«Deste modo, todas as noites, desde o chá até à hora do jantar, passei a ler aos meus patrões a «Folha de Moscovo»: romances de Vachkov, de Rokchanine, de Roudnikovski e toda a espécie de literatura própria para ajudar a fazer a digestão das pessoas que se aborrecem até morrer.
Não gostava nada de ler em voz alta, isso impedia-me de compreender o que lia, mas os patrões escutavam com toda a atenção, quase com uma espécie de avidez cheia de veneração; soltavam alguns «ah» de espanto pelos crimes dos heróis e comentavam entre si, com certa firmeza:
- Ainda bem que vivemos sem fazer ondas, aqui, em paz; não sabemos nada, o Senhor seja louvado!»
Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 230
Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 171
«Passou uma aragem fria que levou diante de si as folhas e gelou a cinza espalhada à volta do lume.»
Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 139
«Apenas na arte a verdade pode permanecer ao longo dos tempos porque se baseia na contemplação pura do mundo, alicerçada no essencial e permanente de todos os fenómeno e por isso na arte não acontece a felicidade, porque esta é insustentável e inconstante. A arte comunica um conhecimento puro das ideias, elegendo do mundo fugidio dos fenómenos um objecto particular, congelando-o no tempo, como um representante do todo.»
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 20
«O Belo é mais intenso quando emana de tudo, diante de uns olhos que suspenderam as suas lágrimas, o espírito melancólico é também mais pensativo e mais atento aos ínfimos pormenores, depois da onda de desespero.»
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 16
«(...) após mergulhar em sofrimentos inexprimíveis, negros e que atacam a sua alma, consegue depois depurar esse estado psíquico intenso, saindo de si, generalizando essa dor.»
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 15
«(...)para haver consolação necessitamos da dor associada à existência e o Belo que advém dela, contrariando-a.»
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 15
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 13
''Se o Homem aceitasse a dor como inevitável e percebesse que as dores mais agudas apagam as mais suaves e estas só são sentidas porque não existem outras que lhe causem maior sofrimento, tal reduziria a importância enorme que dá à tentativa de extinção da dor. Poderia assim perceber que a dor que tem presentemente ocupa o lugar de outra, que ali poderia vir colocar-se se a primeira desaparecesse. Uma dor por pequena que seja, torna-se dominante se não existir uma maior.''
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 12
Schopenhauer, «tendo os homens colocado todas as dores, todos os sofrimentos no inferno, para encherem o céu não encontraram mais do que o aborrecimento»
''Assim, o conhecimento que tenho da vontade está relacionado com o conhecimento que tenho do corpo e eu sou vontade. Perante estes pressupostos, a necessidade, quer seja interior ou exterior, pode ser uma fonte de mágoa se não for satisfeita. Para Schopenhauer, o melhor modo de lidar com esta falta é o ser humano conformar-se com a dor, ver a sua condição como destino e não manter a esperança nas suas expectativas, sendo o fatalismo uma forma de consolo. De certa forma, e a partir desta ideia do autor, podemos acrescentar que se virmos nobreza nos nossos padecimentos, se formos capazes de lhes dedicar um infortúnio que nos é superior, o sofrimento ganha uma dignidade consoladora.''
Magda Andreia Delgado Fernandes in O Belo como Consolação – a Ilusão perante a dor, 2011., p 10
não se atribui ao artista a função de gritar sofrimento ou de silenciá-lo, mas apenas de apresentá-lo, segundo a concepção de Franz Rosenzweig.
que se pode encontrar no diálogo Parménides de Platão (130e-133b)
"Os gostos e os desgostos levam ao poema como podem levar ao precipício o poema fala do precipício lá haverá choro e ranger de dentes e não haverá Kleenex nem o Dr. Abílio Loff o meu querido dentista o poema fala do precipício evitado a tempo o mau poema não mata (mais vale burro vivo que sábio morto)"
"As pessoas caem como folhas / E secam no pó do desalento / Se não as leva consigo / A fúria poética do vento. / Para que se justifique a nossa vida / É preciso que alguém a invente em nós" (I, p. 10)
“Não adianta tentar – afirmou ela. – Não se pode acreditar
em coisas impossíveis. (Alice)
– Eu diria que não tens treinado muito – retorquiu
a Rainha. – Quando eu era mais nova, treinava sempre
meia hora por dia. Ora, às vezes chegava a acreditar
em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço”
CARROLL, Lewis (1978), Alice do Outro Lado do E spelho, Sintra: Europa-América,pág.70
“(…) sempre resisti ao poder do tempo graças a um
impulso interior que eu próprio não entendo muito bem,
sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança
(…) de descobrir que todos os momentos do tempo
existiram simultaneamente, caso em que nada do que
a história conta seria verdade, os acontecimentos não
aconteceram, estão à espera de acontecer no momento
em que pensarmos neles (…)''
SEBALD, W. G. (2004), Austerlitz, Lisboa: Teorema, pág.96
«A erva, desmaiada pela chuva, deixa cair os seus caules ao chão, (...) Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 185
Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 184
«(...) ao longe, ouviam-se uivar os chacais, também eles atormentados pelo amor e pela fome.» Nikos Kazantzakis.Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 291
«Ora o que eu pretendo afirmar é que o homem deve viver a sua juventude até ao fim, todas as paixões viris, abrir o ventre a todos esses ídolos e descobrir depois que, afinal, estavam cheios de palha e de vento; ficar por fim vazio, purificar-se em seguida e não ter mais a tentação de olhar para trás; só então estará em condições de apresentar-se perante Deus. A esse chamo eu um lutador.» Nikos Kazantzakis.Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 289
« - Ri-te ou zanga-te; desoprime esse coração, mas ouve bem, sou eu que te falo, o gato escaldado, portanto tens o dever de o escutar. Há sete dias que te vejo andar para aí à volta do fogo de Deus, como uma borboleta noctívaga. Ora eu não quero que tu te queimes - tu, não é bem o termo -, a juventude. Tenho pena dessas faces ainda envoltas em penugem, desses lábios ainda não saciados de beijos e blasfémias, dessa alma ingénua que anda por toda a parte atrás do fogo a ver se se queima. Não, eu não permitirei que isso aconteça. Estás à beira do abismo, mas não te deixarei cair. -Mas de que abismo? -Do abismo de Deus.» Nikos Kazantzakis.Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 288
«Não passava de um bruto que jamais se cansava de comer, beber e de andar abraçado a mulheres. Vendera a alma ao Diabo e o corpo andava sem dono, à rédea solta; ria-me de Deus que, para mim, não passava dum espantalho bom para meter medo aos pássaros idiotas e impedi-los de ir debicar nos jardins.» Nikos Kazantzakis.Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 285
«A morte é obra de Deus; o ponto onde Deus toca no Homem. Mas a decadência é uma coisa infame e pérfida;» Nikos Kazantzakis.Carta a Greco. Trad. Armando Pereira da Silva e Armando da Silva Carvalho. Editora Ulisseia, Lisboa, p. 284/5
A mulher espera as noites e também os dias, esperta o lume enquanto, esperta a espera. Há umas quantas coisas que a prendem, coisas que arrecadou para a vida e já não servem. Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário pelos que já lá estão. Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida para o outro lado enquanto se esperam dias melhores, dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz e a noite cansada, os pensamentos cansados, o sofrimento cansado só quer estender o corpo até de manhã. Quando mal nunca pior, o café quente, o pão acabado de fazer como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas com que sonhou e já não servem. Agora só a espera e as coisas que foi arrecadando para a morte.
em Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto: Campo das Letras, 1ª edição, 2001, p. 14.
"Olha para mim, estou no céu / Tenho cicatrizes que não podem ser vistas / Olha para mim, estou em perigo / Já não tenho nada a perder.” David Bowie
"David Bowie était un personnage de Jean Cocteau, l'ange Heurtebise" Gilles Jacob.
''Porta no trinco e nada nas mãos. Há muito que é tudo o que resta.''
Tríptico encontrado nas grutas de Kabir-Dá ou o verdadeiro espaço da ficção
I
não mais será quem do dizer se afastou. uma breve camisa aberta por ser perto o verão um som antigo de cor macia a língua calada e a boca à espera. esse que dos olhos já refeito se aproximou saberá quantos os dentes e a boca para dizê-los e ainda quanto de exemplo têm valor as histórias ao ritmo do sangue outra a vida e os sentidos, únicos e rigorosos os bafejantes elos.
II
horas e horas serão a fio como os dias; as páginas sem cor dos jornais por consultar sobre a mesa ao fim da tarde ficam entre as linhas e os círculos impossíveis à sombra de cada esquina. com o sono a pé sobre os tempos que os fusos já não marcam limita-se a vida entre a morte e o que para ela já ocorre.
III
a luz é pouca e os gestos sombrios. sob os pés caem húmidos os passos e o corpo esquece, como se cair e não estar de pé fosse modo de travessia. de um sentido em desequilíbrio a destruição sublinha o sangue que se oferece mais fundo sob o vulcão em que se adensa a visita. os postais não dizem para os que ficaram lá em cima à porta das luzes onde é possível anunciar que se não dorme; vendidos porventura por dois moços com a fome e provavelmente encardidos, ninguém dirá como estão marcados de tudo quanto ficou por ser lá em baixo.
em Atlas Paralelo, Porto: Gota de Água/Imprensa Nacional Casa da Moeda, colecção Plural, 1984, pp. 13-15.
Carl Tanzler era um radiologista alemão que afirmava ter nove graduações universitárias, dizia ter sido um capitão de um submarino e um inventor. Pelo que se sabe hoje, ele era apenas um homem excêntrico que abandonou sua esposa e filhos na Alemanha para trabalhar noUnited States Marine Hospital, na Flórida (EUA), em 1927.
Depois de aceitar o emprego, Carl acabou conhecendo Maria Elena Milagro de Hoyos, uma jovem cubana de 21 anos que se tornou sua paciente. Dizem que, ao vê-la, o radiologista soube que se tratava da mulher dos seus sonhos - literalmente. Ele contou para todos os seus conhecidos que sonhava com uma moça muito parecida todas as noites e que ela estava destinada a ser o amor de sua vida.
Ao ser examinada, Maria Elena foi diagnosticada com tuberculose - o que, na época, era praticamente uma sentença de morte. Desesperado com a possibilidade de perder sua alma gêmea, Carl tirou (muito) dinheiro do próprio bolso para salvá-la. Ele administrava tônicos 'especiais' na paciente, comprou uma máquina de raio-X de forma ilegal para levar à casa de Elena e a cobria de presentes e de declarações amorosas.
Apesar dos esforços do alemão, Elena morreu no dia 25 de outubro de 1931. Tanzler insistiu em pagar por um mausoléu onde o corpo da moça seria sepultado e, com a aprovação da família da morta, contratou um agente funerário para tratar o corpo. Com isso, ele conseguiu uma chave para ter acesso ao mausoléu.
Durante dois anos, Tanzler visitava Elena todas as noites. Como seus hábitos começaram a causar desconfiança, ele foi demitido do hospital e parou de ir ao cemitério.
Mas isso não quer dizer que ele desistiu. Eventualmente, ele tirou o corpo de Elena do mausoléu e a colocou em um laboratório que ele construiu a partir da carcaça de um avião. Usando gesso, cera, fios e olhos de vidro, Tanzler transformou os restos mortais da moça e a levou para sua casa - especificamente para sua cama.
Durante anos, o radiologista preservou o corpo de sua amada estufando seu abdômen com trapos, colocando cabelo de verdade em seu crânio e a banhando em perfume e óleos aromáticos para disfarçar seu odor. Ele também comprava diferentes roupas para ela - o que começou a levantar suspeitas na cidade. O que um homem que morava sozinho fazia com tantas roupas femininas?
Em outubro de 1940, a irmã de Elena confrontou Tanzler - ele, eventualmente, permitiu sua entrada em casa. Lá, a mulher encontrou uma 'boneca de cera', sem suspeitar se tratar do corpo da irmã, e alertou as autoridades. Só após exames, policiais perceberam que era Elena.
Durante a autópsia, eles notaram que o radiologista havia inserido um tubo no canal vaginal da morta para preservar sua vagina - no entanto, não se sabe se teria havido penetração.
Tanzler foi preso e, surpreendentemente, ganhou até apoio público - pessoas o viam como um romântico. Em seu julgamento, ele confessou que pretendia usar um avião para levar Elena até a estratosfera onde a radiação penetraria seus tecidos e faria com que eles voltassem à vida.
O radiologista não ficou muito tempo na cadeia - afinal, muitos de seus crimes haviam sido prescritos - e viveu o resto da vida sem incidentes (apesar de ter pedido o corpo de Elena de volta, o que foi negado, e de ter mantido uma máscara similar ao rosto da moça junto de si até o fim de seus dias).
Após o caso ter ganho notoriedade, o corpo de Elena foi exposto ao público em uma casa funerária. Após a exposição ser fechada, ela foi enterrada em um túmulo sem nome, para que pudesse, finalmente, descansar em paz.
In the villa of ormen, in the villa of ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
On the day of execution, on the day of execution
Only women kneel and smile, ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, at the centre of it all
Your eyes, your eyes
Ah-ah-ah
Ah-ah-ah
In the villa of ormen, in the villa of ormen
Stands a solitary candle, ah-ah, ah-ah
In the centre of it all, in the centre of it all
Your eyes
Ah-ah-ah
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
How many times does an angel fall?
How many people lie instead of talking tall?
He trod on sacred ground, he cried loud into the crowd
(I’m a blackstar, I’m a blackstar, I’m not a gangster)
I can’t answer why (I’m a blackstar)
Just go with me (I’m not a filmstar)
I’m-a take you home (I’m a blackstar)
Take your passport and shoes (I’m not a popstar)
And your sedatives, boo (I’m a blackstar)
You’re a flash in the pan (I’m not a marvel star)
I’m the great I am (I’m a blackstar)
I’m a blackstar, way up, oh honey, I’ve got game
I see right so white, so open-heart it’s pain
I want eagles in my daydreams, diamonds in my eyes
(I’m a blackstar, I’m a blackstar)
Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I’m a blackstar, I’m a star star, I’m a blackstar)
I can’t answer why (I’m not a gangster)
But I can tell you how (I’m not a flam star)
We were born upside-down (I’m a star star)
Born the wrong way ‘round (I’m not a white star)
(I’m a blackstar, I’m not a gangster
I’m a blackstar, I’m a blackstar
I’m not a pornstar, I’m not a wandering star
I’m a blackstar, I’m a blackstar)
In the villa of ormen stands a solitary candle
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes
On the day of execution, only women kneel and smile
Ah-ah, ah-ah
At the centre of it all, your eyes, your eyes
Ah-ah-ah
«(...) ficaram a olhar para o lume, com o pensamento muito longe dali.» Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 124
«(...), e deitam pães à água com mercúrio dentro''
Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 123
«Isso serve para coisas insignificantes, principalmente quando se trata de raparigas, que sempre nos atraiçoam e falam de mais se se vêem aflitas.» Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 89
sábado, 9 de janeiro de 2016
«Durante quinze dias tinha-me encerrado no meu quarto, e rodeado dos livros em voga nesse tempo (há dezasseis ou dezassete anos); quer dizer, dos livros em que se tratava da arte de tornar os povos felizes, sábios e ricos, em vinte e quatro horas. Tinha então digerido –ou melhor, devorado – todas as lucubrações de todos esses empreiteiros da felicidade pública -, daqueles que aconselham a todos os pobres que se façam escravos, e daqueles que persuadem de que eles são todos reis destronados. – Não causará pois surpresa que eu me encontrasse então num estado de espírito vizinho da vertigem ou da estupidez. Parecia-me tão-somente que senti, confinado na âmago do meu intelecto, o germe obscuro duma ideia superior a todas as fórmulas de boa dona de casa de que eu tinha recentemente percorrido o dicionário. Mas não era mais que a ideia duma ideia, qualquer coisa de infinitamente vago. E saí com uma grande sede. Pois o gosto apaixonado das más leituras engendra uma proporcional necessidade de ar puro e refrescos. Quando ia a entrar num botequim, um mendigo estendeu-me chapéu, com um desses olhares inolvidáveis que derrubariam os tronos, se o espírito agitasse a matéria, e se os olhos dum magnetizador fizesse amadurecer as uvas. Ao mesmo tempo, ouvi uma voz que murmurava ao meu ouvido, uma voz que logo reconheci; era a um Anjo bom, ou dum bom Demónio, que me acompanha para toda a parte. Visto que Sócrates tinha o seu bom Demónio, porque não terei eu o meu bom Anjo, e porque não terei eu a honra, como Sócrates, de obter a minha licença de loucura, assinada pelo subtil Lélut e pelo sábio Baillarger? Existe uma diferença entre o Demónio de Sócrates e o meu: o de Sócrates só se lhe manifestava para defender, advertir, coibir; o meu digna-se aconselhar, sugerir, persuadir. Esse pobre Sócrates não tinha senão um Demónio proibitivo; o meu é um grande afirmador, o meu é um Demónio de acção, ou Demónio de combate. Ora a sua voz murmurava-me isto: "Só é igual a qualquer outro aquele que o prova, e só é digno da liberdade aquele que sabe conquistá-la." Imediatamente, saltei sobre o mendigo. Com um único soco esmurrei-lhe um olho que ficou, num segundo, do tamanho duma bola. Parti as unhas a esmurrar-lhe os dentes, e como não me sentia suficientemente forte, pois nasci delicado e tenho feito pouco boxe, para derrubar rapidamente esse velho, segurei-lhe com uma das mãos o colete do fato, e com a outra agarrei-lhe o pescoço, e sacudi-lhe violentamente a cabeça de encontro à parede. Devo acrescentar que tinha antecipadamente inspeccionado os arredores com um golpe de vista, e que tinha verificado que nesse lugar afastado e deserto me encontrava, havia já algum tempo, fora do alcance de qualquer agente da polícia. Tendo em seguida, com um pontapé dado nas costas e assaz enérgico para lhe partir as omoplatas, estendido por terra esse sexagenário enfraquecido, peguei num forte ramo de árvore que estava no chão, e bati-lhe com a energia obstinada dos cozinheiros que querem tornar tenro um bife. De repente – ó milagre! Ó alegria do filósofo que verifica a excelência da sua teoria! -, vi aquela antiga carcaça voltar-se, levantar-se com energia que eu nunca teria suspeitado numa máquina tão singularmente desarranjada, e, com um olhar de ódio que me pareceu de bom augúrio, o malandrim decrépito atirou-se a mim, socou-me os dois olhos, partiu-me quatro dentes, e com o mesmo ramo de árvore malhou em mim como em centeio verde. – Com a minha medicação enérgica, tinha-lhe assim restituído o orgulho e a vida. Então, eu fiz-lhe muitos sinais para lhe fazer compreender que considerava a discussão como finda, e levantando-me com a satisfação dum sofista do Pórtico, disse-lhe: "Senhor, sois o meu semelhante! Queira fazer-me a honra de partilhar comigo a minha bolsa; lembre-se, se é realmente filantropo, que é preciso aplicar a todos os seus confrades, quando eles lhe pedirem esmola, a teoria que eu tive a mágoa de experimentar nas suas costas." »
- Charles Baudelaire , "O Spleen de Paris" (trad. port. da relógio d’Água)
«Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor.»
-Mateus, 9,36
"partimos de noite como dois operários. Assim eu venho para a grande fractura frente ao palácio. A princesa repousa da sua casa, trago-lhe o direito ao abandono nela. É encarregado da obra e da palavra, amigo da bondade e da beleza, o meu cão."
"Primavera Autónoma das Estradas" - Mário Cesariny
"a vida é bela . comecemos primeiro: o maior descanso segundo: a maior liberdade terceiro: o tratar-se dos pés quarto: queimar"
-"Primavera Autónoma das Estradas" - Mário Cesariny
"como é possível construir? individualizar? escolher?; se o corpo é tudo, a morte e os outros factos da vida podem significar? sobre esta areia ambígua, areia ou terra? o teu nome,, Jan, é uma violência, como outro nome qualquer; não sou chamado nem chamo, quando muito ressoam os movimentos dos lábios e das narinas,respirando; o barco de longe cumpre-se como espessura maior, tentativa para atingir o rígido perfil de um barco? ou uma ilha? uma dessas sombras que fizeram delirar os navegadores equivocados da minha pátria? Jan, Jan, se quantas mortes morto? deste tempo e dia? de uma chuva extemporânea? do pulsar dos musgos? de que inverno antecipado?"
O MUNDO INTEIRO António Hernández Tradução de Inês Dias Língua Morta (2012)
«Mas eu sentia-me já apaixonado pela caça aos pássaros. Era uma tarefa que me agradava, me deixava independente e não fazia mal a ninguém, senão às pequenas aves. Comprei um bom material, e a conversa com velhos passarinheiros ensinou-me bastante. Ia sozinho para a caça, andava quase trinta verstas em redor, pela floresta de Kstovo, sobre as margens do Volga, onde encontrava os melharucos de Apolo, pequenos pássaros brancos, de comprida cauda e rara beleza, bastante apreciados pelos amadores.»
Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 183
Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 182
«Sente-se alegre na Primavera e, com a aproximação do Inverno, o seu gentil namorado abandonou-a, sem dúvida por troca com outra, e então o seu coração dolorido sofre.» Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 182
«Arranquem-me o meu coração e tomem-no E enterrem-no no meio da neve branca!...» Maximo Gorki.Ganhando o meu pão. Obras completas. Editorial Início. 1970., p. 182
«Tivera as melhores intenções e fora tratado como um cão - um verdadeiro cão. Mas ela havia de se arrepender um dia, talvez quando já fosse tarde de mais. Se ele ao menos pudesse morrer «temporariamente»!
Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 72
« - Oh! Tom! Então não é a primeira vez que estás noivo?
Vendo-a chorar, Tom desculpou-se:
-Não te apoquentes, Becky! Eu já não gosto dela.
-Gostas, gostas. Sabes perfeitamente que sim, Tom.
O rapaz tentou passar-lhe o braço em volta do pescoço, mas ela empurrou-o e, virando a cara para a parede, continuou a chorar. Tom tentou de novo, dizendo-lhe palavras meigas, mas continuou a ser repelido. Então, cedendo ao seu orgulho, muito mal disposto, olhando para a porta de vez em quando, à espera de que se arrependesse e fosse ter com ele. Não a vendo aparecer, pensou que podia ser injusto, e teve vontade de fazer nova tentativa de paz. Decidiu e entrou. Becky estava ainda sentada ao canto, a soluçar, de cara para a parede. Tom aproximou-se dela e ficou um instante com o coração confrangido, sem saber o que fazer, até que disse:
-Becky, não me dizes nada?
Mais soluços.
Tom tirou do bolso a sua melhor jóia, a maçaneta de metal de uma tenaz, e passou-a em volta dela para que a visse, dizendo:
-Não queres aceitar isto, Becky?
Ela atirou o presente para ao chão e Tom saiu da escola no propósito de lá não tornar naquele dia.
Pouco depois, Becky suspeitou da sua intenção. Correu à porta, mas não o viu. Deu a volta ao pátio e, quando se convenceu de que não estava ali, chamou:
-Tom! Vem, Tom!
Escutou atentamente, mas não teve resposta. À sua roda tudo era silêncio e solidão. Arrependida do que tinha feito, sentou-se e continuou a chorar, mas nessa altura já os outros alunos estavam de volta. Teve de esconder o seu desgosto e calar os lamentos do seu coração, carregado com a cruz de uma triste e longa tarde entre estranhos, sem ninguém com quem desabafar a sua tristeza.»
Mark Twain.As Aventuras de Tom Sawyer. Círculo de Leitores., p. 68/9
«O diabo hoje é o impreciso. Por diabo entendo a negatividade sem resgate, de que não pode vir nenhum bem. Nos discursos imprecisos, na genericidade, na vagueza de pensamento e de linguagem, especialmente se acompanhados de bazófia e de petulância, podemos reconhecer o diabo como inimigo da clareza, tanto interior como nas relações com os outros, o diabo como personificação da mistificação e da automistificação. Falo do impreciso, não do complicado; quando as coisas não são simples, não são claras, pretender a clareza e a simplificação a todo o custo é facilitismo, e é exactamente esta pretensão que obriga os discursos a tornarem-se vagos, ou seja, mentirosos. Em contrapartida o esforço de tentar pensar e exprimir-se com a máxima precisão possível justamente perante as coisas mais complexas é o único comportamento útil e honesto. Conseguir definir as suas próprias dúvidas é muito mais concreto do que qualquer afirmação peremptória cujos fundamentos assentem no vazio, na repetição de palavras cujo significado se gastou devido ao excesso de uso.»
(Italo Calvino, excerto de «Notas sobre a linguagem política», in 'Ponto Final, Escritos sobre Literatura e Sociedade', tradução de José Colaço Barreiros,Teorema Editora, 2003)
Um poema de Ana Duarte
A Minha Saia
A minha saia é debruada de dentes brancos — saia rodada com pregas e esconderijos que se abrem sobre os precipícios da infância
É uma saia alta como janelas remendada pelas mãos cuidadosas dos amantes
Debaixo da minha saia há uma caixa com botões e olhos que encontrei no leito seco dos caminhos há um girassol que me aquece o farelo e o sal dos ossos há uma colmeia e o crescente negro da sombra a roçar os joelhos
Há o riso dos velhos
Som de cordas, velas de moinho, fábulas e exércitos balançam dentro da minha saia quando danço
Debaixo da minha saia há também casas onde recolho o vento, e delas se avista o pescoço curvo de dois bois mansos alisando o pasto
Rodo o corpo e a minha saia aponta para o sul baixo-a para desenhar círculos na poeira ergo-a para atravessar o rio na hora em que a maré sobe sobe sobe sobe
em Criatura, nº 6, Lisboa: Núcleo Autónomo Calíope da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Novembro de 2011, pp. 9-10.
A conversa é sobre quem somos e o que queremos. Não devíamos brincar assim com facas. De onde vêm estes homens? Por que fazem estes gestos?
Às vezes a vida é uma dança estruturada. Tipos que nos deixam aproximar um pouco mais cada dia que passa. Nunca sabemos qual deles se vai abaixo a seguir. E onde.
Enquanto a dança vai e vem, escondemos o medo com isto: fragmentos das nossas memórias, energia fornecida à tempestade, o cheiro a tabaco retardado.
em Mar Largo, Lisboa: &etc, 2009, p. 18.
Um poema de Wu Ki
O cavalo sedento bebe de qualquer água, o pássaro faminto come de qualquer grão. Ao homem novo e forte que a miséria acossa, que outra cousa lhe resta senão tornar-se bandido?
em Mesa de Amigos, versões de poesia por Pedro da Silveira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 35.
Gostaria de descrever uma emoção simples como alegria ou tristeza mas não como os outros fazem socorrendo-se de restos de chuva ou sol
Gostaria de descrever uma luz que começa a nascer em mim mas que sei não se assemelhar a alguma estrela pois não é tão brilhante nem tão pura e é incerta
Gostaria de descrever coragem sem arrastar atrás de mim um velho leão e também ansiedade sem entornar um copo de água
para dizê-lo de outra maneira desistiria de todas as metáforas em troca de uma palavra retirada do meu peito como uma costela uma palavra nascida dentro das fronteiras da minha pele
mas aparentemente isso não é possível
e só para dizer – amo eu ando às voltas como um louco à procura de mãos cheias de pássaros e a minha ternura que apesar de tudo não é feita de água pede água para a cara
e a raiva diferente do fogo pede-lhe emprestado o tom eloquente
está tudo obscuro está tudo obscuro em mim que homem de cabelo grisalho irá separar de uma vez por todas dizendo isto é a essência e isto é a matéria
adormecemos com uma mão debaixo das nossas cabeças e com a outra em inúmeros planetas
os nossos pés abandonam-nos e entram na terra com as suas pequenas raízes que na manhã seguinte arrancamos com dor
Zbigniew Herbert, «I would like to describe», em The Collected Poems: 1956-1998, Ecco: 2007. versão de manuel a. domingos