terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Imperdoável

Se vós amigos, esqueceis, se escarneceis o artista,
E entendeis mesquinho e vulgar o espírito mais fundo,
Deus perdoa-vo-lo; mas não perturbeis
Nunca a paz dos que se amam.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 79

Perdão!

Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei
A dourada paz dos deuses, e das mais secretas,
Das mais fundas dores da vida
Muitas de mim aprendeste.

Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens
Passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu
Repousas depois e brilhas de novo
Na tua beleza, ó luz suave!


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 69

Ao Éter

(...)


Pelas zonas da terra, ó Pai Éter! em vão,
Pois a ânsia nos impele de morar em teus jardins.
Na corrente marinha nos lançamos, pra nos saciarmos
Nas planuras mais livres, e a vaga infinita nos rodeia
A quilha, e o peito alegra-se co'as forças do deus do mar.
Mas não lhe basta; pois Oceano mais fundo nos atraí,
Lá onde se agita a onda mais leve - oh quem pudesse
Levar o barco errante àquelas praias de ouro!

Mas enquanto eu anseio ao longe do crepúsculo
Onde co'a vaga azulada abraças 'stranhas praias,
Desces sussurrante da coroa florida da árvore de fruto,
Pai Éter! e suavizas-me até o coração ansioso,
E de bom grado vivo, como dantes, co'as flores da terra.




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 57

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Bernarda Cutiño

«A tal Bernarda Cutiño era uma cantadeira de fama corrida, de muito brio e que os tinha no sítio; tal como cantava era boa para alvoroços, embora não se deixasse manusear por ninguém, pois se alguém o tentava, era rude e de mau trato. Forte, bonita, expansiva e de génio inconstante, sabia, contudo entregar a sua amizade a quem lhe demonstrava ser seu amigo. Tinha uns olhos faiscantes, sempre humedecidos, e a voz rouca. O seu corpo era ágil, duro e quando erguia os braços os seios queriam rebentar o corpete. Usava sempre amplas saias de fino algodão estampado, de cores berrantes e cheias de folhos, que completava com um xaile de seda e flores nas tranças. (...)»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 329/330
« Enquanto aguardava o regresso do «padrinho», Dionisio Pinzón fixou-se nelas, sobretudo naquela que estava à sua frente e que tinha a certeza de conhecer. Foi-se aproximando até se colocar ao pé do estrado e olhou-a a seu gosto, enquanto ela lançava os versos da sua canção:

Ontem à noite sonhei que te amava,
como se ama uma vez na vida
despertei e tudo era mentira,
nem sequer me lembro de ti...

(...)

...Se te quis, não foi porque te quis,
se te amei, foi para passar o tempo,
aqui te mando o teu triste retrato
para nunca me lembrar de ti...»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 317
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:
- Não há mais remédio senão liquidá-lo.
E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:
- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.
O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.
Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»
 
 
 
Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310
« O galo branco revelou-se «franganote». Aceitou lutar ao ser acareado; porém, já solto na linha, perante as primeiras investidas do dourado, encolheu-se para um canto. E ali se ficou, a cabeça agachada e as asas murchas como se estivesse doente. Ainda assim, o galo dourado foi até onde o galo branco estava à procura da luta; as penas do pescoço levantadas e as patas a pisarem, maciças, a cada passo que dava à volta do galo cobarde. O «franganote» encolheu-se ainda mais na vala, reflectindo cobardia e, principalmente, tenções de fugir. Porém, ao ver-se cercado pelo galo de Chihuahua, deu um salto, tentando livrar-se das investidas do dourado e foi cair sobre o espinhaço cor de girassol do seu inimigo. Bateu com as asas com força para manter o equilíbrio e por fim conseguiu, ao querer libertar-se do enlace em que tinha caído, romper com a afiada navalha do seu esporão uma asa do dourado.
O fino galo de Chihuahua, manco, atacou sem misericórdia o «eriçado», que se retirava para o seu canto a cada investida; mas fazia uso do seu meio-voo ao sentir-se cercado. E assim, uma e outra vez, até que, não conseguindo resistir à sangria da sua ferida, o dourado cravou o bico, estendendo-se sobre o piso da cercadura sem que o branco fizesse a menor menção de o atacar.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 309

Che Guevara: 'Há que endurecer-se, mas sem jamais perder a ternura'

As parcas

Concedei-me um só verão, poderosas!
E um só Outono ao meu canto maduro,
Que o meu coração mais pronto, do doce
Jogo farto, então morra!

A alma, que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repousa lá baixo no orco;
Mas se uma vez o sagrado, aquilo
Que ao peito me é caro, o poema, atingir,

Bem-vindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
terei, como os deuses, vivido, e mais além não preciso.


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 49
« Por isso foi […] dada ao homem, a língua, o mais perigoso dos bens […] para que ele dê testemunho de o que ele é […]»


Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 30

...«como se conta dos heróis, posso bem dizer que Apolo me feriu».

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 24

Amor de Hölderlin a Susette Gontard a...

grega «perdida num século pobre sem espírito e sem ordem»


(carta a Neuffeer, de 16 de Fev. de 1797)




Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21

domingo, 12 de dezembro de 2010

«(...) as razões da poesia não são sempre as mesmas da razão.»
 
 
 
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14

As flores

 
«Há escritores que se servem delas pelo simples prestígio dos seus nomes, sem prestarem muita atenção ao facto de corresponderem, ou não, ao lugar e à estação do ano. De modo que não é raro encontrar bons livros onde florescem gerânios na praia e túlipas na neve. Em Pedro Páramo, onde é impossível estabelecer de uma forma definitiva onde está a linha de demarcação entre os mortos e os vivos, as exactidões são ainda mais quiméricas. Ninguém pode saber, na realidade, quanto duram os anos da morte.»
 
 
Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14
«Eu sempre pensei, por pura intuição poética, que quando Pedro Páramo conseguiu por fim levar Susana San Juan para o seu vasto reino da Meia-Lua, ela já era uma mulher de 62 anos. Pedro Páramo devia ser uns cinco anos mais velho do que ela. Na realidade, o drama parecia-me maior, mais terrível e bonito, se se precipitasse pelo precipício de uma paixão senil sem alívio


Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida.  Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 13
«Tive uma infância muito dura, muito difícil. Uma família que se desintegrou muito facilmente num lugar que foi totalmente destruído. Desde o meu pai e a minha mãe, inclusive todos os irmãos de meu pai foram assassinados. Vivi, portanto, numa zona devastada. Não apenas de devassidão humana, mas devassidão geográfica. Nunca encontrei até à data uma lógica que explique tudo isto. Não se pode atribuir à Revolução. Foi mais uma coisa atávica, uma coisa de destino, uma coisa ilógica. Até hoje ainda não encontrei um ponto de apoio que me mostre porque nesta minha família sucederam nessa forma, e tão sistematicamente, essa série de assassinatos e de crueldades.»

in Los muertos no tienen ni tiempo ni espacio, diálogo com Juan Rulfo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Aos poetas jovens

 Queridos Irmãos! Talvez a nossa arte amadureça,
Pois, como o jovem, há muito ela fermenta já.
Em breve em beleza serena;
Sede, então, devotos, como o grego o foi.

Amai os deuses e pensai nos mortais com amizade!
Odiai a ebriedade como o gelo! não ensineis nem descrevais!
Se o mestre vos assusta,
Pedi conselho à grande Natureza!



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 21
«Feriu-me singularmente a atenção o verdadeiro modo de ser do público de uma grande cidade. Vive numa constante vertigem do lucro e do gozo, e aquilo a que nós chamamos atmosfera (Stimmung) não se pode criar nem comunicar; todos os prazeres, mesmo o teatro, devem apenas distrair, e a grande inclinação do público ledor de jornais e romances provém de que aqueles, sempre, e estes muitas vezes, trazem distracção à distracção. - Suponho mesmo ter notado uma espécie de timidez em face das produções poéticas, pelo menos enquanto poéticas, timidez que, por essas mesmas razões, me parece muito natural. A poesia requer, exige mesmo, concentração; isola o homem contra a sua vontade, torna-se por vezes molesta e importuna nas suas exigências e é no largo mundo (para não dizer no grande mundo) tão incómoda como uma amante fiel.»


Goethe, carta a 9 de Agosto de 1797



in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 19
Remexer de novo, com as carumas nos púcaros de resina. Retirar de lá o baço das imagens, o luto que não termina. Estarás sentado, aconchegado ao peito dela, a minha primeira treva? Que verás, quando na madrugada silenciosa, a minha alma vagueia, recua, até ao dia desse desmoronamento...As árvores conservam o frio; não aguentar este pulsar, este não-sentido que parece empalidecer perante ruínas. Estarás comigo, escutando-me este coração sem forças para se aguentar na haste dum tão grande cansaço sem margens? Estou só, dentro de mim mesma, entregue ao golpe incómodo desse sangue, desse rio que nunca mais regressou, e aguento todas as memórias, as misérias que corróiem este caminho para profundas distâncias. Olho-me distanciada, e vejo outra entregue ao incompreendido labor de lavar feridas na laje iluminada pela lua em carne viva. Crepita um embalo rude. Um pássaro abandona uma leve pena no parapeito. Fecho as pálpebras. Mornos fios de sal encontram os lábios. Amarga o que nos é saudade e, talvez me pese esse olhar cínzeo entregue ao lugar desconhecido que nos vigia, ao além das nuvens, que nos ensina a viver com enlutada chama. E, baixinho, muito baixinho, rastejando os pés sobre o mármore branco, volto para o meu leito. Aguento este cerrado nevoeiro e, talvez, amanhã divague por colheita tranquila. O que nos pertence? O desejar de um rio.

Um poeta é...

«um homem que fala a outros homens»



Wordsworth

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A estepe


«Durante as tardes e as noites de Julho já não se ouvem as codornizes, nem as galinholas, nem o rouxinol, nas ravinas da floresta; as flores já não embalsamam o ar. No entanto, a estepe continua ainda muito bela e cheia de vida. Basta que o Sol se ponha e a terra mergulhe na sombra para que a tristeza do dia seja esquecida e tudo seja perdoado; a estepe suspira suavemente pelo seu grande peito. A obscuridade da noite esconde o seu estigma, a erva anima-se numa alegre confusão juvenil que durante o dia ela nunca consegue ter; os estalidos, os assobios, as arranhadelas, os baixos, os tenores e os sopranos da estepe, tudo se funde num zumbido contínuo que convida à saudade e à melancolia. Esta ressonância adormece como uma canção de embalar; rola-se através da estepe e sente-se que vai adormecer, mas de repente é o grito inquieto e sacudido dum pássaro que ainda não adormeceu, ou num barulho indefinível semelhante a uma voz humana, como um «aaah» de espanto, e lá se vai o sono das pálpebras.»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 46/47
« - À noite não dorme, só pensa, pensa, pensa; mas em quê só Deus é que o sabe. Se nos aproximamos dele, enfurece-se e ri. Nem de mim gosta...Não deseja nada. Quando morreu o nosso pai, deixou-nos seis mil rublos a cada um. Eu comprei esta estalagem, casei e agora tenho filhos. Ele queimou o dinheiro todo na lareira. Que dó! Porque é que o queimou? Se não o queria, desse-mo, mas agora queimá-lo...»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 42
«- Como podes tu, meu imbecil, comparar-te a Varlamov.
-Não sou tão imbecil que me compare com Varlamov -respondeu Salomão, examinando os seus interlocutores com olhar irónico. - Varlamov bem quer ser russo, mas, no fundo do seu coração, é um porco judeu. A vida dele é o dinheiro e os benefícios que ele lhe traz, enquanto eu queimei todo o meu dinheiro na lareira. Nem tenho necessidade de dinheiro, nem de terras, nem de carneiros e também não tenho necessidade de que tenham medo de mim, nem que se descubram à minha passagem. Então eu sou mais inteligente que o vosso Varlamov e pareço-me mais com um ser humano do que ele.»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 40

Princípios de Novembro de 1910

«Mas esquecer não é a palavra que convém aqui...A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto de calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos (....)»
 
 
 
 
Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 29

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Anna Magnani and a child see eye to eye.

Domingo, 19 de Julho de 1910

«Durmo, acordo, readormeço, reacordo, miserável vida.
Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»


Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 28
«(...) Não ganharias nada em deixar o teu círculo e na verdade o que perderias em permanecer dentro dele? A isto limito-me a responder: também preferia deixar-me moer com pancadas no círculo a ser aquele que bate no exterior, mas onde diabo está o círculo? Houve um tempo em que eu o via no solo como traçado por salpicos de cal, mas presentemente apenas flutua em torno de mim, que digo, nem flutua sequer»

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27
Por que não habito eu dentro de mim mesmo?

Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

História

Aconteça o que acontecer, aqui fico - murmurou
ele.
A margem é imensa, as pedras
alteram a sua cor à passagem da hora.
Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,
verás o último filho de Tiestes
sem espada, sem coroa, apenas
no flanco direito a cicatriz duma estrela.
Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito
o amor, o massacre e o regresso,
o poder efémero, a ausência de descendentes,
e a minúscula cruz de ferro
pendurada num fio, nessa mesma noite,
e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99

As mulheres

As mulheres estão muito distantes. As suas rou-
pas, o cheiro de «Boa Noite».
Pousam o pão na mesa para que não se sinta
como estão ausentes.
É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos
da cadeira e dizemos:
«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu
acendo o candeeiro».
Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-
mente
e dirige-se para a cozinha com uma aplicação
inexplicável. As costas
são uma pequena colina de amargura carregada
de mortos sem fim,
os mortos da família, os mortos dela e a nossa
morte.
Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,
ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois
ouve-se
o comboio que transporta os soldados para a
frente.


Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85

domingo, 5 de dezembro de 2010

Hölderlin

Detença, mesmo com as coisas mais íntimas,
não nos é dada; das imagens
cumpridas o espírito arroja-se repentino de mais para as que se
[querem cumprir; lagos
há-os só no eterno. Aqui, é a queda
o mais próprio. Do sentimento sabido
precipitar-nos para baixo para o pressentido, mais além.

A ti, ó magnífico Invocador, a ti toda uma vida
te foi dada a instante imagem, e, quando a exprimias,
o verso fechava-se como um destino, havia uma morte
mesmo no mais suave, e tu entravas nela; mas o deus
que ia à tua frente guiava-te para lá, pra fora dela.

Ó tu espírito errante, o mais errante! Como elas todas
moram no poema quente, agasalhadas, e ficam
longamente na comparação estreita. Partícipes. Só tu
vagueias como a Lua. E em baixo aclara-se e escurece
a tua paisagem nocturna, santamente assustada,
que tu sentes em despedidas. Ninguém
a deu mais sublimemente, a restituiu ao Todo
mais inteira, menos pobre. Assim também
brincaste teu jogo santo por anos já não contados
com a infinita ventura, como se ela não fosse interior, mas jazesse
por aí, pertença de ninguém, na macia
relva da Terra, abandonada por crianças divinas.
Ai, o por que os Altíssimos anseiam, puseste-o tu, sem desejo,
pedra sobre pedra: e ficou. Mas mesmo a sua queda
te não perturbaria.

Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós
desconfiamos ainda do terrestre? em vez de no transitório
seriamente aprender os sentimentos de qualquer
inclinação, futura no espaço?

(Irschenhausen, Setembro de 1914)


Rainer Maria Rilke


in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 9
[...]vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito,
Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.
E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito
Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.

Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio
a sua razão,
tão vulnerável no seu furor, tão injustamente
tratada,
com os seus amargos cabelos lançados para os
ombros como a erva dos túmulos,
emparedada na sua acanhada visão da justiça.
Adormeceu talvez,
sonha possivelmente com um lugar inocente, com
animais simples,
casas caiadas de branco cheias com os belos aromas
do pão fresco e das rosas.

Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca
que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -
lembras-te?
Estava ali, separada da charrua, olhava para o
longe
e com os vapores das narinas embaciadas
o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e
ferida
nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,
tinha conhecido talvez a negação, a submissão,
a intransigência e a hostilidade, tudo junto.

Sustentava entre os dois cornos
a mais pesada parte do céu, como uma coroa.
Depois
baixou a testa, bebeu a água do regato
lambendo com a língua sangrenta essa outra
língua
fresca da sua imagem de água, como se lambesse
longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-
mente,
do exterior a sua ferida interna, como se lambesse
a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;
- mata talvez a sede -
só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem
sabe?

Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em
nada,
ela própria intacta e calma como um santo;
apenas
entre as suas duas patas enraizadas na ribeira
um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-
tinha-se, mudava de forma,
um lago vermelho que se assemelhava a um postal
e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-
parecia
como se todo o sangue passasse para uma veia
invisível do mundo,
muito longe, liberto, fácil; por isso
se mantinha calma; como se tivesse sabido
que o nosso sangue não se perde,
nada, nada se perde neste grande nada,
este inconsolável, este impiedoso, este incompa-
rável,
tão doce, tão consolador, tão nada.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76


Fifteen-year-old Maria Dolezalova is sworn in as a prosecution witness at the RuSHA Trial. Dolezalova was among the children kidnapped by German forces after they destroyed the town of Lidice, Czechoslovakia. Nuremberg, October 30, 1947.
 
— United States Holocaust Memorial Museum
Esta noite de espera deixa-me uma aberta para
o exterior
e o interior. Não distingo claramente. Talvez
grandes máscaras deterioradas, agrafes metálicos;
as sandálias dos mortos torcem-se na humidade,
movem-se sozinhas como se caminhassem sem pés
 - não caminham;
e essa grande rede do banho, quem a teceu?
nó a nó - não se desfaz -, negra - não é a mãe.

Uma sombra imensa alonga-se por cima das ar-
cadas;
uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto
ninguém caminhou -
e depois nada; e subitamente um ramo quebrado
pelo peso ligeiro do céu. As rãs
saltam, ágeis e mudas, na erva húmida. Silêncio.
No poço caem ratos cor de cinza, afogam-se;
constelações espessas movem-se lentamente; dei-
tam-se fora
coisas que os banquetes abandonam, ânforas, taças,
espelhos e cadeiras.
ossos de animais, liras e diálogos inteligentes. Os
poços nunca enchem.
Dir-se-ia que dedos de fogo, dedos de orvalho
passam sucessivamente pelo nosso peito,
descrevendo círculos inquiridores em torno dos
nossos mamilos
e também nós flutuamos de círculo em círculo,
em torno dum centro
desconhecido, indefinido e no entanto definido;
círculos infindáveis
em torno dum grito mudo, em torno duma facada;
e a faca
mergulha, creio, no nosso coração e este torna-se
o centro
como o poste no meio da eira, na colina,

e em torno os cavalos, as espigas, os malhadores,
os condutores
e as ceifeiras entre as medas, com a cabeça da
lua nos ombros,
ouvindo o relincho dos cavalos até ao extremo
do seu sono,
ouvindo os touros urinar nos salgueiros e nas
silvas
e os pés inumeráveis da centopeia e do cântaro,
o rastejar da serpente tranquila nos olivais
e o crepitar da pedra ardente que se contrai ao
arrefecer.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.72/3
Também possuo uma vida e devo vivê-la. Nada
de vinganças;
que poderia, mais uma morte, arrancar à morte,
sobretudo uma morte violenta? E que poderia
acrescentar à vida? Os anos
passaram. Não sinto ódio; esqueci, talvez?, estou
cansado? Não sei.
Até sinto uma relativa simpatia pela criminosa;
ela mediu abismos imensos,
um grande crescimento fez crescer-lhe os olhos
na obscuridade
e ela vê - vê o inesgotável, o irrealizável, o imu-
tável. Ela vê-me.
Também eu quero ver o assassínio de meu pai na
totalidade apaziguadora da morte,
esquecê-lo na morte completa
que também nos espera. Esta noite revelou-me
a inocência de todos os usurpadores. E todos somos,
de um modo ou outro, usurpadores - estes dos
povos, dos tronos,
aqueles do amor ou da morte; minha irmã
usurpadora da minha única vida; e eu da tua.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.66
E ela teima em preparar o hidromel e a comida
para os mortos
que já não têm sede e não têm fome e não têm
boca
e já não sonham reabilitações ou vinganças. Ela
invoca sempre
a sua infabilidade (que espécie de infabilidade,
realmente?) talvez para fugir
à responsabilidade duma escolha sua, duma deci-
são sua
- quando os dentes dos mortos, descarnados, dis-
persos pela terra,
são a semente branca, num imenso vale negro,
que faz nascer os únicos infalíveis, invisíveis, as
árvores brancas,
o brilho do fósforo no luar até ao fim dos anos.
Ah, como pode a sua boca suportar essas palavras
desenterradas, sim, de velhas malas (essas malas
ornamentadas com grandes pregos), desen-
terradas
no meio de velhos chapéus da mãe, fora da moda,
a mãe já não os usa - não os quereria. Viste-a
no jardim
esta tarde? - Como é ainda bela! - não envelhe-
ceu nada
talvez porque vigia o tempo, age sobre o tempo
a cada momento - quero dizer: rejuvenesce,
sabendo a juventude que perde; e talvez por isso
a ganha novamente.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.60/1

Forma da ausência

XII
 
Este quarto tornou-se um poço profundo.
O candeeiro é uma estrela pregada na água.
A cama infantil no seu lugar; os lençóis, por agora
lançam reflexos circulares
enquanto à superfície da toalha
as horas lentas, imponderáveis, caem como fetos
de palha,
nela traçando círculos invisíveis. Ninguém fala
no interior - e se falasse ninguém ouviria. Quando
um copo
tomba, cai sem fazer ruído na palma do silêncio.
Não se quebra.
Sozinho, dissolvido da na água, o antigo grito da
separação
torna o poço mais sombrio e mais profundo.
 
 
 
 
Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.36

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

« O excesso desta dor na alma é-me um castigo.»


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 137

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Smiling nude with skull to her right [Salomé]

Fenícia

Pois, Senhora!,
É preciso mostrar quão grande alma em vós mora.
Decerto o golpe é rude e a vós deve espantar.


Jean Racine. Berenice. Edição bilingue. Versão portuguesa de Vasco Graça Moura. Bertrand Editora, Chiado, 2005. p. 109
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