quinta-feira, 7 de maio de 2015

Mostrar-vos-ei quão mais profundo é o grito


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 82

4


A tua felicidade foi como um sorriso aberto numa manhã de sol,
Raiando sobre a terra numa alegria imensa.
E os teus olhos demoravam o voo das aves e alegravam-se,
Surpresos e meditativos como o olhar dos séculos
Ante o límpido acordar da paisagem.
Porém, rapidamente baixando sobre o brilho da tua alma,
Veio o sonho ajoelhar os teus joelhos,
A sombra do teu destino duro,
Da tua nudez pesada e triste.



Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 81

«Dejadme en este campo llorando.»

F.G.Lorca

estrelas húmidas

4


Tomar nas minhas mãos o sopro suave
Que aflora à tua boca.
Levá-lo aos meus lábios e beijá-lo
Como quem, timidamente,
Se debruça e escuta
o fluir do orvalho
Sobre as flores da aurora.



Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 75

ANOITECENDO, A VIDA RECOMEÇA

(1942)


«Haveis de voltar, eu sei, deuses tutelares da adolescência;
-Quantos e quantos corações bateram,
Por ti, Justiça
Por ti, Direito,
Por ti, retórica da liberdade plena,
Por ti, cadáver de vermes exaltados;
Vozes enganadoras, vozes que ninguém esquece,
Vozes de animais, se eles um dia falassem,
Vozes de revolta, não compreendidas por aqueles que as proferem,
Vozes de hálito bafiento, de lirismo doce,
Vozes de um futuro condenado à morte,
Para que se cumpra a Tua palavra, Senhor!,
Para que sejam os mortos a enterrar os mortos.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 69
«E o perdão vinha, não em vozes, não em falas,
Mas em trovoadas, em chuva de sangue, em vermelhos poentes, em
                                                                                   [ clamores famintos.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 69

«Vivo eu estava e não dormia,
Ou sonhava, ou pensava, rememorando os tempos idos.»

Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 69

«E eu procurava arrancar de mim aquela máscara
Que em mim polarizava o desespero;
Era falso o tormento, a alma que eu sentia
Não me pertencia.
E eu disfarçava aquele momento,
Falando de mim mesmo a alguém que, ausente,
Abria sobre mim as represas da angústia.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 67


«Serão minhas:
Minhas a dor e o amor que em mim se esconde.
Então regressarei »


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 63

«É ainda a dor esmagada que vos prende
Que em nós torna saudável a loucura.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 61

«É por isso que não sonhamos com nada, e a culpa não é tua nem minha; somos mal nascidos e pronto.»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 54
«Fak diz que tens razão, ele tem sempre razão, tu tens sempre razão. Deve ser por falares pouco e esconderes os teus segredos. Assim, é natural que não te enganes muito.»



Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 52/3

''A noite soprou sobre ele, soprou suavemente...»

FAULKNER


«CHARLES
Não me deixes pensar.

CÉCILE
Pára de pensar e responde-me.

CHARLES
Ou se fala, ou se pensa. Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo.»



Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 47

«CÉCILE
Pára de dormir e responde-me primeiro.

CHARLES
Não estou a dormir.

CÉCILE
Estás sempre a dormir quando te faço uma pergunta.

CHARLES
Não; estou a pensar na resposta.»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 46

«Cheiras tanto a dinheiro que até me vêm as lágrimas aos olhos. Porque te queres matar?»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 30

«O caso é que já não tenho idade, nem vontade, de recomeçar, refazer a minha vida.»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 27

«CHARLES
Então, que vieste aqui fazer?

KOCH
Vim morrer. Estou aqui para morrer.

CHARLES
(baixo) Quem deseja a tua morte?

KOCH
Ninguém. Eu.»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 27

quarta-feira, 6 de maio de 2015

The fall dance


1

                                                      Ao Francisco Stilwell

Porque os caminhos são longos
E os carreiros que a eles vão dar são misteriosos,
A razão atraiçoou-nos.
Pensámos que Deus dera o dever de desprezarmos;
A noite sem estrelas cobriu-nos
Enquanto o Senhor se mostrava a cada esquina,
Misterioso como príncipe encantado.

As noivas vendidas abriram a janela,
Com inocência abriram, e entre si ouviram,
O Senhor das almas,
Mas nós, que no leito vivíamos a sordidez da imagem,
Em sobressalto orámos;
Então o raiar da aurora descobriu-nos a nudez do corpo,
E uma outra espécie de anjos se acolheu  aos nossos braços.

É esta a minha verdade.
E a Verdade aparecerá sem ser sentida
Quando cairmos humilhados.

E aqueles que baptizados, ainda suplicam
Serão longamente atormentados
Até que Deus acabe de falar aos esquecidos
E os erga com ternura ao seu Amor!

Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 59

«Bebei os soluços, »


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55

«Faz-me sofrer por não saber dar mais.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55

«Toda a minha tristeza é feita de carícias.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 55


«Mas tu não ouves...
Só tu sobrevives e rasgas no abismo
Os véus castos do sonho!»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 54

«À proa, assinalando o meu desejo,
Perigoso no aspecto,
Passeavas, Irmão a quem, um dia,
Raptaram sem deixares de estar presente
A doçura imperturbada.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 53

«Fechados os caminhos,
Ficamo-nos olhando, indiferentes
Ao túmulo verde,
Pesado até nas flores mais belas,
Silencioso sobre águas dormentes.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 53

«Aqui começa o reino de Cham:
Florestas e desertos, aragens assassinas
E uma humanidade que se desloca desde o nascer do mundo
Com os mesmos gestos, iguais farsas,
A mesma preguiça pensativa, a mesma despreocupação
E uma alegria feita de sorrisos imperceptíveis;
Tal como sacerdotes que, uma vez sacrificada a vítima,
Monologam com Deus num cântico cerrado, feito mais de sons que de palavras,
E depois repousam sob o céu estrelado
Num grande sono de paz e de assombrado recolhimento;
Tal como as árvores da floresta em perpétuo movimento.
Oh!, ninguém sabe o drama que vai lá por dentro:
Somente a verdura se espalha em largas superfícies
Ondulantes, aveludadas, existentes;
Tal como animais que, refeitos no pasto diário,
Se dirigem ao rio mais próximo.
E aí, bebia a água, levantam o olhar límpido
E aspiram os perfumes da noite
Com a candura de gente surpreendida pelo inevitável
E ainda duvidosa de que o maravilhoso possa descer sobre os seus crimes
Como noite estrelada,
Tal como tu, terra sagrada e nua, e secreta,
Couraçada de desertos e florestas,
De rios e pântanos: nevoeiros frios
Sobre a cálida terra genesíaca.
Tuas estradas estão juncadas de cadáveres:
São mesmo os cadáveres que indicam as estradas
Onde o homem passou sem se encontrar.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 52

«E o pão não se azedava nas entranhas.»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 51

amurada

POEMAS DA VIAGEM


I

Abro o meu diário de viagem:
«Há cinco anos» - dizia - «há cinco anos...»
-Ah!, quanto o coração e as mãos me tremem -
«Há cinco anos» - diria - «há cinco anos...
Eu viajava».

E eu escuto a ver se as páginas me falam.

Como sonho noutros mundos vida,
Renasce a ilusão e trémulo sinto
Todo aquele abandono e branda aragem
Da partida.

Doce e amarga vida -
Ó navio da aventura!
No livro abrem-se abismos de um segredo
Que eu canto de pé, de olhos em frente.

Há cinco anos seria de alma alevantada.

«Acima, acima gajeiro,
Capitão das águas idas;
Vê se vez o mar inteiro
De lágrimas...
Perdidas...»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 48

Uma angústia suave nas almas nostálgicas.


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p. 46

«Não sejas a morte,
Sê ainda amor!»

Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p.43

« - O tempo, era o dos lírios - .»


Ruy Cinatti. Obra Poética. Organização e prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Imprensa  Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 1992., p.40

Nós Não Somos Deste Mundo

1941

terça-feira, 5 de maio de 2015

Perto dele, pássaros levantam vôo ruidosamente.

Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia., p. 21

DREAMING OF YOU


"De súbito
como do alto do estio
nós estamos no aqui.
Cada coisa que vemos é feliz
e nós somos o seu silêncio
ou o seu nome.
O clamor tornou-se voz
e o silêncio claro
equivalente a um fundo azul liso.
Luz lúcida
excepcional
sobre as errantes raízes
lenta portadora de uma água visível."
-"Horizonte a Ocidente"
- António Ramos Rosa

segunda-feira, 4 de maio de 2015


desejo de matar

«Não tenho vontade de arriscar a pele por causa dos seus caprichos.»


Bernard-Marie Koltès. Cais Oeste. Tradução de Ernesto Sampaio. Centro de Dramaturgias Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia.
''Pára. Precisa de se orientar.
De repente olha a seus pés.
Os pés desapareceram.''

VICTOR HUGO

''Veio-me à ideia o fim de toda a carne.''

GÉNESIS
I would like to see the shade and tree
where I can rest my head.

Burning Spear

Na solidão dos campos de algodão, 1987

gratuitidades cosmopolitas

''Captar a variação existente entre cinismo e afectividade, perceber qual é o seu jogo de proporções. Não há nada mais cínico do que os filmes sentimentais; eu prefiro o cinismo manifesto.»

Bernard-Marie Koltès

solilóquio La nuit avant les forêts

A bondade absoluta não existe

«A bondade absoluta não existe, a não ser em algumas criaturas tão excepcionais que não contam para efeitos estatísticos. As relações que os seres humanos vão estabelecendo uns com os outros estão impregnadas da ideologia mortal deste tempo: são cínicas, mas não dispensam, sobretudo nos que ainda não estão de todo desesperados (por razões de sorte ou de fortuna), uns toques de afectividade.»

Bernard-Marie Koltès

Aparição fulminante

“Doublefaced No. 58” by Sebastian Bieniek 30.04.2014.From the serial of photographs “Doublefaced”.


A NOITE QUE ME TRESPASSA O CORAÇÃO
"Meu irmão, tu nada sabes da noite,
nada sabes deste tormento que inteiramente me prostrou,
do mesmo modo que a poesia, que transportou a minha alma,
nada sabes destes mil crepúsculos mil espelhos,
que me hão-de precipitar no abismo.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que eu tive de vadear como o rio,
cujas almas foram há muito estranguladas pelos mares,
e nada sabes da fórmula de esconjuro
que a nossa Lua me abriu entre os ramos secos
como um fruto da Primavera.
Meu irmão, tu nada sabes da noite,
que me impeliu através das sepulturas do meu pai,
que me impeliu através de florestas maiores do a Terra,
que me ensinou a ver nascer e pôr o Sol
nas trevas doentes do meu trabalho diário."

Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno.

quarta-feira, 29 de abril de 2015


“É que o meu sonho constante, desde a infância, o meu contínuo e único íntimo pensamento foi o ver-me de fora, foi o desdobrar-me em Eu e em Testemunha de mim, em uma Vida estranha, curiosa, interessante, e em o Autor dela”
- Fernando Pessoa, “Uma carta da Argentina”, in A Estrada do Esquecimento e Outros Contos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2015, p.42.
LEITURA E RECONHECIMENTO
"Como é que o passado reconhecce o presente? Como é que o presente reconhece o passado? Como é que o reproduzido reconhece o reprodutor? Como é que a mulher reconhece o homem?
Ou, exprimindo-se num tom mais japonês: como é que o Agora se agita com a visitação, a condensação, a capitalização do Outrora no fundo de si mesmo?
Ao reconhecimento excessivo e impossível (do fecundande pelo fecundado) oponho três formas de não reconhecimento: o desconhecimento, o reconhecimento insuficiente ou difícil, o reconhecimento excluído."~
-"Histórias de Amor de Outros Tempos"/ "Retratos Vivos"
- Pascal Quignard

segunda-feira, 27 de abril de 2015

AVENTURA NOS POÇOS DO DESEJO

"Ao olho incendiado que me despe fujo delicadamente ( as grandes oportunidades que por delicadeza se perdem!).
E o amor feito e desfeito como uma cama.."

-"Poemas Com Endereço"
- Alexandre O'Neill
- Moraes Editores, 1962 (Primeira Edição)

sexta-feira, 24 de abril de 2015


LUZ NATURAL
"A luz ficava bem à sua graciosidade e habitava entre
Cegos olhos e sombras que têm formas de homens;
Olhem, vejam como a luz nos derrete num cântico:
A luz do sol quebrada traz ela comom escudo
Que tem o meu coração sob a sua jurisdição.
No bosque selvagem nunca a cria da corça
Andou tão silenciosa; nenhuma teia é tecida
Tão delicada como ela, quando o sol
Afasta as claras esmeraldas das ervas inclinadas
Para que estes não seguem tão depressa, por onde ela passa."
-"Poemas Escolhidos"
- Ezra Pound
« - Procuro descobrir se há uma outra por detrás de ti. Uma outra Clarisse, a verdadeira.
   -Mas por que não há-de ser esta a verdadeira?
   -É o que pergunto em certos momentos.

(...)

  Fui possuído pela sensação de que, na maioria das vezes, eu era para Clarisse um inimigo atento ao mínimo deslize que lhe pudesse trair os defeitos. Tinha de me defender contra isso, tanto como das armadilhas do seu humor instável. »



Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 172

''cio das árvores a florir''

''castanho sanguíneo''


«Nem eu nem Clarisse falávamos, mas cada um de nós ia, decerto, com os nervos saturados do diálogo irritadiço dessa tarde, das frases que haviam ficado por dizer, reagrupando agora esses fragmentos talvez para os suavizar ou azedar mais ainda.»


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 168

«-Uma garota de nariz arrebitado. Caprichosa, volúvel, nem sempre fácil de aturar.
  -Volúvel? - repetiu Clarisse, numa inflexão interrogativa mas sonâmbula, como se recitasse uma frase vazia de sentido.
   -...E sobretudo uma garota que me puxa demasiadamente pela língua. Já devias saber que a loquacidade não está nos meus hábitos.»


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 166

The Red Shoes (1948) directed by Michael Powell and Emeric Pressburger


« - Às vezes tenho a impressão de que falo, ou que me escutas, de muito longe. E quando me calo, é como se nenhum de nós fosse real. - E emudeceu, a sopesar a verdade do que dizia.
   -Ao menos tu, serás real?
  Que podia eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto a minha própria emoção.
   -Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
    -Mas eu não invento a tua frieza.
   Bem vi que outros pensamentos lhe galopavam de encontro às têmporas. Não lhes daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando, gradualmente, embora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
   - Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
    Escorei-me nos antebraços. Procurei um cigarro nos bolsos. Media, à régua, as palavras que iria dizer.
    -Que te sentavas num café com esse arzinho provocante...E se falássemos de outras coisas? A propósito, Clarisse: usavas um gracioso colete de bombazina. Veste-o um dia destes. Ficava-te muito bem.
    Ela fixava-me, dorida, a desvendar um estranho.
    -Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco, mas não se ouve a pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o murro.»

Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 164/5
esclerosar

verbo transitivo, intransitivo e pronominal
1. (fazer) adquirir esclerose
2. figurado (fazer) perder capacidades físicas e/ou intelectuais; tornar senil
3. figurado (fazer) estagnar; não permitir a evolução (de)

ganapo


nome masculino

1. regionalismo rapaz pequeno, garoto, catraio
2. indivíduo velhaco
«Reparei quanto ela estremeceu de gula.»

Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 153

Setenta anos sem Hitler


A PALAVRA CORPO
"Aquilo de que eu gosto no teu corpo éo sexo.
Aquilo de que eu gosto no teu sexo é a boca.
Aquilo de que eu gosto na tua boca é a língua.
Aquilo de que eu gosto na tua língua é a palavra."
-"Papéis Inesperados"
- Julio Cortázar
UMA SEMANA DE BONDADE
"O molar solitário de uma prostituta,
que morrera no aonimato,
tinha uma aplicação de ouro.
Os restantes, como por mudo acordo tácito,
tinham caído.
O funcionário da morgue arrancou-o,
pô-lo no prego e foi dançar.
É que, dizia ele,
só o que é terra à terra deve voltar."
- Gottfried Benn -
-"Expressionismo Alemão: Antologia Poética"
- Gottfriend Benn/ Georg Trakl / Ernst Stadler/ Georg Heym...
- Tradução: João Barrento

quinta-feira, 23 de abril de 2015

mimalhices

ferroada



«A minha convivência nos desatinos e excessos de Clarisse traduzia apenas a solidariedade que se deve a um ser humano desesperado. E, sobretudo, solitário no seu desespero.  Era este o disco entorpecente que fazia girar dentro do meu amor-próprio. E seria amor o que ela sentia?»



Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 145

«Talvez não seja inteiramente sincero ao dizer isto, pois, as mais das vezes, eu procurava muito mais interpretar-me, iludir as minhas acusações, do que ajudar Clarisse a libertar-se do pavor do dia seguinte. «Nada tenho dentro de mim a não ser o medo.» Ela bem o percebia, bem percebia o meu egoísmo. «Os homens são tão ciosos da sua invulnerabilidade! Tão estupidamente egoístas! (...)»



Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144

MARILYN MONROE BY ANDRÉ DE DIENES, 1953


''grandiloquências românticas''


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 144

''nuns monossílabos acerbos que ele se dispensava de ouvir''


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143

''encurralava-me nas grades do meu mutismo''


Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 143
«Desta vez, eu tinha o cigarro entre os dedos. Ia-o deixando queimar-se até ao fim, ardendo-me na pele, e nele se consumiria, também, a minha indecisão. Um pouco mais, e iria sentir o saboroso ardor da carne martirizada.»

Fernando Namora. Domingo à Tarde. Editora Arcádia. 4ª Edição. p. 139

''desbotada resignação''

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Quando a mãe se abeirou da cova
o corpo inerte pediu-lhe colo
numa língua que só as mães podem escutar
e a mulher mergulhou no sangue do seu sangue
coalhado
e que ainda assim continua a correr-lhes nas veias
como um membro amputado que mantém a presença num formigueiro inexistente
e no momento em que tornaram a cortar-lhe o cordão umbilical
não se ouviu o grito de choro da cria
apenas os guinchos que explodiam da garganta dilacerada da mãe
o horror
mantendo a boca aberta sem emitir som
cobriu com o seu corpo vivo o outro que jazia
deixando escorrer a baba que lhe escapava sem intenção
o dique descontrolado de fluídos
nessa barbárie de máquinas aplicada ao corpo
o corpo que obedecia a ordens continuando a manter funções
quando deveria ser esmagado

a mãe viu o pedaço de vidro ao lado do morto
um destroço da explosão deixado em divina correspondência
pegou na lâmina e cravou-a no pescoço
esguichou-se por inteiro até ao esvaziamento
a poça encarnada abarcou a família
e toda a descendência.
Na guerra só há razão. A barbárie alimenta-se de crânios.

Cláudia Lucas Chéu. in 70 Poemas Para Adorno, Vários Autores, Nova Delphi Editora, Funchal, 2015.

Al Berto em Coimbra, numa sessão de poesia from Rita Leonor Barqueiro on Vimeo.

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