terça-feira, 6 de outubro de 2015


Há mil portas atrás
quando eu era uma miúda solitária
numa casa grande com quatro
garagens e era verão
desde sempre,
da noite deitada na relva,
com os trevos a enrugarem-se por cima de mim
as estrelas sábias deitadas sobre mim,
a janela da minha mãe um funil
de calor amarelo a escorrer
a janela do meu pai, meia fechada,
um olho onde adormecidos passavam,
e as tábuas da casa
eram macias e brancas como a cera
e provavelmente um milhão de folhas
velejavam nos seus caules estranhos
enquanto os grilos faziam tiquetaque em uníssono
e eu, no meu corpo recém estreado,
que ainda não era o de uma mulher,
dizia às estrelas as minhas perguntas
e pensava que Deus poderia mesmo ver
o calor e a luz pintada,
cotovelos, joelhos, sonhos, boa noite.


Anne Sexton
( tradução Maria Sousa)

|| do esquecimento ||

"esqueço-te com a terna complacência do silêncio
habitual das horas no seu movimento
e no entanto restou um perfume quase imperceptível
do olhar por uma vez aceite
em mim, um olhar que julguei
fosse o meu amor, a ilusão
de um gesto que olhamos como
se nos pertencesse e no entanto
nos é alheio.
Eu havia contribuído integralmente.
A terra foi por um instante pura
através do teu corpo elástico e pausado."


Manuel de Castro.
"Bonsoir, Madame"

segunda-feira, 5 de outubro de 2015



“Chaves, 11 de Abril de 1968 - Que povo este! Fazem-lhe tudo, tiram-lhe tudo, negam-lhe tudo, e continua a ajoelhar-se quando passa a procissão.”


Miguel Torga, Diário.

domingo, 4 de outubro de 2015


«Silêncio a bater dentro dos nossos pulsos
(se os há),»

Pedro TamenRetábulo das Matérias (1956-2001). Gótica, 2000, Lisboa., p. 73

Lisboa – 1996 © Paulo Nozolino




Paulo Nozolino

Fotógrafo português, Paulo Nozolino nasceu em 1955, em Portugal. A formação deste fotógrafo começou em 1970 quando frequentou o curso de pintura da Sociedade de Belas-Artes de Lisboa. Em meados dos anos 70 ingressou noLondon College Of Printing onde se graduou com o Higher Diploma in Creative Photography. No entanto, o seu interesse por fotografia tinha começado já em 1972. Em 1975, iniciou uma longa viagem pela Europa, Estados Unidos, América Latina, Médio Oriente e Ásia. Como fruto destas viagens resultam vários trabalhos para os Carnets de Route. Em 1978 regressou a Lisboa e colaborou com o jornal francês Liberation. Foi nesse ano que realizou a sua primeira viagem a Marrocos. A fascinação pela cultura árabe fez com que Nozolino realizasse várias viagens(1989-95) por países como Mauritânia, Egito, Síria, Jordânia, Líbano e Iémen. Destas viagens resultou o seu trabalho Penumbra (1996). 
Paulo Nozolino vive em Paris e a sua credibilidade faz com que várias instituições lhe encomendem trabalhos (Suspiros de chumbo-1997, Teatro Nacional S. João, Porto) e que colabore com jornais como Le monde.

Ver informação aqui.

eleiçoeiro

adjectivo

1. que se ocupa de eleições
2. referente a eleição
3. que visa captar votos

nome masculino

o que se ocupa de eleições
''Globalização? Manicómio a céu aberto.''

sábado, 3 de outubro de 2015

"Não defendo este partido, nem o outro; se ambos diferem à superfície e podem arrastar opiniões, aprofundemos nós um pouco mais e olhemos o substrato sobre que repousa a variedade; o mundo das formas levanta oposições que se desfazem à luz do entendimento; […]
Que vejo de comum ? O rebanho dos homens, ignorantes e lentos no pensar, que se deixam arrastar pelas palavras e com elas se embriagam; nos mais altos, a fuga das responsabilidades claramente assumidas, a recusa ao sacrifício de tudo ante a ideia, a disposição para manejarem a bondade e o heroísmo dos outros, o imoderado apetite do poder, o ódio cego ao adversário que procuram vencer por qualquer meio; a alimentar o fogo da acção as mesmas confusas noções, as mesmas frases de catecismo branco ou vermelho, os mesmos ritos, as mesmas superstições"


Agostinho da Silva, “O Terceiro Caminho”, Diário de Alcestes [1945], in Textos e Ensaios Filosóficos I, pp. 216-217.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Josef Koldelka, Exils, Tchécoslovaquia, 1968


"Just as a painter needs light in order to put the finishing touches to his picture, "so I need an inner light, which I feel I never have enough of in the autumn." 

― Leo Tolstoy in a letter to Nikolay Strakhov (September 23)


(Art: "Leo Tolstoy" by Leonid Osipovich Pasternak (1862-1945)

SE QUISER UM TONTO SABER


Há um ar transparente, com remoto odor a pólvora e mansões de vidro e ferro e uma foto parada à porta;
E há uma viela por onde se desemboca na manhã do primeiro domingo da cidade perdida,
E um parque de árvores altas, com assentos à sombra e uma enorme fonte
Onde os miúdos deitam barcos esperançosos sem saberem que os olha de longe a tristeza;
E há uma ilha frente ao mar, com um hotel e um leito e dois jovens nus ao meio-dia azul que banha os mármores antigos;
E há um bosque vermelho, roxo, dourado,
Que daqui a nada vai ser completamente coberto pela neve
(A neve vista pela primeira vez através dos vidros da janela naquela noite de Outubro),
Onde também está o meu coração.


Roberto Fernández Retamar
(tradução de Vasco Gato)

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

«Quando nós, os mortos, despertarmos»

Um epílogo dramático em 3 actos


Henrik Ibsen

«Quando a arte de um dramaturgo é perfeita a crítica é supérflua.»

James Joyce, 1900


[Verse 1]
And they're making children
And they're making love
With their old excuses
"We are built for reproduction"

But I find it soothing
When I am confined
I'm just fearing one day soon
I'll lose my mind

[Chorus]
Then I'll lose my children
Then I'll lose my love
Then I'll sit in silence
Let the pictures soak

Out of televisions
Float across the room
Whisper into one ear
And out the other one

[Verse 2]
Then I'll take my clothes off
And I'll walk around
Because it's so nice outside
And I like the way the sun feels

And when it's dark
I'll call out in the night for my mother
But she isn't coming back for me
Cause she's already gone

But you will not tell me that
Cause you know it hurts me
everytime you say it
And you know you're doing the right thing
You must know you're doing the right thing

[Bridge]
I have lost my children
I have lost my love
I just sit in silence
Let the pictures soak

Out of televisions (x5)

[Outro]
And they're making children
Everyone's in love
I just sit in silence
Let the pictures soak
(...)

«A memória dos rios rasava a nossa espera
em minutos de carne.
                        Ao longe o céu, em vão a paz...»


Pedro TamenRetábulo das Matérias (1956-2001). Gótica, 2000, Lisboa., p. 31

«Depois gritámos adeus e perdemo-nos de novo.»


Pedro TamenRetábulo das Matérias (1956-2001). Gótica, 2000, Lisboa., p. 21
«Agora eu sabia que em cada manhã
nasceria o sol atrás dos teus ombros.»

Pedro Tamen. Retábulo das Matérias (1956-2001). Gótica, 2000, Lisboa., p. 13

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

''mulher geniosa''



« JOVEM MULHER - Gostas de mim?

COMPANHEIRO - E tu?

JOVEM MULHER - Estou eu a perguntar-te?

COMPANHEIRO - E  tu?

JOVEM MULHER - Vais ao teu sindicato?

COMPANHEIRO - Preciso de consultar, primeiro, a Lei sobre despedimentos.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 141

« COMPANHEIRO - Seja cão, se desabafo mais contigo.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 138

«JOVEM MULHER - Vai! Se estás farto de mim, vai já, hoje!

COMPANHEIRO - Hoje não. Estou rebentado.

JOVEM MULHER - Vai amanhã, de comboio. Logo de manhãzinha, para veres nascer o sol. (Num lamento): Já não gostas de mim.

COMPANHEIRO - Ó mulher! Seria tão bom que calasses, durante quatro anos, ao menos, essa boca de trapo.

JOVEM MULHER (queixosa) - Já não gostas de mim. Eu sei. Levaste uma vida a ignorar que eu me pintava e, ainda há instantes, cuspiste na minha cara, no rimel, no pó d'arroz e no baton que uso. Julgas que eu me esqueci?

COMPANHEIRO - Deixa-me! Cala-te! Quero lá saber das tuas pinturas.

JOVEM MULHER - Quiseste desfazer-te de mim. Quiseste matar-me, para poderes casar com a tua patroa. Foi isso que sentiste, há bocado, não foi, quando eras governo? Ela é tua amante. É?

COMPANHEIRO - É. Esta mulher põe-me doido. Obriga-me a dizer o que não quero e a ser o que não sou. Agora vem-me com ciúmes. Deixa-me, pá! Necessito de sossego. Estou doente.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 137/8


«COMPANHEIRO - Em democracia, é assim. Quem não tem unhas não toca guitarra.»

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 129

«Companheiro - Um dos imperativos da democracia é o jogo político.»

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 129


«JOVEM MULHER (armando-se da vassoura) - Tenho uma tremenda vontade de te matar. Tenho cá uma enorme vontade de disparar, de amandar-te um tiro ao focinho. Vai lá pregar sermões capitalistas aos teus lacaios.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 113

''portuguesmente falando''



«JOVEM MULHER - Tenho de ir ver esse filme. De quem é a produção? A democracia cinematográfica faz milagres. Até educa os macacos.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 102

« Mim, Tarzan! Tu, Jane!»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 100

«JOVEM MULHER - Ora... A vossa diarreia verbal é muito superior, mais asquerosa e violenta que uma boa arrochada na espinha. São muito amigos da Pátria, mas que fizeram dela e por ela, durante estes 48 anos? Uma Pátria esquecida e escarnecida. Num mundo de nações, onde estava a Nação portuguesa? Em casa. Em família. No vosso bolso. Eis o que vocês fizeram da vossa querida pátria.»



Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 93

«Através de eleições, pensarão voltar a encurralar-me novamente? Mostrem-me lá a vossa propaganda. Cheira-me a pomada jibóia.»

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 92



«PRAZER - Chiu...jovem, não faças tanto barulho! Neste tipo de negócio, é indispensável a maior descrição. A mercadoria é rara, não chega para metade. Aqui a tens, linda como os amores: liamba, marijuana, coca, mescalina, beladona, ópio, haxixe ...enfim, uma beleza de sonhos ternos para a juventude. Experimenta lá esta, jovem!...»



Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 85

«COMPANHEIRO - Morres pelo povo, como o peixe pela água. Ainda não perguntaste o que ele quer, no entanto matas-te a falar nele e por ele.»

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 82

« JOVEM MULHER - Nas democracias ocidentais existe a exploração. A exploração é uma forma de escravatura. Viva o comunismo!»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 81


«PRATICANTE - Chefe! Está a ver?


INQUISIDOR - Perfeito. Sempre é o que eu te digo. O mundo está cada vez mais debochado. Quem diria! Um livro na cabeceira duma cama. E no lado da mulher! Uma sonsa destas, já viram? Tu, guarda-me as costas! Nada de descuidos. Já não querem servir só para o gozo. Qualquer dia, nem na cama querem deitar-se. Com que então, a sua patroa já não lhe serve só para a cama, hem! »

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 70

MADONNA CYGAŃSKA


« MÃE - Ainda bem que tu não me julgas parva, filha. Porque eu não o sou. Deixo comer as papas em cima da cabeça, porque deixo. Também a leoa deixa, mansa, o domador pôr-lhe a cabeça nas goelas. Compreendes, filha? Se eu não tiver paciência...quem é que a tem?»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 63

«MÃE - Fui uma vez ao cinema, quando me casei. Levou-me o meu marido. Gostei muito da fita, apesar de meter muita pancadaria. Ao teatro, nunca cheguei a ir. Gosto muito de ver teatro, mas nunca vi nenhum.»


Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 62
« JOVEM MULHER - Já abortou, alguma vez?

MÃE - Diz bem, filha. Eu própria até se me gela o sangue só de pensar nisso. Prefiro ter mil filhos. Se a parir, ainda posso ter uma vizinha à cabeceira, os abortos tenho-os eu de fazer na bruxa. E não é só a dor, a incerteza de morrer ou de viver para outro. Levo as noites a pensar que, quando fechar os olhos, irei cair nas penas do purgatório ou nas chamas do inferno. Vivo atormentada. Mas que hei-de eu fazer? Não posso ter um filho aos quatro meses e meio.»

Vasco José. A Mulher Deitada. Collecção de autor, Torres Vedras, 1977., p. 61

«camisas de vénus»

«MATAMUNDOS: Compreendo coisíssima nenhuma. Que quer o senhor que eu compreenda? Deitam-no às balsas, roubam-lhe documentos do Estado, mijam-lhe em cima, e ainda quer que eu compreenda alguma coisa? Ou acha assim tão difícil reconhecer uma velha no meio de uma dúzia de galdérias?»

José Cardoso Pires. O render dos heróis. Publicações Dom Quixote, Lisboa., 2001., p. 35

terça-feira, 29 de setembro de 2015

I Origins





perfunctório

1. que se pratica em cumprimento de uma obrigação ou sem qualquer fim útil
2. superficial
3. passageiro
4. leve

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

DE TANTO SE VEREM[A FORCE DE LES VOIR]
De tanto se verem
Há palavras que vos poriam doentes
Palavras conhecidas mas muito perigosas de manejar
A não ser que sejam rodeadas de música
Também há quem meta açúcar nas amêndoas amargas
Palavras como areia, erva
Como sol, como deitados lado a lado
Como pele dourada, como cabelos louros
Como dentes brilhantes e lábios salgados
E depois outras palavras, ainda mais perigosas
«Ninguém à vista, podemos seguir»
E as mais perigosas de todas:
«É ainda melhor à quinta vez.»
Felizmente, que há carradas de aeronaves
A fabricarem fenomenologia a granel
E a meterem-vos bombas atómicas de atravesso pela goela...
Peço desculpa… o sopro da inspiração...
Não é todos os dias que a musa nos visita.

BORIS VIAN
(...)


«O amor não é para sempre.
Mas a morte é.
A morte é para sempre.»

OS NOSSOS GOVERNOS

Numa coisa os nossos governos têm sido escrupulosamente
cristãos: mantêm a agricultura pobre para cumprir a profecia de
Cristo que diz: pobres sempre os tereis convosco.


António Cabral 

Josef Koldelka, Exils, Portugal, 1976


VISITA À CASA MATERNA

Neste dia de maio, vim ver-te, Mãe,
Vim a esta tua casa
Construída de pedras cinzentas,
Enfeitada por uma cruz e um coração de mármore.
Vim repousar a cabeça sobre o teto do teu lar.
Não te trago muitas aflições, neste dia de festa,
Não estou em desespero.
Sou um homem maduro, mais velho
Vinte anos do que tu, quando me deixaste nesta terra,
Adolescente entre os homens.
Já vi mais coisas do que viste e tive mais esperanças do que tu,
Que eras lúcida e triste desde a juventude.
Recolhi muitos desenganos; e seguirei até a morte assim
Como sou, incerto, cego, orgulhoso,
Com as desesperanças se acumulando sempre.

Aqui estou, Mãe, diante de ti, homem completo,
De cabelos grisalhos, machucado e exaltado pela vida.
Um homem ferido e estranhamente compensado pela vida,
Um homem já meio do outro lado, vergado,
Curvado ao peso de pecados e erros,
De responsabilidades, de contradições e de amarguras.
Aqui estou diante de ti, Mãe,
Aqui vim
Pedir-te que me perdoes e me justifiques.


Sou quase um velho; durante mais de meio século
Andei pelas estradas da terra, atravessei desertos,
Contemplei paisagens geladas, toquei no fundo
Da minha própria miséria e das misérias alheias.

Durante muitos anos, enquanto dormias aqui,
Fui levado para exílios e encontros de toda a espécie.
Este teu filho é um homem vivido,
É um navio provado por muitos mares,
Um navio batido, curtido por ventos e tempestades.

É um navio perdido na névoa, este homem que aqui está,
Este ser usado que procura sua mãe.
É um velho navio, é um velho homem.
Não se parece, em quase nada,
Com aquele a quem disseste adeus, para sempre,
Na hora da partida, em junho de 1922.

É um ser cansado, um pássaro exausto
Que procura o seu ninho remoto
Nesta casa de pedra em que te escondes,
Em que repousas de uma breve existência.
É um homem este que aqui está,
Em quem mal reconhecerias o filho teu,

O sensível e verde aventureiro, pronto
para os nobres impulsos,
Mas tão incerto e tão fantasioso,
Tão incapaz de perseverar e de crer longamente,
O ser matinal que tremias, Mãe, ao deixá-la, perdido
No mundo, o ser cujo destino te preocupava
Diante da revelação de tantas inconstâncias.


É um homem experimentado este que aqui está, Mãe,
mas é um poeta.
E, porque é um poeta, muito lhe será perdoado.
E, porque é um poeta, não perdeu o dom
De olhar a face da Infância
E de te ver, Mãe,
Como te está vendo nesta hora,
Com os mesmos olhos com que te contemplava
Outrora, quando eras a sua Estrela,
E o seu abrigo, o centro do seu mundo,
A força e a lei que o conduziam,
Quando eras tudo, toda a sua alegria e proteção.

Deus permitiu que em teu filho
Não se perdesse o dom de olhar
O mundo em certos instantes
Com a poesia dos que não foram poluídos,
Dos que não foram enganados pela vida.
Aqui estou, debruçado sobre o teu tÚmulo, Mãe,
E eis que te ergues diante de mim,
E eu te vejo não como adormeceste em Deus,
Pálida, vestida com o burel do Carmo,
Mas matinal e alegre, coroada de flores,
Viva e serena, na primeira e gloriosa maternidade,
Com as tranças repartidas, e no olhar
A luz da beleza intocada.
Assim te pode ver teu filho, de olhos fechados.
Assim te pode ver este homem de gestos cansados,
Este segador no fim da sega,
Este quase velho, debruçado sobre o teu túmulo.
Assim apareces, Mãe, ao filho que deixaste tão cedo,
Entre as perdições do mundo.

Mãe, aqui estou no dia de hoje,
Batendo à tua porta, procurando a tua companhia.
Não me desconheças nem perguntes quem sou.


No fundo de mim mesmo, apesar de tudo o que houve,
Das incompreensões, do pó e da amargura,
Das misérias que pratiquei e que praticaram
Contra mim; apesar da experiência do ódio e do amor,
amargos ambos,

Sou o mesmo filho que deixaste
Na orfandade
Quando partiste,
Estrela materna, flor de beleza,
Que o vento gelado crestou na juventude.

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