segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Micenas

Dá-me as tuas mãos, dá-me as tuas mãos,
dá-me as tuas mãos.
 
Vi dentro da noite
o cimo agudo do monte
vi além a planície inundada
com a luz de uma lua por aparecer
vi, ao voltar a cabeça
as pedras negras contraídas
e a minha vida tensa como corda
princípio e fim
o último momento;
as minhas mãos.
 
Afunda-se quem levanta as grandes pedras;
estas pedras levantei-as enquanto suportei
estas pedras amei-as enquanto suportei
estas pedras, o meu destino.
Ferido pelo meu solo
tiranizado pela minha túnica
condenado pelos meus próprios deuses,
estas pedras.
 
Sei que não sabem, porém eu
que segui tantas vezes
o caminho do assassino ao assassinado
do assassinado à paga
da paga ao outro assassínio,
a púrpura inesgotável
aquela tarde do regresso
quando as Solenes começaram a silvar
na erva escassa -
vi as serpentes em cruz com as víboras
entretecidas sobre a linguagem má
o nosso destino.
 
Vozes de pedra e do sono
mais fundas aqui onde o mundo escurece,
memória da fadiga enraizada no ritmo
que bateu na terra com pés
esquecidos.
Corpos afundados nos alicerces
do outro tempo, nus. Olhos
fixos fixos, num sinal
que por mais que queiras não distingues;
a alma
que luta por tornar-se tua alma.
 
Nem já sequer o silêncio é teu
aqui onde as mós pararam.
 
Outubro 1935
 
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.49/51

XV

 
Quid campo de plátanos opacissimus?
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvore, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do ouro
mundo que te deixava e te prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
se de afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora o sono, a serenidade.
 
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.35/37
« O que restar da carne e do pão, queimá-lo-eis no fogo.»


(Levítico; p. 144)

domingo, 21 de novembro de 2010

«Voltamos a embarcar com os nossos remos partidos.»
 
 
 
Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.33

III

Lembra-te dos banhos em que foste afogado


Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos
que extenua os meus cotovelos e não sei onde
pousá-la.
Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho
a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se
de novo.

Vejo os olhos; nem abertos nem fechados
falo à boca que continuamente procura falar
seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.
Já não tenho força;

as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim
mutiladas.


Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23

Ossessione

Lei da oblação

«O fogo do altar deverá ali arder sem se extinguir. O sacerdote ateá-lo-á com lenha todas as manhãs, disporá sobre ela o holocausto e queimará a gordura do sacrifício da acção de graças. O fogo arderá ininterruptamente sobre o altar, sem nunca se extinguir. Esta é a lei da oblação.»


(Levítico; p. 141)
«(...) receberá o perdão da falta de que se tornou culpado.»

(Levítico; p. 141)

sábado, 20 de novembro de 2010

IV Tortura e indústria

Não, isto não é uma prisão. Deve ser uma oficina. Aqui trabalha-se. Não podes deixar de ver grandes ferramentas, guinchos, plataformas elevatórias e potros. Há guindastes em movimento nestes pavilhões, correntes rangem, giram sarilhos e rodas. Ao fundo arde ainda o fogo, o fumo sobe. Parece mesmo que estamos numa forja. Só os pregos além são difíceis de explicar, e as estacas; e aquelas construções de madeira - não sabemos se são andaimes, se patíbulos.
 
As semelhanças entre os instrumentos de tortura de uma época e os seus
instrumentos técnicos.
Primeiro grau, esmagamento dos polegares em tornos com ranhuras ou pon-
tas rombas: a tortura de Bamberg.
Segundo grau, torniquete violento nos braços, feito com cordões de pêlo, e
torção das pernas: o instrumento de Mecklemburgo.
Terceiro grau, alongamento do corpo no potro ou sobre uma escada de mão,
acompanhado de queimaduras nos flancos, nos braços e nas unhas; a lebre
lardeada.
E assim a tortura se manteve nos tribunais alemães até ao fim do século
XVIII, e mesmo depois.
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93
« Um século que pensa em libertação e imagina prisões.»
 
 
Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93

'A Wooden Donkey' (2008)

C. v. L. (1707 -1778)

 Uma loucura diferente da nossa: a loucura de um clássico.
Claro, seco e lacónico. Naquele tempo era tudo mais pequeno.
Era quase um anão, nervoso, impaciente, rodopiante,
mas o olhar cor de âmbar sob a pesada cabeleira
era penetrante e frio: é preciso rejeitar tudo o que sejam
características acidentais. Coleccionar, definir, classificar.
Todas as parecenças obscuras foram apenas inventadas para
vergonha da ciência. Lâminas terminiológicas para extrair
o imutável da carne e de um mundo cego e trémulo.

Inventários, nomenclaturas, reportórios. A natureza,
um quadrado intemporal, uma quadrícula imóvel.
Gravuras coloridas à mão, árvores genealógicas, tabelas.
Na espuma dos fenómenos, esta linguagem não se mexe.
Uma gramática do mensurável: da espessura de um cabelo,
da fundura de um umbigo, com a forma de uma vulva,
espiralada como a concha de uma orelha. Classificando,
minuciosamente e «com sentido». Trabalhando dia e noite,
para não perder um minuto enquanto permanecesse em Upsala.

Num país pobre, no mais miserável dixhuitième:
juventude pedregosa, sem dinheiro para meias-solas, comendo
do prato alheio, uma cama sempre fria, subterfúgios
para obter títulos e táleres. Finalmente, a fuga para o inóspito.
Lá, onde quase nada mais vive, ele quase revive.

Lapónia, 1745: vi verão e inverno num só dia,
atravessei nuvens, busquei o fim do mundo,
os asilos nocturnos do Sol. No frio, floresce o seu
coração seco. Líquenes rangíferos, tundra, liberdade do Ártico.

Depois, regresso aos cortesãos, aos jardins e gabinetes.
Sonhos infernais, meditações, trevas «cheias de sentido».
Nos olhos âmbar o brilho da loucura. Estático.
Finalmente, professor, médico pessoal da rainha (a mão certa
para curar as doenças do peito), presidente da academia.
Condecorado: Estrela Polar com fita preta. Tudo tarde de mais.
Azedume, desconfiança, noites sombrias em estufas,
depois a apoplexia. Os últimos quatro anos com
paralisia parcial, numa triste fraqueza de corpo e espírito.

Ninguém sabia que ele, que tinha encontrado tantas provas
da providência divina entre as coisas naturais, há muitos anos
vinha coleccionando exemplos semelhantes nos destinos humanos;
e que também os milagres, os pecados, obedecem à taxonomia.
Mania das perseguições, alucinações. Paralelamente à histoire admirable
des plantes, a história natural de doenças e vícios:
Nemesis divina, o noctário, guardado num estojo,
cheio de premonições, augúrios, intuições, leitura para Strindberg.
Teologia empírica. O investigador como espião de Deus.

Tudo tem a sua ordem: fogo posto luxúria infanticídio traição
manha e envenenamento. Melander, professor de teologia,
tece intrigas no consistório, até que, às seis da tarde, a sua cabeça
se volta para as costas. Caí, é levado para casa, nunca mais
verá o dia da cura. Deus é um rectângulo intemporal,
a Sua retaliação uma quadrícula, imóvel: execução, fogo
defenestração cabeça cortada. A senhora Psilanderhjelm, leviana
deita-se com um cortesão em Estocolmo. Apanha uma doença do ventre,
morre em breve. Abrem-na, encontram uma pedra no lugar da criança.

E assim tudo se revela. O pecador apodrece em vida.
Um modo de vida bastante monótono. Os castigos
são coleccionados, definidos e classificados. Minuciosamente e «com sentido»,
como o mecanismo da reprodução: estame seco e pólen,
semente estilete e estigma. Systema sexualis: uma obsessão fatal.
A vida não existe; só existem seres vivos.
Cada vez mais pequeno, o grande ancião medita, imóvel,
sobre uma vingança divina que fosse lógica. «Com sentido».
Sem sentido. «Com sentido». «Nós» não fazemos parte da sua loucura.

A flor que traz o seu nome, linnaea borealis L.,
é insignificante, minúscula, e quase toda branca.


Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 73-77

B. de S. (1499 - 1590)

«O vaticínio
Dez anos antes da vinda dos Espanhóis,
o primeiro sinal. Era como uma língua de fogo
no céu, como uma chama, como qualquer coisa faiscando
no crepúsculo. Ardia, largo, e disparava afunilando
para as alturas. Foi visto durante um ano, de noite.
E sempre que se iluminava ouviam-se gritos,
todos gritavam, todos batiam com a palma da mão
na boca, todos tinham medo,
se assustavam, esperavam, ficavam apavorados.


(...)

O monte
É uma coisa alta, pontiaguda; afilada em cima,
no cume, em bico, eleva-se e sobressai;
torna-se cómico, redondo; um monte redondo, baixo;
com muitos rochedos, rochoso; escarpado, fendido, rochoso;
feito de terra; com árvores; pastagens; com ervas; com água;
seco; recortado; com gargantas; com cavernas;
e lá dentro há gargantas, blocos de pedra.
Eu subo, escalo o monte. Vivo
no monte. Nasci no monte. Ninguém
se pode tornar monte. Ninguém se transforma
num monte. Por fim, também o monte se desfaz.

(...)

A caverna
Ali estende-se, ali torna-se longa e funda,
abre-se, estreita. É um lugar apertado,
um lugar de angústia. Ali é intransitável, áspera.
É um lugar terrível, um lugar de morte,
um lugar de trevas. Ali é sombria,
escura. A sua boca está escancarada, fauces abertas.
Fauces, largas, fauces estreitas.
Eu vou ficar na caverna.
Entro. Estou aqui. Estou na caverna.»


 Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p.43/45/47

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

«Poucas coisas me aconteceram e muitas li.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.137

Le regret d' Heraclite

Eu, que tantos homens fui, não fui jamais
Aquele em cujo abraço desfalecia Matilde Urbach.

Gaspar Camerarius, in DELICIAE
POETARUM BORUSSIAE, VII, 16




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.131

Quarteto

Morreram outros, mas isso aconteceu no passado,
Que é a estação (ninguém o ignora) mais propícia à morte.
É possível que eu, súbdito de Yaqub Almansur,
Morra como tiveram que morrer as rosas e Aristóteles?

Do DIVÃ DE ALMOTASIM EL MAGREBI (século XII)



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.123
«Este deserto inacessível
À sombra dos melancólicos ramos.»
-Como tu gostas.



George Orwell. Os dias da Birmânia. Trad. Maria da Graça Lima Gomes. Lisboa, Moraes Editores. 1ª ed. 1983.

O gnosticismo é a religião da literatura

Harold Bloom
''O meu espírito abriu-se pelo ventre (...) Que não se confunda isto com imagens'';


Artaud, ''Nouvelle lettre sur moi-même'', in (Euvres..., p.350.
''Estreei-me na literatura a escrever livros para dizer que não podia escrever absolutamente nada; tivesse eu qualquer coisa para dizer ou escrever, e o meu pensamento era o que mais via recusado (...) logo [os meus livros] me pareceram, cheios de fissuras, falhas, chatezas e como que repletos de abortos espontâneos (...) sempre a viajarem ao lado do que queria dizer de essencial e enorme (...) só escrevi para dizer que nunca tinha feito nada, não podia fazer nada (...). Toda a  minha obra foi e só poderá ser construída em cima deste nada'' (1); ''(...) as poucas coisas que lhe apresentei constituem farrapos que pude reconstruir sobre o nada completo''(2)


 (1) - Artaud. ''Carta a Peter Watson'' in Eu, Antonin Artaud, Hiena ed., pp.89 e 94
 (2) - Artaud, ''Correspondance avec Jacques Rivière'', op.cit., p. 31

Arte poética

Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é outro sono
Que sonha não sonhar e que a morte
Que teme nossa carne é essa morte
De cada noite que se chama sono.

Ver no dia ou no ano um símbolo
Dos dias do homem e dos seus anos,
Converter o ultraje dos anos
Numa música, um rumor e um símbolo,

Ver na morte o sono, no ocaso
Um triste ouro, tal é a poesia
Que é imortal e pobre. A poesia
Volta como a aurora e o ocaso.

Às vezes pelas tardes uma cara
Nos olhos desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela a nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios
Chorou de amor ao divisar sua Ítaca
Verde e humilde. A arte é essa Ítaca
De verde eternidade, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e é cristal de um mesmo.
Heraclito inconstante, que é o mesmo.
E é ouro, como o rio interminável.

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.119/120
(...)

Como pude perder essa precisa
Ordem de humildes e queridas coisas,
Inacessíveis hoje como as rosas
Que deu ao primeiro Adão o Paraíso?

O antigo espanto da elegia
Me aflige quando penso nessa casa
E não compreendo como o tempo passa
Eu, que sou tempo e sangue e agonia.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.116/7

Os Borges

Bem pouco ou nada sei de meus maiores
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que prossegue em minha carne obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente formam parte
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua faina
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E deu-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura  que não está morto.




Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.99

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Poema dos dons

A María Esther Vázquez

Ninguém rebaixe a lágrima ou a censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia,
Me deu os livros e a noite escura.

Desta cidade de livros fiz donos
Uns olhos sem luz, que podem
Decifrar nas bibliotecas dos sonhos
Insensatos parágrafos que cedem

Albas ao seu afã. Em vão o dia
Lhes prodiga seus livros infinitos,
Árduos como aqueles árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.

De fome e sede (conta uma história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu fatigo sem rumo os confins
Desta alta e funda biblioteca cega.

Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, séculos, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.

Lento na sombra, na penumbra oca
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Sob uma espécie de biblioteca.

Algo, que certamente não se aponta
Na palavra acaso rege estas coisas;
Outro já recebeu noutras confusas
Tardes os muitos livros e a sombra.

Ao errar pelas lentas galerias
Sinto sempre com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, que terá dado
Os mesmos passos já, nos mesmos dias.

Qual dos dois escreve este poema
De um eu plural e de uma só sombra?
Que importa a palavra que me aponta
Se o anátema é uno e indiviso?

Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida cinza tão vaga
Semelhante ao sono e ao olvido.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.59/60

terça-feira, 16 de novembro de 2010

«O que se fez perfeito, o que está maduro - quer morrer!» dizes tu. Abençoada, abençoada seja a faca do podador! Mas tudo o que está ainda verde quer viver: ai!
A dor diz: «Morre! Vai-te, ó dor!» Mas tudo o que sofre quer viver, para amadurar, pra se alegrar e desejar,
- desejar o mais longínquo, mais alto, mais claro. «Quero herdeiros», diz tudo o que sofre, «quero filhos, não me quero a mim», -
mas a alegria não quer herdeiros nem filhos - a alegria quer-se a si mesma, quer eternidade, quer Retorno, quer Tudo-igual-a-si-mesmo.
A dor diz: «Quebra-te, sangra, coração! Anda, perna! Asa, voa! Avante! Pra o alto, Dor!» Pois bem, coragem! ó meu velho coração: A dor diz: «Passa e morre!»
 
 
 
 
F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 273
''Não voaste alto bastante: agora as sepulturas gaguejam: « Libertai os mortos! Porque é que a noite é tão longa? Não nos embriaga o luar?»''



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 267

Rosemary Kennedy,1938

Os Sete Selos

(Ou: A canção do Sim e Ámen)

1

Se sou profeta e cheio do espírito profético que vagueia sobre alta crista entre dois mares, -
entre passado e futuro como nuvem pesada, - hostil a planuras abafadas e a tudo o que é cansado e não sabe viver nem morrer:
nuvem pronta ao relâmpago em seu seio escuro e ao raio libertador, prenhe de relâmpagos que dizem: sim!, que riem: sim! aos raios proféticos:
- feliz quem assim está prenhe! E em verdade, longo tempo tem de ficar suspenso no flanco do monte como pesada tempestade quem tenha um dia de acender a luz do futuro! -
Oh, como não havia eu de arder de desejo pela Eternidade e pelo anel dos anéis - o anel de núpcias do Retorno!
Inda nunca encontrei a mulher de quem gostasse de ter filhos, a não ser esta mulher que eu amo: porque eu amo-te, ó Eternidade!
Porque eu amo-te, ó Eternidade!



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 249

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

''escreve-se porque não se sabe o que se quer dizer, para experimentar sabê-lo''


Lyotard, Moralités postmodernes, Galilée, 1993, p. 109
«Inexpressa e não-liberta me ficou a minha mais alta esperança! E morreram-me todas as visões e consolações da minha juventude!
Como pude eu suportar isto? Como superei e venci tais feridas? Como foi que a minha alma ressurgiu destes túmulos?
Sim, há em mim algo de invulnerável, de insusceptível de inumação, capaz de rebentar fragas; é a minha Vontade. Em silêncio e imutável ela avança através dos anos.
Quer seguir o seu caminho pelos meus pés, a minha velha Vontade; o seu ânimo é duro de coração e invulnerável.
Invulnerável só eu sou no calcanhar. Continuas a viver e a ser igual a ti mesma, ó pacientíssima  Vontade!
Continuas a irromper de todas as sepulturas!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 245

domingo, 14 de novembro de 2010

«Outro dia olhei pra os teus olhos, ó Vida! E pareceu-me que me afundava no insondável.
Mas tu pescaste-me cá pra fora como um anzol de ouro; riste escarninha, quando eu te chamei insondável.
«É o que dizem todos os peixes», disseste tu; « o que eles não podem sondar, é insondável».
Mas eu sou apenas mutável e bravia, e em tudo mulher, e nada virtuosa.
Embora vós homens me chameis «profunda» ou «fiel», ou «eterna», ou «misteriosa».
Mas vós, homens, presenteais sempre com as vossas próprias virtudes, ó virtuosos!»
Assim se ria ela, a incrível; mas eu nunca creio nela nem no seu riso quando diz mal de si mesma.
E quando um dia eu estava a falar a sós com a minha brava Sabedoria, disse-me ela, colérica: «Tu queres, tu desejas, tu amas, e é só por isso que tu louvas a Vida!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 233
«Por certo sou eu uma floresta e uma noite de árvores escuras: mas, quem não tiver medo da minha escuridão, encontrará também roseirais sob os meus ciprestres.»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 231
«É esta a minha pobreza: nunca a minha mão descansar de dar; é esta a minha inveja: ver olhos à espera e as noites iluminadas de saudade.

(...)

Quem sempre dá, corre o risco de perder o pudor; quem sempre reparte, as mãos e o coração lhe criam calos de tanto repartir.»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 227
«Voltais as costas? - Ó coração, já basta do teu fardo,
Forte ficou a tua esperança:
Conserva as portas abertas para novos amigos!
Deixa os velhos! Deixa a recordação!
Foste jovem outrora? Agora - és jovem de melhor
[ maneira!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 217

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Transfusões

“um verbo [que] anda [porque] é uma pessoa”


Luiza Neto Jorge

A respeito de alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge


Luís Miguel Nava (1989:58)  “o corpo [se] insinua, com as suas pulsões, o seu desejo, os seus espaços intersticiais onde o sentido é curtocircuitado”, num registo em que a “violência erótica” desfoca ou perturba, como uma lupa, “a imagem que temos do real”.


NAVA, Luís Miguel, 1989, “Acme a ser arte: alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge, in Colóquio/Letras, nº 108, Março/Abril.

“A manhã começa a dispersar o poema na luz incontida / do
mundo.”
 
(Herberto Helder,1996)

A respeito da poesia pode ainda dizer-se:
- A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada.
E também à volta.
 
Herberto Helder  , Photomaton & Vox
 
 
 
Às vezes como uma cobra / a mão só deixa a pele
e então a verdade surge: / que não há mão por
baixo.
 
Luiza Neto Jorge, “A outra mão”
« (...) bebo para me obrigar a pensar melhor, para ir ao âmago do que leio, porque o que leio, leio não por diversão, ou para matar o tempo, ou para adormecer; eu, que vivo numa terra que sabe ler e escrever há quinze geracões, bebo para que a leitura me impeça de cair num sono eterno, me cause delirium tremens, porque compartilho com Hegel o ponto de vista de que um homem de coração nobre ainda não é um nobre, nem um criminoso é um assassino. Se eu soubesse escrever, escreveria um livro sobre as maiores alegrias e tristezas do homem.»




Bohumil Hrabal.Uma solidão ruidosa. Tradução de Bruno Gomide feita a partir da edição inglesa (Too loud a solitude). Companhia das letras, 2010
«(...) os inquisidores queimam livros em vão.»


Bohumil Hrabal.Uma solidão ruidosa. Tradução de Bruno Gomide feita a partir da edição inglesa (Too loud a solitude). Companhia das letras, 2010

quinta-feira, 11 de novembro de 2010



Inferno, I, 32

Do crepúsculo do dia ao crepúsculo da noite, um leopardo, nos últimos anos do século XII, via umas tábuas de madeira, umas vigas verticais de ferro, homens e mulheres diversos, um paredão e talvez um beiral de pedra com folhas secas. Não sabia, não podia saber que ansiava amor e crueldade e o cálido prazer de despedaçar e o vento com cheiro a veado, mas algo nele se sufocava e se rebelava e Deus falou-lhe num sonho: Vives e morrerás nesta prisão, para que um homem que eu sei te olhe um número determinado de vezes e não te esqueça e ponha a tua figura e o teu símbolo num poema, que tem o seu preciso lugar na trama do universo. Padeces de cativeiro, mas terás dado uma palavra ao poema.
Deus, no sonho, iluminou a rudeza do animal e este compreendeu as razões e aceitou o seu destino, mas apenas houve nele, ao acordar, uma obscura resignação, uma valorosa ignorância, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade de uma fera.
Anos depois, Dante morria em Ravena, tão injustificado e tão só como qualquer outro homem. Num sonho, Deus declarou-lhe o secreto propósito da sua vida e do seu labor; Dante, maravilhado, soube enfim quem era e o que era e bendisse as suas amarguras. A tradição refere que, ao despertar, sentiu que tinha recebido e perdido uma coisa infinita, algo que não poderia recuperar, nem sequer vislumbrar, porque a máquina do mundo é demasiado complexa para a simplicidade dos homens.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.55/56

Les Valseuses, 1974

«Teu coração que palpita
A sangrar, esconde-o, louco! em escárnio e gelo!»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 209
«Quem sofreu a perda amarga
Que tu sofreste, não lhe param os passos cansados!»


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 209

O mais solitário

Agora que o dia
Se cansou do dia, e os arroios de toda a saudade
Murmuram novo conforto,
E todos os céus, pendentes de teias de aranha de ouro,
Dizem a todo o cansado: « Repousa!» -
Por que é que não descansas, coração escuro?
Que espinho te agrilhoa a fugir de pés em chaga?...
Por quem esperas?



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 205
«As nuvens estão muito perto de mim, -
estou à espera do primeiro raio.»


Poema: O pinheiro e o raio



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 193

Quem um dia há-de ter muito a proclamar...

Quem um dia há-de ter muito a proclamar,
tem de calar muita coisa dentro de si.
Quem um dia quiser acender um relâmpago,
tem de por muito tempo - ser só nuvem.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 191

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Children Learning in the Jewish Grade School

Juízos dos cansados

Todos os fatigados praguejam contra o Sol;
O valor das árvores para eles é - sombra!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 145

Almas estreitas

São-me odiosas as almas estreitas:
De nada bom, quase de nada mau são feitas.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 135

Sentença do violento

Nunca peças! Deixa essa lamúria!
Toma - peço-te! - toma sempre!


F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

PRA O ALTO

«Qual o melhor modo de subir a este monte?»
Sobe sempre, e não penses nisso.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 133

terça-feira, 9 de novembro de 2010




Quando um machado derruba uma árvore, há cinzas que ficam espalhadas. Hoje são as minhas, amanhã serão as tuas Pai.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Paraíso, XXXI, 108

Diodoro Sículo refere a história de um deus despedaçado e disperso. Quem, ao andar pelo crepúsculo ou ao traçar uma data do seu passado, não sentiu alguma vez que se tinha perdido uma coisa infinita?
Os homens perderam uma cara, uma cara irrecuperável,  e todos queriam ser aquele peregrino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que em Roma vê o sudário de Verónica e murmura com fé: Jesus Cristo, Deus meu, Deus verdadeiro, era assim, pois, a tua cara?
Há uma cara de pedra num caminho e uma inscrição que diz O verdadeiro Retrato da Santa Cara de Deus de Jaén; se realmente soubéssemos como foi, seria nossa a chave das parábolas e saberíamos se o filho do carpinteiro foi também filho de Deus.
Paulo viu-a como uma luz que o derrubou; João, como o Sol quando resplandece na sua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, banhada em luz tranquila, e não pôde nunca precisar a cor dos olhos.
Perdemos esses traços, como pode perder-se um número mágico, feito de cifras habituais; como se perde para sempre uma imagem no caleidoscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfil de um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo; as mãos que nos dão umas moedas num postigo talvez repitam as que uns soldados, um dia, cravaram na cruz.
Talvez um traço da cara crucificada espreite em cada espelho; talvez a cara tenha morrido, se tenha apagado, para que Deus fosse todos.
Quem sabe se esta noite não a veremos nos labirintos do sonho e não o saberemos amanhã.



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.47/48

domingo, 7 de novembro de 2010

«Porque no princípio da literatura está o mito, e também no fim.»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.45

Mutações

Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.

 

Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.43

A testemunha

Num estábulo que está quase à sombra da nova igreja de pedra, um homem de olhos cinzentos e barba cinzenta, estendido entre o cheiro dos animais, humildemente busca a morte como quem busca o sono. O dia, fiel a vastas leis secretas, vai deslocando e confundindo as sombras no pobre recinto; lá fora estão as terras aradas e uma vala atulhada de folhas mortas e um rasto de lobo no barro negro onde começam os bosques. O homem dorme e sonha, esquecido. O toque da oração desperta-o. Nos reinos de Inglaterra, o som dos sinos é já um dos hábitos da tarde, mas o homem, desde pequeno, viu a cara de Woden, o horror divino e a exultação, o torpe ídolo de madeira recamado de moedas romanas e de vestimentas pesadas, o sacrifício dos cavalos, cães e prisioneiros. Antes do alvorecer morrerá, e com ele morrerão e não voltarão as últimas imagens imediatas dos ritos pagãos; o mundo será um pouco mais pobre quando este saxão tiver morrido.
Feitos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre pode maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, salvo se existir uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. Que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou inconsistente perderá o mundo? A voz de Macedonio Fernández, a imagem de um cavalo rubro no baldio de Serrano e de Charcas, uma barra de enxofre, na gaveta de uma secretária de acaju?



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.39/40

Intrépido

Onde estiveres, cava fundo!
Lá em baixo é que está a fonte!
Deixa gritar os homens escuros:
«Sempre é lá baixo - o inferno!»



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 125

119

Tortos andam os grandes homens e os rios,
tortos, mas para o seu destino:
é essa a sua melhor coragem,
não têm medo dos caminhos tortos.



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 117

103

O poeta que é capaz de mentir
ciente e voluntariamente,
é o único que pode falar verdade.


Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 109

82

És frágil?
Cautela com mãos de criança?
A criança não sabe viver
sem quebrar qualquer coisa...



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 99

43

«Mais que qualquer outro vidente viste coisas negras e
[más:
nenhum sábio atravessou ainda as delícias do inferno».




Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 83

33

Sou apenas um fazedor-de-palavras:
que importam as palavras!
que importo eu!



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 79

22

Um lobo mesmo depôs a meu favor
e disse: « Tu uivas melhor ainda do que nós, os lobos».



Fragmentos de Ditirambos Dionisíacos (Canções de Zaratustra)




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 75
(...)

Tu dás-te em sacrifício, tua riqueza tortura-te -,
tu dás-te,
não te poupas, não te amas:
a grande tortura obriga-te sempre,
a tortura dos celeiros repletos, do coração repleto -
mas ninguém já te agradece...

Tens de te fazer mais pobre,
ó sábio Não-sábio!
se quiseres ser amado.
Só se ama a quem sofre,
só se dá amor a quem tem fome:
dá-te primeiro a ti, ó Zaratustra!

- Eu sou a tua Verdade...




F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 63
« - Silêncio! A minha Verdade vai falar! - »



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 61
Um relâmpago. Avista-se Diónisos em beleza esmeraldina.

Diónisos:

Sê prudente, Ariadne!...
Tu tens orelhas pequenas, tens as minhas orelhas:
Mete nelas uma palavra prudente! -
Não temos que odiar-nos primeiro, para podermos amar-
[mo-nos?...
Eu sou o teu labirinto...

 
F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 47

sábado, 6 de novembro de 2010

«Que daqui ninguém deduza que a literatura garante a felicidade: digo que quem renuncia à sua vocação por «razões práticas», comete a mais imprática idiotice. Além da ração normal de desdita que lhe cabe na vida como ser humano, terá a ração suplementar de má consciência e da dúvida. Assim, em fins de 1958, numa pensão da rua do Doutor Castelo, perto do Reitro, se perpetrou o acto da loucura: «hei-de ser escritor». Era muito mau tudo o que escrevera até então - uma obra seca de teatro, meia-dúzia de poemas, alguns contos e inúmeros artigos. Convenci-me de que a razão dessa mediocridade residia na minha indecisão e cobardia anteriores, em não ter assumido a literatura como primordial. Terminara um livro de contos, que encontrou editor em Barcelona (misteriosamente seria o berço de publicações de todos os meus livros), e o resultado foi mais deprimente ainda. Escrevera-os quase todos em Lima, nos resquícios de tempo livre que me deixavam múltiplos e fastidiosos afazeres. Justifiquei assim esse fracasso: só podia ser-se escritor se uma pessoa organizasse a sua vida em função da literatura; se uma pessoa pretendesse - como até então acontecera comigo - organizar a literatura em função de uma vida consagrada a outros senhores, o resultado seria a catástrofe.»

 
Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.42/43

Gina Lollobrigida: Torero | Madrid, 1958

«(...) comecei a descobrir esta incómoda verdade: a matéria-prima da literatura é não a felicidade mas a infelicidade humana, e os escritores, tal como os abutres, preferem alimentar-se de carne putrefacta.»


Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.41
«Havia algo de maligno e enigmático, uma atmosfera diabólica em torno desta vivenda a que demos o nome de «a casa verde». Tínhamos sido proibidos de nos aproximarmos dela. Segundo as pessoas crescidas, era perigoso e pecaminoso aproximar-se desse lugar, e era impensável entrar nele, diziam que seria o mesmo que morrer ou entrar no próprio inferno.»
 
 
Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.13
«Aquilo que o novelista exibe de si mesmo não são os seus encantos secretos, como a rapariga desenvolta, mas demónios que o atormentam e obcecam, a parte mais feia de si mesmo: as suas nostalgias, as suas culpas e os seus rancores.»


Mário Vargas Llosa. História secreta de uma novela.Tradução de António José Massano. Mínima 1. Assírio&Alvim, Lisboa, 1973., p.9
«Devagar, devagar, devagar...Um livro que mantém a velocidade do mundo exterior não oferece muito.»


Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010., p.12
«(...) Gosto de estar num café a observar pessoas. Quando estamos sentados, reparamos numa só pessoa e construímos uma micronarrativa. É como se usássemos aquela técnica antiga da fisionomia, de ler os rostos, que os médicos usavam quando queriam evitar métodos intrusivos. Transformavam-se em adivinhos científicos. Como não posso fazer análises clínicas ao sangue das pessoas, testes ao carácter, à inteligência, ou às emoções, utilizo o que tenho disponível: os rostos. Quando caminho, é quase instintivo reparar nos vários rostos, comportamentos, gestos, perceber se as pessoas vêm de uma coisa boa ou má. Nos cafés, sinto-me como se estivesse numa torre - uma mesa escondida que me permite ir observando. É isso que me interessa. O campo não tem uma multidão de rostos. »



Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.

Acredita nas coincidências?

Há ligações que nós próprios fazemos quando estamos atentos a um determinado pormenor. O critério que escolhermos ao acaso ganha uma lógica que passa a dominar o mundo.



Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.
''A crença é um dos pontos centrais do meu trabalho. Os meus livros falam das máquinas, mas em confronto com a crença''


Gonçalo M. Tavares. Actual, Nº 1984 Jornal Expresso, 6 de Novembro de 2010.

Georgia, URSS, 1932

«(...)
 - Você é um romântico - sentenciou. - A estima da posteridade não vale muito mais que o contemporâneo, que não vale nada e que se consegue com algumas moedas.
-Conheço a sua maneira de pensar - respondeu Quiroga. - Em 1852, o destino, que é generoso e que queria sondá-lo até ao fundo, ofereceu-lhe uma morte de homem, uma batalha. Você mostrou-se indigno desse dom porque a peleja e o sangue lhe causaram medo.
-Medo? - repetiu Rosas. - A mim, que domei potros no sul e depois todo um país?
Pela primeira vez, Quiroga sorriu.
- Sei bem, - disse com lentidão - que você executou mais de uma proeza equestre, segundo o testemunho imparcial dos seus capatazes e peões; mas naqueles dias, na América, e também a cavalo, executaram-se outras proezas que se chamam Chacabuco e Junín e Palma Redonda e Caseros.
Rosas ouviu-o sem se alterar e replicou assim:
-Eu não precisei de ser valente. Uma proeza minha, como você diz, foi conseguir que homens mais valentes que eu lutassem e morressem por mim. Santos Pérez, por exemplo, que acabou consigo. A coragem é uma questão de resistência; uns são mais resistentes, outros menos, mas tarde ou cedo todos afrouxam.
-Talvez seja assim - disse Quiroga, - mas eu vivi e morri, e até ao dia de hoje não soube o que é o medo. E agora vou para que me apaguem e dêem outra cara e outro destino, porque a história farta-se dos violentos. Não sei quem será o outro, o que farão de mim, mas sei que não terei medo.
- A mim basta-me ser quem sou - disse Rosas - e não quero ser outro.
- Também as pedras querem ser pedras para sempre - disse Quiroga - e são-no durante séculos, até que se desfazem em pó. Eu pensava como você quando entrei na morte, mas aqui aprendi muitas coisas. Repare bem, já estamos ambos a mudar.
Mas Rosas não fez caso dele e disse, como se pensasse em voz alta:
- Pode ser que não esteja habituado a estar morto, mas estes lugares e esta discussão parecem-me um sonho, e não um sonho sonhado por mim, mas por outro, que ainda está por nascer.
Não falaram mais, porque nesse momento Alguém os chamou.»



Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30/31
« - Rosas, você nunca me compreendeu. E como poderia entender-me, se foram tão diversos os nossos destinos?»


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.30

Delia Elena San Marco

 
Despedimo-nos numa das esquinas do Once.
Da outra vereda voltei a olhar; você tinha-se voltado e disse-me adeus com a mão.
Um rio de veículos e de gente corria entre nós; eram cinco horas de uma tarde qualquer; como iria eu saber que aquele rio era o triste Aqueronte, o insuperável.
Não nos vimos mais e um ano depois você tinha morrido.
E agora eu busco essa memória e olho-a e penso que era falsa e que por detrás da despedida trivial estava a infinita separação.
À noite saí depois de comer e reli, para compreender estas coisas, o último ensinamento que Platão põe na boca do seu mestre. Li que a alma pode fugir quando morre a carne.
E agora não sei se a verdade está na aziaga interpretação ulterior ou na despedida inocente.
Porque se não morrem as almas está certo que nas suas despedidas não haja qualquer ênfase.
Despedir-se é negar a separação, é dizer: Hoje fingimos que nos separamos, mas ver-nos-emos amanhã. Os homens inventaram o adeus porque sabem de algum modo imortais, ainda que se julguem contingentes e efémeros.
Delia: um dia reataremos (junto a que rio?) esse diálogo incerto e perguntar-nos-emos se, numa cidade que se perdia numa planície, fomos Borges e Delia.
 
 
 
 
Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.27

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Diálogo sobre um diálogo

A. - Distraídos a discorrer sobre a imortalidade, tínhamos deixado que anoitecesse sem acender a lâmpada. Não nos víamos as caras. Com uma indiferença e uma doçura mais convincentes que o fervor, a voz de Macedonio Fernández repetia que a alma é imortal. Assegurava-me que a morte do corpo é de todo insignificante e que morrer tem de ser o facto mais nulo que pode suceder a um homem. Eu brincava com a navalha de Macedonio: abria-a e fechava-a. Um acordeão vizinho despachava infinitamente a Cumparsita, essa ninharia consternada que agrada a muita gente porque lhes mentiram, dizendo que é velha...Propus a Macedonio que nos suicidássemos, para discutir sem estorvo.
Z. - (brincalhão). - Mas suspeito que por fim não se decidiram.
A. - (já em plena mística). - Francamente não me recordo se nessa noite nos suicidámos.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen. Difel, Lisboa., p.15

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Fanal

Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
pedra de ara súbito como torre erguida,
aqui acende sob um negro céu
Zaratustra os seus fogos das alturas, -
fanal pra navegantes sem rumo,
ponto de interrogação para os que têm resposta...

Esta chama de ventre esbranquiçado
- sua cobiça lança línguas a distâncias frias,
dobra o pescoço para alturas sempre mais puras -
cobra erguida a pino, de impaciência:
este sinal o pus eu em frente a mim.

A minha própria alma é esta chama:
insaciável de distâncias novas,
lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.
Porque fugiu Zaratustra dos bichos e dos homens?
Porque se escapou de repente de toda a terra firme?
Seis solidões conhece ele já -,
mas o próprio mar deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,
a uma sétima solidão
lança buscando agora o seu anzol por sobre a fronte.

Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!
Ó mares do futuro! Ó céus inexplorados!
Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:
dai resposta à impaciência da chama,
agarrai para mim, pescador nos altos montes,
a minha sétima última solidão! - -



F. Nietzche. Poemas. Antologia, Versão Portuguesa, Prefácio e Notas de Paulo Quintela. 2ª Edição Revista. Centelha, Coimbra, 1981,p. 35

Paisagem com inundação

Uma paisagem absolutamente canónica, melhorada pela inundação.
Apenas se vê o topo das árvores, campanários e cúpulas.
O que se quer dizer assoma à boca suflando pela emoção
e do novelo das palavras apenas se salva 'era'.
Analogamente, o espelho reflecte do veterano a testa e a calvície,
mas não o seu rosto, para não falar dos colhões. Por baixo, a água
leva tudo o que se escreveu e disse. Por cima,
um farrapo de nuvem. E tu de pé no meio da água.
Provavelmente o lugar de acção é algures nos Países Baixos.
antes de serem os diques e as rendas, nomes como De Moll
ou Van Dyke. Ou então na Ásia, nos trópicos, onde estão habituados
à chuva que amacia o solo, só que tu não és arroz.
Vê-se que está a subir há muito, gota a gota, dia após dia, ano após ano,
e que toda esta água doce anseia por novos hectares salgados.
E chegou a altura de pôr a criança aos ombros, como um periscópio,
para avistar o fumo dos navios do inimigo que se aproximam.
 
1993
 
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.237
«Um dia estes anos serão
vistos como uma laje de mármore
raiado de veias (...) »
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.233

Holy Virgin, 2003

À memória de Clifford Brown

Não é a cor azul, é a cor frio.
É a cor do Atlântico em meados de Fevereiro.
E seja como for que estejas vestido, estás nu,
deitado de costas, num bloco de gelo.
 
Não é um simples bloco de gelo, feito de gelo,
mas o argumento de que todo o calor está ausente.
Está sozinho no oceano, e tu estás em cima dele
sozinho; e o som do trompete é como o mercúrio cadente.
 
Não é uma voz ingénua que arranha no escuro,
mas os dedos gelados em ré maior, sem luvas;
e uma gota de chuva cintilante eleva-se para o zénite,
para observar do alto o espaço por essa retina.
 
Não é uma simples retina, é um brocado faiscante,
uma nova língua musical feita de riscas e estrelas. O gelo
não se funde, tal um foco de luz errando
para a escuridão dos bastidores onde se esconde o pólo.
 
 
Fevereiro de 1993
 
 
 
Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.225
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