sábado, 29 de agosto de 2015


«Não dizem nunca roubo, mas, esmola.
Não dizem vício e amor, mas, sofrimento.»

Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 177

«E as nossas mãos brincavam com o lume
À beira da impaciência
E do ciúme...»

Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 164

André Kertész, Bathing, Dunaharaszti, Hungary, 1919



«Saudades o que são? São cinzas frias
Que foram fogo e luz no coração;»


Anrique Paço D' Arcos. Poesias Completas. 2.ª Edição. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2006., p.

«Fui pedir um sonho ao jardim dos mortos.»


Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 66

«E havia um cristal no vento
E havia um cristal no mar.
E havia no pensamento
Uma flor por esfolhar...»

Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 56

«Tive presságios de adeus.»


Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 42

Andrei Tarkovsky, still from Nostalghia, 1983 (Russian house inside an Italian cathedral)


       QUANDO O VENTO
DOBROU TODO O SALGUEIRO...



Quando o vento dobrou todo o salgueiro
E as folhas caíram sobre o tanque
Disseste-me em segredo:
- A vida é como as folhas
E a morte como as águas!

Depois, à nossa frente,
Um pássaro cortou com o seu voo azul
Os caminhos do vento.
E tu disseste ainda:
-O amor é como as aves...

Mas quando aquele pássaro, ferido
Já não sei por que bala,
Veio cair no tanque,
Mais negros e mais fundos os teus olhos
Prenderam-se nos meus!
E não disseste nada...


Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983., p. 35
«De tanto pensar na morte
Mais de cem vezes morri.»


Pedro Homem de Mello. Poesias Escolhidas. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983
«...Compreendi então que nunca mais
a poderia deixar quando me beijou
pela primeira vez e a sua boca sabia a
esperma ainda fresco»


Jorge de Sousa Braga. O Poeta Nu. Fenda Edições, 1991., p. 71


A LUA E MARILYN

(...)

«Gostaria de me encontrar depois contigo num dos
     manicómios desta cidade (há vários e vai ser
     difícil escolher)
Talvez nos pudéssemos dedicar aí a cultivar rosas
     amarelas e fragantes
nos jardins da nossa inconsistência.»


Jorge de Sousa Braga. O POETA NU. Fenda Edições, 1991., p. 63

DOUGLAS MORRISON
                   JAMES
                 1943-1971


cogumelos vermelhos com pintas brancas cresciam
       livremente sobre a sepultura
estava inchado mas os seus olhos perdidos algures no
       Pacífico
conservavam o mesmo brilho de sempre


Instalei-me o melhor que pude tinha chovido há
       pouco e a relva estava molhada


Premi o botão do gravador e
      fiz-lhe a primeira pergunta: - Jim
segundo a Agência Noticiosa do Paraíso ocorreram
      incidentes lamentáveis durante o teu último
      concerto
em Jerusalém
que te masturbaste freneticamente para cima da
      assistência enquanto entoavas um salmo do
      Antigo Testamento
-O espectador é um animal agonizante-
     comentou -
foi uma reacção contra o onanismo de Deus
-O que é a loucura Jim?
-É teres-te esquecido da mala de viagem no útero
        da tua mãe
e quereres voltar atrás para a recuperar
ou semeares arroz nas planícies dos teus olhos quando
       já não há lágrimas para chorar
Passei então a explorar
a sua infância em Melbourne na Florida os tempos
       do Whiskey a Go-Go em Los Angeles
as suas ligações mal conhecidas com o profeta Isaías
-Jim a como está o grama de marijuana no Paraíso?
-A um dólar e dez cents - disse ele.
-Jim uma última pergunta
Que sentido faz um poeta depois de morto? ... -
Não cheguei a ouvir a sua resposta porque entretanto
      acordei
estava deitado na minha cama os primeiros raios de
      sol penetravam como que a medo pelas frin-
      chas das persianas
um pássaro cantava no telhado




Jorge de Sousa Braga. O POETA NU. Fenda Edições, 1991., p. 51/2

«Eu sou a má consciência do meu século. Tenho a
cabeça cheia de ratos e não consigo ver-me livre
deles. Nenhum raticida (o trigo roxo inclusive) se
revelou ainda eficaz.»


Jorge de Sousa Braga. O POETA NU. Fenda Edições, 1991., p. 50

«A não ser que se tomem as devidas providências
dentro em breve será celebrada na catedral de S.
Marcos a primeira missa submarina para alguns
cardumes de peixes boquiabertos.»

Jorge de Sousa Braga. O POETA NU. Fenda Edições, 1991., p. 48
«& a visão da primeira bomba no céu de Hiroshima:
fez-me crescer momentâneamente a água na boca
assim como à milhares de apreciadores de cogumelos.»

Jorge de Sousa Braga. O POETA NU. Fenda Edições, 1991., p. 44

«Era quase tão bela como a Vénus de Milo. Um dia,
cortou os braços a sangue frio.

Jorge de Sousa Braga. O Poeta Nu. Fenda Edições, 1991., p. 36
Um tufão chamado Marilyn varreu recentemente uma
das ilhas do Japão, tendo deixado um rasto de inúme-
ros cabelos loiros presos nas árvores.



Jorge de Sousa Braga. O Poeta Nu. Fenda Edições, 1991., p. 32

HOMENAGEM AOS MORTOS DA GRANDE
           GUERRA


Uns caíram porque não tinham pernas
Outros caíram porque foram empurrados
Outros ainda caíram porque tinham que cair
Eu cheguei atrasado como sempre
(quase duas décadas depois)
e só tive tempo para enxugar os olhos


Jorge de Sousa Braga. O Poeta Nu. Fenda Edições, 1991., p. 21
DE MANHÃ VAMOS TODOS ACORDAR COM
         UMA PÉROLA NO CU


Jorge de Sousa Braga. O Poeta Nu. Fenda Edições, 1991.,

«Nunca nada tive,
Menos tenho ao fim.»


José Régio. Música Ligeira. Volume Póstumo. Portugália Editora. 1ª edição: 1970. p. 55


    «Nem a tristeza
       Me pesa
Se te encontras a meu lado.»


José Régio. Música Ligeira. Volume Póstumo. Portugália Editora. 1ª edição: 1970. p. 55

tela

Calam-se as vozes, pensam-se saudades.

José Manuel Capêlo. corpo-terra. Trelivro, Lisboa, 1982., p. 75



«Não precisavas de mais nada
a não ser
os necessários comprimidos
que te aguentavam o coração
ou, todos os amigos
de que precisavas e não vinham
ou, o grande amor que há dentro
da tua alma refugiada no pano de pó.»


José Manuel Capêlo. corpo-terra. Trelivro, Lisboa, 1982., p. 61


em times square


Rasgaram-se as rosas
no encadeado dos dedos
bem como o apetite
de quem tem raiva nos olhos...
Parti à procura da luz
que vinha do sexo
(por onde me debruçava)
acabando por encontrar a
tua face
enamorada de outras rugas!
Times Square
não tinha mudado de sítio
nem tão pouco
as mãos dos pobres
que se estendiam a cada canto.
Quando plenamente te ris-te
compreendi que tinha
outro céu
à minha frente...

22.Outubro.1981
Lisboa/Portugal


José Manuel Capêlo. corpo-terra. Trelivro, Lisboa, 1982., p. 56
«Puxo de vários cigarros e fumo-os avidamente.
No meio deles, reparo
há metade do meu vazio
como no choro de uma criança
que não tivesse lágrimas
como nas badaladas dum sino
que não tivesse horas.»


José Manuel Capêlo. corpo-terra. Trelivro, Lisboa, 1982., p. 20

Não te imagino só
Imagino-te ausente

Raul de Carvalho

«Se me dói o ventre de não amar.»

Ana Maria Botelho. Céu de Linho. Sociedade de Expansão Cultural,  Lisboa, 1972.p 89

     FOI UM BURBURINHO NA CIDADE
NINGUÉM TINHA PÃO PARA A CRIANÇA
    QUE QUERIA MAIS PÃO


    O jornal dias depois
    divulgou a notícia:

«Encontradas misteriosamente mortas, uma mulher e uma criança num quarto alugado de um terceiro andar da Avenida Almirante Reis.  Estavam trancadas as portas. A Senhora Fulana de Tal  moradora no segundo andar do mesmo prédio, deu pelo triste sucesso, ao atender de manhã no patamar da escada o padeiro, por sentir um cheiro nauseoso que vinha  de cima. Preveniu imediatamente a esquadra. O Chefe Tal está procedendo a investigação para esclarecer a origem deste acto tão desumano e tresloucado.»


Ana Maria Botelho. Céu de Linho. Sociedade de Expansão Cultural,  Lisboa, 1972., p. 83
«Gemer não vale a pena
traz saudades»

Ana Maria Botelho. Céu de Linho. Sociedade de Expansão Cultural,  Lisboa, 1972.p. 67

«Hoje não senti
O frio da minha alma.»

Ana Maria Botelho. Céu de Linho. Sociedade de Expansão Cultural,  Lisboa, 1972.p 33

A MINHA POEIRA AO VENTO

 Ana Maria Botelho. Céu de Linho. Sociedade de Expansão Cultural,  Lisboa, 1972.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

«Olhou por cima do ombro para a hóstia branca da Lua que vogava na poeira revolvida pelo vento.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 220
«A Lua, duma frialdade de pedra, subiu ao céu e seguiu Joseph.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 219

''noite enluarada''

«O seu espírito era como uma estrada poeirenta»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 202

''longas linhas ziguezagueantes''


John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 201
«Caminhava na direcção que a memória lhe indicava.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 199

''Temos de utilizar a água para proteger o coração (...)''

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 199

«Porque será que a terra parece vingativa, agora, que está morta?»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 198

«Lançou água sobre as cicatrizes deixadas pelos pés de Elizabeth ao escorregar.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 198
«A camisa escurecia-lhe com a transpiração.»

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 197
''Os seus olhos seguiram as cicatrizes da água (...)''

John Steinbeck. A um deus desconhecido. Tradução de Manuel do Carmo. Publicações Europa-América., p. 197

FRANCISCO DUARTE MANGAS acerca de CESARE PAVESE

«A memória da luta parece infinita. Tecida na mais íntima matéria perecível, tão frágil, afinal, é de verdade. Sempre que releio Pavese, paro nas colinas: vício absurdo, eu sei.»



[Virá a Morte e Terá os Teus Olhos]

Tu não sabes as colinas
onde se derramou o sangue.
Todos nós fugimos
todos nós largámos
a arma e o nome. Uma mulher
olhava para nós quando fugíamos.
De nós só um
parou de punho cerrado,
olhou para o céu vazio,
inclinou a cabeça e morreu
contra o muro, em silêncio.
Agora é um trapo de sangue
e um nome. Uma mulher
espera-nos nas colinas.

A fome apátrida das aves

livro de Francisco Duarte Mangas

Bonjardim 


1.

Uma janela de guilhotina
golfava na rua, vozes
de barítono rouco e contralto
agreste, num vibrato de raivas
do libreto diário, onde há muito
ou há pouco, se teriam amado.

2.

Ao entrar no quiosque
nesta tarde de névoa, para
comprar um jornal qualquer, uma criança
pediu algo que não entendi. Seria
uma moeda para um chiclet? Perguntei
ao homem sentado atrás das
revistas do coração e dos diários
da bola, de quem seria a criança, como
se pudesse ser de alguém, um ser
tão súbito, nascido da genealogia
indecifrável da tarde.

3.

Vindo do Marquês, o autocarro
chiava na curva estreita, soltando
os seus vapores de gasóleo, e
num portal surgia um gato pardo
para o qual me inclinei, sabendo
que fugiria ao contacto
da minha mão, ou apenas ao
esboço de carícia, como fazem
os gatos, tão fugidios na presença
de estranhos. Mas o animal no
instante do recuo, aceitou o
deslizar dos meus dedos,
em troca de amáveis energias. E
uma longa saudade subiu-me pelo
braço, no arquear festivo
daquele pequeno tigre.


Post-Card 
(os velhos, os pombos, os gatos)


Alguns habitantes queixam-se dos pombos. Do mal
que fazem às fachadas, às estátuas, à pintura
dos automóveis. Os pombos não voam a gasolina
e têm humaníssimos hábitos como a gula, as
rivalidades do cio, a sede e a urgência
de defecar. Detestam coleiras, gaiolas, amparos
de casota, ausência de jardins
e adornos de penas alheias. E por este divino
despojamento recebem, às vezes,
algum milho displicente dádiva
de crianças para a fotografia, ou de benignos
velhos reformados. Algumas mulheres continuam
a socorrer os antiquíssimos (e terrestres) gatos 
vadios. Gatos da minha infância. Dos muros,
das traseiras, dos quintais - o Sindbad, a Pardoca - com
restos de arroz em papéis engordurados. Carinhosas
velhas, atentas à famélica e materna condição
das ninhadas, enquanto os pombos e os velhos
debicam espaços de pedra onde levavam asas
e entre todos assoma, por instantes,
a decaída aliança entre o Céu e a Terra.


Ária

É belo o tempo de Inverno,
no silêncio, a lenha húmida
das maternas canções da chuva.
Na lentidão de Janeiro
fica mais longe a morte. As aves
habitam nos beirais
como príncipes destronados.



Glenn Gould 
a Thomas Bernhard

Procuras o som, a morte de ti mesmo,
centro do teu corpo a percussão que sonhas
límpida,
respiras como as cordas vibram
nessa invenção de vozes
mutuamente perseguidora.


Célere e luminoso expulsas da pauta
os ornatos falsos, os amantes fáceis,
desapossado estás de ti e possuído
pela audível construção impossivelmente perfeita
Steinway Glenn, Glenn Steinway só para Bach.
Vítimas 

O gato reinava no terraço
entre hidrângeas, sardinheiras e
muros, silencioso e súbito
na ferida que rasgaria
algum gorjeio. Muitas mortes de asa
incauta, na cobiça de larvas ou insectos
em sucessivos Maios, justificaram
o fulgor das garras, o espinho
certeiro entre veludos. Agora
que se foi o vivaz caçador, na garra
letal dos anos, novos bandos
de pardias inundam
o terraço sem gato.



Cantiga

O gosto irrecuperável dos frutos secos nos invernos da infância,
o estalido das cascas
quando partíamos
aquelas pulsações de madeira,
sarcófagos mais que perfeitos
arrancados a
algum coração de árvore.



Remorso

Durante a leitura nocturna
descia, às vezes, as escadas
e procurava no escuro, dentro
de um cesto, uma forma 
redonda. Na quadra iluminada
do quarto, mordia depois a maçã
vermelha escura. Era enorme o ruído
dos dentes, no silêncio dessa hora
tardia e irremediável a culpa
de ter destruído aquela polpa húmida
de onde pendia o descarnado pé
no íntimo saber de pequenas sementes
que podia perfeitamente
ter apodrecido em paz.


As Tristes Claridades 
O Verão expulsa o húmido alento
das casas. Desertas desfazem
o tépido novelo que as habita
em refúgio. Pastoras dos sentidos
estão agora de olhos cerrados. Ficará
algum pequeno insecto, predador
de ausências, até que alguma
lâmpada, de súbito acesa
lhe ilumine o corpo ressequido. Cinzas
que não voltam ao mar.


Prado do Repouso

Adoece os olhos este bric-à-brac marmóreo, os
esmaltes, as jarras, a caótica
cenografia dos jazigos, hoje
que todos garantem a sua última
propriedade horizontal. Habitamos
um corpo, tão fácil de ferir, túnica
de sangue, escudo de água, para
o fulgor da vida foi-nos dada
esta veste, não se sabe
para que perecível eternidade.



Réalisé par Arnaud Selignac

I Will kiss thy mouth 

Do fundo da cisterna
a tua voz eleva-se e nenhuma
masmorra abafa este ardor 
por ela aceso, no derradeiro véu,
a minha pele.  Nem as proféticas
maldições, nem o teu repúdio,
nem a luxúria do tetrarca
me impedem de cumprir
o mandamento primeiro
da paixão: a colheita
da tua face.


Última véspera

Agora que um longo inverno se aproxima
com os seus labirintos de sombra, 
regresso àquela véspera
de onde se parte sempre,
acesos os afluentes da espera
ou as fulvas crateras da guerrilha. 


Agora que as asas do silêncio
se insinuam, na crescente mancha
dos espelhos, recebo os teus olhos
como um recém-nascido, vulnerável
e  combalido pela luz recente, recebe
a água do seu primeiro banho.



Miramar

Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.



Vagas

A colcha da cama desfeita é agora mais leve e mais clara.
As sandálias brancas enviaram
ao armário, a sombra
impermeável das botas. No lugar
do gorro de lã, demora-se hoje
um leve chapéu de palha. Algumas
plantas secaram, mas o calor dos
corpos libertou os lençóis
da sua humilde tarefa, lançando-os
longe como vagas de Agosto.





Rua de Camões

A minha infância 
cheira a soalho esfregado a piaçaba
aos chocolates do meu pai aos Domingos
à camisa de noite de flanela
da minha mãe


Ao fogão a carvão
à máquina a petróleo
ao zinco da bacia de banho


Soa a janelas de guilhotina
a desvendar meia rua
surgia sempre o telhado
sustentáculo da mansarda
obstáculo da perspectiva


Nele a chuva acontecia
aspergindo ocres mais vivos
empapando ervas esquecidas
cantando com as telhas liquidamente
percutindo folhetas e caleiras
criando manchas tão incoerentes nas paredes
de onde podia emergir qualquer objecto


E havia a Dona Laura
senhora distinta
e a sua criada Rosa
que ao nosso menor salto
lesta vinha avisar
que estavam lá em baixo
as pratas a abanar no guarda-louça


O caruncho repicava nas frinchas
alongava as pernas
a casa envelhecia


Na rua das traseiras havia um catavento
veloz nas turbulências de Inverno
e eu rejeitava da boneca
a imutável expressão


A minha mãe fazia-me as tranças
antes de ir para a escola
e dizia-me muitas vezes


Não olhes para os rapazes
que é feio.




Estendais


Em alguns invernos mais chuvosos,
em Miragaia que foi a Madragoa de
Pedro Homem de Mello, o Douro
salta a margem e entra pelos arcos
onde se demora no rés-do-chão
das casas, por duas madrugadas.

Mas são os estendais, à janela
agitados pelo vento nas abertas da chuva,
que nos trazem a urgência e a constância 
dos corpos, nas mangas pendentes
de camisas, camisolas ou na roupa

interior, última margem dos íntimos rios,
onde os poliesteres aboliram os felpos, os linhos
as cambraias. Só a cor branca dos lençóis teima
lá no alto, a abrir velas ao desejo do sol
e à memória de obscuras lavadeiras, que faziam
heróicas barrelas na espuma inocente do sabão.


Ícaro 


Um cão pertence mais á Terra,
aos seus limites, até ao  último
rio. Mas ao que vive na casa
em frente, foi dado este nome
volátil. Quando só, ele constrói,
como quase todos os cães,
aquele  som agudo de sobrevoar
ausências, que faz do regresso
de qualquer lazarento dono,
o latido solar da alegria.


Satélite 


Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
 prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os  rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde, 
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite,onde 
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.


Guilhermina Suggia 
(variações sobre um retrato)

1.

No escarlate do vestido
entre os joelhos avulta
o versátil companheiro
que em voz grave lhe responde
desde esse Porto marítimo
da infância, muito antes
da era dos petroleiros e
da boçalidade dos banhistas.

2.

O arco descreve
o intenso itinerário
de Leipzig a Paris,
de Berlim a Varsóvia,
o fascínio dos palcos, o
secretismo dos camarins,
na arritmia do pulso
que o fulgor persegue.

3.

Num crescendo vibrátil
desenha o andamento,
seus motivos ascendentes de
harmónica tensão. E na pausa
final, que um ímpeto antecede
o arco se suspende
augúrio e êxtase.


4.

No atelier londrino
de Mallord Street,
o pintor fixa o instante
de uma metamorfose.
Na tela cresce a silhueta
unida ao Stradivarius,
num corpo mútuo
de exótica mariposa,
olhos cerrados no meridional
abraço. Nem Pablo,
o virtuoso, nem qualquer outro
amante, desatará jamais
esse abraço sem fim.


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