terça-feira, 29 de abril de 2014


Como a “sombra que uma criança persegue com a vela”, na sua escrita Rui Nunes atingiu o limite do horror, iluminando o seu mecanismo de absurdos. Diogo Vaz Pinto entrevista o autor, que, ao reclamar a vulnerabilidade da pobreza como condição para o homem estreitar a sua relação com a realidade, encerra a sua obra como um dos exemplos mais notáveis de uma literatura actuante. António Pedro Santos fotografou o escritor que o grande público não soube reclamar

Rui Nunes (Lisboa, 1947) começou a publicar em 1968 e, com mais de 20 títulos de um género inclassificável editados, hoje admite que não escreverá mais, não apenas porque a progressiva cegueira que o afecta há vários anos já não o deixa, mas também por sentir que alcançou um momento final. Referência de um público minoritário, na sua clandestinidade esta obra alcançou um prestígio enorme. "Armadilha" e "Uma Viagem no Outono" saíram recentemente na Relógio D'Água - o último, numa edição limitada a 150 exemplares, só pode ser adquirido por encomenda directa à editora.

De livro para livro, há na sua escrita uma apropriação da linguagem que supera toda a ficção: uma mesma visão, um negrume...
Esse negrume, para mim, é mais uma revelação de intimidade com a morte das coisas. E com a pobreza das coisas. A humildade dos próprios objectos: isso fascina-me. Está muito ligado ao meu mundo, a um mundo que não foi fácil, desde criança. O contacto com a morte e com a doença, com as dificuldades e com a violência, foi-me construindo uma relação com a realidade que não se deixava seduzir pela sua aparência mais benigna. Por outro lado, fui-me apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência - em que as palavras se procuram e se encontram umas às outras, independentemente daquele que fala.
Neste último livro ("Armadilha") refere isso ao falar no modo como as pessoas tendem a ouvir os políticos e a sentir que por ouvi-los falar bem estes sabem do que falam.
Que há verdade naquilo. E há certeza. É exactamente isso, a fluência: parecer que um discurso, quando se produz com alguma rapidez, prova alguma coisa. E é exactamente isso o que sempre me perturbou. Porque as palavras têm uma carga de malignidade tão grande que quando se procuram fazem-no para deter poder. E ultrapassam aquilo que nós pretendemos dizer. Daí uma espécie de vigilância ou de suspeita em relação à palavra e em relação ao discurso.
Há vários livros seus - lembro-me, por exemplo, de "A Boca na Cinza" - em que a sua linguagem, a violência a que propositadamente a sujeita, parece uma forma de se tornar a si e a quem o lê muito consciente dessa fluência.
A minha suspeição em relação ao poder da linguagem sempre me levou a um determinado tipo de escrita. Não necessariamente de forma consciente, mas é assim porque a suspeita existe. Ela existe e organiza a minha linguagem. É pela crueza da linguagem que a verdade mais simples se manifesta. E a crueza pode estar no palavrão, mas também pode estar na desarticulação sintáctica. E é interessante ver que as pessoas não reagem mal às alterações morfológicas, muitas vezes nem sequer às sintácticas. Aquilo a que reagem mal é à pontuação. Aliás, foi uma descoberta tardia minha. Ouvia as pessoas dizer: "Ai, aquelas vírgulas estão mal postas!" Por exemplo, em relação ao Saramago. Eu gosto do Saramago. Gostava dele como pessoa e gosto do que escreveu, embora não tenha muito a ver com a minha escrita. Mas a vírgula, aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a violência.

Pensa que as pessoas se submetem à linguagem e a um conjunto de ideias que não conseguem dominar totalmente e que portanto acabam por ser súbditas no seu uso?
Quando leio um grande livro tenho um medo terrífico do que vem a seguir. Porque um belo livro pode ser uma bela perdição para quem o escreveu, e esse é sempre o meu medo: que um belo livro se transforme numa bela perdição. Isto é, lê-se um modelo do qual a pessoa já não consegue sair. E penso que isso é uma das coisas terríficas na literatura portuguesa. As pessoas submetem-se rapidamente a um modelo e sentem-se bem nele. E quando nos sentimos bem na linguagem que produzimos, no próprio discurso que produzimos, isso só significa para mim que estamos numa gaiola. Pressinto que um dos problemas da literatura portuguesa é exactamente esse. O talento que muitas vezes encerra a pessoa na sua própria gaiola.
Foi viver para a Áustria, numa zona muito isolada. Porque procurou esse isolamento?
Foi natural. Quer dizer: o isolamento está ligado a um certo desgosto do mundo. Não sou religioso, se fosse teria ido para um convento, possivelmente. Há em mim essa necessidade. O encontro comigo mesmo dá-se no silêncio, e é mesmo um silêncio absoluto. Há uns tempos, durante uma semana, tive o cuidado de medir o tempo que passava em conversa com os outros e fiquei espantado. Verifiquei que era ainda menos que aquilo que imaginava.

O desgosto na sua relação com os outros estava ligado a uma desilusão daquilo que o Rui esperava, daquilo que em si criou e que por isso esperava encontrar no outro?
É difícil dizer. É tudo. Mas em criança eu já era assim. Tinha fases em que era extremamente endiabrado e depois tinha fases em que me isolava absolutamente. Era capaz de passar horas na praia a olhar para o mar sem ninguém por perto. Oscilava entre uma situação e outra. Hoje tenho esta necessidade absoluta de silêncio, e por isso não gosto de estar em Portugal.
Mas pela relação com os portugueses?
Não. Para já, não tenho nada desse sentimento do patriota. Não gosto dos ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. As casas parecem-me todas de papel. Os ruídos atravessam as casas. Não há um minuto de silêncio. Chego a Viena e sinto-me em casa, tenho uma espécie de felicidade do reencontro. Não é com a casa, é com o silêncio.

Isso serena-o ou liberta-o para pensar?
Permite-me ficar mais próximo de mim. É o silêncio dos ruídos naturais. Tudo é natural, é evidente, mas eu gosto do ruído do vento, da chuva, da neve a bater. Gosto das gralhas, gosto de ouvir esses ruídos. É um lugar-comum, mas são esses ruídos o grande silêncio. Isso aqui não tenho. E depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.

Há a sensação de que o estado de solidão é um estado dramático em que uma pessoa cai quando fracassa e então esse desespero pode surgir por as pessoas sentirem que devem falar, que se uma pessoa estiver bem é comunicadora?
Exacto, é isso. E não interessa o que a pessoa diz, é preciso é dizer. É a fala contínua. E quem não diz continuamente é suspeito. Quantas vezes se ouve: "Porque é que estás calado?" Eu não preciso de justificar-me por estar a falar, mas preciso de justificar porque estou calado. "Estás tão calado!" E eu digo sempre: "E tu, porque é que estás a falar tanto?" Aquilo que se pretende é que o discurso da pessoa seja uma confissão contínua. "Fala porque ao falar mostras-te. Porque ao falar tornas-te claro. Não sejas obscuro."
Há um poeta que reclama isso na sua obra. "Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro." Herberto Hélder reclama essa condição, mas se nele ela surge algo deslumbrada ou fascinada, o Rui, se primeiro reclama a obscuridade, também avisa o leitor: "Cuidado com esta ciência e com este poder que eu exerço." Ou seja, não parece entrar de livre vontade no canto. Nunca pretende cantar...
Está a tocar num ponto absolutamente essencial da minha escrita. Gosto muito da escrita do Herberto Hélder. Mas no Herberto existe o fascínio da linguagem, em mim não existe. A linguagem não me fascina. Tudo aquilo que eu sou está de certo modo aí, e eu estou condenado a ela [à linguagem], mas ela não exerce nenhum tipo de fascínio sobre mim.

Num verso, Sá de Bandeira diz: "m'espanto às vezes, outras m'avergonho." Parece que na relação das pessoas com a poesia herbertiana há sobretudo o espanto, enquanto na sua a vergonha é o sentimento mais forte. Até porque a obra do Rui é muitas vezes dimensionada por uma reflexão sobre aquilo que foi a violência exercida sobre o homem no século xx, como o Holocausto. Num período em que parece ser muito fácil descartar o passado, e em que se pensa que um passado longínquo é algo que sucedeu há 50 anos, ao passo que antigamente uma coisa de há 50 anos era ontem... Acredita que a vergonha se tornou hoje a grande lição que um homem humilde pode dar a si neste tempo?
A vergonha é a expressão da própria consciência. Algum passado está a desaparecer. Como o passado se aproximou muito do presente, parece que é dominado pelo presente ainda, e que eu no presente, de certo modo, consigo controlar esse passado, porque nós verificamos que o passado, por exemplo para os políticos, é um passado próximo, está ali mesmo na fronteira do presente. E esquecem que o passado que os move está bem mais longe. O Holocausto, o inominável da situação, ainda hoje nos move sem nós sabermos. Desde miúdo que convivi com pessoas que viveram essa situação. Algumas já morreram, mas durante 30 e tal anos, quase 40, convivi com pessoas que estiveram num campo de concentração, cujos irmãos e pais tinham morrido num campo de concentração. E vi como isso opera e como é que cala. A linguagem não chega para dizer as coisas.

A sua obra parece trilhar um caminho de confrontação, a diferença entre um silêncio que ainda vive e um silêncio que já morreu. O que é a morte?
Não é nada. Eu vi morrer a minha família quase toda. Às vezes chego a dizer que desde que nasci a minha família não fez outra coisa. A morte é banal. Só houve uma morte realmente perturbadora, a primeira morte. Para mim, a primeira foi perturbadora. Depois é a banalidade, no sentido em que a Hannah Arendt classificava o mal do Eichmann. Para já, a morte são as coisas mortas. E é impressionante a semelhança que existe para mim entre um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença. Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes dos bichos todos, que morrem porque é essa a pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que redima, que me dê o que quer que seja.

A forma como as pessoas se entregam à crença - às tantas elevada quase a uma ciência, e debatida - com tantas a quererem enquadrar uma mesma crença... Pensa que isso as desresponsabiliza?
Desresponsabiliza, completamente. Eu sinto que no meu caso específico a ausência de crença, a impossibilidade que existe em mim de aderir ao ritual gera uma responsabilidade imensa em relação ao outro. Porque não há mais nada senão eu em relação ao outro e ele em relação a mim. Não há outra esperança, e isto é uma banalidade mas é uma belíssima banalidade: não há uma esperança senão no outro.

Acredita que pode haver uma transposição deste fenómeno mais pessoal ou convivencial para uma regra de âmbito político?
A política, no sentido mais amplo, entrou muito cedo na minha vida. E para mim nunca foi nem um drama nem um problema, como nunca houve uma opção. Eu estava lá, e sei porque é que estava lá. Por aquilo que lhe disse anteriormente: uma sensação de que todos nós somos responsáveis por todos os outros. E por um sentimento muito forte da fragilidade e da pobreza. Aquilo que lhe vou dizer é certamente uma vulgaridade, mas é assim mesmo e em política é isso que interessa. Às vezes perguntam-me: "Porque é que votas no Partido Comunista?" Eu sou do PCP, sou militante. E depois vêm-me com uma quantidade enorme de teorias... Eu conheço-as, quer dizer, estudei-as, mas não é isso. O que me interessa é a acção. No plano político, para mim, é tudo de uma simplicidade muito grande. É evidente que existe um discurso que o suporta. E como não gosto de fronteiras, é de certo modo o internacionalismo que funciona para mim, é a condição das próprias pessoas, e esta não tem fronteiras. A condição do trabalhador africano não é muito diferente da condição do trabalhador grego ou norte--americano. É a condição que me perturba. Depois posso discutir as teorias, mas não é isso que me move. Isso apenas justifica a posteriori as nossas próprias opções. E as opções políticas são sempre opções biológicas, no fundo.

Acompanha aquilo que os novos autores portugueses vão publicando?
Quando gosto deles, leio tudo. Ou lia. Sente-se pela forma como a linguagem se organiza se estamos perante uma escrita livre, uma escrita genuína, ou não. E quando encontro a genuinidade sinto- -me fascinado.
E ao longo dos anos sentiu algum tipo de evolução nos autores portugueses?
Na poesia, sim. É difícil falar em evolução, mas senti que apareceram belíssimos poetas. Na prosa não. A poesia sempre foi, e felizmente que foi, a parente pobre. É essa pobreza que lhe dá a dignidade toda.

Debate-se hoje o problema da ficção portuguesa actual não se dimensionar a si mesma, mas ser pré-embalada com o selo do circuito internacional de distribuição. Os autores identificam-se menos e exercem menos a cultura do lugar a partir do qual escrevem?
Aquilo que me perturba é ler textos e perceber que, desde a escolha das palavras, há autores que revelam ignorância da realidade. Há ali uma falsidade total, porque as palavras nomeiam coisas, mas essas coisas não se presentificam por nos referirmos a elas. São abstracções. O exemplo do tipo que descreve como ouviu as cigarras à noite só diz que nunca foi ao campo. E disso há muito na literatura portuguesa. Há coisas assim, espantosas. A verdadeira escrita começa sempre por algo de esplendoroso. A verdade começa sempre por algo de muito pessoal, e a verdadeira escrita conta aquilo que sabe, que viu e viveu. Esse é o princípio.

E esta nova ficção...
Nasceu velha, continua velha e vai morrer velha. Reduz-se à historieta. Mas esta literatura sempre existiu. Era chamada literatura de cordel, os folhetins dos jornais. Só que não se confundia com a outra literatura. O que acontece é que lhe foi dada uma dignidade que não tem.
A crítica perdeu a capacidade de perceber a diferença entre literatura e entretenimento?
É a ideia de tempo e de trabalho. Para ler um livro, não uma coisa qualquer, é preciso tempo, e dá trabalho. O leitor tem de entrar num mundo que não conhece. O que acontece é que muitos dos críticos impõem àquilo que lêem um esquema prévio e não buscam o que há ali de novo. Aquilo que não está de acordo com o esquema que já trazem não serve. Não têm a inocência da abordagem, e é preciso essa inocência. Nós vivemos confrontados com uma linguagem que esqueceu uma quantidade enorme de nomes. Lembro-me que antes de ter deixado de dar aulas [de Filosofia] deixou de se falar em bibliotecas e começou a ouvir-se falar em centros de recursos. Agora já não há cegos, há deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos.

Essa forma de suavizar a linguagem, de lhe fazer perder propriedades, surge porque se entende que há um certa violência em chamar a alguém cego ou surdo?
Mas porquê? Onde é que está a violência? Cego não acarreta nenhuma deficiência, é um estado. Eu sou cego do mesmo modo que tenho um metro e setenta e cinco. Mas se sou deficiente visual falta-me alguma coisa. Isso é que é agressivo.
O que é que a suspeita introduz que lhe parece que a tornou tão estruturante na forma como vivemos em comunidade?
A suspeita introduz no outro o medo de ser. E ao mesmo tempo introduz uma espécie de claridade maligna sobre o outro. Voltamos à expressão "deficiente visual" contra "cego". Quando se afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras, mais uma vez, estão carregadas de malignidade.

Na sua escrita há um exercício muito hábil de traduzir pela linguagem uma relação física com o mundo.
Aquilo que me fascina na linguagem é a possibilidade que há de a tornar física, é a fisicalidade que é possível retirar da linguagem. Nos nomes que temos esquecido encontra-se muitas vezes essa capacidade de fisicalizar a linguagem. Isto está muito ligado ao olhar. Se vejo um animal morto, aquilo que vejo é uma transparência - vêem-se os ossos debaixo da pele como se fosse o desenho do próprio ser, e como se fosse o futuro desse ser. É essa transparência que só o olhar encontra. É interessante porque eu vejo muito mal e sempre vi mal, e no entanto olhar é para mim a coisa mais fascinante, porque o mundo só pelos olhos é que me entra. A minha escrita nasce de uma percepção. Posso dar exemplo do livro sobre os anões, "A Boca na Cinza". Uma vez estava em Aveiro, entre amigos, a jantar, e vi um casal na mesa do lado (na altura ainda via alguma coisa), reparei que a rapariga afastou o cigarro da boca e senti que havia qualquer coisa de estranho. Eram dois anões, os donos do restaurante, estavam ali a jantar e tinham uma quantidade de listas telefónicas sobre as cadeiras. Ela e o irmão, pensei. Muito bonita, ela: um cabelo lindíssimo. Quando acabaram de jantar vieram dois empregados e carregaram-nos ao colo para fora do restaurante. Foi desse episódio que depois nasceu o livro. Vivo fascinado pela realidade.

Como é que se relaciona com os seus livros depois de os publicar?
Geralmente não lhes volto a pegar.

O Rui está longe de ser um dos autores portugueses mais divulgados ou traduzidos.
Nunca fui traduzido. Aliás, só para croata. E um conto na Alemanha.
Aquilo a que se chama literatura parece andar atrás do que deixa as pessoas entusiasmadas...
As pessoas querem um passatempo. Esse tipo de passatempo a minha escrita não fornece. Qualquer escrita que resista a essa apropriação imediata está condenada a viver à margem.
Causa-lhe alguma perplexidade isto?
Ela até poderia ser traduzida e depois não a lerem, que é o mais natural. Só me causa perplexidade que nem sequer exista essa tentativa. Mas não é coisa que me preocupe muito.

Considera-se um dos nossos escritores mais portugueses?
Sim. Eu que não sou nacionalista, digo- -lhe que sim. Não é que a minha pátria seja a língua portuguesa, mas é este enraizamento (infelizmente, para mim) aqui. E é isso que está sempre a emergir.

A sua escrita surge porque o Rui se incomoda, o mundo incomoda-o, a linguagem incomoda-o. Imagino que não pense no seu leitor, mas para si não faz sequer sentido vir para a literatura se não se põe como princípio incomodar-se?
Acho que a pessoa que não se incomoda não escreve, não pinta, não faz nada.

Mas pode ler e apreciar uma obra de arte?
Pode, se deixar que a incomodidade o apanhe. Se não se quiser incomodar não vai tirar um gosto disso. Penso que um dos grandes problemas foi que não se acrescentou a participação à compreensão que se faz do mundo. Não basta compreender o terror, é preciso participar dele. É preciso ter medo, não basta compreender o medo. O peso da modernidade ainda é tão forte que o acto de participação está excluído. E então constroem--se teorias e teorias, mas a essas teorias falta uma coisa que é participar. É essa dimensão biológica que falta à compreensão.

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segunda-feira, 28 de abril de 2014

RAIN FALLING



"Então vem, vamos juntos os dois,
A noite cai e já se estende pelo céu,
Parece um doente adormecido a éter sobre a mesa;
Vem comigo por certas ruas semi-desertas
Que são refúgio de vozes murmuradas
De noites sem repouso em hóteis baratos de uma noite
E restaurantes com serradura e conchas de ostra:
Ruas que se prolongam como argumento enfadonho
De insidiosa intenção
Que te arrasta àquela questão inevitável...
Oh, não perguntes «Qual será?»
Vem lá comigo fazer a tal visita."

"A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock"
T. S. Eliot 

Vasco Graça Moura, o escritor que não acreditava na inspiração


Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Vasco Graça Moura fotografado no seu gabinete, no CCB, em 2012
Tiago Miranda

"Não acredito na inspiração e vejo na escrita poética, basicamente, um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais"
Óscar Lopes viu-o como o caso típico do poeta de larga informação cultural. Ao longo de cinco décadas de labor literário, que serão assinaladas no próximo dia 31 com um colóquio na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, VGM, como também gosta de se anunciar, não se cansou de fazer a demonstração prática desse saber raro, esparramado numa longa obra poética, algumas passagens pelo romance, um corpus feito de risco na área da tradução e uma vocação ensaística cultivada com a paixão de quem não teme a polémica. Uma deslocação do poeta à Madeira, associada à greve dos controladores aéreos, obrigou a que a entrevista tivesse de se efetuar com recurso ao correio eletrónico.
Muito antes de atingir estes 50 anos de vida literária, escreveu um "Testamento VGM". O que é que pretendeu?
Eu tinha traduzido havia pouco os "Testamentos" de François Villon, com toda a sua carga lúdica e irónica. Villon começa a falar dos seus trinta anos ("en l'an trentième de mon âge"). Eu tinha acabado de fazer sessenta e isso deu-me o começo, falando "no ano em que sou duplo trintão". Pretendi uma espécie de divertimento sério...
Quais são os cinco momentos mais marcantes desta sua carreira de cinquenta anos?
A publicação do primeiro livro, "Modo Mudando" (1963); depois, "A Sombra das Figuras" (1985); "Uma Carta no Inverno" (1997); a do primeiro romance, "Quatro Últimas Canções" (1987) e a de "Por Detrás da Magnólia" (2004). Pondo as coisas noutros termos: o prémio Pessoa (1995), o grande prémio de poesia da APE (1998); o prémio internacional de Struga (2004); o grande prémio de romance da APE (2204); o Prix Max Jacob étranger (2007).
Carlos Fuentes dizia que nunca teve medos literários. Acompanha-o?
Medo literário, só o de as coisas saírem mal quando as escrevemos. Mas é um medo superável pelo exercício da autocrítica.
Nunca o angustiou o poder atemorizador da folha em branco?
Não tenho medo nenhum da folha em branco. Nunca me angustiou que ela, eventualmente, tivesse de permanecer nesse estado.
Memoriza poemas, seus ou alheios?
Não. Mas houve tempos em que sabia de cor fragmentos mais ou menos longos de Dante, Lorca, Shakespeare...
Quando é que começou a escrever?
Comecei pelos seis anos, sem nenhuma razão especial que não fosse a de gostar de o fazer.
Porque é que cursou direito em vez de Belas Artes?
Direito correspondia a uma tradição familiar (que hoje leva mais de um século). Belas Artes implicava um certo tipo de risco, para que eu me sentia preparado, mas achando que não tinha qualidades que fizessem de mim um artista plástico mesmo bom. Na hesitação, ganhou a hipótese de ter uma vida mais ou menos burguesa e confortável.
Tinha algum herói? Pretendia imitar alguém?
A princípio, os meus heróis eram personagens de ficção: Gonçalo Mendes Ramires e Julien Sorel muito mais do que Fradique Mendes. Mais tarde, o meu herói na aventura intelectual, interdisciplinar e criadora passou a ser Jorge de Sena.
A ficção nunca ocupou um lugar muito proeminente na sua obra, Ainda um dia teremos a sua "Montanha Mágica"?
A ficção começou mais tarde, numa fase da vida em que eu tinha menos tempo para ela e já me dispersava por outras preocupações. Não tenciono escrever a minha "Montanha Mágica". Ainda se eu conseguisse, como stendhaliano impenitente, escrever o meu "Le Rouge et le Noir"... Mas, além de ser precisa a capacidade de o fazer, acontece que eu nunca elaboro programas nem projectos com antecedência.
Qual o lugar da inspiração no seu trabalho poético?
Não acredito na inspiração. Vejo na escrita poética fundamentalmente um exercício técnico, uma aplicação de capacidades oficinais.
Há um intenso pendor metafórico em muita da sua poesia, contrabalançado, como já assinalou, por um lado cada vez mais prosaico. Navega bem nessa aparente contradição?
A dimensão prosaica e a propensão metafórica são usadas segundo aquilo que pretendo dizer e combinam-se sem problema. O Montale falava de uma poesia que tende para a prosa e se detém no limite, antes de lá chegar. Isso acontece-me com alguma frequência, muito embora o lado aparentemente prosaico seja susceptível de uma dicção e de acentuações rítmicas que fazem toda a diferença. Convivo muito bem com essa dualidade, porque ela não implica qualquer espécie de cisão do eu poético. É antes instrumental e criticamente controlada.
O que o atrai no ensaio?
O ensaio é uma maneira de abordar um determinado objecto numa flutuação entre certezas e incertezas, hipóteses, contradições e derivas, obscuridades, intuições e clarificações. O seu encontro está em ser sempre uma forma de problematização e nunca se propor como aquisição definitiva do conhecimento.
Gosta de viajar ao seu próprio passado literário, relendo-se?
Nem por isso. Só me releio em tempos de revisão de provas.
Corrige muito?
Não costumo embevecer-me na contemplação daquilo que escrevi. Não tenho narcisismos de autor. Uma vez escrito, é raro voltar a pegar num texto, a não ser quando se trata de reeditá-lo e não posso baldar-me à correcção das provas. Enquanto escrevo, sim, corrijo muito, mas disso não ficam propriamente vestígios porque o faço quase sempre em computador.
Costuma ler o que escrevem sobre si?
Se se trata de textos críticos que me chegam à mão, claro que sim. Acho importante conhecer a opinião alheia.
Como é que escreve?
Escrevo tudo, mas mesmo tudo, no computador, poesia, ficção, ensaio, traduções, artigos. À mão, na prática, já só sei assinar omeu nome...
Convive bem com as novas tecnologias?
Sinto-me mais ou menos analfabeto. Mas o computador é uma espécie de máquina de escrever qualificada que proporciona uma rapidez e uma eficácia inestimáveis no que respeita às correcções e às montagens.
Tem algum ritual de escrita?
Nenhuma espécie de ritual. Escrevo quando me apetece fazê-lo, em qualquer sítio e a qualquer hora, sem que o que se passa à minha volta me perturbe.
Tiago MirandaVasco Graça Moura fotografado no CCB, em 2012
Sente-se um traidor na sua qualidade de impenitente tradutor?
'Traidor', não é propriamente o termo. Sinto-me um fotógrafo a preto e branco de uma realidade que tem algumas cores. A falta dessas cores não deve prejudicar a reconhecibilidade, nem a manutenção de, pelo menos, algumas das qualidades do original.
Qual foi a mais difícil das suas traduções?
As duas mais difíceis, no plano da poesia, terão sido a "Divina Comédia" e os "Sonetos" de Walter Benjamin; no tocante ao teatro, sem dúvida que foi o "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand. Mas qualquer das outras traduções que fiz foi bastante difícil. O desafio torna-se estimulante por isso mesmo.
Qual foi o livro traduzido do qual muito lamentou não ser o autor?
Essa é uma pergunta terrível e capciosa, porque eu gostava de ter sido autor em primeira mão de todos os livros que traduzi...
Já traduziu do espanhol, francês, inglês, alemão, latim, italiano. Porque é que ainda não se interessou pelo grego?
Infelizmente não sei grego. Quem me dera! E mesmo no que toca ao latim, sei muito pouco. Traduzi umas 18 odes de Horácio, mas com recurso a muitas ajudas interpretativas.
Hoje, mais do que nunca, faz sentido voltar aos gregos?
Para nós, europeus, os gregos são o princípio de tudo! O problema é que eles agora, no plano político, ameaçam acarretar o fim do mundo em que vivemos.
Fez um grande investimento pessoal na tradução dos grandes clássicos...
Os clássicos são quem melhor nos explica. Os grandes, e os que eu consegui traduzir incluem-se nesse grupo, são marcos da civilização e da cultura europeias. Implicam-nos e explicam-nos, como diria a Sophia.
Tem uma relação de posse em relação à língua?
Não sou dono da língua, mas um entre muitos milhões de possuidores dela.
Porque é que tanto batalha contra o novo Acordo Ortográfico?
O Acordo é uma barbaridade, feita inconsiderada e precipitadamente, mantida por obstinação e teimosia, e conducente a um resultado exactamente oposto ao pretendido.
Não lhe encontra nenhuma virtude?
Encontro duas: a de não estar em vigor e a de não poder ser aplicado, nem sequer tecnicamente.
Não é um exagero afirmar que o AO é "um crime contra a língua portuguesa"?
Para mim, não há exagero nenhum nisso. É um crime e uma torpeza.
Houve escassa reflexão sobre o novo AO por parte dos decisores políticos?
Tão pouca que nenhum desses decisores se atreveu ainda a rebater o fundo dos argumentos que foram apresentados contra ele. Todos se circunscrevem à afirmação de que o AO deve ser aplicado "porque sim" e não passam disso. E hoje não têm coragem de reconhecer o beco sem saída em que se meteram.
Sairemos derrotados com a entrada em vigor do novo AO?
A derrota será a da própria língua portuguesa, na Europa, em África, na América Latina, nas outras partes do mundo.
A seu pedido, não será aplicado o AO nas suas respostas. É uma querela para a eternidade?
É natural que eu pretenda não ver brutalmente desfiguradas as minhas respostas e por isso insisto na ortografia vigente (não a do AO, porque ele não está em vigor). A querela não será para a eternidade, porque a posição tomada em Luanda, na conferência deministros da Educação, há cerca de um mês, vai levar forçosamente à revisão do acordo no sentido que tem sido defendido por todos os que se lhe opõem.
Lê em português do Brasil?
Aprecio desmedidamente um grande número de autores brasileiros. Nunca tive qualquer problema com o português do Brasil. Ninguém tem. É uma variante que enriquece a língua em geral. E não é a questão ortográfica que resolve diferenças importantes que, além da pronúncia, são lexicais e sintácticas.
O que mais gosta de ler?
Actualmente, privilegio textos de história e ensaios sobre temas artísticos e literários.
Lê vários livros ao mesmo tempo?
Tenho sempre uma série deles. Vou lendo, mais ao sabor dos impulsos de momento do que das obrigações. Por exemplo, coisas tão diferentes como "The Age of Anxiety", de W. H. Auden, um estudo sobre a poesia de Nabokov ou a "Correspondência" entre António José Saraiva e Luísa da Costa.
Quem foi o último escritor ou poeta a deixá-lo abismado?
Depois de Dante e Petrarca, acho que o Wordsworth de "The Prelude" me deixará sempre abismado.
Há, na sua vida de leitor, um livro que o marque de forma absoluta?
As "Rimas" de Camões e "O Livro de Cesário Verde" aproximam-se desse resultado.
Quem são os criadores, em qualquer domínio, que mais admira?
Bach e Mozart, Piero della Francesca e Picasso, Homero e Dante, Visconti e William Wyler... tantos outros...
Tiago MirandaVasco Graça Moura era presidente do CCB
Há em si alguma componente religiosa?
Praticamente nenhuma, embora eu tenha tido uma educação católica. Mas há em mim uma sensibilidade a elementos que marcam a nossa maneira de ser e que são de matriz religiosa naquilo em que o mais fundo do ser humano é implicado. Posso arrepiar--me com uma "Paixão" de Bach. Na música e na pintura, pelo menos, é impossível ignorá-los. E na literatura, quando se pensa nas redondilhas camonianas "Sôbolos rios que vão"...
Encontra alguma especial simbologia no facto de estar agora a presidir ao CCB?
É um sítio dos mais belos de Lisboa, pela monumentalidade, pela simbologia, pela paisagem a rasgar-se sobre o rio e pela luminosidade muito especial, a jogar-se entre o manuelino dos Jerónimos e a poderosa austeridade geométrica do Centro Cultural de Belém.Mas omeu imaginário sente-se à vontade em muitos outros territórios.
Consigo teremos um CCB com outras prioridades?
Comigo, espero que tenhamos o CCB possível num período de crise como o actual.
O poeta não se sente constrangido por ver um VGM militantemente apoiante de um Governo tão agarrado à ideia de empobrecimento do país?
Não foi este Governo que inventou o empobrecimento do país. A situação é terrível e Portugal foi empurrado para ela há já alguns anos. Não me considero um militante, mas alguém que tem de reconhecer os factos e a situação catastrófica a que eles levaram e que, por isso, tem de apoiar quem tem a coragem de enfrentá-la, custe o que custar.
O que o fascina em Cavaco Silva para tão continuadamente o apoiar?
Cavaco Silva é um político rigoroso e competente. Não é, nem quis nunca ser, um caudilho arrebatador das massas. É alguém que conhece profundamente a realidade política, económica e social e tem ideias assentes no saber, na experiência e na sensatez.
Foi 10 anos deputado europeu, quando parecia não haver limites para o otimismo europeu. Tudo se esfumou?
Esse optimismo ainda se vivia na altura do meu primeiro mandato (1999-2004), quando ainda estávamos na Europa dos 15. Depois, tem vindo a esvair-se, na Europa intergovernamentalizada dos 27, com o esquecimento do método comunitário, o progressivo esbatimento do papel da Comissão imposto pelos Estados-membros mais fortes a partir do Conselho e com o gigantismo inoperante do Parlamento Europeu.
A Europa perdeu o sentido da solidariedade?
Esse sentido parece estar cada vez mais distante de uma tradução prática que justifique a construção europeia, tal como ela era concebida até há pouco tempo. Oxalá eu me engane.
Foi Prémio Pessoa em 1995. Um prémio desta natureza leva a reequacionar alguma coisa.
Resolve problemas imediatos, dá-nos um prestígio assinalável, incute-nos um sentido de responsabilidade cultural, contribui para um aumento da auto-exigência a partir da sua atribuição.
Nasceu no Porto, onde regressa amiúde. Como vê agora a cidade?
O Porto ainda mantém uma aura poética em que a memória funciona paredes meias com a realidade, sem perda da sua carga mítica e afectiva. As pessoas mudaram pouco. Alguns lugares mudaram bastante. Mas, visto da margem sul do rio Douro, acho que ainda está lá tudo, na cor, no recorte do casario, na volumetria, na luz, na relação entre o granito e a água - tudo o que eu gosto de encontrar na minha cidade...
Qual é a memória mais longínqua da sua infância?
A existência de senhas de racionamento para certos géneros alimentícios.
Qual foi o dia mais importante da sua vida?
Dado o contexto em que estamos a falar, foi o dia 14 de Fevereiro de 1963, data em que me desloquei à Tipografia do Carvalhido para recolher a edição do meu primeiro livro, "Modo Mudando".
Está com 70 anos. A idade tornou-o mais sábio?
Sem dúvida. Com a idade aprende-se a simular melhor a juventude.
Gostaria de terminar com Camões. É, para si, o expoente máximo da nossa criação literária?
É. Tanto o Camões lírico, como o Camões épico. Nestes tempos em que as grandes obras do espírito humano vão sendo esquecidas, convém ter presente um poeta em cuja lírica a razão e a emoção vão sendo vividas e se exprimem num angustiado sentido das contradições do ser humano, e cujo canto épico não se limita ao feito histórico dos descobrimentos: é-o também do desvendamento e do conhecimento do mundo pelo Homem.

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domingo, 27 de abril de 2014


« perdoai-me ou castigai-me se vos aprouver; eu não posso baixar-me mais porque já estou de joelhos.»

William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976., p. 23
«estas cabeças decepadas aconselham-te a desistir, fugindo à rede da morte a que ninguém resiste.»



William Shakespeare. Péricles, Príncipe de Tiro. Lello&Irmão, Editores Porto, 1976

«(...) abatida pelo desgosto, caminhava com lentidão e só dolorosamente falava, fechando os olhos e deixando cair a cabeça sobre o peito durante instantes, mal se via na obrigação de elevar um pouco  a voz. Nesses momentos, a mão pousada sobre o seio mostrava que se sentia ali uma viva dor.»



Alfred De Vigny. Cinq-Mars ou uma Conjura no Reinado de Luís XIII. Os grandes romances históricos. Tradução revista por Pedro Reis. Amigos do Livro, Editores, Lisboa., p. 17

imaginava os abismos de beleza que o vestido escondia

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 57

«(...) o vermelho da flor punha ali uma nódoa de sangue ou talvez de provocação desesperada.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 57

«Era um homem que trazia em si, nos gestos e nos discursos, o cheiro do mundo, sugestões perigosas e perturbantes.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 55

pobretões

«O lavrador era um homem  de neuras, vário como um catavento, intempestivamente generoso  e intempestivamente agreste, e vestia quase sempre um capote, mais leve ou pesado consoante lho permitiam as estações, que por certo se tornava indispensável para lhe dar majestade. Fazia um jeito ao corpo, em ar de dança, e as abas do capote acompanhavam a ondulação dos movimentos, fazendo sobressair o que, nesses gestos, havia de orgulho e desdém.»


Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 51

«(...) no tom amistoso do diálogo disfarçava-se muito despeito.»

Fernando NamoraO Trigo e o Joio, Círculo de Leitores., p. 51

louvaminha

 nome feminino

 louvor exagerado; lisonja; adulação



pessoa que gosta de adular; bajulador

quarta-feira, 23 de abril de 2014

   «Inspector: O que está provado é que a miúda tem vocação para mulher-a-dias. Então não é? Tão depressa aparece a lavar sótãos toda nua como a lavar paredes de palavrões. Covas, o que você tem ali é uma mulher-a-dias pornográfica, que é cá uma especialidade que ninguém ainda tinha descoberto.
   Elias: Oh, oh, não me faça rir que estou de luto.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 179

boîte

mas com que lata...

''engate que comece com negas é de morte.''


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 175

batalha dos lencóis

Pedigree

impulsos de destruição

«E o tipo é da opinião que o major sofria daquilo a que podemos chamar impulsos de destruição e que por causa dos impulsos de destruição é que lhe vinham as tais bravuras.  (...)

   Este complexo de destruição, continua o inspector Otero, manifestava-se por uma arrogância ( o advogado chamou-lhe obsessão) que oscilava entre a dedicação e a crueldade mais lixada.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 173

estória

terça-feira, 22 de abril de 2014


«As lágrimas de sereia e o corno compreensivo; errare humanum est.»

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 170

«um filho é o vértice do orgulho da mulher só»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 163
«Estou farta de liberdade», gritava ela para quem a quisesse ouvir, «toda a gente me quer dar liberdade e eu quero que a liberdade se foda». (Se cosa, disse a galinheira, perdoe-se a expressão).

José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 163

ANGÚSTIA DA EXACTIDÃO
by Victor Gonçalves in Analítica da Actualidade


Próxima das neuroses obsessivas, de que todos os génios produtivos sofrem (em graus e intensidades diferentes), a angústia da exactidão alimenta-se de uma profunda paixão pela ordem (feita exclusivamente de leis cósmicas, bem para lá da condição humana), jogo de escrúpulos irrazoáveis, mania de auto-correcção permanente. Creio que todos os grandes criadores, quer se exponham na música, na literatura, na filosofia, na pintura, na dança, ou noutro qualquer exercício de pensamento lógico-criativo (onde se situam também os cientistas inovadores) foram, de uma ou de outra forma, obsessivos e tendencialmente compulsivos. Quando, por exemplo, Lobo Antunes diz que não pode viver sem escrever, mas que demora mais tempo, muito mais, a corrigir do que a criar a primeira versão, vive, à sua medida, na angústia da exactidão.
Mas a patologia é apenas uma possibilidade, embora a mais extrema. Noutros termos, a neurose obsessiva não é necessariamente o culminar de um processo, onde aconteceria a exaustão de um indivíduo. Na verdade, é o produto da obsessão que vai ditar em que campo ela se inscreve, a obsessão é um pharmakon (remédio e veneno). Se a linha de fuga for a física quântica ou um tratado de filosofia medieval, uma sinfonia completa ou uma instalação minimalista plena de mundo, um romance polifónico de 400 páginas..., isto é, se o produto dessa dedicação integral, dessa fidelidade sem fissuras for uma obra que encerra riqueza suficiente para conjurar a extrema focalização do sujeito num processo criativo, então a patologia habitual dos obsessivos – destruidora de afectos, de ligações emotivas e racionais, da lucidez poética inventiva – não emergirá, ou melhor, dificilmente emergirá. Nos génios (chamemos-lhe assim para facilitar) a produção de obras é a cura homeopática dos impulsos obsessivos negativos.
Noutros registos de vida, menos intensivos, sem a força ou a sorte para fazer nascer algo de extraordinário, também existe esta angústia que ensombra com dúvidas (anti-cartesianas) as coisas que vamos fazendo: aquela vírgula mal colocada que potencia insónias; o conceito que escapou à censura lógica e agora corrompe a felicidade que pensávamos retirar do ensaio publicado; a metáfora gasta, vulgarizada que dissemos nunca mais usar mas que se introduziu furtivamente no poema, impossível de rasurar porque outras exactidões seriam destruídas; um personagem, a quem demos a honra de conduzir a história, incapaz de encaixar na narrativa sem minar o equilíbrio perspectivista; uma nota deslocada, dissonante na partitura, que recusa silenciar-se e corrompe a arquitectura melódica; ou o facto, esse velho evangelho da objectividade, cortado pelo relativismo de uma análise incoerente.
Mas também aqui o resultado feliz, num belo produto, das preocupações exageradas transforma o que destrói no que salva e faz crescer, conduz a uma plenitude que jamais será alcançada através dos gestos codificados da vidinha.
II
Há umas semanas lia uma pequena entrevista de Jorge Silva Melo a propósito de O Regresso a Casa de Harol Pinter para o D. Maria II. Aí pronunciava um magnífico elogio aos seus actores, apelidando-os de “actores exactos” (João Perry, Rúben Gomes, Maria João Pinho, Elmano Sancho, João Pedro Mamede e Jorge Silva Melo). Mas aqui percebe-se que não se trata da “angústia da exactidão”, antes do perfeito domínio de uma arte onde se improvisa pelo menos tanto quanto se representa (repetir um modelo, voltar a apresentá-lo). É a exactidão da criação, como quando Gilles Deleuze no diz que o sentido de um acontecimento não o precede, ele surge à medida que o próprio acontecimento se desenrola. Por isso, este pensador francês prefere ao termo “exacto” o de “anexacto”, um outro tipo de rigor: do estilo e do gosto mais do que da adequação entre o empírico e o ideal, o modelo e a cópia. Também Ludwig Wittgenstein quis nasInvestigações Filosóficas, com o conceito de “jogos de linguagem”, mostrar que “o significado de uma palavra está no seu uso”. Neste sentido, a verdade de algo resulta do seu funcionamento dentro de um determinado jogo de linguagem (Mendel não podia estar certo mesmo estando-o, porque o jogo de linguagem dominante da sua época não podia aceitar a sua linguagem quase privada sobre a hereditariedade. Que hoje, num volte-face de thriller, é a que domina). Foucault falará ainda mais claramente em “jogos de verdade”, relativizando com isso a exactidão, visto que a verdade é relativa ao que uma época/cultura considera como verdadeiro. Mas talvez seja mais clara ainda a afirmação de Jean-Luc Godard (brilhante Pierrot le fou), cito de memória: “não tenhais ideias justas, mas somente uma ideia”. Como se desconfiasse, até politicamente, da exactidão das ideias, instrumento várias vezes utilizado ao longo da história para impor a servidão, a quem percorreu a via-sacra para as encontrar e a quem as recebe e se vê obrigado a abdicar da liberdade de as recusar, porque, finalmente, sempre são “ideias exactas”.
Tenhamos, pois, uma ideia, anexacta ou rebelde, excêntrica em relação ao nosso verdadeiro, aos jogos de linguagem da opinião, mais ou menos erudita, deixemo-la emergir evitando as angústias estéreis. É que talvez toda a metafísica do mundo se esgote quando acolhemos o sol sentados numa esplanada à beira-mar.

cristais nocturnos

''um vendaval de insultos''


baratinar


verbo transitivo

1. coloquial seduzir com palavras falsas; enganar; intrujar
2. coloquial confundir, desorientar

a-ver-vamos

Happiness I cannot feel and love to me is so unreal

sábado, 19 de abril de 2014

   Fare thee well and if for ever still for ever
fare the Well*

Lorde Byron


* Adeus! E se for para sempre, para sempre ainda adeus...
«De que serviriam as Artes, se não fossem o desdobramento e a contra-prova da existência? Eh! Bom Deus! À nossa volta só vemos em demasia a triste e desencantadora realidade; o tédio insuportável dos meios-caracteres, os amores indecisos, os esboços da virtude e de vícios, os ódios mitigados, as amizades fraquejantes, as doutrinas contraditórias, as fidelidades que têm os seus altos e baixos, as opiniões que se evaporam. Deixemo-nos, pois, sonhar que por vezes parecemos homens mais fortes e maiores, que seremos bons e mais, mas sempre resolutos. Isso faz-nos bem. Se a palidez da nossa verdade nos perseguir nas Artes, aboliremos de um só golpe o teatro e o livro, a fim de a não termos que enfrentar duas vezes. O que se deseja nas obras que fazem movimentar os fantasmas dos homens é, repito-o, o espectáculo filosófico do homem profundamente estigmatizado pelas paixões do seu carácter e dos seus tempos. É portanto a verdade desse homem e desses tempos, mas ambos elevados a um poder superior e ideal, que concentra em si todas as forças. Reconhecemo-la, a essa verdade, nas obras do pensamento, tanto quanto nos recreamos acerca das semelhanças de um quadro cujo original nunca vimos, pois um bom talento pinta a vida, de preferência aos vivos.»


Alfred De Vigny. Cinq-Mars ou uma Conjura no Reinado de Luís XIII. Os grandes romances históricos. Tradução revista por Pedro Reis. Amigos do Livro, Editores, Lisboa., p. 8

    «Mena acorda sempre de ressaca como ele pode ver pelo balde cheio de pontas de cigarro, e arrasta-se para a casa de banho embrutecida pelo valium. Primeiro que tudo diluir a insónia, depois é que vinha a maquilhagem, o envelhecer-se, e a peruca e os óculos sem graduação.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 155

Com a outra mão, esmaga pensativamente o cigarro no prato da folha.


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 153

Entressorriso

protegida pela sua solidão

    «Vira-a apenas a ela. Reconhecera as longas pernas queimadas pelo sol, o sorriso a nascer e a morrer na doçura profunda, aquela maneira de ser, aqueles olhos semicerrados, ela protegida pela sua solidão.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 158
    «Você já não me amava, nessa altura. De certo, você nunca me amou. Você pensava abandonar-me, era para si uma questão de dinheiro, de ganhar dinheiro - você nunca dizia: ganhar a vida.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 152

Nell Shipman in The Grub-Stake, USA, 1923


«Eu disse-lhe que o amava. Você nunca respondia a essa espécie de insânia.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 150
    «Olho para si. Você pergunta-me o que se passa, sempre algo alarmado quando eu o olho. Eu digo-lhe que não se passa nada, que olhava para si pelo prazer de olhar:
     -Não sei se o amor é um sentimento. Às vezes penso que amar é ver. É vê-lo.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 147
    «Esqueci as palavras adequadas. Sabia-as e esqueci-as, e aqui falo-lhe com o esquecimento dessas palavras. Contrariamente a todas as aparências, eu não sou mulher que se entregue de corpo e alma ao amor de uma só pessoa, mesmo que ela fosse o ser mais adorado da sua vida. Sou uma pessoa infiel. Bem gostaria de reencontrar as palavras que tinha reservado para lhe dizer isto. Eis que relembro algumas delas. Queria dizer-lhe aquilo em que creio, é que seria preciso conservar sempre adiante de nós, aqui está, reencontro a palavra, um lugar, uma espécie de lugar pessoal, é isso, para nele estar só e para amar. Para amar não se sabe o quê, nem quem, nem como, nem por quanto tempo. Para amar, eis que todas as palavras me voltam à memória, de repente... para conservarmos o lugar de uma espera, nunca se sabe, da espera de um amor, de um amor sem ninguém ainda, talvez, mas disso e só disso, do amor. »


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 142/3
    «Ele não procura saber onde encontrá-la. Nem pensa ir encontrar-se com ela. Quer ficar só, para saber, para pensar nela, para amá-la.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 126
    «Ela aproxima-se dele, pousa os lábios nos seus olhos fechados. Ela diz:
       -Gostava muito de ficar aqui consigo até à noite.
     Levanta-se, inclina-se para ele e pousa os seus lábios nos dele, demoradamente. Ficam assim, imóveis, o tempo necessário para se conhecerem para sempre. Depois ela afasta os lábios dos dele. E ele fica como ela o deixou, com o rosto entre as mãos, de olhos fechados.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 124


«Ela quer morrer. That's the point.É isso que ela quer, um capricho como outro qualquer.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 112
    «Ele, o Captain, olha para ela a cada instante; ela não, já não olha para ninguém. Ele, na realidade, não a larga dos olhos, nunca. Ama-a ainda com todo o seu vigor sexual. Ela não. Ela já está noutras paragens, um pouco na morte, um pouco no riso também, e sabe Deus em que outros sítios. Assim, já nem tem força para escolher por si um homem. Mas todas as noites ela o consente em si.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 101

vómito-negro

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