domingo, 15 de fevereiro de 2015

NOCTURNOS


"É de noite. Deito-me no chão e penso no meu corpo. Estou no meu corpo a seu lado. Interrogo que queres. Querer é a lei da boca.
Estás de visita meu corpo se agita o que é belo me agride. Uma chuva de dardos reconstrói o misterio que conduz ao êxtase. Nos amantes há sempre esse decisivo terror.
Estou na arcada da velha praça é quase noite. O tráfego está no auge. Estou perto do café que Fernando Pessoa frequentava. Olho e céu e digo parece de papel pardo. Encosto-me a uma das colunas. Penso e repenso o suicídio diário. Estou triste. Não posso amar senão em liberdade."


Ana Hatherly. "Poesia 1958-1978". Moraes Editores, 1980

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

NUIT CHEZ MAUD
"A água estava tão fria que, momentos depois, Maud já não sentia os dedos. Retirou a mão e pousou-a na erva espessa que, por contraste, lhe pareceu tépida.
No silêncio que reinava perto do rio, ouviu o barulho dos seus próprios soluços. Pouco depois, quis dobrar as pernas; doeram-lhe; e aconteceu o mesmo quando quis levantar-se. Por isso, com cuidado, encolheu-as, em direcção à concavidade que fazia o corpo curvado, e achou que o movimento tinha uma certa doçura, foi como se tivesse pena de si própria."

 Marguerite Duras. Os Insolentes.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015


1
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.
2
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.
3
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.
4
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
[desejámos.
5
outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
invisíveis capturam, as que vêm
de dentro de um muro, e sobre um muro movem
ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.
6
vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
[amordaçado,
ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.
7
o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
a madeira das mães anoitecidas.
amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
algum afastamento decisivo.
o que afastam capturam. é um novo muro, então,
à sombra das cidades, deitado sobre a boca.


 António Franco Alexandre
Kim Gordon

 ‘The male music writers were cowardly in person. They would then go home and write cruel, ageist things. I assumed they were terrified of women.’
«A fera respeita a minha cabeça!
À confiança, mergulho-a na goela,
Basta uma brincadeira e lá se vai ela!»

Frank WedekindEspírito da Terra. A Caixa de Pandora. Obra dramática em duas partes. Tragédias. Tradução e introdução de Aires Graça. Centro de Dramaturgia Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia - Lisboa, 2001., p. 20


«Minha ferazinha não sejas afectada!
Nem tola, nem artificial, de muitos acenos,
Mesmo que os críticos te elogiem menos.
Não tens o direito, a miar, gemer,
De retorcer o arquétipo da mulher,
Com caretas e trejeitos de ofício,
Estragar a inocência infantil do vício.
Deves - por isso, à minúcia converso -
Falar naturalmente e não o inverso!
Pois nas artes, desde a primeira idade,
A suprema lei é a espontaneidade



Frank WedekindEspírito da Terra. A Caixa de Pandora. Obra dramática em duas partes. Tragédias. Tradução e introdução de Aires Graça. Centro de Dramaturgia Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia - Lisboa, 2001., p. 19

domingo, 8 de fevereiro de 2015

«Claro, eu sei, rides entre dentes,
Pensais que já disse patranha de sobra - »



Frank Wedekind. Espírito da Terra. A Caixa de Pandora. Obra dramática em duas partes. Tragédias. Tradução e introdução de Aires Graça. Centro de Dramaturgia Contemporâneas - Porto. Livros Cotovia - Lisboa, 2001., p. 18
«Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há-se aborrecer a um e amar o outro, ou dedicar-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro.»

 - N.T: Lucas, XVI,:13

Trabalho do olhar

"Não leias. Olha as figuras brancas desenhadas pelos intervalos separando as palavras de várias linhas dos livros e inspira-te nelas.
Dá aos outros a tua mão a guardar.
Não te deites sobre as muralhas.
Retoma a armadura que abandonaste na idade da razão.
Põe a orde no seu lugar, desarruma as pedras da estrada.
Se sangras e é homem, apaga a última palavra da ardósia.
Forma os teus olhos, fechando-os.
Dá aos sonhos que esqueceste o valor daquilo que não conheces."


"A Imaculada Concepção"
 Andre Breton / Paul Eluard

sábado, 7 de fevereiro de 2015


DREAM OF DREAMS
"Sonhava. Dormia. Na verdade não sonhava. Antes sentia-se arrebatado por uma estranha sensação de amor. Um avental de olhos que se agitavam e desabrochavam como tantos bolbos.
E depois nada. Nada no jardim que se estendia até ao mar. Salvo uma flor de um desses bolbos. Uma única túlipa. Alongada, só e negra, como uma mancha no sol."

 Patti Smith"O Mar de Coral"

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

A VIDA E ESPÍRITO SE INFLAMEM EM VÓS 

"Não é meu coração sagrado e cheio da mais bela vida
Desde que amo? Porque é que mais me estimáveis
Quando era mais orgulhoso e brutal,
Mais verboso e mais vazio?
Ai! à turba agrada o que é bom para o mercado,
E o servo só sabe honrar o violento;
No divino só crêem
Aqueles que o são,"
-"Poemas"
- Hölderlin

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

''A Kim Gordon a querer arranjar porrada!'' Arte Sonora Revista




It's All Over Now, Baby Blue by Bob Dylan

You must leave now, take what you need, you think will last
But whatever you wish to keep, you better grab it fast
Yonder stands your orphan with his gun
Crying like a fire in the sun
Look out the saints are comin’ through
And it’s all over now, Baby Blue
The highway is for gamblers, better use your sense
Take what you have gathered from coincidence
The empty-handed painter from your streets
Is drawing crazy patterns on your sheets
This sky, too, is folding under you
And it’s all over now, Baby Blue
All your seasick sailors, they are rowing home
All your reindeer armies, are all going home
The lover who just walked out your door
Has taken all his blankets from the floor
The carpet, too, is moving under you
And it’s all over now, Baby Blue
Leave your stepping stones behind, something calls for you
Forget the dead you’ve left, they will not follow you
The vagabond who’s rapping at your door
Is standing in the clothes that you once wore
Strike another match, go start anew
And it’s all over now, Baby Blue

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015


SO GOODNIGHT
Não posso dizer que tenha aprendido grande coisa
nos últimos, digamos, duzentos anos.
Há muitas perguntas que vão perdendo altura
à medida que as penas tombam e também
as garras já não prendem como soíam.
Depois de ter visto de que palha são enchidos
os príncipes felizes, já não saio de casa
sem levar comigo uma carteira de fósforos.
Agora tenho mais tempo morto, só de cinco
em cinco anos compro uma pilha nova
para o relógio. Em vez de cortar os pulsos
cortei a linha do telefone. Já não acordo de noite
para lhe perguntar porque não tocas.
E o que mais me custa, no fim de contas,
é dar razão a Confúcio quando afirma:
quanto mais te ergues para Deus mais ele
de ti se afasta, deixando-te sozinho
a arrumar a casa. Mas estes chineses,
na filosofia moral como no ténis de mesa,
acabam sempre por levar a taça,
e por esta altura da minha queda já concedo
que seja o silêncio a condição natural
para uma ave sem nome que Setembro chamou
e que há duzentos anos não aprende nada.

José Miguel Silva
Walkmen, & etc, Dezembro de 2007, Lisboa.

Chernobil cultural

“Sei apenas que esse silêncio se preenche de tudo o que não sei dizer nem sobretudo me apetece dizer. Como uma rede que sustivesse todas as impurezas, o fio da água passa e a sua pureza me comove e só ela me existe. (...) E é como se eu próprio me evolasse com essa tarde e de mim ficasse o que útil e necessário me sustentasse o viver. Tudo tão pouco – que é que resta sempre de uma vida humana? Mesmo a dos heróis, dos grandes génios da arte e do saber. Depositaram a grandeza que foi sua, o que lhes fica é o nada que os sustenta, a miséria de um corpo que se extingue. Toda a convulsão de uma vida, aguentada agora com uma breve ideia, um frágil apoio, o vazio de si. A vida realiza-se multiplicadamente com a realização de quem a realiza. Com esse nada ou esse tudo se colabora na sua diversificação. Estou só – estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. (...) O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede. Há uma palavra qualquer que deve poder dizer isso, não a sabes – e porque queres sabê-la? É a palavra que conhece o mistério e que o mistério conhece – não é tua. De ti é apenas o silêncio sem mais e o eco de uma música em que ele se reabsorva”.

Vergílio Ferreira, Para Sempre, 1983

Apontamento Biográfico sobre José Marinho
[01/02/1904 - 05/08/1975]
“O homem que vive a vida imperfeita ao abrir seus olhos para a perfeição sente essa vida como excesso incomportável; e ou se apavora ante ela, ou a nega, ou, ainda mais vulgarmente julga inteiramente ignorá-la: toda a perplexidade ante o nada radica num sentido germinal ou transitivo da plenitude. Entre aquelas atitudes e a de aceitar o que nos transcende como positivo objecto de conhecimento há uma diferença de grau, não uma diferença de natureza. A linguagem, a expressão do homem é constantemente equívoca e balbuciante. E importa ter penetrado para além da expressão para encontrar o próprio momento de ser, e conceber o trânsito da noite ao dia, da sombra à luz, a semente e o concreto princípio. Tarefa difícil, esta, quando cada um deles é inconsciente dele e involuntária ou voluntariamente o desfigura”.


José Marinho, Aforismos sobre o que mais importa
"Em Portugal a emigração não é, como em toda a parte, a transbordação de uma população que sobra; mas a fuga de uma população que sofre"

Eça de Queiroz

«Eu sei avaliar o desconsolo, dom Pedro. E essa mulher trazia-o de sobra.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 82
«(...); mas é tão violento e vive tão depressa que às vezes me parece que anda a correr contra o tempo. Acabará por perder, vai ver.
- Ainda é uma criança, Fulgor.»



Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 81

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015


«Também matou; e fez ainda outras coisas piores que não contou a ninguém.»



Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 79

O NÚMERO 76


«Uma vaca, com o número 76 na orelha, está morta, o corpo caído sobre a neve. O excessivo frio súbito, matou vários animais - dezenas, centenas, milhares de animais. Mas nenhum animal era igual àquela vaca com o número 76 desenhado numa placa amarela agarrada à orelha. Esse número, sabe-se lá porquê, assusta.»




Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 75

«Uma mulher muito magra mede a sua cintura com uma fita métrica amarela.»


Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 65

«como um cão à espera no lado de fora da porta de uma casa»

Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 56
«Mas o vento tem razão, e o vento faz coisas que nos anunciam momentos trágicos, muito antes de a nossa inteligência perceber.»


Gonçalo M. Tavares.
 Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 54

«(...) meninos brincam debaixo de pedaços de roupa que devem estar a secar.»


Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 53


«Encontrarás lá o meu querer. O lugar que eu amei. Onde os sonhos me enfraqueceram. A minha aldeia, erguida sobre a planície. Cheia de árvores e de folhas, como um mealheiro onde guardámos as nossas recordações. Sentirás que, lá, uma pessoa gostaria de viver para sempre. O amanhecer; a manhã, o meio-dia e a noite, sempre os mesmos; mas com a diferença do ar. Lá, onde o ar  muda a cor das coisas; onde a vida corre como se fosse um murmúrio; como se fosse um puro murmúrio da vida...»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 75

«A cama era de verga coberta com mantas que cheiravam a urina, como se nunca tivessem sido arejadas ao sol; e a almofada era um enxergão cheio de cotão ou de uma lã tão dura ou tão suada que endurecera como madeira.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 71/2
«Através do tecto aberto, vi passar bandos de tordos, esses pássaros que voam ao entardecer antes de a escuridão lhes fechar os caminhos. Depois, umas quantas nuvens já desfeitas pelo vento que vem para levar o dia.»


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 70

sábado, 31 de janeiro de 2015


O CAVALO


« Um cavalo parado; presa a ele uma carroça parada. Na carroça, dois corpos com uma corda ao pescoço e mãos amarradas atrás das costas. Estão mortos.
    Voltamos ao cavalo. Está parado. Aguarda qualquer coisa. Uma ordem, talvez. Mas o cavalo não percebe nada. É muito estúpido.»



Gonçalo M. Tavares. Short Movies. 2.ª Edição. Editorial Caminho, 2011., p. 31


«- Eu não estou louco - ainda não, embora tal venha a acontecer-me em breve. Com certeza que me recordo. Continue a olhar-me, pois tenho medo que as minhas palavras se percam. Continue a olhar-me nos olhos e não me interrompa.
      Inclinei-me para a frente e fixei-o em pleno rosto o mais insistentemente que me era possível. Deixou cair uma das mãos sobre a mesa e eu segurei-a pelo pulso. Estava enrugada como uma pata de pássaro e mostrava nas costas uma cicatriz de contornos retalhados, muito vermelha e com o feitio de um ás de ouros.»

Rudyard Kipling. O homem que quis ser Rei. Colecção Contemporâneos de Sempre. Edições Vega. 1993., p. 38

«Salvo o calor e a preocupação, nenhuma razão particular de enervamento existia, e, contudo, agora que os ponteiros do relógio tinham rastejado até às três horas, eu poderia gritar bem alto a minha fadiga.»


Rudyard Kipling. O homem que quis ser Rei. Colecção Contemporâneos de Sempre. Edições Vega. 1993., p. 20/1

algaraviada


nome feminino

1. confusão de vozes que se ouvem em simultâneo
2. linguagem confusa e difícil de perceber

escalavrar

conjugação
verbo transitivo

1. golpear superficialmente; esfolar; arranhar
2. deteriorar o revestimento de (paredes)
3. danificar; arruinar

aves noctívagas

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

«-Não estás lá para ganhar dinheiro, mas para aprender; quando já souberes alguma coisa poderás ser exigente. Por agora és só um aprendiz; talvez amanhã, ou depois, venhas a ser tu o chefe. Mas para isso é preciso ter paciência e, acima de tudo, humildade. Se te põem a passear a criança, fá-lo, pelo amor de Deus. Tens de te resignar.
  - Que se resignem os outros, avó, eu cá não estou para resignações.»

Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36/7

 
«No dia em que partiste percebi que não voltaria a ver-te. Ias tingida de vermelho pelo sol da tarde, pelo crepúsculo ensanguentado do céu. Sorrias. Deixavas para trás uma aldeia da qual muitas vezes me disseste: ''Amo-a por tua causa; mas odeio-a por todas as outras coisas, até por ter cá nascido.'' Pensei: ''Jamais regressará; nunca voltará.''


Juan Rulfo. Pedro Páramo in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 36

abutre solitário



“Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco”


 Álvaro de Campos

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015


QUADRAS DA ALMA DORIDA
"Trago deus impresso em mim
no coração e nos rins
A mancha tem a altura
de quarenta quadris
Estava num profundo êxtase
no seio da divindade
Tudo se esvai. Perdi o
bilhete de identidade
A vida dói. Nada resta.
E diz a alma dorida:
Não creio numa outra vida.
Havia eu de crer nesta?"
-"Obra Poética 1"
- Ruy Belo

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

INTEGRATION OF SHADOWS




"Montes azuis ao norte das muralhas,
Branco rio serpeando à sua roda;
Aqui o separar nos é forçoso
E prosseguir até mil léguas de erva morta.


Espírito como suspensa nuvem branca,
Ocaso como despedida de conhecidos velhos
Dobrados numa vénia, ao longe, as mãos juntas sobre
o peito.
Nossos cavalos relincham mutuamente
e afastamo-nos."


Ezra Pound. Poemas Escolhidos.
Água exposta a Heavy Metal


A água exposta à música Imagine, de John Lennon


Água exposta à palavra Verdade


Água exposta à expressão "Enojas-me"


Água exposta à palavra Eterno


Água exposta à palavra Mal


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

DE LANÇAR A REDE
"À data do nosso encontro, o oriente estava próximo
e nós crentes de que o tínhamos encontrado.
Lançámos a rede.
Demo-nos conta de que qualquer arte chega
de assalto; as ondas, vendo bem, desenham
o seu precipício. Assim fazemos, desta feita
enrolando os dedos nos cabelos, os olhos
um pouco amachucados (temendo não conseguir ver
outro oriente). E toda a geografia, deste modo,
se vai resumindo ao medo."


- Marta Chaves -
-"Telhados de Vidro Nº 16"
AFABULAÇÃO #2
"Eu vivo ingenuamente a minha tragédia à medida que ela se vai desenrolando.
E vou inventando o sentido das suas situações."



-"Afabulação"
- Pier Paolo Pasolini 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

JASÃO


"Pergunto muitas vezes a mim próprio se o prazer de destruir outras vidas não virá de não termos prazer nem alegria com a nossa própria vida."
-"Medeia : Vozes"
Christa Wolf

MITOLOGIA ERÓTICA E AMOROSA


"Uma mulher é tanto mais doce não quanto mais bela, mas quanto mais vegetal, mais feminina for."
"Encontrar reciprocamente um no outro o universo é algo que faz necessariamente parte do amor - mas não definido assim de forma tão seca / É um mar doce de silenciosa afinidade,"


- Friedrich Schegel -
-"Telhados de Vidro Nº 19"

LADY OF THE LOWLANDS
"Não cairei. Alcancei o centro. Escuto a pulsação de não sei que divino relógio através do fino invólucro carnal da vida plena de carne, de sobressaltos e de suspiros. Estou perto do núcleo misterioso das coisas como, à noite, estamos às vezes perto de um coração."


Marguerite Yourcenar
"Fogos" 
Vamos fazer limpeza, mas geral
e vamos deitar fora as coisas todas
que não nos servem para nada, essas
coisas que não usamos já e essas
que nada fazem mais que apanhar pó,
as que evitamos encontrar porquanto
nos trazem as lembranças mais amargas,
as que nos fazem mal, enchem espaço
ou não quisemos nunca ter por perto.
vamos fazer limpeza, mas geral,
talvez melhor ainda uma mudança
que nos permita abandonar as coisas
sem sequer lhes tocar, sem nos sujarmos,
que fiquem onde sempre têm estado;
vamos embora só nós, vida minha,
para voltar a acumular de novo.
Ou vamos deitar fogo ao que nos cerca
e ficarmos em paz com essa imagem
do braseiro do mundo face aos olhos
e com o coração desabitado.

Amalia Bautista
HÃO-DE DIZER
Da minha cidade o pior que os homens hão-de dizer é o seguinte:
Afastaste as criancinhas do sol e do orvalho,
E dos reflexos que sob o vasto céu se insinuavam na erva,
E da chuva temerária; puseste-as entre paredes
A trabalhar, abatidas e asfixiadas, em troca de pão e salários,
A comer pó pela garganta e a morrer de coração vazio
Por uns trocos de ordenado nalgumas, poucas, noites de sábado.


Carl Sandburg
(tradução de Vasco Gato)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

"Les amants réguliers"



«Os homens fizeram as suas abluções com a água do poço e rezaram em silêncio.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 264

«Como diz o filósofo, é preciso que o coração se desfaça ou se torne de bronze.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 263

«Nenhum clarão apareceu para apaziguar uma consciência perturbada. Nenhuma mão veio poisar no meu ombro. Torno a partir mudada. A descoberta das raízes é uma prova difícil. Como teria podido suspeitar a sua gravidade? Já não sou uma criança maravilhada com a vida. Tenho a certeza que o meu homem partiu. Ele tinha-me prevenido. Eu não acreditava. Encorajara-me a fazer aquela peregrinação. Devia saber que esse choque ia fazer-me reflectir melhor do que todos os discursos que ele me fazia. Descobri o fracasso, e as minhas lágrimas não servem de nada.»


Tahar Ben JellounDe olhos baixos. Tradução de Maria Carlota Álvares da Guerra. Bertrand Editora., p. 261

teoria do desenraizamento

EM BUSCA
"Nenhum jardim, nenhum olhar os prende.
Intactos nas paisagens onde chegam
Só encontram o longe que se afasta,
As aves estrangeiras que os trespassam,
E o seu corpo é só um nó de frio
Em busca de mais mar e mais vazio."

 Sophia de Mello Breyner Andresen. Obra poética 1.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

O último dia

Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém refletiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Uma casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»




Yorgos Seferis, "Poemas escolhidos" (de Diário de Bordo I
tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis 
© Relógio d'água 


«Saio de um sonho para entrar num pesadelo,
como quem entra numa porta errada
e sente que devia arrepiar caminho
e que as forças lhe faltam
e lhe falta a coragem
ou apenas a vontade de acordar.
O que eu queria era sumir-me,
desaparecer de vez,
mas sem fazer o que o João Carlos fez.
Deixar-me simplesmente adormecer
e acordar do outro lado.»


Almeida Faria. Vozes da Paixão. Teatro. Editorial Caminho, 1998, Lisboa., p. 171
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