sábado, 17 de agosto de 2024
Canícula
Fonte: https://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
''Daniel Jonas , o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa''
Fonte: https://observador.pt/2017/04/20/daniel-jonas-o-antiquado-que-e-o-mais-alto-da-poesia-portuguesa/
Bater-se sempre à mesma porta que era antes.
Nem sei por vezes o que sinto. É um pavor
que vem de dentro, inodoro gás
do centro que se insinua indistinto,
e dura a vigília que me dura
e já nem sei o que velo eu por vezes,
que velo já cansaço e só olvido.
Tudo é triste mesmo quando não é.
O fim do Verão é triste se no meio,
e no princípio então não dura nada.
A cada fim de tarde na volta da praia
há um princípio de dia e de tarde sem volta
levado como um barco no horizonte argiloso
para o adro onde se enterram os dias.
O que foi feliz foi-o sob alguma sombra
e cada onda ensombra outra onda
e o tombo que déramos era o último que daríamos
e o riso o último antes do choro.
Eu olho a chuva e ela é triste.
É tudo triste em vez de só ser.»
«É preciso beber pela alma. Como as rosas.»
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 29
Às vezes tudo é triste, mesmo o que não é.
Fingir-se estar com gente em frente à gente que não nos vê
e assobiar a solidão para o lado,
para aquela mesa além.
E quando a solidão se vai mais solidão se tem.
É fruste crer-se grande e ter de grande
um pouco, um tanto, um pouco mais,
levar com a raiva dos pequenos
e compartir com os magros a magreza do mundo.
Ao pé do rio tudo é mais tristonho.
É tudo entediante por princípio.
O fátuo mundo passa como se soubesse aonde vai
e todo o mundo crê caber algures
e ir aonde caiba e lhe cabe.
Fria é sempre a sopa dos pobres.
Sofrer por passatempo a vida de outros
e querer poupar-se as costas
onde se escreve ao escravo a pena de chicote
aquilo que não se lê mas se sente
e assim passar por outro
o que afinal de si não passa
o centro de onde há o tudo o que não há
e assumir que tudo é senhor da sua alma.
Que ilusão aliviar o jugo alheio
o próprio corpo levado às próprias costas!
« que mínima gente vem por aí à volta e aperta aperta
que nem se pode respirar,
gente que não precisa de oxigénio nem pensamento,
nem de uma só palavra que brilhe
que vá ao fundo da luva como a mão presta,
grande parte do povo não usa mão nenhuma
nem guarda nada de cabeça.»
penso um pensamento cobarde:
que eu morra durante o sono »
'' a fé, a coisa cega''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 15
«Não sei se escreva antes uns poemas que pràqui tenho
num canto da cabeça,»
''sôbolos rios que vão desaguando nas trevas,''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 13
'' o objecto na luz dos dias imperecíveis''
Herberto Helder. Letra Aberta. Poemas inéditos escolhidos por Olga Lima. Porto Editora, 2016., p. 10
''escrita sincopada''
ouço a tua escrita sincopada, e é perfeita. Teus terminais
de asas tocam o teclado e nada é pobre, feio, errado.»
IDADE DO BRONZE
falavam verdade - Antigamente, muito antigamente
Deus calçava os tamancos no meio dos campos
e fazia a sua justiça.
O mal , se acontecia, vinha para bem fazer.
O bem, por recompensa. O enforcado tinha cedido ao aceno
do demónio e a mulher parida, se morria entre dores aflitivas
era por não ter rezado - Nessa malha de justiça
a vida era perfeita.
Deus retirava o seu calçado, munia-se de trovões
e arremetia directamente contra os que diziam puros
mas não praticavam a misericórdia devida.
Por mau olhado, valia arrancar olhos e fígado.
O céu sabia tudo.
Agora estamos mal - dizem alguns.
Homens de todas as cidades levantam-se do chão
calçam e descalçam os tamancos e imitam o antigo Deus
na perfeição, riem alto. O céu não sabe de nada.
Estamos sós.
«Às aves nada temos para lhes ensinar.»
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 17
''revelar o lugar dos ninhos.''
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 16
as escamas, formavam-se nuvens de todas as cores.
Vinham os vendavais e faziam a cama às gaivotas.
Desses ovos nasciam pássaros desajeitados
que afagávamos entre as nossas mãos.''
Lídia Jorge. O Livro das Tréguas. Poesia. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 2019.,p. 14
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
Tudo é triste mesmo o que é feliz.
«Tudo é triste mesmo o que é feliz.
Todas as coisas evocam um fracasso de outra coisa.
Tudo o que há é como se não houvesse sido ainda.
Tome-se como exemplo os dias de Verão
que o cerce vento barbeia,
a vaga percussão inútil
no vazio desamparado das piscinas»
Domingo a tarde - 1965
«É isto um homem ou um calafrio?»
Daniel Jonas. Cães de Chuva. Assírio & Alvim, Porto Editora.2021 , p. 18
BREVE MANUAL PARA JARDINEIROS INQUIETOS
jardins onde as valsas não sobrevivem
e pessoas onde as flores não germinem.
Rui Xerez de Sousa
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
Cinema Japonês
Os primeiros filmes de 1960, e suas respectivas datas de estreia, de cada um dos seis cineastas que integram a Shôchiku Nûberu bâgu
''(...) produtividade da indústria japonesa, apenas no ano de 1960, seis cineastas diferentes filmaram, só nesse ano, 11 filmes que instauraram a linha Nûberu bâgu da Shôchiku: Osamu Takahashi jogando com as convenções do género policial com Kanojo dake ga shitte iru (Only She Knows, 1960) e Shisha to no kekkon (Marriage with the Dead, 1960); Nagisa Ôshima com os explosivos Seishun zankoku monogatari (Contos Cruéis da Juventude, 1960), Taiyô no hakaba (The Sun’s Burial, 1960) e Nihon no yoru to kiri (Noite e Nevoeiro no Japão, 1960); Kijû Yoshida com os escalpelizantes exercícios de desencanto social Rokudenashi (Good-for-Nothing, 1960) e Chi wa kawaiteru (Blood is Dry, 1960); Masahiro Shinoda com os heterogéneos Koi no katamichi kippu (One Way Ticket to Love, 1960) e Kawaita mizûmi (Dry Lake, 1960); Tsutomu Tamura com o seu niilista e claustrofóbico Akunin shigan (Volunteering for Villainy, 1960) e, finalmente, Eitarô Morikawa com A Tragédia do Bushidô, estreado no penúltimo mês do ano e o último filme da linha.''
Fonte: https://apaladewalsh.com/2023/10/a-tragedia-do-bushido-estetica-da-crueldade/
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
ONATA DE OUTONO (1978)
ONATA DE OUTONO (1978), um dueto entre duas grandes atrizes, Ingrid Bergman e Liv Ullmann, inesquecível na cena da noite em que se enfrentam filmadas por Ingmar Bergman, “porque os rostos nunca foram tão alma, nunca se escavou tão dentro das pessoas” (João Bénard da Costa)
La fontaine de sang
Au rythme de son cœur
Coule et donne à boire
À des bouches au hasard
Des amis, des amants
Viennent boire impunément
Des gorgées de son sang
Gastrolâtres et gourmands
Viendront dévaliser
La fontaine de sang
Gastrolâtres et gourmands
Viendront dévaliser toute
La fontaine de sang
Sa fontaine de sang
La fontaine de sang
Sa fontaine
Est gobée librement
L'insatiable parent
A tué ses enfants
Retrouvera la vie
Une fois que ses ennemis
Ne seront plus de son temps
quinta-feira, 8 de agosto de 2024
Mojo Pin
Oh-oh, ah-ah, ah-ah
Uh, uh-uh, uh, uh
Oh-oh, uh-uh
The blanket is warm
This body will never be safe from harm
Still feel your hair, black ribbons of coal
Touch my skin to keep me whole
If you laid at my side
Wouldn't need no mojo pin
To keep me satisfied
Don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so
And pearls in oyster's flesh
Drop down we two to serve and pray to love
Born again from the rhythm
Screaming down from heaven
Ageless, ageless, I'm there in your arms
I don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so
So, so, so
So
Send whips of opinion down my back, give me more
Well it's you I've waited my life to see
It's you I've searched so hard for
Don't want to know
I'm blind and tortured, the white horses flow
The memories fire
The rhythms fall slow
Black beauty, I love you so, so
Black, black, black beauty
segunda-feira, 5 de agosto de 2024
« - ele há de facto pessoas muito estranhas, diz a Rosa;
ele alguma coisa fez! traz decerto na consciência...
-então, e a rapariga ... - rapariga é só um dizer!
- algum conselho de médico;
- capaz...
sim, ele de resto parece que nem come, todos ao
domingo de fartos de o convidar, mas ele
ao domingo até sai, e na ilha festa com o cabrito!
aonde vai ninguém sabe; também não interessa,
interessam questões sadias, que idade terá ele?»
Alberto Pimenta. Ilhíada. Edições do Saguão., p. 78
''El que no ve la belleza está condenado a destruirla.»
“O que há de bom em uma pintura nunca é pintado.”
«Quem não vê a beleza está condenado a destruí-la. A beleza não é o que acreditam aqueles para quem não é algo vital. Quem não vê não sente falta e confunde. Quem não vê, irá destruí-lo sem saber o que é.»
Golucho, pintor espanõl
And the times never right when you’re losing a soul
The summer breeze, the days were long
Meadow haze so callowly, those child eyes
I used to feel the feelings
Love that I once said I’d never rile
The burden of life… just won’t leave us alone
And the times never right… when your trading the sun
All the love of generations
Generations gone for reasons, that I know
But all the times I’ve lost my way
Crept inside, tried not to sway
Like pebbles on the shore
The burden of life… just won’t leave us alone
And the times never right… when we’re trading the sun
So all the fire, the fear, the why
The wisdom why you want it now
No Answers… are there
No Answers… of why
Cos the burden of life just won’t leave us alone
And the times never right when you’re losing a soul
Burden Of Life
Canção de Beth Gibbons
domingo, 4 de agosto de 2024
sábado, 3 de agosto de 2024
''Eu não via mais minha mãe. A trança ainda queimava. O quarto estava cheio de fumaça. Eles mataram você, disse minha mãe. Nós não nos enxergávamos mais de tanta fumaça que havia no quarto. Eu ouvia seus passos perto de mim. Tateava por ela com os braços esticados. De repente ela enganchou sua mão magra em meu cabelo. Sacudia minha cabeça. Eu gritava. Arregalei os olhos. O quarto girava. Eu estava deitada numa esfera de flores brancas despetaladas e estava presa. Então tive a sensação de que a casa caía e se esfarelava no chão. O despertador tocou. Era sábado de manhã, cinco e meia.''
“Eu não posso colocar a minha cabeça em um cofre, preciso continuar vivendo com isso. Vivi mais de trinta anos em uma ditadura, não vou poder separar totalmente todas as coisas do círculo problemático que trouxe comigo. E isto provavelmente não mudará apesar de viver agora no ocidente, pois experiências se acumulam e aprender é relacionar uma coisa com outra”
Herta Müller
“Aquilo que levianamente se denomina história também era para cada um da minha família, desde o nazismo, passando pelos anos 1950, o lado noturno da garganta. Cada um deles foi convocado pela história, tinha de alistar-se junto à história como vilão ou como vítima. E da dispensa da história nenhum deles saiu incólume. Meu pai anestesiava seu tempo como soldado da SS na bebedeira. Minha mãe se debatia com a careca morta de fome que ela fora como deportada, minha avó venerava a mala do acordeão, meu avô não largava seus blocos de recibos. Em cada um deles colidiam coisas na cabeça que jamais deveriam encontrar-se. Só fui realmente compreender como esses meus familiares se ressentiam desses danos quando eu mesma havia topado com a falta de saída. Só então eu sabia que com um assalto profundo demais todos os nervos ficam sobrecarregados para sempre. Que essa sobrecarga se afirma nos dias posteriores, que até mesmo recorre ao tempo anterior a ela. Ela não muda somente as coisas posteriores, mas também as anteriores que não teriam nada a ver com a fenda na vida, caso não houvesse a fenda. Tudo é magnetizado por essa ruptura, na cabeça toda e na vida toda nada mais se separa dela. O que havia antes da fenda se apresenta depois como se já tivesse estado aí escondido e por isso não fora reconhecido, já então um prenúncio inequívoco da perda posterior, um prólogo levianamente ignorado.''
(Herta Müller. Se nos calamos, tornamo-nos incômodos- se falamos, tornamo-nos ridículos. In: O rei se inclina e mata, p.99-100)
quarta-feira, 31 de julho de 2024
''O tédio esmagava-a na solidão.''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 49
«O sono para ela era cair fulminada pelo excesso e pela fadiga. Apenas acordava, tudo lhe era hostil em redor. Os móveis do quarto, o vestido que despira ao deitar e que ficara metade no chão e metade na cadeira, os sapatos distantes um do outro, o chapéu na maçaneta da cama, as recordações da véspera, o sol a querer por força entrar pelas frinchas, o movimento da cidade que se ouvia lá fora, o dinheiro espalhado no mármore do toilette, o estômago, a bronquite, tudo, tudo contra ela, tudo lhe gritava, a uma, a mesma palavra: Guerra!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 48«Ele tinha deixado passar a vez natural de todas as suas idades. Não foi criança na idade de ser criança, não foi selvagem na idade de ser selvagem, não foi violento na idade de ser violento, não errou em todas as idades de errar, por culpa da sua educação em que o quiseram levar a bom fim, mas na qual ficou, afinal, encalhado a meio da vida!»
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 45''Havia uma grande lacuna na sua vida, e sentia-se apartado do resto do mundo, como se tivesse crescido a maré e ele ficasse no mar em cima de um rochedo sem ligação com a terra. Ele estava efectivamente na idade de juntar-se. Ia muito seguro no que pensava e bem atento, por isso soube agarrar uma ideia feliz que lhe veio de repente:
- A mulher!''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 39
O Antunes decidia fazer convergir todos os seus passos num único fito: a escolha da sua companheira. O motivo desta resolução estava na lembrança do que era a sua vida ultimamente, sem progresso, sem explicação, parada, inútil, nula. A causa desta estagnação era a falta de uma companheira. ''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38/9
''Entre ele e a mulher nua e a sua educação punha uma distância que não era destruída pelo desejo da carne. A sua educação obriga-o a uma posição vertical, com os braços bem juntos ao corpo, a cabeça direita e os olhos em frente, para ser um homem diferente de um animal!''
José Almada Negreiros. Nome de Guerra. Livros RTP. Editorial Verbo. p. 38
Estou desejosa de que chegue Novembro, os dias de chuva, a geada, tudo que não seja este Verão interminável.
Frederico García Lorca. A Casa de Bernarda Alba. Publicações Europa-América, Lisboa, p. 83
''piranhas-metálicas''
Natália Correia. Antologia Poética. Organização, selecção e prefácio Fernando Pinto do Amaral. 4ª Edição. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2019., p. 194
Colour Grey Poem by Herta Müller
1.
I grow time, beans, the colour gray
And stitch the shadows of a dying day
They make a woman, rather a girl
Lost in the ocean like a grain of pearl
The swans of Coole fly over me
Will they rest for a while by me!
Maybe it's my turn now.
Deep in the frost where my eyes shall never go
The leopard will print his paw
And with a sudden leap break free
All the chimes of poetry
Maybe it's my turn now.
The rough beast was never born
Though we devised a cage for his morn
Maybe it's my turn now.
I have a tale to tell I shall also ring the bell
When you start believing
When you start hearing
Maybe it's my turn now.
2.
These days I don't think of you
But after the soot covers me
I begin to wonder where those
Evenings have gone, those wanderings
In the spacious lawns of enchantment
That smacked of no design, though
We were bent on making a sense
The early birds get their worms
I lie in the tireless ticking of my old watch
Counting the bits of frozen blood,
Listening to the worms
That are in all of us
Then I begin to crawl towards the womb
That threw me off a long way back
And look for the dark, the black hole
To suck me up.
3.
I was nice to him
He was nice to me
Only
Our doors, our windows
Kept closed
Lest we smell each other.
Translated into English by Roger Woodhouse
CORO DOS ÓRFÃOS
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Deceparam nosso ramo
E lançaram-no ao fogo –
Transformaram em lenha quem nos protegia –
Nós, órfãos, jazemos nos campos da solidão.
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Na noite nossos pais brincam conosco de esconde-esconde –
Por detrás das negras dobras da noite
Fitam-nos seus rostos,
Falam suas bocas:
Fomos lenha seca na mão de um lenhador –
Mas nossos olhos tornaram-se olhos de anjos
E olham para vós,
Por entre as negras dobras da noite
Eles olham –
Nós, órfãos,
Queixamo-nos do mundo:
Pedras tornaram-se nosso brinquedo,
Pedras têm rostos, rostos de pai e mãe,
Não murcham como flores, não mordem como bichos –
E não ardem como lenha seca quando lançadas no forno –
Nós, órfãos, queixamo-nos do mundo:
Mundo por que nos tiraste as ternas mães
E os pais que dizem: Tu te pareces comigo!
Nós, órfãos, não nos parecemos com ninguém mais no mundo!
Ó Mundo,
Nós te acusamos!
EM MEU QUARTO
Em meu quarto,
onde fica minha cama
uma mesa uma cadeira
o fogão
o universo está ajoelhado como em toda parte
para ser salvo
da invisibilidade –
Eu traço uma linha
escrevo o alfabeto
pinto o lema suicida na parede
de onde brotam imediatamente os renascimentos
já prendo as constelações à verdade
então a terra começa a martelar
a noite se afrouxa
desprende-se
dente morto da dentadura –
A VÓS, QUE CONSTRUÍS A NOVA MORADA
Há pedras como almas.
Rabbi Nachman
Fogão, catre, mesa e cadeira –
Não os enfeites com tuas lágrimas, os que partiram
Que não mais habitarão contigo
Na pedra
Nem na madeira –
Senão haverá choro no teu sono
No curto sono que ainda tens de dormir.
Não suspires ao estenderes teu lençol –
Senão misturam-se teus sonhos
Com o suor dos mortos.
Ah, paredes e utensílios
São sensíveis como harpas eólicas
E como um campo onde viceja tua dor,
E sentem o que em ti é parente do pó.
Constrói enquanto escorre a clepsidra
Mas não chores os minutos que correm
Junto com o pó
Que encobre a luz.
Façanhas da memória
Há uma casa,
uma casa
que fechou
suas portas.
Foi
morrendo
em nome
e graça
da mesmíssima
vida.
Esta casa
abandonou
o salão
solenemente,
sem deixar
fotografias,
nem fantasmas
cochilando
por aí
pelas escadas;
nem sequer
um resplendor
de vozes
se gestando
nos quartos
de serviço
ofendidas na sombra
chorando
seu direito
à memória
Esta casa
onde não há
antepassados
escalando
o tempo,
enredando
parentes
terra
adentro
onde vão se
s o m a n d o.
Tardança
Foram juntando
palavras intencionadas
uma
a
uma
iam entrando
pela fissura da porta
onde aparecem cartas
algumas vezes
quando a casa
está
desabitada.
Teresa Calderón (Causas perdidas, 1984)
Exílio
I.
Ontem te chamei
e minha própria sombra
respondeu no telefone
II.
Adeus eu disse docemente
e a rua cresceu cresceu
como a noite
III.
Seu corpo luta na parede.
Meu quarto
não pode te deixar ir
sem me ferir
IV.
Fantasma tresnoitado do amanhecer
cantando seu próprio tango
de pé chorando
sobre o balcão de uma mulher
também fantasma.
Roteiro dos desaparecidos
Reconstruir a luz para os que nunca mais a verão
a luz que nasce deles
asilada luz permanecente no
sótão da visão
desaparecida
riscada
é o roteiro reconstituído dessa morte
não de todo vivida
porque volta inconclusa a aparecer
a vigiar a vida de longe.
Roteiro do pensamento invertido na faceta subliminar
à margem de qualquer quimera subvertida
Roteiro desse sótão e sua persistência
escura
quando a cidade virada em seu próprio ofertório
se converte em santuário
Onde emergem os mortos resplandecentes
Pelo brilho ameaçante dos cactos
seus olhos veem os vivos lascivamente.
Mas há mais: eles colocam grandes placas de vidro
opacas
para resistir ao cruzamento dos edifícios
sem defesa.
Desafiando a cor do sol
com seu penetrante verde subterrâneo
inundam a cidade.
Cresce então sua antiga primavera
na qual os vivos submergem como num sonho
implacável.
Eugenia Brito (Vía pública, 1984)