quinta-feira, 1 de janeiro de 2015
(Relâmpagos violentos, trovões de fazer tremer as paredes)
e um relâmpago rachou a velha pedra
entre a estátua e a sua espada,
entrando pela pedra dentro,
arrastando-me com ele
para a longínqua loucura
dum profundo amor nocturno,
para o sonho onde entrei
naquela única vez
e do qual não regressei
nem sei se regressarei.
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 137
«Para mal dos meus pecados,
sou daquelas que sofrem
de cada vez que tocam
ou lhes tocam
nas chagas do passado.
Quem como eu
sofreu tanto em pequena,
tarde ou nunca se endireita.
Mas enquanto aqui estiver
sou obrigada a disfarçar,
a fingir que não é nada comigo,
a não dar parte de fraca.»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 125
domingo, 28 de dezembro de 2014
«(Sai devagar sem dizer nada a André, enquanto a luz perde intensidade e um distante crepitar do incêndio aumenta, com gritos entrecortados pelo estalar das labaredas, por golpes de machado, pelo estrondo de troncos derrubados, por frases soltas de gente em luta contra o fogo; André, sozinho e com ar adoentado ou deprimido, senta-se numa cadeira em cujas costas encosta a cabeça; quando os ruídos de fogo e da luta contra ele diminuem, fecha os olhos durante uma pausa mais ou menos longa.»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 110
MARINA
Até parece
que foge de me encarar,
e eu pràqui fico
fechada nesta casa,
neste cheiro a decadência,
a bolachas há muito abandonadas em armários,
a compotas azedas e maçãs poentas,
doces borolentos,
reposteiros comidos pela traça,
alcatifas, arcas, corredores
imensos e carpetes gastas,
quartos abobadados e alcovas baixas,
crucifixos,
quadros escuros sem cor,
de molduras esfoladas...
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 109
Até parece
que foge de me encarar,
e eu pràqui fico
fechada nesta casa,
neste cheiro a decadência,
a bolachas há muito abandonadas em armários,
a compotas azedas e maçãs poentas,
doces borolentos,
reposteiros comidos pela traça,
alcatifas, arcas, corredores
imensos e carpetes gastas,
quartos abobadados e alcovas baixas,
crucifixos,
quadros escuros sem cor,
de molduras esfoladas...
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 109
(Arminda, como se nem desse pela saída de André, termina o relato olhando o público, como se não falasse para ninguém)
ARMINDA
Quando sonhei
Já Samuel partira
sem me dizer para onde ia,
e ali me deixou
alagada em abandono e solidão,
seminua entre caóticos lençóis,
o sol lá fora alto
depois dessa noite de álcool
em que o meu desespero acumulado
extravasara.
Durante dias, ainda
me perseguiu uma distante,
fosca,
tremente
e fugidia
imagem,
a face de Samuel fixando-me atenta
e calada na difusa luz do quarto.»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 99
« ANDRÉ (atrás dela)
E se me deixasses dar-te
o meu beijo matinal?
PIEDADE
Tenha juízo, menino.
ANDRÉ
Sonhei esta noite contigo.
PIEDADE
O menino é um felizardo,
que eu nem tenho tempo
para sonhar.
ANDRÉ
Os sonhos não têm
nada que ver com o tempo,
têm que ver mas é
com os nossos desejos.»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 86
Textos Dramáticos
Peças de Regina Guimarães e Saguenail em parceria:
ÍSIS TRISTE, 1992
editado e levado à cena pela CTB em 1996
http://issuu.com/helastre/docs/__sis_triste/1
quinta-feira, 25 de dezembro de 2014
«FILIPE - A minha mulher não perde nunca uma ocasião de me colocar mal.
A CONSCIÊNCIA DE FILIPE - Não reparaste que envelheceu de repente, como se a asa da morte a tivesse tocado?
FILIPE - Sempre foi uma histérica, uma exagerada que já teve de ser internada duas vezes.»
Fernanda de Castro. A espada de Cristal. Edição da Sociedade Portuguesa de Autores. 1ª edição, Lisboa, 1990., p. 60
«PAULA - Ah, não, desta vez não conseguirás intimidar-me!
A CONSCIÊNCIA DE PAULA - Porque tremes então? Estás pálida, exausta, envelheceste desde ontem.
PAULA - Admiras-te? Nunca me deste um momento de liberdade, detestas que seja feliz!
A CONSCIÊNCIA DE PAULA - Chamas felicidade a essa inquietação, a esse mal estar, a essa espécie de desejo triste?
PAULA - Gosto dele e ele gosta de mim.
A CONSCIÊNCIA DE PAULA - Bem sabes que não é bastante.
PAULA - Talvez, mas estava farta, farta de silêncio e de solidão!
A CONSCIÊNCIA DE PAULA - Saiste de casa sem dizer uma palavra, sem deixar, sequer, duas linhas a despedir-te.
PAULA - A despedir-me de quem? A quem tenho de dar satisfações?
A CONSCIÊNCIA DE PAULA - A mim, pelo menos.»
Fernanda de Castro. A espada de Cristal. Edição da Sociedade Portuguesa de Autores. 1ª edição, Lisboa, 1990., p. 44/5
«FILIPE - Imaginei-te tanto, sonhei-te tanto, que não te realizo ainda na terra, mas no espaço, como um pássaro no céu...E tenho medo que as asas te cresçam e que fujas da gaiola, de todas as gaiolas...
PAULA - Não tenho asas, meu pobre Filipe...Se fugir é a pé, que é como quem diz de comboio ou de camionete.
FILIPE - (apertando-a nos braços e beijando-a) Vês como é bom rir, dizer tolices?»
Fernanda de Castro. A espada de Cristal. Edição da Sociedade Portuguesa de Autores. 1ª edição, Lisboa, 1990., p. 39/40
«PAULA - Tenho medo, Filipe...medo de acordar amanhã com mais uma amargura, mais uma repugnância, e náusea de ti e de mim...Já não sei o que digo, tudo se confunde na minha pobre cabeça. Perdoa, mas nada posso contra esta horrível sensação...Tenho medo, medo da noite, medo do silêncio, medo das sombras...
FILPE - (pegando-lhe na mão e levando-a como uma criança) Vamos, amanhã já não haverá sombras.»
Fernanda de Castro. A espada de Cristal. Edição da Sociedade Portuguesa de Autores. 1ª edição, Lisboa, 1990., p. 26
terça-feira, 23 de dezembro de 2014
«Mas contar acalma a alma,
limpa os enconsos da casa,
arruma o disforme e o amargo,
o doentio, o perturbado
pela memória da morte que me assalta
até que reparo numa porta entreaberta,
gente passa, não pára, quero entrar,
escancaro a porta com raiva
e é o que eu esperava, é ela
que me aguardava, oferta fácil, ela
na cama obscenadamente aberta, e contudo
que desilusão ou desespero
me entram na pele
e me agoniam? Que vasca, que terror, que
tédio?
Dispo-me, e ela pede que a mão magoe,
parece fatigada, ferida no sexo,
(...)»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 36/7
limpa os enconsos da casa,
arruma o disforme e o amargo,
o doentio, o perturbado
pela memória da morte que me assalta
até que reparo numa porta entreaberta,
gente passa, não pára, quero entrar,
escancaro a porta com raiva
e é o que eu esperava, é ela
que me aguardava, oferta fácil, ela
na cama obscenadamente aberta, e contudo
que desilusão ou desespero
me entram na pele
e me agoniam? Que vasca, que terror, que
tédio?
Dispo-me, e ela pede que a mão magoe,
parece fatigada, ferida no sexo,
(...)»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 36/7
«tu tornaste palpável toda a tua ambição,
por isso foste forte até bem velho
e de repente,
ao subires as escadas nesse teu firme passo,
tiveste uma tontura e um desmaio
e, por um raivoso desconsolo no olhar
quando as palavras te faltavam,
vi que ias morrer,
que morrias arrogante e rápido,
sem dar parte de fraco,
e as tuas vaidades e apetites mundanais,
os teus cavalos e mulheres,
tudo passou, meu velho,
não volta e não sei
se te valeu a pena.»
Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 34
NATAL DE 1971
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Daqueles que o não têm?
Dos que não são cristãos?
Ou de quem traz às costas
as cinzas de milhões?
Natal de paz agora
nesta terra de sangue?
Natal de liberdade
num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
roubada sempre a todos?
Natal de ser-se igual
em ser-se concebido,
em de um ventre nascer-se,
em por de amor sofrer-se,
em de morte morrer-se,
e de ser-se esquecido?
Natal de caridade,
quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
com gente que é traição,
vil ódio, mesquinhez,
e até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm,
ou dos que olhando ao longe
sonham de humana vida
um mundo que não há?
Ou dos que se torturam
e torturados são
na crença de que os homens
devem estender-se a mão?
Jorge de Sena
Nocturno
"Os que nascem de noite
e, entre osso, vigiam
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas
e, entre osso, vigiam
o fogo
os que olham os astros
e, oprimidos, respiram
em cavernas
os que vão viver apesar
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem
da escuridão e nos olhos
a luz clandestina
acendem
os que não sonham, os que nascem
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra"
de noite
não vieram brincar: seu peito
guarda uma só palavra"
Poesia Brasileira do Século XX: dos modernistas à actualidade.
Carlito Azevedo/ Augusto Massi/ Manoel de Barros/ PauloLeminski/ Hilda Hilst/ Ferreira Gullar/ Haroldo de Campos/ Drummond de Andrade/ João Cabral de Melo Neto
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
PAULA - Ah, como seria maravilhoso esquecer, fechar a memória à chave e deixar cair a chave no fundo do lago! Mas tenho na cabeça um relógio que não pára, que constantemente dá horas...Horas de pensar, horas de lembrar, horas de sofrer...(passa a mão pela cabeça e pelos olhos) Estou cansada. Nunca vi uma noite assim, toda branca e azul.
FILIPE - (pegando-lhe na mão) Tens as mãos frias...
Fernanda de Castro. A espada de Cristal. Edição da Sociedade Portuguesa de Autores. 1ª edição, Lisboa, 1990., p. 11
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domingo, 21 de dezembro de 2014
sexta-feira, 19 de dezembro de 2014
quarta-feira, 17 de dezembro de 2014
«É a sua loucura que me reaproximou mais dele. A sua loucura e a sua dor.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 253
«Amar é conhecer tudo do outro e aceitá-lo, ou, pelo contrário, ter a ilusão de saber tudo do outro e querer mudá-lo?, Ele pretende que não o amo porque não o compreendo. Faço tudo para o contrariar, isso impede-o de dormir profundamente. Contrariando-o, sacudo os seus anos de solidão e egoísmo. Infelizmente, reage mal. Enerva-se, pragueja, grita, diz palavras grosseiras, toma calmantes de noite, escreve cartas de ruptura, queixa-se e geme permanentemente.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 241
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 241
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terça-feira, 16 de dezembro de 2014
Há a morte.
«Há a morte. Mas ela não se demora nunca nestes lugares. Rapta ora uma criança, ora um velho. Os outros, deixa-os em paz, sem mesmo lhes fazer um sinal, sem lhes murmurar uma pequena música rangida. Levanta-se o corpo, lava-se e embrulha-se num lençol branco, depois coloca-se na própria terra rezando. Tudo se passa muito depressa. Apaga-se aquela passagem funesta e continua-se como se a vida estivesse cheia de surpresas.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 231
«Foi assim que aprendi a brincar com as serpentes e os escorpiões. É muito difícil. É preciso fazer gestos precisos sem ter medo. O prazer consiste em impedir o escorpião de picar, ao desarmá-lo. Uma vez que esteja cansado, põe-se numa tigela com água e assiste-se ao seu afogamento.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 220
«só este vento violento e furioso é capaz de me dar asas.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 217
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«A minha mãe é demasiado infeliz para me ouvir.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 215
«Detesto estas festas de fim de ano em que toda a gente se sente obrigada a ser feliz.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 214
«Os que escrevem de noite, não suportam que alguém durma junto deles. Soube isso mais tarde. Ele tinha medo da noite. Ficava acordado mesmo que não escrevesse. Dizia: «Será ela ou eu!». Por vezes, era ela que ganhava. O sono vencia-o contra sua vontade. Quantas vezes adormeceu sentado, com a cabeça sobre a mesa de trabalho, a mão sobre o caderno onde escrevia.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 212
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
A CULPA É NOSSA
Talvez tenha sido uma hecatombe de esperanças
um desabamento de certa forma previsto
ah mas a minha tristeza só teve um sentido
um desabamento de certa forma previsto
ah mas a minha tristeza só teve um sentido
todas as minhas intuições acorreram
para me ver sofrer
e viram-me aliás
para me ver sofrer
e viram-me aliás
até aqui tinha feito e refeito
os meus trajectos contigo
até aqui tinha apostado
em inventar a verdade
mas tu arranjaste maneira
uma maneira terna
e ao mesmo tempo implacável
de frustrar o meu amor
os meus trajectos contigo
até aqui tinha apostado
em inventar a verdade
mas tu arranjaste maneira
uma maneira terna
e ao mesmo tempo implacável
de frustrar o meu amor
com um simples prognóstico eliminaste-o
dos subúrbios da tua vida possível
envolveste-o em nostalgias
levaste-o por quarteirões e quarteirões
e devagar
sem que o ar nocturno reparasse nisso
deixaste-o para aí
a sós com a sua sorte
que não é muita
dos subúrbios da tua vida possível
envolveste-o em nostalgias
levaste-o por quarteirões e quarteirões
e devagar
sem que o ar nocturno reparasse nisso
deixaste-o para aí
a sós com a sua sorte
que não é muita
acho que tens razão
a culpa é nossa quando não nos apaixonamos
e não dos pretextos
nem do tempo
a culpa é nossa quando não nos apaixonamos
e não dos pretextos
nem do tempo
há muito muitíssimo tempo
que eu não me enfrentava
como esta noite ao espelho
e foi implacável como tu
mas não foi terno
que eu não me enfrentava
como esta noite ao espelho
e foi implacável como tu
mas não foi terno
agora estou só
francamente
só
francamente
só
custa sempre um bocadinho
começarmos a sentir-nos desgraçados
começarmos a sentir-nos desgraçados
antes de regressar
ao meu acampamento de inverno
ao meu acampamento de inverno
com os olhos bem secos
por via das dúvidas
por via das dúvidas
observo como te vais embrenhando na névoa
e começo a recordar-te.
e começo a recordar-te.
Mario Benedetti
(tradução de Vasco Gato)
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
INVENTÁRIO
"A bruma a escuridão na nuca
a estátua na gruta
de onde o mar se retira
a árida divagação dos espelhos
as últimas fogueiras resistentes
aos ventos frios
dos últimos céus limpos
a vida despida
mentira após mentira
o chumbo a estagnação
o triste ventre aberto
do cão na estrada a fumegar esmagado
a lua de neurónios
o bico do amor
a penetrar na carne
tão fundo como a morte"
a estátua na gruta
de onde o mar se retira
a árida divagação dos espelhos
as últimas fogueiras resistentes
aos ventos frios
dos últimos céus limpos
a vida despida
mentira após mentira
o chumbo a estagnação
o triste ventre aberto
do cão na estrada a fumegar esmagado
a lua de neurónios
o bico do amor
a penetrar na carne
tão fundo como a morte"
-"Feriados Nacionais"
- Ernesto Sampaio
- Ernesto Sampaio
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
O SUSPIRO
Estás deitado na tua cama e suspiras,
e as molas enterradas no colchão
bradam na mesma nota grave,
escarnecendo da tua tristeza. É duro –
não o colchão, mas viver.
Viver é duro. Sempre
achaste que podias confiar na
tua própria cama, na tua própria dor.
Achavas que dormias sozinho.
e as molas enterradas no colchão
bradam na mesma nota grave,
escarnecendo da tua tristeza. É duro –
não o colchão, mas viver.
Viver é duro. Sempre
achaste que podias confiar na
tua própria cama, na tua própria dor.
Achavas que dormias sozinho.
Ted Kooser
(tradução de Vasco Gato)
CANTO DA ESTRADA LARGA
"Nenhum marido,nenhuma mulher, nenhum amigo confidentes para a confissão,
Outro eu, o duplo de cada um, lá vai mal-humorado e escondendo-se,
Informe e sem palavras através das ruas da cidade, polido e amável nos salões,
Nas carruagens dos comboios, nos navios, na assembleia pública,
Dentro das casas dos homens e mulheres, à mesa, no quarto, em todo o lado,
Ataviado a primor, rosto sorridente, figura aprumada, a morte sob os ossos do peito, o inferno sob os ossos do crânio,
Sob a camisa fina e a luvas, sob as fitas e flores artificiais,
Cordato com os costumes, não proferindo uma sílaba sobre si próprio,
Falando de tudo mas nunca de si próprio."
Outro eu, o duplo de cada um, lá vai mal-humorado e escondendo-se,
Informe e sem palavras através das ruas da cidade, polido e amável nos salões,
Nas carruagens dos comboios, nos navios, na assembleia pública,
Dentro das casas dos homens e mulheres, à mesa, no quarto, em todo o lado,
Ataviado a primor, rosto sorridente, figura aprumada, a morte sob os ossos do peito, o inferno sob os ossos do crânio,
Sob a camisa fina e a luvas, sob as fitas e flores artificiais,
Cordato com os costumes, não proferindo uma sílaba sobre si próprio,
Falando de tudo mas nunca de si próprio."
"Cântico da Estrada Larga"/ "Ode a Walt Whitman"/ Saudação a Walt Whitman"
domingo, 7 de dezembro de 2014
«não me deixes morrer no ódio»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 178
«faz-se pão, não para fazer viver, mas para matar.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 173
A PARTE MALDITA
"Passo noites contigo
e apenas reconheço
a espessa tessitura do cabelo.
Seguro na tua mão e guio-te nos corredores
que só de mim pertencem.
As salas que penetras construí-as,
tal o diabo à ponte,
na hora que precede a madrugada.
O galo canta sempre
antes de terminar a última cornija.
De ti pouco mais sei
além do gosto ( que temos semelhante)
do sexo seco
do sangue ausente que corre noutros lados
e se perde entre lençóis de cama
ou algodão hidrófilo.
De ti conheço o riso
nervoso ressoar,
batidas ritmadas num gongo fora de uso
em átrio obscurecido."
e apenas reconheço
a espessa tessitura do cabelo.
Seguro na tua mão e guio-te nos corredores
que só de mim pertencem.
As salas que penetras construí-as,
tal o diabo à ponte,
na hora que precede a madrugada.
O galo canta sempre
antes de terminar a última cornija.
De ti pouco mais sei
além do gosto ( que temos semelhante)
do sexo seco
do sangue ausente que corre noutros lados
e se perde entre lençóis de cama
ou algodão hidrófilo.
De ti conheço o riso
nervoso ressoar,
batidas ritmadas num gongo fora de uso
em átrio obscurecido."
Fátima Maldonado. Os Presságios.
«-Baixa os olhos quando falas comigo.
Quando o meu pai me ordena que baixe os olhos, não posso resistir ou fazer outra coisa. Os meus olhos baixam-se por si. Não o posso explicar. Sei apenas que é unicamente a expressão de um pacto entre nós dois. O amor, é em primeiro lugar, o respeito que se exprime por esses gestos. Não é preciso ir procurar muito longe.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 146
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