domingo, 22 de março de 2015
O POEMA ENSINA A CAIR
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
Luiza Neto Jorge
b.
aprende a falar — diz
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos. põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. então, falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue,
de assombro em
assombro.
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos. põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. então, falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue,
de assombro em
assombro.
Manuel Gusmão
sexta-feira, 20 de março de 2015
OS INSOLENTES
"Maud ficou uns momentos à janela, com os braços estendidos sobre o parapeito, de cabeça pendurada, numa atitude semelhante semelhante à de uma criança ociosa. Mas estava pálida, e parecia mortificada pelo aborrecimento.
Quando se voltou para o quarto e fechou a janela o ruído do vale parou bruscamente, como se se fechasse a comporta num rio."
Quando se voltou para o quarto e fechou a janela o ruído do vale parou bruscamente, como se se fechasse a comporta num rio."
-"Os Insolentes"
- Marguerite Duras
- Marguerite Duras
quinta-feira, 19 de março de 2015
OLHOS AZUIS CABELO PRETO
"Excepto desse olhar há dias, já não se sabe, não acontece nada a não os movimentos do mar, as passagens da noite os choros.
Dormem, desviados um do outro.
É ela quem habitualmente cai primeiro no sono. Ele vê-a afastar-se, partir no esquecimento do seu quarto, da história. De todas as histórias."
Dormem, desviados um do outro.
É ela quem habitualmente cai primeiro no sono. Ele vê-a afastar-se, partir no esquecimento do seu quarto, da história. De todas as histórias."
-"Olhos Azuis Cabelo Preto"
- Marguerite Duras
- Marguerite Duras
DEZ HORAS E MEIA NUMA NOITE DE VERÃO
"Maria vive uma alegria feliz. Atrevem-se, agora. Enquanto a polícia passa, continuam a olhar-se. A expectativa resolve-se por fim, liberta. De todos os pontos do céu, de todas as ruas, daqueles que dormem, ali perto. Bastava-lhe o céu, a ela bastava-lhe o céu para adivinhar que era Rodrigo Paestra.
O horizonte surge por fim lavado. A tempestade lavou-o. Como uma foice, corta o trigo. Um vento frouxo seca as ruas. O tempo amansa, um belo,luminoso dia vai nascer. A noite corre ainda, total. São talvez possíveis soluções para as soluções para as incertezas da consciência. Tudo o leva a crer."
O horizonte surge por fim lavado. A tempestade lavou-o. Como uma foice, corta o trigo. Um vento frouxo seca as ruas. O tempo amansa, um belo,luminoso dia vai nascer. A noite corre ainda, total. São talvez possíveis soluções para as soluções para as incertezas da consciência. Tudo o leva a crer."
-"Dez Horas e Meia Numa Noite de Verão"
- Marguerite Duras
- Marguerite Duras
“I know that in my own work the best things are the things that just happened images that were suddenly caught and that I hadn’t anticipated. We don’t know what the unconscious is, but every so often something wells up in us. It sounds pompous nowadays to talk about the unconscious, so maybe it’s better to say ‘chance.’ I believe in a deeply ordered chaos and in the rules of chance.”
Francis Bacon quoted in 'Unnerving Art', article by Michael Kimmelman, New York Times Magazine August 20, 1989.
CIDADE SOZINHO
"Tudo aqui tem o mesmo abandono:
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
- a luz presa debaixo das meias -
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino jesus
sobre o decote, e a mão - a minha mão -
percorre o náilon.
Agora as páginas
do diário devolvem-me a esta noite,
fria noite num quarto frio.
um quarto com janelas
para a rua e um corpo sem desejo
diante da chuva. Uma mulher que passa
- a luz presa debaixo das meias -
e que desaparece, deixa
o eco de um gemido na pupila
e a saliva quente do suor
na memória.
Hotel sem graça,
uma jarra com água à cabeceira,
uma revista dentro do armário,
o fio com um menino jesus
sobre o decote, e a mão - a minha mão -
percorre o náilon.
Agora as páginas
do diário devolvem-me a esta noite,
fria noite num quarto frio.
Para que servirá a inteligência?
Um número na porta, um cheiro acre."
Um número na porta, um cheiro acre."
-"Antologia"
- José Ángel Cilleruelo
- José Ángel Cilleruelo
quarta-feira, 18 de março de 2015
DO PORVIR
"O mundo vai abrir-se - lento e calmo -
mais uma vez abrir-se - ainda é tempo -
para de ti e tudo e todos receber
o que - lento e calmo - o mundo exige
Para que tudo quanto há nele mergulhe
o mundo vai abrir-se - lento e calmo -
Grandes e numerosas são
as águas - ao redor do homem
Peuqenos e raros são
os barcos - que de nós se aproximam
As horas em que todo
o mundo cessa -
É então que se renova
em nós a aliança."
mais uma vez abrir-se - ainda é tempo -
para de ti e tudo e todos receber
o que - lento e calmo - o mundo exige
Para que tudo quanto há nele mergulhe
o mundo vai abrir-se - lento e calmo -
Grandes e numerosas são
as águas - ao redor do homem
Peuqenos e raros são
os barcos - que de nós se aproximam
As horas em que todo
o mundo cessa -
É então que se renova
em nós a aliança."
-"A Aliança"
- Raul de Carvalho
- Edição do Autor, 1958
- Raul de Carvalho
- Edição do Autor, 1958
IMENSIDÃO DA NOITE
A meio da noite surge por vezes
uma pergunta, e a noite agiganta-se,
e é imensa a noite até à angústia.
Como um barco sem luzes, silencioso,
assim sulca o nosso quarto tanta sombra
que parece sem limites o mundo.
Rodeia-nos o vazio, é água escura
mais densa ainda do que o sangue. Nada se ouve,
apenas um chapinhar de fundo lodo
lá no mais profundo dessa água:
é o nosso coração. Mas a noite
não cessa de crescer e é já um olho
de insuportável nudez que fita
o nosso terror. E essa é a pergunta,
e a noite sabe-o e olha então
(só às vezes) o desamparado ser
que somos, com ternura, e o sono regressa.
E a infinita gruta que é o universo
novamente resplandece.
uma pergunta, e a noite agiganta-se,
e é imensa a noite até à angústia.
Como um barco sem luzes, silencioso,
assim sulca o nosso quarto tanta sombra
que parece sem limites o mundo.
Rodeia-nos o vazio, é água escura
mais densa ainda do que o sangue. Nada se ouve,
apenas um chapinhar de fundo lodo
lá no mais profundo dessa água:
é o nosso coração. Mas a noite
não cessa de crescer e é já um olho
de insuportável nudez que fita
o nosso terror. E essa é a pergunta,
e a noite sabe-o e olha então
(só às vezes) o desamparado ser
que somos, com ternura, e o sono regressa.
E a infinita gruta que é o universo
novamente resplandece.
Abelardo Linares
(tradução de Vasco Gato)
"- É artista? pintor? poeta?
- Não; sou simplesmente um atónito.
[...]
- Para mim, [...] o facto essencial e pasmoso das coisas é elas realmente serem. O facto de qualquer coisa ser é milagroso. O outro facto milagroso é estar eu aqui, a ter consciência que elas são"
- Não; sou simplesmente um atónito.
[...]
- Para mim, [...] o facto essencial e pasmoso das coisas é elas realmente serem. O facto de qualquer coisa ser é milagroso. O outro facto milagroso é estar eu aqui, a ter consciência que elas são"
- Fernando Pessoa, "O Mendigo", in "O Mendigo e outros contos", Lisboa, Assírio & Alvim, 2012, p.21.
terça-feira, 17 de março de 2015
«-A tua dor é superficial e tempestuosa. A do homem grande é serena e profunda...como o céu estrelado. Mas...porque não levaste um pouco mais longe o teu aviltamento?»
José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 41
«O que me salva é ser doido, por isso a minha razão não tem costumes!»
José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 35
«E se tiras conclusões de tudo, acabarás por não compreender nada. Ora desenrola ainda as orelhas, e ouve mais este pequeno discurso: Comparações, conclusões, inferências, induções, deduções, - são hábitos do nosso espírito; ou antes: da nossa razão.»
José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 34
«Ora ouve: Quando se fala, já se pensou ou pensar-se-á.»
José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 31
«-Tu não queres ser idiota: Convém-te fingir sê-lo quando pretendes exasperar-me.
-Isso é cá comigo.
-É contigo..., o quê? exasperar-me? E comigo..., não?
-Se te exasperas...,é contigo: Não tenho nada com isso. Se te exaspero, é comigo: Não tens nada com isso. Queres coisa mais clara? De resto, ouve: Eu posso fingir-me idiota, saber-me a fingir, sem por isso deixar de ser idiota. Não sabes que os homens que se fingem doidos são doidos? E só o não são no momento em que se fingem doidos, porque então querem ser o que são; ora quando se quer ser o que se é, já se não é o que se é.
-Tu fazes-me perder a cabeça! Explica-te melhor.
-Mas essas palavras não exprimiam pensamentos?»
José Régio. Obra Completa. Teatro I. Jacob e o Anjo ou A história do Rei e do Bobo. Edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005., p. 31
«Se queres que eu diga qualquer coisa que interesse, interessa-te por qualquer coisa que eu diga: Por culpa tua, eu não sou para ti senão ódio, ou o teu amor, ou o teu cansaço, ou a tua indiferença, ou a tua desconfiança...embora seja preciso acabar com tais equívocos!»
«Nesse tempo, ou já muito antes, era considerado um tipo insociável. Fumava desalmadamente, macerando o cigarro de um canto para o outro da boca, num jeito nervoso nada fácil de imitar, roendo a todo o momento qualquer danação íntima que se traduzia nos modos como fazia crer às pessoas que a presença delas me era insuportável. Tudo me servia para exagerar a brusquidão, talvez porque toda a gente reparasse nela e a censurasse, e a minha rebeldia contra fosse lá o que fosse movimentava-se, provocante, tanto mais quanto os outros a receavam.»
Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 9
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Amigos de Quem
Lá voltaste a puxar para ti o lençol
Como que a privar meus sonhos do último raio de sol
Amigos são sobras do tempo
Que enrolam seu tempo á espera de ver
O que não existe acontecer
Mas teimas em riscar o fim do meu chão
Nunca medes a distância
Dos passos á razão
Meus votos são claros na forma
Desejo-te o mesmo que guardo p'ra mim
E o que não existe não tem fim
É só dizer e volto a mergulhar
Voltar a ler não é morrer é procurar
Não vai doer mais do que andar assim a fugir
Deixa-te entrar para tentar ou destruir
Mas quem te ouviu falar
Pensou tudo vai bem
Só que alguém vestiu a pele
Que nunca serve a ninguém
E a dúvida está do meu lado
Mas eu não consigo olhá-la e achar
Ser esse o lado em que ela deve estar
Erguemos um grande castelo
Mas não nos lembramos bem para quê
E é essa a verdade que se vê
É só dizer e volto a mergulhar
Voltar a ler não é morrer é procurar
Não vai doer mais do que andar assim a fugir
Deixa-te entrar para tentar ou destruir
Mas sem fingir
Sem fingir
Sem desistir
Clã
Pequena Morte
(...)
«Vira-me do avesso, amor
Corta-me aos pedaços
Eu cresço e desapareço
Seguindo os meus próprios passos
Eu cresço e desapareço
Não me abandones nesta margem
Eu sou parte da viagem.»
Clã
«Vira-me do avesso, amor
Corta-me aos pedaços
Eu cresço e desapareço
Seguindo os meus próprios passos
Eu cresço e desapareço
Não me abandones nesta margem
Eu sou parte da viagem.»
Clã
Narciso Sobre Rodas
ainda me lembro de ti.
tão cheio de ti mesmo.
passeando tua esfinge
de príncipe de alta casta.
alguém que já nem finge
que amar-se a si mesmo basta!
havia sempre alguém
a prestar vassalagem
e a render-se à tua imagem
de Narciso bem penteado
tirando da garagem um coração cromado!
julgavas que a vida era um chevrolet vermelho
que a beleza bastava
para seres do mundo lago mas quebrando-se o espelho
não aguentaste o estrago.
E eu que verti uma lágrima
Por não merecer o teu olhar
Pergunto a mim mesma como pude um dia
por ti chorar.
narciso, sobre rodas vem
narciso
sobre rodas
e agora encontrar-te pergunto a mim mesmo
como pude um dia sequer amar-te
e agora encontrar-te pergunto a mim mesmo
como pude sequer amar-te
Clã
segunda-feira, 16 de março de 2015
«(…) O que eu quis significar com reforma da mentalidade não é uma modificação no conteúdo das crenças, e sim na forma do pensamento dos homens, isto é, a passagem da mentalidade catecismal e dogmática (que se encontra igualmente nos dois campos opostos, entre homens da direita e entre homens da esquerda, entre vermelhos e azuis) para a atitude de espírito indagadora e crítica - para a do livre exame, para a da correcção incessante, para a da discussão aberta, para a da investigação contínua.»
- António Sérgio, História de Portugal – Introdução Geográfica, 1941.
domingo, 15 de março de 2015
«O PÉRICLES (gritando) - Vejo vampiros!
O SUICIDA - Onde, ó Péricles? É no ar?!
O PÉRICLES - Sim, no ar. Andam vampiros no ar. À nossa volta.
O SUICIDA - São moscas (faz menção de apanhar uma que passa.) Sou o Rei! O imperador das moscas. (Abre a mão lentamente como se tivesse medo que ela fugisse). Domino-as, apanho-as no ar. Escravizo-as. Nunca falho. Tenho a mão. A mão para as moscas...E só as largo quando quero. Separo-as do mundo, do sol, da vida. Foi o que me fizeram a mim. Fechado num quarto escuro, sem janelas, a morrer de fome. Maldito mundo, malditas pessoas, e como tinha medo daquela maldita miséria! O mundo, as moscas, tudo contra mim!...(Puxa duma corda). Vou-me suicidar.»
Miguel Barbosa. Os Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 29
«Há coisas que, se a gente não souber, não doem. O que não se sabe não dói...»
Miguel Barbosa. Os Carnívoros. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 28
«Pior que matarem-te foi terem-te roubado a esperança.»
Miguel Barbosa. O Tecni-Homem. Editorial Futura, Lisboa, 1974., p. 16
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