domingo, 6 de maio de 2012

REVOLTA

O morto está todo torcido e não olha para as estrelas:
tem os cabelos colados ao empedrado. A noite pôs-se mais fria.
Os vivos regressam a casa ainda a tremer.
É difícil acompanhá-los; dispersam-se todos
e um sobe as escadas, outro desce à adega.
E outro caminha até de madrugada e deita-se num prado,
ao sol. Amanhã no trabalho, alguém fará um sorriso
de desespero. Depois, também isto passará.
 
Quando dormem, parecem o morto: se também há uma mulher,
é mais pesado o odor, mas parecem mortos.
Cada corpo agarra-se, torcido, à cama,
como ao rubro empedrado: o longo cansaço
que dura desde a aurora vale bem uma breve agonia.
Sobre cada corpo coagula uma escuridão suja.
Solitário, o outro corpo morto está estendido às estrelas.
 
Também parece morto o monte de farrapos que o sol
escalda com força, encostado ao muro. Dormir
na rua demonstra confiança no mundo.
Há uma barba entre os farrapos e percorrem-na
moscas atarefadas; na rua, os transeuntes vão e vêm
como moscas; o pedinte faz parte da rua.
A miséria recobre de barba os sorrisos tensos.
como uma erva, e dá um aspecto pacato. Este velho
que podia morrer todo torcido, em sangue,
parece mais uma coisa e está vivo. Assim,
tirando o sangue, cada coisa é uma parte da rua.
E no entanto as estrelas viram sangue na rua.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229

envilecer


verbo transitivo, intransitivo e pronominal
 
 
1. tornar(-se) vil; rebaixar(-se)
2. diminuir o valor (de); depreciar(-se)
«A casa parece vazia e contudo encerra o indispensável, tão ecrto é que o homem verdadeiro precisa de poucas coisas.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 65
« - Aborreci-te, patrão? - disse, deixando de sorrir.
  Tínhamos chegado à nossa choupana. Zorba olhou-me com ternura e inquietação.
   Não respondi. Senti que o meu espírito estava de acordo com Zorba, mas o coração resistia, queria arremessar-se, romper a animalidade, abrir um caminho.
    -Não tenho sono esta noite, Zorba - disse eu. - Vai deitar-te tu.
   As estrelas cintilavam, o mar suspirava e beijava as conchas, um pirilampo acendeu sobre o ventre o seu pequeno farol erótico. Os cabelos da noite escorriam de orvalho.»
Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 64

sábado, 5 de maio de 2012

New York Central Yard,1910

''Quando eu morrer, tudo morrerá.''

Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 63

«Quando o patrão é duro, os operários, temem-no, respeitam-no e trabalham. Quando o patrão é fraco, tiram-lhe as rédeas e andam devagar. »



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 61
 
 
                                     «De repente gritou
que se o mundo sofria, se a luz do sol
arrancava blasfémias, não era o destino:
o culpado era o homem. Ao menos pudéssemos partir,
rebentar de fome em liberdade, dizer não
a uma vida que utiliza o amor e a piedade,
a família, o bocado de terra, para nos atar as mãos
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 229
 
 
« (...)           Aprendeu a medir
pela sua própria fadiga a fome dos outros,
e em todo o lado encontrou injustiças.»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 227

PAISAGEM IV

(Para a Tina)
Os dois homens fumam na margem. A mulher que nada
sem quebrar a água apenas vê o verde
do seu estreito horizonte. Entre o céu e as árvores
estende-se a água e a mulher desliza nela
sem corpo. No céu pousam nuvens
quase imóveis. O fumo detém-se no ar.
 
Sob o gelo da água também há erva. A mulher
atravessa-a, suspensa: mas nós calcamo-la,
a erva verde, com o corpo. Em toda aquela água não há
outro peso. Só nós os dois sentimos a terra.
Talvez o seu corpo alongado, submerso,
sinta o gelo voraz absorver-lhe o torpor
dos membros escaldantes de sol, dissolvendo-a viva
no verde imóvel. A sua cabeça não se mexe.
 
Também ela estava deitada onde a erva está calcada.
O seu rosto semioculto repousava no braço
e olhava a erva. Não falávamos.
No ar paira ainda aquela primeira comoção
das águas que a acolheram. Por cima de nós paira o fumo.
Agora alcançou a margem e fala, o seu corpo escuro,
gotejante, ergue-se entre os troncos.
A sua voz é bem o único som que se ouve por sobre a água
-rouca e fresca, é a mesma voz de antes.
 
                                        Pensemos, deitados
na margem, naquele verde mais escuro e mais fresco
que submergiu o seu corpo. Depois, um de nós
mergulha na água e atravessa, mostrando os ombros
em braçadas espumosas, o verde imóvel.
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 199

sexta-feira, 4 de maio de 2012

JANTAR TRISTE

É por baixo da ramada, depois do jantar.
Em baixo há água que corre dócil.
Estamos calados, a escutar e a olhar para o rumor
que faz a água ao passar no rego lunar.
Este tempo suspenso é o momento mais doce.
                                   A minha companheira goza o momento
e parece ainda morder o cacho de uvas,
tão cheia de vida é a sua boca: e o sabor perdura,
têm a doçura das uvas, mas os ombros firmes
e as faces bronzeadas encerram todo o Verão.

Na toalha branca ficaram pão e uvas.
Vazias, as duas cadeiras olham-se cara a cara.
Quem sabe que coisa ilumina o rego lunar
com aquele seu lume doce, nos bosques distantes.
Talvez antes da aurora um sopro mais frio
extinga a lua e os vapores e apareça alguém.
Uma frágil claridade mostraria a garganta
sobressaltada e as mãos febris fecharem-se
em vão sobre os alimentos. Continua o sobressalto da água,
mas no escuro. As uvas e pão continuam no mesmo sítio.
Os sabores atormentam a sombra esfomeada,
que nem sequer consegue lamber no cacho
o orvalho que já se condensa. E com todas as coisas perladas
na aurora, as cadeiras olham-se solitárias.

Por vezes, à beira da água, um cheiro,
como de uvas, de mulher, paira sobre a erva,
e a lua esvai-se em silêncio. Aparece alguém.
mas atravessa incorpóreo o arvoredo e lamenta-se
com aquele gemido rouco dos que não têm voz
e se estendem na erva e não encontram a terra:
tremem-lhe as narinas, somente. Está frio quando o dia nasce,
e estreitar um corpo seria a vida.
Mais difusa que o amarelo lunar, que tem horror
e filtrar-se nos bosques, é esta ânsia sôfrega
de contactos e sabores que macera os mortos.
Outras vezes no solo atormenta-os a chuva.
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 195-197
" Nunca voltemos atrás
tudo passou se passou
livres amemos o tempo
que ainda não começou"


Agostinho da Silva

quinta-feira, 3 de maio de 2012

«Não há cama mais solitária para quem ao romper do dia
ainda dorme estendido, sonhando com a escuridão.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 179

terça-feira, 1 de maio de 2012

"Não há ninguém para nos ler: nós somos leitores do nosso próprio mistério"

Eduardo Lourenço

domingo, 29 de abril de 2012


«Eu não reflectia, nada procurava, não tinha qualquer dúvida. Vivia na certeza.»



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 53

    No fim dos meus dias
    Porque te encontrei...



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 50
« Jovem ou decrépita, bela ou feia, isso eram os pormenores sem importância, variantes. Por detrás de cada mulher levanta-se, austera, cheia de mistério, a face de Afrodite.
     Ora, este rosto que Zorba via era a ele que falava e desejava; dona Hortênsia não passava de uma máscara efémera e transparente que Zorba rasgava para beijar a boca eterna.
     - Levanta o teu pescoço de neve, meu tesouro - continuou em tom de súplica anelante -, levanta o teu pescoço de neve, e deita cá para fora a tua canção!»


Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 50

«Eu, meu filho, ajo como se nunca devesse morrer». Eu respondo-lhe: «Eu ajo como se devesse morrer a cada instante.»


Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 42
«Parei um instante no areal e olhei. A santa solidão estendia-se na minha frente, triste e fascinante como o deserto. O poema búdico elevou-se do solo e insinuou-se até ao fundo do meu ser. « Quando é que, enfim, me hei-de retirar na solidão, só, sem companheiros, sem alegria e sem tristeza, só com a certeza de que tudo não passa de um sonho? Quando é que, com os meus farrapos - e sem desejos - me hei-de retirar cheio de alegria para a montanha? Quando é que, vendo que o meu corpo não passa de doença e crime, velhice e morte - livre, sem medo, cheio de alegria - me hei-de retirar na floresta? Quando? Quando? Quando?»



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 31

« - Que podes tu dizer? - disse, medindo-me com o olhar ... - Se bem percebo, a tua senhoria nunca teve fome, nunca matou, nunca roubou, nunca se deitou com a mulher do próximo. Que podes tu saber, pois, do mundo? Espírito puro, carne que não conhece o sol... - murmurou com evidente desprezo.»



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 28

O homem é um animal feroz quando novo; sim, patrão, um homem feroz que come homens!

«Mas, naquela época, estás a ver que me fervia o sangue, Não me ficava a esmiuçar a questão. Para pensar bem e honestamente é preciso ter calma, idade e falta de dentes. Quando já não se tem dentes é fácil de dizer: «É uma vergonha, rapazes, não mordam mais!» Mas quando temos os trinta e dois dentes...O homem é um animal feroz quando novo; sim, patrão, um homem feroz que come homens!»


Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 27
« - Aborrece-te falar, Zorba?
  - Não é que me aborreça, patrão - respondeu -, mas custa-me fazê-lo.
  -Custa-te? Porquê?
  Não respondeu imediatamente. Passeou lentamente, mais uma vez o olhar ao longo da margem. Tinha dormido na ponte e os cabelos grisalhos e ondulados pingavam do orvalho. Todas as rugas profundas do rosto, do queixo e do pescoço eram iluminadas até ao fundo pelo Sol nascente. Por fim os lábios grossos e pendentes, como os de um bode, mexeram.
   - De manhã custa-me a abrir a boca. Custa-me muito, desculpa.»




Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 25/6
« - Luas velhas! - murmurava com desprezo. - Não têm vergonha!
   - Que quer isso dizer: luas velhas, Zorba?
   - Mas tudo isso: reis, democracias, deputados! Que mascarada!»



Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p. 22

diatribe


nome feminino
escrito ou discurso violento que critica ou acusa alguém; crítica severa; catilinária; injúria
(Do grego diatribé, «discussão», pelo francês diatribe, «crítica violenta»)

«(...) .Diz-se com razão que o homem só encontra o seu verdadeiro caminho quando põe de lado as quimeras da juventude e assenta firmemente os pés em terreno sólido.»


Nikolai Gógol. Almas Mortas. Círculo de Leitores, 1ª Edição, 1977, p. 156

''diligentes abelhas''

BAGAÇO EM SETEMBRO

As manhãs passam claras e desertas
nas margens do rio que de madrugada se enevoa
e escurece o seu verde enquanto espera o sol.
O tabaco que vendem na última casa
ainda húmida, na orla dos prados, tem uma cor
quase negra e um sabor sumarento: o fumo é azulado.
Também têm bagaço, da cor da água.
 
Chegou o momento em que tudo pára
e amadurece. As árvores ao longe estão quietas:
tornaram-se mais escuras. Escondem frutos
que ao mínimo abanão cairiam. As nuvens esparsas
têm uma polpa madura. Ao longe, nas avenidas,
todas as casas amadurecem à calidez do céu.
 
A esta hora só se vêem mulheres. As mulheres não fumam
e não bebem, sabem simplesmente estar ao sol
e recebê-lo tépido, como se fossem frutos.
O ar, cru por causa da névoa, bebe-se aos golos
como bagaço, todas as coisas exalam um sabor a bagaço.
Até a água do rio bebeu as margens
e macera-as no fundo, sob o céu. As ruas
são como as mulheres, amadurecem paradas.
 
A esta hora todos devíamos parar
na rua e ver como tudo amadurece.
Há até uma brisa que não altera as nuvens,
mas que basta para dirigir o fumo azulado
sem o romper: é um novo sabor que passa.
E o tabaco impregnou-se de bagaço. E assim as mulheres
não serão as únicas a gozar a manhã.
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 163-165
                                        «O rio corre tranquilo,
mas os pássaros fazem-no espumar.»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 139

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi -
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla
Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.
«Nada mais há a fazer do que olhar para aquela brancura maligna
por baixo da negra canícula e esperar que chova.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 131

Blurred View of Bare Trees in Field

 
«Podemos encontrarmo-nos, querendo.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 115

''a chuva cicia''

«Jazíamos cansados na humidade
dos dois corpos, adormecidos um sobre o outro.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 113
«Chove sem ruído no prado do mar.»
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 97

quarta-feira, 25 de abril de 2012


NOCTURNO

A colina é nocturna, no céu claro.
Nela se enquadra a tua cabeça, que mal se move
e acompanha o céu. És como uma nuvem
entrevista pelos ramos. Ri-se-te nos olhos
a estranheza dum céu que não é o teu.
 
A colina de terra e folhas encerra
com a sua negra massa o teu olhar vivo,
a tua boca tem a prega duma doce cavidade
no meio das encostas distantes. Pareces brincar
à grande colina e à claridade do céu:
para me dares prazer, repetes a paisagem antiga
e torna-la mais pura.
 
                                    Mas vives noutro lugar.
O teu terno sangue fez-se noutro lugar.
As palavras que dizes não têm comparação
com a tristeza áspera deste céu.
És apenas uma nuvem dulcíssima, branca,
que uma noite ficou presa nos ramos antigos.
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 81

''Cada árvore tem o seu próprio suor frio no escuro''

Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 63
«Como uma espécie de remorso, há a lembrança de um quarto nu, longe, num país estrangeiro. Lá onde esteve quase a morrer de fome. De solidão. Uma vez acordou de madrugada a gritar. Imaginou, num lampejo terrível, que acabava de enlouquecer. Durante o sono, a solidão passada e presente acumulara-se nele e gerara loucura.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 193

"Voyage au bout de la nuit"

Assim se perde uma vida

«O homem comprou o seu bilhete e ei-lo a percorrer países como se trouxesse dentro de si, acesa, uma lâmpada - e para ela todo se inclinasse enquanto as cidades, os povos, as línguas, são atravessados, abandonados - eximidos às atenções e tentações da ternura. Assim se perde uma vida, ou serviu ela apenas para este ganho obscuro: a pureza adquirida na desordem, e depois a fusão dos dias múltiplos numa única noite originária. Redil. Volta ao redil, e diz: - tresmalhado - com tal sentimento de extravio redimido que o júbilo mortificado pulsa nele como pura vitalidade, celebração comovida - a grande salvação.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 191
«Porque somos como as árvores, presos a um lugar, respirando através de uma lei calma e perene.»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 190
«Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão analfabeta com a instável matéria do mundo!»

..........


«Existo, existe o universo.»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 182
«Tive infância, só isso. Ou seja: falta de jeito, indecisão, uma grande ignorância. Olhava para as coisas: eram fundas, enigmáticas, desorientadoras. Tudo estava cheio, porque o meu coração ávido tudo recebia: era um espaço palpitamente vazio.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 181/2
«Obscuros somos sempre, mesmo sem pedi-lo.»




Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 170

obscuridade

abstruso


adjetivo
1. desordenado
2. impenetrável; obscuro
(Do latim abstrūsu-, «idem», particípio passado de abstrudĕre, «ocultar»)

''sensibilidade desordenada''

Mas este homem perturba-me.

«Poderia amá-lo, erguê-lo da sua dolorosa confusão, colocá-lo numa dignidade de que, é evidente, perdeu o sentido. Agita-se de um lado para o outro com as grandes mãos bantendo contra as pernas, magro e cheio de uma fome terrível.»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 162
"Llevo una profunda tristeza en el corazón que de vez en cuando debe estallar en sonido."


domingo, 22 de abril de 2012

tartufo


nome masculino
indivíduo hipócrita; velhaco; devoto fingido
(Do italiano Tartufo, antropónimo, personagem da comédia italiana, aproveitada por Molière, pelo francês Tartufe, «idem»)
A nossa vida é a viagem
Pelo Inverno e na Noite.
E procuramos passagem
No Céu onde nada luz.

Canção dos Sentinelas Suíças, 1793





Louis-Ferdinand Céline.Viagem ao fim da noite. Trad., apresentação e notas de Aníbal Fernandes. Ulisseia, 2010.
«Hoje, nada sei de quem me amou ou me ama.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 151

Aleksander Zelekson, Nizhny Novgorod, Russia, 6 May 2007

A vida solitária forneceu copioso alimento à sua avareza

«A vida solitária forneceu copioso alimento à sua avareza. Esta paixão, como se sabe, possui um apetite de lobo: quanto mais devora menos se sacia. Os sentimentos humanos, que nele nunca tinham sido muito profundos, foram-se desvanecendo a pouco e pouco. Essa ruína ambulante degradava-se de dia para dia.»




Nikolai Gógol. Almas Mortas. Círculo de Leitores, 1ª Edição, 1977, p. 126

''reino de morte''

«No maciço de verde folhagem, inundado de sol, abriam-se às vezes abismos de sombra.»

Nikolai Gógol. Almas Mortas. Círculo de Leitores, 1ª Edição, 1977, p. 120

O tempo move-se, some-se.

«O tempo move-se, some-se. À janela do quarto, o homem vê esse movimento do tempo a sumir-se. Olha para os arrozais verdes do verão que passam de uns dias para os outros, mudando, amadurecendo; as laranjas que se tornam amarelas quando a terra arrefece devagar, por dentro; os sobreiros de repente em carne viva.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 101

as crianças cresceram todas

«Mas uma delas começou a beber, e depois o coração estoirou, e ficou apenas para os outros como uma memória incómoda. Parece que sim, que tinha demasiada imaginação, e levaram-na ao médico e ele disse: aguente-se, e ela não se aguentou. Era uma criança. Não, não, nessa altura já tinha crescido, bebia pelo menos um litro de brandy por dia. Nada mau, para uma antiga criança. A verdade é que era uma criança, e não se aguentou quando o médico disse: aguente-se. E as ruas  são tão tristes. Precisam de mais luz. Mas nesta, por exemplo, já puseram mais luz, e mesmo assim é triste. É até mais triste que as outras. Estou tão triste. Vamos para férias, para o pequeno paraíso. Contaram-me que ele tinha uma alegria tão grande que não podia agarrar num copo: quebrava-o com a força dos dedos, com a grande força da sua alegria.»




Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 56/7

Lugar Lugares

    « Era uma vez um lugar com um pequeno inferno e um pequeno paraíso, e as pessoas andavam de um lado para o outro, e encontravamo-nos, a eles, ao inferno e ao paraíso, e tomavam-nos como seus, e eles eram seus de verdade. As pessoas eram pequenas, mas faziam muito ruído. E diziam: este é o meu inferno, é o meu paraíso. E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. À parte isso o lugar era execrável. As pessoas chiavam como ratos, e pegavam nas coisas e largavam-nas, e pegavam umas nas outras e largavam-se. Diziam: boa tarde, boa noite. E agarravam-se,  e iam para a cama umas com as outras, e acordavam. Às vezes acordavam no meio da noite e agarravam-se freneticamente. Tenho medo - diziam. E depois amavam-se depressa e lavavam-se, e diziam: boa noite, boa noite. Isto era uma parte da vida delas, e era uma das regiões (comovedoras da sua humanidade, e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 53/4
«Talvez isso seja a inocência. Talvez só no mar nos seja concedido morrer verdadeiramente, morrer como nenhum homem pode.»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 48/9

Annemarie

     «Annemarie sentou-se à minha mesa. Vi logo o tamanho da sua solidão: tinha o tamanho do mundo. Ela era a criatura mais só do mundo. E a sua história apareceu - simples, tenebrosa - entre as nossas duas cervejas. Todas as histórias pessoais são simples e tenebrosas. Não me comovi. Comovido já eu estava: com as coisas, comigo, com a chuva sobre a cidade. Talvez houvesse uma irónica alegoria em nós os dois ali sentados diante dos belos copos frios, compreendendo ambos tão facilmente o que nos acontecia e iria acontecer que não tínhamos pressa. Poderíamos morrer ali mesmo. Esperávamos.»



Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 29

''Calma solidão sem dor.''

«O sangue é negro desde a raiz. Porque ninguém sabe onde a corrupção completa a inocência.»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 17
«Uma vez fui ao médico.
- Doutor, estou louco - disse. - Devo estar louco.
- Tem loucos na família? - perguntou o médico. - Alcoólicos, sifilíticos?
- Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
- Não preciso de remédios - disse eu. - Sei histórias tenebrosas da vida. De que me servem os barbitúricos?»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006., p. 10
« - Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio...»


Herberto Helder. Os Passos Em Volta. Assírio & Alvim, Lisboa, 2006

Nós, que tanto nos amávamos, nunca tínhamos trocado uma palavra afectuosa

«Nós, que tanto nos amávamos, nunca tínhamos trocado uma palavra afectuosa. Brincávamos e arranhávamo-nos como feras. Ele, fino, irónico, polido. Eu, o bárbaro. Ele, dominando-se, esgotando com à-vontade todas as manifestações da sua alma num sorriso. Eu, brusco, irrompendo num riso deslocado e selvagem.»




Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,p.10
« Como é amargo separarmo-nos lentamente daqueles que amamos!»

Nikos Kazantzaki. O Bom Demónio. Tradução de Fernando Soares. Editora Ulisseia, Lisboa,

Bocskay Tér, Budapest, 1914

 
«                (é presico tempo
para que o sol e a chuva sepultem os mortos)»
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 59

ventre maduro

engaço

nome masculino
1. instrumento agrícola, dentado, para juntar feno, estrume, mato, etc., ancinho
2. parte que fica do cacho de uvas, depois de esbagoado
(De origem obscura)

bardo

nome masculino
1. tapume formado por silvas ou ramos de outras plantas; barda
2. fila de videiras ligadas a estacas e arames que formam um suporte vertical
3. curral onde pernoita o gado miúdo; redil
(De barda)

desfolhada

lusco-fusco

nome masculino
o anoitecer; crepúsculo vespertino

O DEUS-CABRÃO

O campo é um país de verdes mistérios
para o rapazinho que vem passar o Verão. A cabra, se come
dumas flores, incha-lhe a barriga e não pára de correr.
Quando o homem gozou com uma rapariga
-têm pelos em baixo - o bebé incha-lhe  a barriga.
Enquanto guardam as cabras, armam-se em fortes e troçam uns dos outros,
mas, ao cair da noite, cada um começa a olhar por cima do ombro.
Os rapazes sabem ver se a cobra passou ali
pelo rastro sinuoso que deixa na terra.
Mas se a cobra passou no meio da erva
ninguém a vê. São as cabras que se plantam
na erva por cima da cobra e que gozam deixando-se chupar.
As raparigas também gozam quando se deixam tocar.
 
Quando a lua aparece, as cabras nunca mais param quietas,
é preciso arrebanhá-las e tocá-las para casa,
senão empina-se o cabrão. Dá um salto no meio do prado,
esventra as cabras todas e desaparece. Com os calores, as raparigas
metem-se pelos bosques dentro, sozinhas, de noite,
e o cabrão, se balem deitadas na erva, vem a correr ter com elas.
Mas a lua que desponte: empina-se e esventra-as.
E as cadelas que ladram à lua
é porque sentiram o cabrão aos saltos
no alto dos montes e farejaram o cheiro do sangue.
E os animais agitam-se dentro das cortes.
Somente os mantins mais fortes roem a corda com os dentes
e um deles solta-se e corre atrás do cabrão
que o salpica e embebeda com um sangue mais vermelho que o fogo,
e depois dançam todos, de pé nas patas traseiras e a ulular à lua.
 
Quando de manhã o canzarrão regressa pelado e a rosnar,
os aldeãos chegam-no à cadela à força de pontapés no traseiro.
E à rapariga que vagueia ao lusco-fusco e aos rapazes que regressam
já noite cerrada com uma cabra perdida dão-lhe cachaços.
Emprenham as mulheres os camponeses e derreiam-se sem con-
                                                                                               templações.
Andam sempre fora, dum lado para o outro, de dia e de noite,
                                                                                    e não têm medo
de ir cavar mesmo à luz da lua ou de acender uma fogueira
de gravetos no escuro. Por isso a terra verde
é tão bela e, sachada, tem as cores,
ao romper do dia, dos rostos dourados pelo sol. Vai-se para a vin-
                                                                                                    dima
 
e come-se e canta-se; na desfolhada
dança-se e bebe-se. Ouvem-se raparigas a rir-se
pois alguém falou no cabrão. Lá em cima, nos bosques,
entre as cristas pedregosas, os aldeãos viram-no:
procurava a cabra e dava marradas nos troncos das árvores.
Porque, quando um animal não sabe trabalhar
e só serve para a cobrição, tem prazer em destruir.
 
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 43-45
«(...) quando o sol
nascia já o dia era velho para eles.»
 
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 31

Solitude, New York, 1960

''Um perfume de terra e vento envolve-nos na escuridão,''
 
 
Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 29

''Os desesperados morrem assim.''

Cesare Pavese. Trabalhar Cansa. Tradução e introdução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 1997., p. 29

ensimesmado

adjetivo
1. concentrado em si mesmo
2. recolhido
3. absorto nos próprios pensamentos; pensativo; meditabundo

(Particípio passado de ensimesmar-se)

domingo, 15 de abril de 2012

«Vossas lágrimas são lágrimas dos olhos, nada mais, e as minhas virão, quando eu estiver só, das plantas dos meus pés, de minhas raízes, e serão mais ardentes do que o sangue.»



Frederico Garcia Lorca. Bodas de Sangue. Teatro Moderno. Tradução de Cecília Meireles. AGIR Editora, Rio de Janeiro, 1960., p. 150/1

Elizabeth and I in Café, Montparnasse 1931

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