terça-feira, 22 de abril de 2014


ANGÚSTIA DA EXACTIDÃO
by Victor Gonçalves in Analítica da Actualidade


Próxima das neuroses obsessivas, de que todos os génios produtivos sofrem (em graus e intensidades diferentes), a angústia da exactidão alimenta-se de uma profunda paixão pela ordem (feita exclusivamente de leis cósmicas, bem para lá da condição humana), jogo de escrúpulos irrazoáveis, mania de auto-correcção permanente. Creio que todos os grandes criadores, quer se exponham na música, na literatura, na filosofia, na pintura, na dança, ou noutro qualquer exercício de pensamento lógico-criativo (onde se situam também os cientistas inovadores) foram, de uma ou de outra forma, obsessivos e tendencialmente compulsivos. Quando, por exemplo, Lobo Antunes diz que não pode viver sem escrever, mas que demora mais tempo, muito mais, a corrigir do que a criar a primeira versão, vive, à sua medida, na angústia da exactidão.
Mas a patologia é apenas uma possibilidade, embora a mais extrema. Noutros termos, a neurose obsessiva não é necessariamente o culminar de um processo, onde aconteceria a exaustão de um indivíduo. Na verdade, é o produto da obsessão que vai ditar em que campo ela se inscreve, a obsessão é um pharmakon (remédio e veneno). Se a linha de fuga for a física quântica ou um tratado de filosofia medieval, uma sinfonia completa ou uma instalação minimalista plena de mundo, um romance polifónico de 400 páginas..., isto é, se o produto dessa dedicação integral, dessa fidelidade sem fissuras for uma obra que encerra riqueza suficiente para conjurar a extrema focalização do sujeito num processo criativo, então a patologia habitual dos obsessivos – destruidora de afectos, de ligações emotivas e racionais, da lucidez poética inventiva – não emergirá, ou melhor, dificilmente emergirá. Nos génios (chamemos-lhe assim para facilitar) a produção de obras é a cura homeopática dos impulsos obsessivos negativos.
Noutros registos de vida, menos intensivos, sem a força ou a sorte para fazer nascer algo de extraordinário, também existe esta angústia que ensombra com dúvidas (anti-cartesianas) as coisas que vamos fazendo: aquela vírgula mal colocada que potencia insónias; o conceito que escapou à censura lógica e agora corrompe a felicidade que pensávamos retirar do ensaio publicado; a metáfora gasta, vulgarizada que dissemos nunca mais usar mas que se introduziu furtivamente no poema, impossível de rasurar porque outras exactidões seriam destruídas; um personagem, a quem demos a honra de conduzir a história, incapaz de encaixar na narrativa sem minar o equilíbrio perspectivista; uma nota deslocada, dissonante na partitura, que recusa silenciar-se e corrompe a arquitectura melódica; ou o facto, esse velho evangelho da objectividade, cortado pelo relativismo de uma análise incoerente.
Mas também aqui o resultado feliz, num belo produto, das preocupações exageradas transforma o que destrói no que salva e faz crescer, conduz a uma plenitude que jamais será alcançada através dos gestos codificados da vidinha.
II
Há umas semanas lia uma pequena entrevista de Jorge Silva Melo a propósito de O Regresso a Casa de Harol Pinter para o D. Maria II. Aí pronunciava um magnífico elogio aos seus actores, apelidando-os de “actores exactos” (João Perry, Rúben Gomes, Maria João Pinho, Elmano Sancho, João Pedro Mamede e Jorge Silva Melo). Mas aqui percebe-se que não se trata da “angústia da exactidão”, antes do perfeito domínio de uma arte onde se improvisa pelo menos tanto quanto se representa (repetir um modelo, voltar a apresentá-lo). É a exactidão da criação, como quando Gilles Deleuze no diz que o sentido de um acontecimento não o precede, ele surge à medida que o próprio acontecimento se desenrola. Por isso, este pensador francês prefere ao termo “exacto” o de “anexacto”, um outro tipo de rigor: do estilo e do gosto mais do que da adequação entre o empírico e o ideal, o modelo e a cópia. Também Ludwig Wittgenstein quis nasInvestigações Filosóficas, com o conceito de “jogos de linguagem”, mostrar que “o significado de uma palavra está no seu uso”. Neste sentido, a verdade de algo resulta do seu funcionamento dentro de um determinado jogo de linguagem (Mendel não podia estar certo mesmo estando-o, porque o jogo de linguagem dominante da sua época não podia aceitar a sua linguagem quase privada sobre a hereditariedade. Que hoje, num volte-face de thriller, é a que domina). Foucault falará ainda mais claramente em “jogos de verdade”, relativizando com isso a exactidão, visto que a verdade é relativa ao que uma época/cultura considera como verdadeiro. Mas talvez seja mais clara ainda a afirmação de Jean-Luc Godard (brilhante Pierrot le fou), cito de memória: “não tenhais ideias justas, mas somente uma ideia”. Como se desconfiasse, até politicamente, da exactidão das ideias, instrumento várias vezes utilizado ao longo da história para impor a servidão, a quem percorreu a via-sacra para as encontrar e a quem as recebe e se vê obrigado a abdicar da liberdade de as recusar, porque, finalmente, sempre são “ideias exactas”.
Tenhamos, pois, uma ideia, anexacta ou rebelde, excêntrica em relação ao nosso verdadeiro, aos jogos de linguagem da opinião, mais ou menos erudita, deixemo-la emergir evitando as angústias estéreis. É que talvez toda a metafísica do mundo se esgote quando acolhemos o sol sentados numa esplanada à beira-mar.

cristais nocturnos

''um vendaval de insultos''


baratinar


verbo transitivo

1. coloquial seduzir com palavras falsas; enganar; intrujar
2. coloquial confundir, desorientar

a-ver-vamos

Happiness I cannot feel and love to me is so unreal

sábado, 19 de abril de 2014

   Fare thee well and if for ever still for ever
fare the Well*

Lorde Byron


* Adeus! E se for para sempre, para sempre ainda adeus...
«De que serviriam as Artes, se não fossem o desdobramento e a contra-prova da existência? Eh! Bom Deus! À nossa volta só vemos em demasia a triste e desencantadora realidade; o tédio insuportável dos meios-caracteres, os amores indecisos, os esboços da virtude e de vícios, os ódios mitigados, as amizades fraquejantes, as doutrinas contraditórias, as fidelidades que têm os seus altos e baixos, as opiniões que se evaporam. Deixemo-nos, pois, sonhar que por vezes parecemos homens mais fortes e maiores, que seremos bons e mais, mas sempre resolutos. Isso faz-nos bem. Se a palidez da nossa verdade nos perseguir nas Artes, aboliremos de um só golpe o teatro e o livro, a fim de a não termos que enfrentar duas vezes. O que se deseja nas obras que fazem movimentar os fantasmas dos homens é, repito-o, o espectáculo filosófico do homem profundamente estigmatizado pelas paixões do seu carácter e dos seus tempos. É portanto a verdade desse homem e desses tempos, mas ambos elevados a um poder superior e ideal, que concentra em si todas as forças. Reconhecemo-la, a essa verdade, nas obras do pensamento, tanto quanto nos recreamos acerca das semelhanças de um quadro cujo original nunca vimos, pois um bom talento pinta a vida, de preferência aos vivos.»


Alfred De Vigny. Cinq-Mars ou uma Conjura no Reinado de Luís XIII. Os grandes romances históricos. Tradução revista por Pedro Reis. Amigos do Livro, Editores, Lisboa., p. 8

    «Mena acorda sempre de ressaca como ele pode ver pelo balde cheio de pontas de cigarro, e arrasta-se para a casa de banho embrutecida pelo valium. Primeiro que tudo diluir a insónia, depois é que vinha a maquilhagem, o envelhecer-se, e a peruca e os óculos sem graduação.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 155

Com a outra mão, esmaga pensativamente o cigarro no prato da folha.


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 153

Entressorriso

protegida pela sua solidão

    «Vira-a apenas a ela. Reconhecera as longas pernas queimadas pelo sol, o sorriso a nascer e a morrer na doçura profunda, aquela maneira de ser, aqueles olhos semicerrados, ela protegida pela sua solidão.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 158
    «Você já não me amava, nessa altura. De certo, você nunca me amou. Você pensava abandonar-me, era para si uma questão de dinheiro, de ganhar dinheiro - você nunca dizia: ganhar a vida.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 152

Nell Shipman in The Grub-Stake, USA, 1923


«Eu disse-lhe que o amava. Você nunca respondia a essa espécie de insânia.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 150
    «Olho para si. Você pergunta-me o que se passa, sempre algo alarmado quando eu o olho. Eu digo-lhe que não se passa nada, que olhava para si pelo prazer de olhar:
     -Não sei se o amor é um sentimento. Às vezes penso que amar é ver. É vê-lo.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 147
    «Esqueci as palavras adequadas. Sabia-as e esqueci-as, e aqui falo-lhe com o esquecimento dessas palavras. Contrariamente a todas as aparências, eu não sou mulher que se entregue de corpo e alma ao amor de uma só pessoa, mesmo que ela fosse o ser mais adorado da sua vida. Sou uma pessoa infiel. Bem gostaria de reencontrar as palavras que tinha reservado para lhe dizer isto. Eis que relembro algumas delas. Queria dizer-lhe aquilo em que creio, é que seria preciso conservar sempre adiante de nós, aqui está, reencontro a palavra, um lugar, uma espécie de lugar pessoal, é isso, para nele estar só e para amar. Para amar não se sabe o quê, nem quem, nem como, nem por quanto tempo. Para amar, eis que todas as palavras me voltam à memória, de repente... para conservarmos o lugar de uma espera, nunca se sabe, da espera de um amor, de um amor sem ninguém ainda, talvez, mas disso e só disso, do amor. »


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 142/3
    «Ele não procura saber onde encontrá-la. Nem pensa ir encontrar-se com ela. Quer ficar só, para saber, para pensar nela, para amá-la.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 126
    «Ela aproxima-se dele, pousa os lábios nos seus olhos fechados. Ela diz:
       -Gostava muito de ficar aqui consigo até à noite.
     Levanta-se, inclina-se para ele e pousa os seus lábios nos dele, demoradamente. Ficam assim, imóveis, o tempo necessário para se conhecerem para sempre. Depois ela afasta os lábios dos dele. E ele fica como ela o deixou, com o rosto entre as mãos, de olhos fechados.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 124


«Ela quer morrer. That's the point.É isso que ela quer, um capricho como outro qualquer.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 112
    «Ele, o Captain, olha para ela a cada instante; ela não, já não olha para ninguém. Ele, na realidade, não a larga dos olhos, nunca. Ama-a ainda com todo o seu vigor sexual. Ela não. Ela já está noutras paragens, um pouco na morte, um pouco no riso também, e sabe Deus em que outros sítios. Assim, já nem tem força para escolher por si um homem. Mas todas as noites ela o consente em si.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 101

vómito-negro

   « - Olá, mais linda.
      -Vá bardamerda.
      -Estava a pensar em ti.
      -Largue-me mas é da mão, já lhe disse que sou uma senhora casada.
      Há meses que isto é assim. Vez por outra, quando o corpo lhe amorna em solidões, Elias marca o número-mistério e entra em linha.
     -Olha, vi-te ontem.
     -Eu também, tem piada.
     -Ias com o teu namorado.
     -Ai que mentira. Qual deles?
     -Aquele que te pregou o esquentamento.
     -Ordinário.
     Som de desligar. Elias, sempre de boca descaída, repete a marcação do número.
     -Isso faz-se? Desligar ao querido?
     -Já lhe disse que sou uma senhora casada.
     -Então estás lavadinha por baixo.
     -Ai toda, meu querido. Estou todinha. E tu? Sabes uma coisa, hoje não estou nada-nada para chatices.
    -Nem eu. Estou doentinho. (Elias mira uma unha gigante.)
    -Com quê, meu querido? Foram-te ao rabo?
    -Mais ou menos.
    -Logo vi, mas, sabes, com chantilly, filho, com chantilly.
    -Costumas pôr chantilly, é?
    -Sempre, filho. Com muitas natas. Olha vou desligar que o meu marido já chegou.
     -Chama-o lá.
     -O quê?
     -Chama-o lá, o teu marido.
     -O quê?
     -Pergunta-lhe se o gajo quer uma ajuda.
     -Ai, quer, querido, vem depressa. Sabes como é que eu estou? Olha, estou em cima da cama, que é assim no estilo de queen anne, mas, tu sabes, amor, tu já cá estiveste, não te lembras?
     -Daquela vez em que te comi de gatas, atão não me lembro.
     -Pois olha eu cá não.
      -Lembras, pois.
     -Comida de gatas? Adoro. Deves ter sido muito desajeitadinho para eu não me lembrar.
     -Até estavas com um robe castanho transparente.
     -Robe castanho deve ser confusão. A menina é muito prò moreno, o castanho não lhe cai bem. Não faz mal, foi como tu dizes.
     -Tinhas umas ligas com argolas que davam cá um tilintar que nem queiras saber.
     -Ah, foi de ligas?
     - E agora como é que tu estás?
     -Perdão?
     -Agora como é que tu estás, minha puta.
     -Ah, agora a puta está com o Sheik nas perninhas, o Sheik é o meu bassé.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 148-150

The Letter

galdéria mal amanhada

Aquellos ojos negros...

desencabrestada

   «Entram dois loucos mansos do hospital Miguel Bombarda, ali ao pé. Reconhecem-se pelas cabeças rapadas, pela palidez escaveirada e pela roupa de internados; as calças estão-lhe sempre curtas, mal chegam às canelas, e usam cordéis a fazerem de cinto. Os loucos mansos dão uma volta pelas mesas acenando com os dois dedos à frente da boca. Pedem cigarros.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 146

E ria, o velhaco.

       «Este velho da estátua era um dos seus fantasmas de menino, achava-o igual a um bruxo desdentado que havia em Elvas, um que chamavam o Esplérido e que tinha o corpo por dentro todo a bulir em lagartas. Não são lagartas, é sebo, sossegava-o o pai. Mas o Esplérido quando a garotada o espreitava à distância e de cara franzida, espremia as asas do nariz com duas unhas e começava a deitar pelos poros fios brancos como vermes retorcidos. E ria, o velhaco. Tinha o mesmo riso carcomido do velho de bronze.»


José Cardoso PiresBalada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 144
«Pecador que me ignoras em breve te juntarás a mim e então é que eu me hei-de rir, Pax Tecum


José Cardoso Pires. Balada da Praia dos Cães. 2ª Edição, 1982. Edições «O Jornal», Lisboa., p. 143

charuto Romeu-e-Julieta

sexta-feira, 18 de abril de 2014

artifícios da raposa

CORO DOS VELHOS

   Obrigado pelo obséquio. Roeu-me de tal forma o olho que me deixou nele um poço. Não posso deixar de verter torrentes de lágrimas.


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 95
CORO DOS VELHOS

   Não há nada mais teimoso do que as mulheres. Nem o lume nem as panteras são mais indomáveis do que elas.

Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 116

aguagem

CINÉSIAS

    Até me parece mais nova e mais bonita. Mas a dureza e a indiferença dela matam-me o desejo que sinto.


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 95
CINÉSIAS

   É preciso andar depressa! A minha vida tem sido uma tristeza desde que Mírrina saiu de casa. Cada vez que lá entro, dá-me para chorar. Tudo parece vazio, foi-se-me a vontade de comer. Só que tenho é tesão!

Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 93
LISÍSTRATA

  A ti cabe atear lume ao desejo, virá-lo e revirá-lo, atiçá-lo, oferecer-te e recusar-te, dando-lhe tudo excepto o vaso das flores.


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 90
“Se, por um instante, Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me presenteasse com um pedaço de vida, possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo o que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os demais parassem, acordaria quando os outros dormem. Escutaria quando os outros falassem e disfrutaria de um bom gelado de chocolate. Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida vestiria simplesmente, jorgar-me-ia de bruços no solo, deixando a descoberto não apenas meu corpo, como também a minha alma. Deus meu, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saisse. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas um poema de Mário Benedetti e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos espinhos e o encarnado beijo das suas pétalas. Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!… Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas: amo-te, amo-te. Convenceria cada mulher e cada homem de que são os meus favoritos e viveria apaixonado pelo amor. Aos homens, provar-lhes-ia como estão enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar. A uma criança, daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha. Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento. Tantas coisas aprendi com vocês, os homens… Aprendi que todos querem viver no cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a rampa. Aprendi que quando um recém-nascido aperta, com sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do pai, tem-no prisioneiro para sempre. Aprendi que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se. São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas, a mim não poderão servir muito, porque quando me olharem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer.”

quinta-feira, 17 de abril de 2014


“Nos primeiros doze anos da minha vida, fui continuamente sujeito a quase todo o tipo de torturas 
físicas e psicológicas que se possam imaginar. Devia ter morrido. Depois de ter sido salvo da minha 
mãe alcoólica e de ter tido a felicidade de ser entregue aos cuidados de outros, houve quem 
afirmasse com presunção que, dada a minha situação extrema, acabaria morto ou na prisão – as 
desvantagens com quem lutava eram inultrapassáveis. Nunca vi as coisas assim. Se alguma coisa 
aprendi com a minha infância desgraçada, foi que não há nada que possa dominar ou vencer o 
espírito humano.” 


Pelzer (2003, pag. 13) 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Pranto Perpétuo

«Não é por ser mulher que não sou digna de apresentar propostas mais sensatas do que as dos homens que nos governam. Além do mais, pago a minha dízima, pago-a sempre que dou filhos à luz.»


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 70


«tratei sempre a espada oculta num ramalhete de mirto.»

Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 70

lobo esfomeado

Lisímaco

nome próprio: significa etimologicamente «aquele que põe fim à guerra.»


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 64
_______________
* As ortigas tomadas como símbolo do ardor sexual, pois tinham fama de afrodisíacas.


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 64

CORO DAS VELHAS

  Aqui me tens, anda cá bater-me! Mas podes ter a certeza de que nenhuma puta te tornará a fazer festas nos colhões!


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 47

boamente

coribantes


MITOLOGIA sacerdotes da deusa Cíbele que cantavam e bailavam desordenadamente durante a celebração dos seus mistérios.

(Do grego korýbantes, plural de korýbas, -antos, «sacerdote de Cíbele», pelo latim corybantes, «idem»)

«Nenhum homem aprecia o prazer se a mulher não o sentir também.»


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 30
LISÍSTRATA

  Teríamos de nos limitar, como diz Ferécrates, a esfolar o perro esfolado*.

_______________
* Mais uma alusão obscena, desta vez ao prazer solitário, único recurso das mulheres sem homem.

Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 30

LISÍSTRATA

Tu, sim, tu sabes ser mulher.


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 29

vituperāre

CLEONICE

E que bem mondada!. Nem um fiozinho de erva se lhe vê!


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 22
LISÍSTRATA

«(...) ...Irrita-me ver a maneira como as mulheres se comportam. Os homens têm boas razões para pensarem o pior de nós.»


Aristófanes. Lisístrata. Tradução de Manuel João Gomes. Ilustrações de Aubrey Beardsley. Círculo de Leitores, 1985., p. 12
Afrodite Genitilis - a deusa que presidia à fecundação.

humor obsceno e despudorado

 « - Ele não quer que ela morra, ele proíbe-a de morrer, de certo modo, pelo facto de não querer a morte dela na vida dele, isso não, nunca.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 105
«Fica muito tempo com os olhos baixos, depois, subitamente, olha-a demoradamente como faríamos perante uma paisagem perturbadora e inalcançável, a do mar ou do vazio do céu.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 99

«Tão sós estavam no mundo, que já nada sabiam da solidão.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 95

terça-feira, 15 de abril de 2014




«Era preciso proteger aquela criança contra si mesma, contra aquela obscuridade que, a seu ver, era tão legível que ela a confundia com a sua própria natureza.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 74/5

Uma luz de um amarelo de iodo, sangrenta.

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 74/5

She's always changing her mind...

«O Captain não queria ouvir falar dessas coisas. Deixava-a sem a ouvir. Não queria saber nada para além das generalidades. Recusava-se a entrar nos pormenores daquele mau humor.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 74/5

Ela voltara a olhar para o chão, com vergonha de ter de morrer.


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 71
 «-Estou-me completamente nas tintas  para o que você escreve, isso é lá consigo.
   -Sim, é comigo, só comigo. Seja como for, farei o que quiser.
   -Sim, seja como for, Você só faz aquilo que decide, tem esse defeito.
   -Não tenho outra saída. Você não me deixa outra saída. Eu também não.
   -Menos. Você deixa-me ainda menos.
   -Também é verdade.
   Continuámos a falar assim. E depois você disse:
   - O que nós preferimos é escrever livros, um acerca do outro - e rimo-nos.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 62/3
« - O que me impede de escrever, é você. Você é muito infeliz por isso. Porque não escreve. Você não escreve porque sabe tudo acerca dessa coisa, essa coisa trágica que é escrever, fazê-lo ou não, não escrever, não conseguir fazê-lo, você sabe tudo. Você, é por ser um escritor que não escreve. Pode acontecer.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 58
«Não percebo bem o que quer saber de mim. Eu digo o que sei, que certas histórias são inapreensíveis, que são feitas de estados sucessivos sem conexão entre eles. Que são as histórias mais terríveis, aquelas que nunca se confessam, que vivem sem qualquer certeza, nunca.»



Marguerite Duras. Emily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 33

Como de costume, chorei.


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 55
«Você também não ouve porque acredita que há algo a compreender no que eu digo. Por isso, não ouve. As explicações aborrecem-no mais do que tudo.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 54
«Estou cheia das ressonâncias da guerra, e da ocupação colonial. Às vezes, quando oiço ordens berradas na língua alemã, dá-me vontade de matar alguém.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 53
«Falo-lhe ainda sobre o medo. Tento explicar-lhe. Não consigo. Digo: Está em mim. Segregado por mim. Vive de uma vida paradoxal, simultaneamente genética e celular. Está em mim. Sem linguagem para se manifestar. Visto de mais perto, é uma crueldade nua, muda, de mim para mim, alojada na minha cabeça, no calabouço mental. Estanque. Com surtidas para a razão, a verosimilhança, a clareza.
   Você olha-me e deixa-me falar. Olha para mais longe. Diz:
   -É o medo. O que acaba de descrever é o medo. É isso, não há outra definição.
   -Una cousa mentale.
   Você não me responde. E a seguir diz que é assim com toda a espécie de medo.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 52

« Viver o amor como o desespero.»

«A morte está posta a nu sob o vestido, a pele sob os olhos também, sob o seu olhar ferido e puro. De quando em quando o riso encobre o olhar, e ela recompõe-se desse riso, apavorada por tê-lo ousado. Olha então para o Captain, para saber. É então que o seu rosto se desnorteia e nos faz pensar.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 33

tímida ousadia

«É aqui, no sítio dos campos de cultivo, dos ulmeiros cinzentos, que se produz a inundação quotidiana.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 29
«O amor estava demasiado perto, ou demasiado longe, já não sabíamos, era fatal que um dia aquilo acontecesse, já não saber.Íamos a Quillebeuf também por causa disso, para não ficarmos juntos fechados numa casa, com o desespero.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 27/8

prados embebidos

cor-de-lua

« - Não escreva mais.
-Quando escrevo, já não o amo.
Olhamo-nos. Deixamos de olhar-nos. Eu digo:
- São palavras que metem medo.
-Sim.
-É de loucura, o desespero que se aproxima...Quando falamos, quero eu dizer.
-Sim.
Você sorri. Empalideceu de novo, apenas, outra vez, acima dos lábios, mas mesmo assim empalideceu. Eu digo-lhe:
-Já não o amo. Você é que me ama. Você não o sabe.
Vamos até à amurada. Contemplamos o rio.
-É complicado.
-Pois é.»



Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 26/7
« - Não há nada que contar. Nunca houve.
Eu respondo-lhe com certo atraso:
-Por vezes, falarmos os dois é tão difícil como morrer.
-É verdade.
-Parece-me que quando estiver em livro isso já não fará sofrer...já não será nada. Estará apagado. Descubro isso na história que tenho consigo: escrever, é também isso, sem dúvida, é apagar. Substituir.
-É verdade que a morte nada apaga. Quando você morrer, a história tornar-se-á fabulosa, evidente...»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 22/23

        «Não se consegue saber que idade eles têm. O que se vê é que ela é sensivelmente mais velha que ele. Mas que ele alcançou o andamento lento dela. Que recusa avançar mais do que ela pode, isto há anos. Que para ela acabou e que no entanto ela ainda ali está, nas paragens daquele homem, que o seu corpo está ainda ao alcance do seu, das suas mãos, em toda a parte, de noite, de dia.
      Via-se que tinha acabado e ao mesmo tempo que ela ainda ali estava. Via-se do mesmo modo. Que, se ele a abandonasse, ela morreria no seu próprio lugar onde a abandonara, isso também se via.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 19/20
«Da brancura do giz. Das falésias e da espuma. Do azul esbranquiçado das aves marinhas. E também do vento.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 19
«Árvores. Árvores privadas de água e de terra, punidas. Condenadas a tombar como seres humanos, ali, a nossos olhos.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 16
«Têm um sorriso cruel que cai de repente numa tristeza da qual parece não poderem emergir.»

Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 12
«De súbito, a ideia da minha existência surgiu no seu espírito. Olhou-me como se me amasse. Isso acontecia-lhe às vezes.»


Marguerite DurasEmily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 11
«AQUILO começara com o medo.»




Marguerite Duras. Emily L. Tradução de José Carlos González. Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 1987., p. 7

virtudes insofismáveis

segunda-feira, 14 de abril de 2014


"A man defines himself by his make-believe as well as by his sincere impulses."


The Myth of Sisyphus
Do ventre da baleia ergui meu grito:
Senhor! (dizer teu nome só é bom),
Em fé, em fé o digo, mesmo com
Um coração pesado e contrito
Que és de tudo verdade e não mito,
O coração do amor, de todo o dom,
Conquanto seja raro o bem e o bom
E toda a luz aqui me falhe, és grito
Que chama toda a chama de esperança
E acorda a luz que resta à réstia eterna, 
Conquanto viva o mártir na espelunca
Da vida (quem espera amiúde alcança)…:
Possa o nazireu preso na cisterna
Sofrer de ser só tarde mas não nunca.
 
Daniel Jonas, in «Nó». Ed. Assírio & Alvim, 2014

"(...) aquilo a que os gregos chamam alêtheia, a desocultação, o descobrimento. Aquele olhar que às vezes está pintado à proa dos barcos"
Sophia de Mello Breyner Andresen

quinta-feira, 10 de abril de 2014


IMEDIATAMENTE EMBORA POUCO A POUCO


"Gostaria de ir ao teu encontro,
Procurar-te na vila, entre as pessoas,
Ou debaixo da magnólia do jardim.
A cascata corre & tu sentas-te a ouvir
Ao acaso as folhas que o vento espalha.
No teu rosto já só vejo o ar frio da serra,
As sombras dos que te abrem o caminho
Para que a cor do dia entre no jardim.
Faz com que a angústia nas palavras que usamos
Seja um bom presságio à nossa volta.
Tudo o que é divino é transitório,
Mas não o é em vão."
-"Nada Brahma"
- M. S. Lourenço 
Powered By Blogger