livres: virginsíssimas.»

Mário Cláudio. Terra Sigillata. Edição & etc, Lisboa., p. 31

«Passas, é o corredor demasiado estreito. Tocas-me o 
                                                                                              peito de tuas mamas: mo-
                                                                                              mento do limão espremido,
                                                                                              sulcos acabados de rasgar.

O túnel, agora.»

Mário Cláudio. Terra Sigillata. Edição & etc, Lisboa., p. 24/5

«Criança que era, descia às caves da casa, procurava
                                                        as lâminas, incindia com
                                                        elas a cana do nariz.
Retrocedia às escadas, erguia-se ensanguentada, tin-
                                                        gindo de si a maçaneta das
                                                        portas, o papel das pare-
                                                        des, as toalhas de linho.
Era a morte primeira, o lívido oásis da dor.» 


Mário Cláudio. Terra Sigillata. Edição & etc, Lisboa., p. 20
«Nada se vende já na Rua dos Arménios, nem o medo.
Só alguns azulejos se compõem e descompõem, um
                                            poeta nasce, o teatro arde
                                            pela madrugada.»



Mário Cláudio. Terra Sigillata. Edição & etc, Lisboa., p. 15

''madrugar o pensamento''


Esquecemos a sombra que movíamos
e a em que, movendo-nos, era
madrugar desde o princípio
de sermos fonte duma fonte velha.
E madrugar a sombra dessa fonte
da nossa sombra esquecida madrugava,
acendendo-se espelho fundo e onde
o espelho se esquecesse, e a madrugada.


Fernando Echevarria. A base e o timbre. Círculo de Poesia, Moraes Editores., p. 55
«Iluminarmo-nos ilumina
outros iluminar-se.»


Fernando Echevarria. A base e o timbre. Círculo de Poesia, Moraes Editores., p. 43

quinta-feira, 20 de agosto de 2015


“não é a última gota que esvazia a clepsidra, mas toda a água que anteriormente foi escorrendo”

Séneca
«A morte é um processo intrínseco à própria vida, de tal forma que viver é sempre, ao mesmo tempo, morrer.»

Joaquim Mateus Paulo Serra. O Suicídio considerado como uma das Belas Artes. Universidade da Beira Interior. Artigos LusoSofia, Covilhã, 2008., p. 15
“é precisa a vida inteira para aprender a viver e – o que talvez vos surpreenda mais – é precisa a
vida inteira para aprender a morrer.”

Séneca, in pequeno ensaio intitulado Acerca da Brevidade da Vida

Carta 77

“na vida é como no teatro: não interessa a duração da peça, mas a qualidade da representação. Em que ponto tu vais parar, é questão sem a mínima importância. Pára onde quiseres, mas dá à tua vida um fecho condigno.”

Séneca, op. cit., 77, 20, p. 328.

“É muito mais difícil [do que na morte na sequência de doença] encontrar ou criar um significado na morte súbita resultante do suicídio ou da injúria autoinfligida. Para o indivíduo que escolheu cometer suicídio, parece que a vida se tornou uma luta sem sentido, ou um terror para o qual a morte é a única saída. O único factor comum ao suicídio ou à injúria auto-infligida é o fazer-se mal a si próprio; a questão comum deixada aos que ficam é ‘Porquê’?” 


Stella Ridley, “Sudden death from suicide”, in Donna Dickenson, Malcolm Johnson, Jeanne
Samson Katz (org.), Death, Dying and Bereavement, London, Sage Publications, 2000, p. 55
Em Fédon de Platão, Sócrates afirma acerca dos filósofos que “eles não têm outra ocupação senão a de morrer e estarem mortos”, acrescentando, ainda, que os filósofos “se exercitam a morrer e que não há homens que tenham menos medo do que eles em estarem mortos”.

“Morrer jovem, sobreviver heroicamente”.

(Cf. Jean-Pierre Vernant, O Universo, os Deuses, os Homens, Lisboa, D. Quixote, 2000, p. 95-99).
«De acordo com um autor antigo, a lei em Atenas diria o seguinte: “Que aquele que não quer viver mais tempo exponha as suas razões ao Senado e deixe a vida se o Senado lhe der autorização para partir. Se a existência te é odiosa, morre; se o destino te é opressivo, bebe a cicuta. Se o peso da dor te faz andar curvado, abandona a vida. Que o infeliz relate os seus infortúnios, que o magistrado lhe forneça o remédio e a miséria cessará.”

(Libanius, citado por Durkheim, ibidem, p. 329).
«Em Atenas – mas também em Esparta, Tebas e Chipre –, não só estavam vedadas as honras de sepultura ao homem que se suicidava sem autorização do Estado, como se cortava uma mão ao cadáver para ser enterrada à parte.»

Joaquim Mateus Paulo Serra. O Suicídio considerado como uma das Belas Artes. Universidade da Beira Interior. Artigos LusoSofia, Covilhã, 2008., p. 6

a “estética da existência”


“Talvez o verdadeiro estádio do espelho antropiano: contemplar-se num duplo, alter ego, e, no visível próximo, ver outro que o visível. E o nada em si, ‘este não-sei-quê que não tem nome em nenhuma língua’. Traumatismo suficientemente siderante para desencadear, desde logo, uma contra-medida: fazer uma imagem do inominável, um duplo do morto para o manter em vida, e, por contragolpe, não ver esse não-sei-quê em si, não se ver a si mesmo como quase nada.” 

Régis Débray, Vie et Mort de l’Image, Paris, Gallimard, 2000, p. 37
“Quando aparece o sapiens [Homem de Neanderthal], o homem já é socius, faber, loquens. Portanto, a novidade que o sapiens traz ao mundo não consiste, como se julgava, na sociedade, na técnica, na lógica, na cultura. Consiste, pelo contrário, naquilo que até agora se considerava como epifenomenal, ou que imbecilmente se saudava como sinal de espiritualidade: a sepultura e a pintura.”

Edgar Morin, O Paradigma Perdido. A natureza humana, Lisboa, Europa-América, 1975, p. 93.
«Pelo sofrimento e pela angústia que provoca, aos que partem e aos que ficam, a morte dá que pensar leva o homem a tornar-se pensante.»

Joaquim Mateus Paulo Serra. O Suicídio considerado como uma das Belas Artes. Universidade da Beira Interior. Artigos LusoSofia, Covilhã, 2008., p. 4

João Moita 8 poemas

O mundo é a tua vigília.
Levas milénios acordado,
velando a tua esperança.
Velas, teus acólitos seguram
as tuas pálpebras.
Esperas o impossível:
que se erga da terra um rumor que embale.

*

À força de êxtases,
a fé podou o amor.

Quando veio o desejo,
brincámos com a fome dos corações.

*

A descrença celebra o seu apóstata,
reclama o seu arado:

chegará o tempo da sega,
mas cultive-se primeiro o amor,
essa deformação.
                           Se espigar,
haverá fome por mantimento
e uma colheita tardia
para a distração.

*

Não escrevia para não roubar tempo à leitura: aprendia a humildade. Agora escrevo, aprendo a humilhar-me.

*

Se falham o primeiro voo,
as aves não chegam a voar.
Delas não se pode dizer
que tinham o voo por condição.
Inata só a altura do ninho
e a vertigem do solo.
O resto é conquista das asas.

*

Uma consciência tranquila dorme de noite, mas de dia é uma insónia insuportável.

*

Os mastins dormiram esta noite
junto ao leito do nosso amor.
Partiram antes da alba
para paragens menos desoladas
com as marcas dos nossos dentes
sobre o dorso.

*

Fiquei em silêncio até já ter dito tudo
e só depois me ergui da fogueira-

Tive de queimar a pele para ferver o sangue.


in Fome, Lisboa, Enfermaria 6, 2015: 14, 18, 19, 31, 36, 40, 47, 55


A escrita


“Quando conscientemente, aos treze anos de idade, tomei posse da vontade de escrever – eu escrevia quando era criança, mas não tomara posse de um destino – quando tomei posse da vontade de escrever, vi-me de repente num vácuo. E nesse vácuo não havia quem pudesse me ajudar. Eu tinha que eu mesma me erguer de um nada, tinha eu mesma que me entender, eu mesma inventar por assim dizer a minha verdade. Comecei, e nem sequer era pelo começo. Os papéis se juntavam um ao outro – o sentido se contradizia, o desespero de não poder era um obstáculo a mais para realmente não poder: a história interminável que então comecei a escrever (com muita influência de O Lobo das Estepes de Hermann Hesse), que pena eu não ter conservado: rasguei, desprezando todo um esforço quase sobre-humano de aprendizagem, de autoconhecimento. E tudo era feito em tal segredo. Eu não contava a ninguém, vivia aquela dor sozinha. Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”. (Em A Descoberta do Mundo).



“Não escrevi muito sobre mim nestes dias, em parte por preguiça (durmo tanto e tão profundamente durante o dia, tenho mais peso enquanto durmo), em parte também por medo de trair o conhecimento que tenho de mim. Este medo justifica-se, porque uma pessoa só devia permitir fixar na escrita a sua autopercepção quando o puder fazer com a maior integridade, com todas as consequências secundárias e também com toda a verdade. Porque se isto não acontecer — e eu de qualquer maneira não sou capaz de o fazer — o que está escrito irá, de acordo com a sua própria finalidade e com o poder superior do que foi fixado, tomar o lugar daquilo que se sentia apenas vagamente, de tal modo que o sentimento verdadeiro desaparecerá enquanto o não valor do que foi anotado será reconhecido tarde de mais”. (Em Diário).
''Não sei como é que aprendi a ler; só me lembro das minhas primeiras leituras.''

Rousseau

hodiernamente


advérbio

no tempo de agora; actualmente; modernamente

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

"E é na faculdade de mentir, que caracteriza a maior parte dos homens actuais, que se baseia a civilização moderna. Ela firma-se, como tão claramente demonstrou Nordau, na mentira religiosa, na mentira política, na mentira económica, na mentira matrimonial, etc...
A mentira formou este ser, único em todo o Universo: o homem antipático.
Actualmente, a mentira chama-se utilitarismo, ordem social, senso prático; disfarçou-se nestes nomes, julgando assim passar incógnita.
A máscara deu-lhe prestígio, tornando-a misteriosa, e portanto, respeitada. De forma que a mentira, como ordem social, pode praticar impunemente, todos os assassinatos; como utilitarismo, todos os roubos; como senso prático, todas as tolices e loucuras.
A mentira reina sobre o mundo! Quase todos os homens são súbditos desta omnipotente Majestade. Derrubá-la do trono; arrancar-lhe das mãos o ceptro ensaguentado, é a obra bendita que o Povo, virgem de corpo e alma, vai realizando dia a dia, sob a direcção dos grandes mestres de obras, que se chamam Jesus, Buda, Pascal, Spartacus, Voltaire, Rousseau, Hugo, Zola, Tolstoi, Reclus, Bakounine, etc. etc....
E os operários que têm trabalhado na obra da Justiça e do Bem, foram os párias da Índia, os escravos de Roma, os miseráveis do bairro de Santo António, os Gavroches, e os moujiks da Rússia nos tempos de hoje. Porque é que só a gente sincera, inculta e bárbara sabe realizar a obra que o génio anuncia? Que intimidade existirá entre Jesus e os rudes pescadores da Galileia? Entre S. Paulo e os escravos de Roma? Entre Danton e os famintos do bairro de Santo António? Entre os párias e Buda? Entre Tolstoi e os selvagens moujiks? A enxada será irmã da pena? A fome de pão paracer-se-à com a fome de luz?..."

Teixeira de Pascoaes, "Trechos dum livro inédito" (1911), in "A Saudade e o Saudosismo", pp.12-13.

A Vida não Cabe numa Teoria

«A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas.

Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.

Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.

A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar. »

Miguel Torga, in "Diário (1941)"

A Essência da Poesia

«Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio. Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma acção passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a acção, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia - o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia - numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde. E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde. De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum. »

Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer" (Discurso na entrega do Prémio Nobel)

O Orgulho e a Vaidade

«O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso. É difícil à primeira vista compreender como podemos ter consciência da evidência do nosso mérito para os outros, sem a consciência do nosso próprio mérito. Se a natureza humana fosse racional, não haveria explicação alguma. Contudo, o homem vive a princípio uma vida exterior, e mais tarde uma interior; a noção de efeito precede, na evolução da mente, a noção de causa interior desse mesmo efeito. O homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é. É a vaidade em acção.»


 Fernando Pessoa, in "Da Literatura Européia"
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