quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
«O amor teria um rosto como o tempo, a melancolia ou o medo. Eu vivia com aquele rosto ainda vazio.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 130
«Aproximei-me dela, tomei-lhe o rosto nas mãos e tentei ler nos seus olhos. Estavam vazios como uma casa abandonada.Tinha as mãos frias. Falei-lhe; ficou impassível.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 123
terça-feira, 2 de dezembro de 2014
«Olhava o mundo e não o amava.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 119
«Aquele regresso foi uma prova dolorosa. Conheci o tédio e o isolamento. Restringira-me a um mundo a que ninguém tinha acesso e, também eu, me pus a esperar. Esperar o fim da licença para retomar a estrada, partir sem olhar para trás e nunca mais voltar.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 119
«Aquelas rochas de espera e do esquecimento, deviam fasciná-los. Delas brotariam outras vidas, outros destinos armados de pedras, de tufos de erva seca, de raiva e de loucura. As montanhas vigiavam-nos, olhavam para eles noite e dia, sem impaciência, sem nada perderem da sua violência silenciosa. Também elas esperavam.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 118/9
«- E, na tua opinião, aquele negrume que solta, não será da tua alma? Não te sentes a perder um pouco do teu fôlego? Não estarás a esvaziar-te? Responde.
Provocara-me. Decidi ser tão forte como ela e adoptei o seu tom:
- E aquele fio vermelho que atravessa o negrume, não será um pouco do teu sangue? Tens a certeza de não estar, neste momento, a perder o teu sangue? Olha bem para as tuas mãos, as tuas pernas, o teu nariz. Olha-te na água. Verás como estás pálida. »
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 113
«É preciso desconfiar das pessoas silenciosas.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 112
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
«Noite de presas inúteis perfurando os olhares desvairados.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 104
«(...) a brasa do ódio é um vulcão furioso que nenhum céu extingue.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 103
«À noite estava cansada e sofredora, experimentada, mas feliz porque tinha conseguido preservar o meu segredo. O mar pertencia-me. Não ousava abrir a mão direita. Guardava tudo, profundamente escondido em mim. O mar era aquele jardim onde, um dia, me poderia isolar, longe do barulho.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 90
Agostinho da Silva: “[…] Sobretudo no amor se deve ter cuidado; gostar dos outros e lhes querer bem tem sido o motivo de muita opressão e de muita morte dos espíritos. […] Não tens, essencialmente, de amar nos outros senão a liberdade, a deles e a tua; têm, pelo amor, de deixar de ser escravos, como temos nós, pelo amor, de deixar de ser donos do escravo”.
PORMENOR
A casa de pedra em ruínas
tem uma velha macieira
lá deixada pelo agricultor
que levou tudo o mais
Dá fruto todos os anos
frenética e bichenta
com maçãzinhas amargas
que ninguém come
até as crianças já sabem
Durante todo o Inverno
passei por ali a caminho de
Trenton duas vezes por mês
reparando nas maçãs penduradas
apesar dos ventos tempestuosos
por vezes com barretes de neve
pequenas campânulas douradas
É possível que nenhum dos outros
viajantes tenha olhado nessa direcção
mas não vou fazer nenhuma parábola com eles
estiveram lá e nada mais
Inexplicavelmente dou por mim a recordar
e a pensar nessa árvore sem folhas
e nos seus frutos fermentados
numa semana para os finais de Janeiro
em que o vento derrubava o sol
e a terra tremia como um quarto frio
onde ninguém seria capaz de viver
entre temperaturas negativas
mudas campânulas douradas
sozinhas na tempestade
tem uma velha macieira
lá deixada pelo agricultor
que levou tudo o mais
Dá fruto todos os anos
frenética e bichenta
com maçãzinhas amargas
que ninguém come
até as crianças já sabem
Durante todo o Inverno
passei por ali a caminho de
Trenton duas vezes por mês
reparando nas maçãs penduradas
apesar dos ventos tempestuosos
por vezes com barretes de neve
pequenas campânulas douradas
É possível que nenhum dos outros
viajantes tenha olhado nessa direcção
mas não vou fazer nenhuma parábola com eles
estiveram lá e nada mais
Inexplicavelmente dou por mim a recordar
e a pensar nessa árvore sem folhas
e nos seus frutos fermentados
numa semana para os finais de Janeiro
em que o vento derrubava o sol
e a terra tremia como um quarto frio
onde ninguém seria capaz de viver
entre temperaturas negativas
mudas campânulas douradas
sozinhas na tempestade
Al Purdy
(tradução de Vasco Gato)
domingo, 30 de novembro de 2014
funâmbulo
nome masculino
1. equilibrista que anda ou dança em corda bamba
2. figurado o que muda de opinião ou partido; indivíduo inconstante
3. ZOOLOGIA espécie de esquilo indiano
«Naquele dia fiquei a conhecer a vergonha.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 83
« - Nenhuma árvore aqui - disse-me ele um dia - é digna de usar o teu nome.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 81
«Fui menstruada pela primeira vez no dia do regresso da minha mãe. Estava a dormir quando senti um líquido quente correr entre as minhas coxas. Não estava verdadeiramente prevenida, mas sabia que passava, assim, a ser mulher.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 79
FERNANDO PESSOA
[13/06/1888-30/11/1935]
“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus”.
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus”.
Alberto Caeiro, Poemas Inconjuntos
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Fernando Pessoa / heterónimos
DA FESTA LONGA E TRISTE
Alguém estava a dizer
algo relacionado com as sombras que cobrem o campo, com
o passar das coisas, a forma como dormimos apontados à manhã
e a manhã vai-se.
algo relacionado com as sombras que cobrem o campo, com
o passar das coisas, a forma como dormimos apontados à manhã
e a manhã vai-se.
Alguém estava a falar
da forma como o vento amaina para depois regressar,
como as conchas são os caixões do vento
embora o tempo continue.
da forma como o vento amaina para depois regressar,
como as conchas são os caixões do vento
embora o tempo continue.
A noite ia longa
e alguém disse algo sobre a lua a derramar a sua brancura
no campo frio, que mais para a frente não havia nada,
apenas mais do mesmo.
e alguém disse algo sobre a lua a derramar a sua brancura
no campo frio, que mais para a frente não havia nada,
apenas mais do mesmo.
Alguém mencionou
uma cidade em que estivera antes da guerra, um quarto com duas velas
encostadas a uma parede, alguém a dançar, alguém a observar.
Começávamos a acreditar
uma cidade em que estivera antes da guerra, um quarto com duas velas
encostadas a uma parede, alguém a dançar, alguém a observar.
Começávamos a acreditar
que a noite não iria chegar ao fim.
Alguém dizia que a música terminara sem que ninguém tivesse reparado.
Até que alguém disse algo relacionado com os planetas, com as estrelas,
com a sua pequenez, como estão longe.
Alguém dizia que a música terminara sem que ninguém tivesse reparado.
Até que alguém disse algo relacionado com os planetas, com as estrelas,
com a sua pequenez, como estão longe.
Mark Strand
(tradução de Vasco Gato)
(tradução de Vasco Gato)
ELEGÂNCIA
Tudo o que está descuidado.
Abandonado à quietude
nesse puro silêncio que se funde
com a quietude da natureza.
Uma porta desconjuntada,
penumbra e sombras numa sala vazia.
Fendas de luz. Em carne viva ali onde
a ferrugem trespassou o telhado de zinco.
O restolhar das ervas ao sabor dos seus
vários tipos de ar pela manhã,
ano após ano.
Uma nogueira, e a casa
feita de tijolos de adobe. Uma beleza
precisa e inesperada, a trepidar
e a cantar. Se não para o sol,
então para nada e para ninguém.
Abandonado à quietude
nesse puro silêncio que se funde
com a quietude da natureza.
Uma porta desconjuntada,
penumbra e sombras numa sala vazia.
Fendas de luz. Em carne viva ali onde
a ferrugem trespassou o telhado de zinco.
O restolhar das ervas ao sabor dos seus
vários tipos de ar pela manhã,
ano após ano.
Uma nogueira, e a casa
feita de tijolos de adobe. Uma beleza
precisa e inesperada, a trepidar
e a cantar. Se não para o sol,
então para nada e para ninguém.
Linda Gregg
(tradução de Vasco Gato)
(tradução de Vasco Gato)
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
«(...) e os ratos a precipitarem-se-lhe sobre o ventre, o sexo, arrancando farrapos de carne em sangue. Esse espectáculo que eu servia frequentemente dentro da minha cabeça, fazia-me estremecer.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 36
Descobri que o meu corpo podia sentir outra coisa além do frio e da fome...
«Apertava as mãos entre as coxas e não sentia vergonha. Foi ao acordar que senti o peso de uma enorme culpa. Não me sentia à vontade, e pus-me a detestar Halifa e a ter nojo de mim mesma. Descobri que o meu corpo podia sentir outra coisa além do frio e da fome, do calor e do cansaço.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 31
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 31
«A minha mãe era a metade da pedra polida que representava o meu pai. Com um pedaço de giz, traçara uma linha a meio da pedra e sabia que esses dois seres eram inseparáveis «na vida até à morte». O meu irmão era uma pequena pedra frágil que se esboroava mal se lhe tocava. Era a minha pedra preferida. Quanto à minha tia, não era uma pedra, mas um escorpião morto que eu apanhei e instalei no fundo da minha gruta.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 28
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Foi para mim um dia negro.
«Foi para mim um dia negro. O meu pai fechou-me no estábulo e deixou-me durante todo o dia sem alimento. Lembro-me de ter bebido água suja de um tacho reservado aos animais. Passei mal toda a noite, mas não foi por causa da água. Estava ferida - tinha vergonha - e a partir desse dia, fiquei a saber que nunca se pode faltar ao respeito aos pais.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 27
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 27
«Uma ave nocturna sobrevoou-nos, naquele preciso instante, e eu soube que um drama ia sobrevir.»
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 20
pele verde-pálido
Tahar Ben Jelloun. De olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 17
domingo, 23 de novembro de 2014
Nascimento Último
Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva
densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
Respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que flui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa, in Cada Árvore é um Ser para Ser em Nós (2002)
84 ANOS (23/11/1930)
"Se o conhecimento é uma forma de escrita, mesmo sem palavras, uma respiração calada, a narrativa que o silêncio faz de si mesmo, então não se deve escrever, nem mesmo admitindo que fazê-lo seria o reconhecimento do conhecimento. Pode escrever-se acerca do silêncio, porque é um modo de alcançá-lo, embora impertinente. Pode também escrever-se por asfixia, porque essa não é maneira de morrer. Pode escrever-se ainda por ilusão criminal: às vezes imagina-se que uma palavra conseguirá atingir mortalmente o mundo. A alegria de um assassinato enorme é legítima, se embebeda o espírito, libertando-o da melancolia da fraternidade universal. Mas se apesar de tudo se escrever, escreva-se sempre para estar só. A escrita afasta concretamente o mundo. Não é o melhor método, mas é um. Os outros requerem uma energia espiritual que suspeita do próprio uso da escrita, como a religiosidade suspeita da religião e o demonismo da demonologia. A escrita - inferior na ordem dos actos simbólicos - concilia-se mal com a metamorfose interior - finalidade e símbolo, ela mesma, da energia espiritual. O espírito tende a transformar o espírito, e transforma-o. O resultado é misterioso. O resultado da escrita, não".
Herberto Hélder, Photomaton & Vox, 1979
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
«Mastigava, de olhos postos no prato.»
Cesare Pavese. A guitarra quebrada. Traduzida pelo italiano por José da Fonseca Costa. Editorial Minerva, Lisboa, p. 210
« - O futuro não se adivinha - respondi. - Só se pode dizer, a partir daquilo que se fez, o que se fará.
- Isso é verdade - respondeu. - Fazem-se sempre as coisas já antes feitas.
-Mas tu nem sempre sabes as coisas que fizeste - disse-lhe. - Todos os dias começas uma nova.»
Cesare Pavese. A guitarra quebrada. Traduzida pelo italiano por José da Fonseca Costa. Editorial Minerva, Lisboa, p. 204
António Lobo Antunes: "Não tenho muito jeito para viver"
Não gosta de conversas, de entrevistas então ainda menos. "A única coisa a que os leitores têm direito são os livros", costuma afirmar António Lobo Antunes, 72 anos. Com isto, o escritor quer dizer que o que importa é a literatura. E também que não se esperem grandes revelações sobre a sua vida privada: "Tenho relações de intimidade com duas ou três pessoas." Do dia a dia de Lobo Antunes há apenas algumas coisas que perpassam nas crónicas que publica na VISÃO, sobretudo nas que se aproximam mais do género diário pessoal.
"Eu só sou o António Lobo Antunes com o papel na mão. Sem o papel na mão, sou um chato."
Não, não é um chato. Apesar de todas as angústias, António Lobo Antunes mantém um sentido de humor de que vale a pena falar. Adora uma pequena história, um diálogo sem nexo, uma incongruência divertida. É capaz de se rir até às lágrimas de uma frase possidónia proferida por alguém, não importa quem. E de voltar a contá-la, acrescentando-lhe uma graça que nem todos poderão gabar-se de possuir. Lobo Antunes tem, isso sim, uma vida rotineira, uma vida de dedicação total à escrita. E, ao mesmo tempo que diz escrever porque não sabe fazer mais nada, também é capaz de dizer que está cansado de tudo.
"No princípio só vinha para aqui escrever. Já estou farto, apetece-me mudar de sítio. Nunca aguento muito tempo numa casa. Passado uns tempos, começo a ficar cansado. Não sei o que é e, sobretudo, não sei até que ponto é que quando estou a dizer que estou farto desta casa, não posso estar a dizer 'estou farto de mim'."
Vem aí uma daquelas alturas. António Lobo Antunes já acabou de escrever a primeira versão do livro (o terceiro depois deste que agora chega às livrarias, Caminho Como uma Casa em Chamas, sendo que, pelo meio, ainda terminou outro, que sairá no próximo ano) e tem em cima da sua mesa de trabalho um monte de folhas A4 que é preciso rever e cortar, cortar e rever. Anda às voltas com uma personagem, uma surda-muda que lá aparece. E lembra-se dela, a propósito de nada, antes de, na Avenida de Roma, entrar para o dentista onde há meses passa duas tardes por semana.
"- Não tenho muito tempo livre.
- E o que faz nos intervalos dos livros, quando não está a escrever?
- Coisas inconfessáveis [risos]."
Os dias estão mais frios e, às quintas-feiras, já não há jantar em casa dos pais, em Benfica. A mãe, Margarida, morreu quase há dois meses; um dos irmãos, Pedro, vai fazer um ano. Na semana passada, pela primeira vez depois da morte da mãe, o seu irmão João, o neurocirurgião, convidou os manos para jantar. Da casa da infância, António Lobo Antunes só quis trazer uma fotografia da mãe. Tem-na, emoldurada, nova, bem vestida e elegante, rodeada de estantes com livros até ao teto, de frases escritas na parede, de quadros pintados por Júlio Pomar.
"Nos hospitais, vi muita gente morrer, mas nunca vi ninguém chamar pelo pai. Agora olho para aquele retrato e penso: é a minha mãe. Só com a morte dela é que me dei conta da sua importância. Há aquela frase de Conrad tão dramaticamente verdadeira: tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento sobre ela que chega tarde demais."
Impressiona qualquer um, a quantidade de frases que António Lobo Antunes sabe de cor. Poemas, bocados de livros, diálogos, histórias. Sim, memória de elefante. As suas entrevistas estão cheias de citações, como se houvesse sempre uma à medida de cada pergunta jornalística. Já se disse aqui que não gosta de entrevistas, "uma espécie de interrogatório policial" (acha o próprio) durante as quais o alegado suspeito não larga a sua personagem (acrescentamos nós). E este, em concreto, diz apenas o que quer. Nos últimos tempos, por exemplo, tem-lhe apetecido dizer mal do Governo.
"Os portugueses merecem muito melhor, merecem muito mais do que o Governo que têm, muito mais do que a maneira como os obrigam a viver. Já ouviu um discurso do primeiro-ministro? A quantidade de erros de português que ele dá... Como é que podemos ser governados por pessoas que nem sequer sabem falar português? Não posso com esta mediocridade, com este vazio de ideias, com esta mentira constante. 'Decisão irrevogável'? O meu pai nunca admitiria que um filho seu voltasse atrás com a palavra. E isto passa-se no mundo inteiro. Há pouco tempo, George Steiner comentou comigo que nenhum dos bons alunos de Cambridge ia para a política: só os medíocres vão para a política."
António Lobo Antunes sobreviveu a mais um cancro. A dois, um em cada pulmão. O médico que o assistiu disse que o curava - e curou. Faz exames regulares, come rebuçados de mentol para ver se consegue reduzir o número de cigarros que ainda fuma. Fica com a boca impregnada de mentol. E continua a fumar. "Dá-me prazer." Tirando as viagens ao estrangeiro, sempre por causa dos livros, pouco sai de casa. Não vai de férias, nem de fim de semana (houve um tempo em que, como os magalas, tirava as tardes de sábado).
"Não tenho muito jeito para viver. E acho que os livros são a minha redenção."
Escreve dez horas por dia, sete dias por semana, com uma disciplina que poucos escritores no mundo devem ter. E a vida só existe assim. Umas vezes, os livros são tudo. Outras vezes, são "só papéis": "O que é isto comparado com a pavorosa realidade de, daqui a nada, estar no dentista?". É capaz de fazer, de enfiada, seis crónicas, "prosinhas", para depois regressar ao livro sem interrupções (o galope é outro, já explicou várias vezes). Almoça num dos cafés do bairro onde vive, o Conde Redondo. O prato do dia e, muitas vezes, uma sobremesa (tem gostos de garoto, pede leite-creme ou mousse de chocolate). Recebe visitas de meia dúzia de pessoas, três filhas, amigos, a editora Maria da Piedade Ferreira. E telefona a outra meia dúzia. De resto, está sempre ali, a escrever. Contabilidade bibliográfica: 25 livros (não quer que lhes chamem romances), mais cinco volumes de crónicas.
"A presença das pessoas não me incomoda nada. Desde que não falem comigo, escrevo em qualquer sítio. A Agustina dizia que, se fosse preciso, até escrevia numa cabina telefónica."
Conta-se que, quando terminava um livro, Iris Murdoch dava uma volta ao quarteirão e começava logo a escrever outro. No caso de António Lobo Antunes, os intervalos entre os livros duram três ou quatro longos meses. Nessas alturas, lê tudo o que apanha. Romance, ensaio, poesia. O que quer voltar a ler, o que gosta muito de ler (Tolstoi e Dostoievski, ditos com a bonita pronúncia que um amigo, professor de literatura russa, lhe ensinou), o que vai saindo, o que lhe mandam. É um grande leitor.
"Quando uma pessoa tem talento, percebe-se logo. Às vezes até na cara se percebe. As pessoas com talento têm uma certa aura. Marlon Brando pode estar metido num cantinho da tela, mas nós só reparamos nele quando olhamos para lá. Uma vez, vi Chagall a pintar os tetos da ópera de Nova Iorque. Era um homem de 80 e tal anos, pequenino, feiíssimo, estava sentado no chão a trabalhar e, no entanto, eu não consegui tirar os olhos dele."
Depois, há um dia em que marca uma data no calendário, para se obrigar a si próprio a começar. Não faz concessões de espécie nenhuma. As personagens não têm nome, os livros não obedecem a um plano organizado, têm o número de páginas que precisam de ter. Nas entrevistas, fala pouco ("Não tenho nada para dizer") e quase nada sobre o livro que é suposto ser promovido. Tem por hábito citar D. Francisco Manuel de Melo: "De que trata o livro? O livro trata do que vai escrito dentro."
"Gosto das pessoas que têm cara de quem vive. E isso não tem a ver com beleza. Normalmente, as pessoas que eu acho atraentes não são bonitas, têm um charme lento, que eu não sei explicar. Acontece-me o mesmo com as cidades. Não gostei nada de Paris nas primeiras vezes que lá fui, mas depois, a pouco e pouco, aquilo vai entrando dentro de nós. Não há nada a fazer, o talento é como um berlinde na mão, ou se nasce com ele ou não se nasce. O grande Curro Romero (conhece Curro Romero, o imortal toureiro?) tinha uma frase que explicava isto: o que não se pode não se pode e, além disso, é impossível."
Lobo Antunes mudou-se para o Conde Redondo há meia dúzia de anos. Começou por escrever num rés do chão transformado em ateliê de design que pertencia a um primo bastante mais novo (José Maria Nolasco, que, entretanto, morreu). Era um sítio escuro e frio, no inverno chegava a escrever de luvas e casaco. Depois, Tereza Coelho, a sua antiga editora, que também já morreu, descobriu a casa onde hoje vive ("onde estou", prefere dizer) e insistiu em que ele viesse para aqui.
"Comprei esta casa com o dinheiro de uma tradução de um livro que vendi para Espanha."
A casa - num prédio recuperado, com grandes janelas a toda a largura da fachada - não fica longe do Hospital Miguel Bombarda, onde, quando ainda exercia psiquiatria, passava muito do seu tempo. Isso, agora, já não lhe diz nada. Entra e sai da garagem e, quando sai a pé, não passa do virar da esquina (isto não se devia divulgar, mas atravessa a estrada fora da passadeira, quase sem olhar). Quando alguém, seu leitor, se aproxima, fica satisfeito.
"É agradável as pessoas gostarem do nosso trabalho. Temos uma sede infinita de amor. E de reconhecimento. Por muito certos que estejamos do nosso talento e da nossa capacidade de escrever."
E agora que - graças a um superaparelho que lhe "ressuscitou" um ouvido quase morto - ouve melhor, já nem tem a desculpa da surdez para fingir que não ouve.
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