domingo, 16 de maio de 2021

 

POEMA «RUA DO OIRO»
por António Ferro.

Rua do Oiro, rua dos metais! | Mazantini de luz, o sol, ao alto…

Bailes russos deslizam no asfalto… | Cantam em coro os vidros e os cristais!


Os teus passeios, como eu sei cantá-los, | 
São largos tabuleiros de xadrez,

Onde os pés das mulheres, muita vez | São reis, rainhas, torres e cavalos…


Nas montras dos livreiros, os poetas, | 
Com seus lábios, nos livros, entreabertos,

Dizem sonetos graves, muito certos, | Na sua voz sinistra de profetas…


Horrendas, pela tarde, como espumas… | Os chapéus, nas vitrines, são cabeças,

Degoladas… O' frívolas condessas, | Vós não tendes miolos, tendes plumas…


Parques nas sedas!... Há jardins nas chitas… | 
Enforcam-se nas hastes de metal

As éticas gravatas … Em caudal, | O sangue corre aos metros, pelas fitas…


A' entrada daquela luvaria | 
Há certa mão que me parece morta…

O' mão morta a bater àquela porta, | Em poentes de chuva e ventania…


Nesta perna de vidro tão humana, | 
Há tanta carne em suas meias ternas,

Que eu grito ao ver passar certa mundana: | São taças de cristal as tuas pernas!...


Sorriem pó de arroz os perfumistas… | 
Numa loja, acolá, vejo em tropel,

Rolos de telas, blocos de papel: | Roupa branca da alma dos artistas…


Nos ignóbeis balcões dos camiseiros | 
Há bacanais de meias e espartilhos …

As bonecas de cera, nos barbeiros, | Dão à luz cabeleiras, como filhos…


Nos alfaiates jazem manequins, | 
Ossadas, afinal, dos nossos fatos…

Pelas confeitarias, os pudins, | Desfalecem, anémicos, nos pratos…


Nas tabuletas brancas – cemitérios | 
As letras negras, altas, muito esguias,

São cipreste, são sombras, são mistérios, | Almas dum outro mundo em noites frias…


Órgãos de Barbaria desarmónicos, | 
Estes carros eléctricos tão belos…

Ruidosos, barulhentos, filarmónicos, | Passam na Tarde em risos amarelos…


Rua do Oiro – palco da cidade, | 
Há bastidores em todas as esquinas…

Bebés, balões, senhoras e varinas, | Militares, cocotes, alvalade…


Os meus olhos – as hastes da tesoura | 
Recortando as imagens d’Epinal,

Pelos passeios desta rua fora… | Rua do Oiro – humano Carnaval…




Diz-se que todo o estrangeiro poderá encontrar em Sintra um pedaço da sua Pátria. Eu descobri a Dinamarca.

Hans Christian Andersen, 1866.

polemismo

 « E veio Abril: cravos camonianos /aparelharam da liberdade as barcas./ Do verde pinho as flores foram-me enganos, /, as tecelãs do sonho eram as parcas. // Da podridão variam os estados : / magicamente os nomes são mudados; / intacto o pasto vil das varejeiras.»

Natália Correia

Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 45

''O Rei-lua postiço''

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 44


 

caranguejola

«Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre
        fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores! 

(...)»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 39

 «É que, na infância, não possuímos ainda o sentido da impossibilidade; tanto podemos cavalgar um leão como uma abelha...»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 19

Junior Kimbrough

en.tres.so.nhar

''dissera-lhe um adeus sem carícia''

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 16

 «Simplesmente amava uma vida despida de tudo quanto nela o nauseava. Ora o que o nauseava era precisamente a vida de todos e de todos os dias...»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 13

''(...) até hoje a sua vida fora passada aos tombos e aos gritos.''

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 11

 « (...) Que tristeza!...E via-se alguém que atravessasse uma ponte transportando um fardo precioso e que, por não ter mais forças para o carregar, fosse obrigado a lançá-lo ao rio, no último desânimo, perto já do seu destino.»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 10

Katrien De Blauwer





 

Toquinho ‎– Boca da Noite (1974)

 «Muitas vezes o artista, para remédio da sua angústia, pensava no suicídio.»


Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 10

«Deitou-se logo, e antes de adormecer, pensou ainda:
''Todo o meu sofrimento provém disto: sou um barco sem amarras que vai bêbado ao sabor das correntes. Se conseguisse lançar âncoras...Mas aonde...aonde?...''
  E na manhã seguinte, após um sono seguido de dez horas, acordou morto de sono para viver mais um dia igual e vazio da sua vida...''

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 9

estrambótico

A sua vida era como se não existisse.

 «Porque era a sua vida desolação tamanha? Precisamente porque a sua vida era uma existência parada de corpo e alma e corpo - uma existência onde nunca sucedera coisa alguma. A sua vida era como se não existisse.»


Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 5

«A sua alma era toda vidros partidos e sucata leprosa.»

 Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 3



 

«A sua dor era tão grande que pondo a mão na sua
fronte sentida todo o seu esqueleto.»

Mário de Sá-CarneiroMistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007., p. 3

um acto de loucura

«(...)

Numa obsessão, no seu cérebro imaginoso,
o seu cérebro literário, logo começou a tra-
balhar essa ideia - depressa fantasiando um
homem que, no desejo de enlouquecer, saísse
à rua e desfechasse de súbito um tiro sobre
a primeira criatura que passasse e ele não 
conhecesse. Escolheria mesmo uma rapari-
guinha galante, suave e loira, porque se
escolhe sempre em todas as circunstâncias.
Assim haveria um pouco de ternura na tra-
gédia. Ora esse homem, matando alguém que
nunca encontrara, cometera um acto
injustificado - isto é: um acto de loucura. Seria
preso. Explicaria o seu crime: fora para endoi-
decer, praticando uma acção incoerente, que 
assassinara - e juntaria a razão enternecida
porque escolhera a sua vítima. À primeira
vista este homem deixava de ser um doido:
houvera um motivo no seu crime, querer 
endoidecer. Mas, por amor de Deus, tal
motivo melhor vinha provar ainda a sua
loucura: só a um doido podia ocorrer seme-
lhante ideia. E enfim o assassinato seria dado
por irresponsável, seguramente, e encerrado
em um manicómio...»

Mário de Sá-Carneiro. Mistério. Edição Alma Azul. Coimbra, Maio 2007

 

Jardim do Luxemburgo

Os blocos de apartamentos parisienses não temem nem o
[vento nem a imaginação
– são pisa-papéis pesados,
a antítese dos sonhos.

Barcos brancos vão pelo rio, cheios de pessoas
que exigem saudações àqueles que estão na margem;
o seu alvoroço aniquila o passado.

Um casal de turistas ricos emerge de um táxi
com roupas cintilantes; servem-nos empregados
vestidos de fraques que a moda não altera.

Mas o Jardim do Luxemburgo está a esvaziar-se
e fica um gigante herbário mudo;

Esqueceu todos aqueles que um dia
passearam pelos seus caminhos e não notaram que já
[não estão vivos.

Mickiewicz viveu aqui e além August Strinberg
trabalhou sobre a pedra filosofal
que nunca encontrou.

Entardece. Noite solene, taciturna e preocupada,
chega de leste.
A noite vem da Ásia e não faz perguntas.

Ser estrangeiro é óptimo, uma alegria fria.
Luzes amarelas iluminam as janelas para o Sena
(uma coisa mesmo enigmática: as vidas dos outros).

Eu sei – não há mistério aqui agora.
Mas há plátanos, praças, cafés, ruas acolhedoras
e o olhar luminoso das nuvens que vai esmorecendo.

(com base na versão inglesa de Clare Cavanagh)


Auto-estrada

Tinha doze anos talvez.
No ferro-velho por baixo do viaduto construído
por Hitler eu buscava relíquias daquela guerra, relíquias
da idade do ferro, baionetas e capacetes de um exército
qualquer, não ligava, sonhava com grandes achados –
tal como Heinrich Schliemann em tempos
andou à procura de Heitor e Aquiles na Ásia Menor,
mas não encontrei nem ouro
nem baionetas, apenas ferrugem por todo o lado,
o ódio castanho da ferrugem; receava
que pudesse penetrar o meu coração.


Lápis

Os anjos já não têm tempo para nós;
trabalham agora para as gerações futuras,
inclinados sobre cadernos escolares
escrevem e apagam, corrigem
complicados esquemas
da felicidade futura
com um lápis grosso,
amarelo, na boca,
tal e qual as crianças no primeiro dia de escola
sob os olhos da professora
que sorri bondosamente.

(Auto-estrada e Lápis foram traduzidos com base em versões espanholas de Xavier Farré)

(Adam Zagajewski morreu a 21 de Março de 2021, altura em que este pequeno perfil já estava organizado.)


Francisco José Craveiro de Carvalho (poeta e tradutor)

 O aprendiz

O meu livro de ensinamentos sobre poesia,
comprado numa banca ao ar livre junto ao rio,

apresenta muitas regras
sobre o que escrever e não escrever.

Mais do que duas pessoas num poema
é uma multidão, é uma.

Falar na roupa que se tem vestida
quando se escreve, é outra.

Fugir de palavras como vórtice,
aveludado e cigarra.

Quando não souber como acabar,
ponha umas galinhas castanhas à chuva.

Nunca admita que faz correcções.
e – mantenha sempre o poema numa só estação.

Procuro tê-las presentes,
mas nestes últimos dias de verão,

sempre que ergo os olhos da minha página
e vejo uma mancha seca numa folha amarela,

penso nos ventos gélidos
que em breve golpearão o meu casaco.


Billy Collins, é um poeta americano, nascido em 1941.  Entre outras honras, foi Poet Laureate of the United States, 2001 to 2003. 

Francisco José Craveiro de Carvalho - poeta e tradutor


C. Tangana

 

O poeta que fez companhia a Virginia Woolf





Este poema pertence a um livro de poesia do poeta inglês Neil Curry. O livro chama-se On keeping company with Mrs Woolf e trata-se de um ciclo de poemas que são um diálogo com a escritora Virginia Woolf.

Quando lhe pergunto como lhe surgiu a ideia de escrever o livro diz-me:

Leia o poema da página 15.



*“como adormecer…”  São palavras minhas postas na sua boca. Lembro-me de onde e quando. Durante um retiro em Buckfast Abbey, sentado junto ao açude, vi o pica-peixe e escrevi, na terceira pessoa, o que viria a ser o poema final do livro.  Pensei no suicídio mas não tencionava escrever um poema sobre o suicídio. Tive a ideia de uma sequência imediatamente. Ocupou-me durante 18 meses.

Os poemas focam muitos aspectos da vida de Virginia Woolf: a família, o Bloomsbury group, as suas opiniões sobre livrarias, criados, coisas que esquecemos, cartas…

Durante meses li cartas, diários, ensaios e romances. Deixei que o seu trabalho me absorvesse inteiramente, mantive uma fotografia na minha secretária e usei outra como marcador. Uma obsessão. Encontrei uma gravação num website e ouvi a sua voz.



Escrevendo sobre Virginia Woolf, Neil Curry escreve também sobre si próprio, não dando apenas opiniões.  Há alusões a um livro sobre Horace Walpole que está a escrever, a um exemplar especial de The death of the moth,a um tesouro, à sua incapacidade para em certa altura ler The waves. No poema Sobre andar a pé“quando atravessei a Espanha a pé” é uma referência à sua experiência no Caminho de Santiago.




Francisco José Craveiro de Carvalho (poeta e tradutor; é professor jubilado de matemática)

                                                                       Não tem lugar

o homem de corpo e alma
nessa inexpugnável
selva digital

Cada ser deixou de ter
coração e linguagem
e perdeu-se nessa
imensa teia

devorado pela escuridão do não-ser.

Insular geografia,
Fábrica de tantos exílios.

Ronaldo Cagiano
Natural do Brasil. Residente em Portugal
(in Antologia Poética da Imigração Lusófona)

 

HOMEM DE CÔR


Sou balanta, sou kimbundo
Sou badio, marronga ou angular
Continental ou insular
Há quem me chame homem de côr
Tenho nome e apelido
Sou do norte, sou do sul
E como tu, gerado no centro
Bendito esse teu ventre Mamãe
Sou exótico p’ra a folia
Sou selvagem quando incomodo
Sou dos teus quando convém
Sou o tal homem de côr
Dizem que sou do terceiro mundo
E, segundo bocas infames
Neste universo sem primeiro
Nem civilizado sou
Sou maconde, sou forro
Sampadjudo, mandjáku, kinkôngo
Operário e intelecto
Mas só me chamam homem de côr
Sou de lá já sou de cá
Vou, não sei p’ra onde
Com o vento que já sopra
Ora p’ra lá, ora p’ra cá
Sou filho disto
Sou filho daquilo…
Sou filho do vento
Sou filho deste mundo.

Costa Neto
Natural de Moçambique. Residente em Portugal
(in Volta Pra Tua Terra)

«Da igual si las mujeres que no amé
Y que estuvieron para mí hubieran podido salvarme
¿A estas alturas para que voy a preocuparme?
Da igual si las opciones que dejé
En el camino que elegí
Me hubieran llevado a otra parte
Pa esa mierda ya no tengo tiempo, sólo puedo mirar adelante»

C. Tangana

C. Tangana - Demasiadas Mujeres


 

« sA  Que palavra, que verso, que frase gostaria de nos deixar para que depois possa vir a chuva? “Lançai-me uma palavra, como alguns / atiram côdeas aos cães”, sim?

HC — Epea Pteroenta, as palavras aladas cantadas por Homero, continuam a dar-me emoções gratas. Ele, que a lenda tem por cego, via-as sair das bocas como pássaros e lançar-se num voo com o som, com o brilho, com o volume, a cor e a leveza de um pequeno animal canoro e emplumado. Eu tomo muitas vezes as palavras por pássaros e os pássaros por palavras.  É tão reconfortante ver como uma invenção recente, o helicóptero, tomou o nome das palavras gregas, hélix, espiral e pteron, asa. E há aqueles que lhe chamam «língua morta»!…»


Entrevista aqui.


 Lançai-me uma palavra, como alguns / atiram côdeas aos cães

Hélia Correia

“Só preciso da primeira frase. Quando aparece a primeira, depois chove.”

 Hélia Correia

«sA — Serão elas de alguma forma os novos Deuses que os humanos encontraram para colmatar os Deuses religiosos que se foram, e que por sua vez já tinham colmatado a ausências dos Deuses clássicos que também se tinham retirado? É uma espécie de Mito de Sísifo o repetitivo ciclo da cegueira dos seres humanos que lhes faz criar sempre mais novos Deuses para de novo os cegar?

HC — Não sejamos tão trágicos. É assim: hoje, no Ocidente, não se obriga ninguém. Quem se embebeda fá-lo porque quer. Quem quer ter audiências maiores do que as de Hyde Park, instala o FB ou semelhante, e aceita as amizades que apareçam. Até funciona para acasalamentos. Tudo isto é, simplesmente, afirmação do ego, com substrato vagamente libidinal, preservação do indivíduo, em primeiro lugar, e da espécie, em segundo, organização de tribos, predomínio do que melhor souber mostrar a cor das penas. É, no fundo, uma coisa inofensiva, que só por exagero trará perigo.

Lembram-se da euforia dos exércitos quando lhes apareceram as espingardas? O matar à distância, sem contacto, muito longe do alcance das espadas? Assim estamos agora, formidáveis neste novo exercício do poder, vendo os familiares que estão longe, dando a ler os versinhos que fizemos, aliciando para um encontro ou convocando algum ajuntamento.

Há uma coleção de afinidades, porque somos gregários e já não vamos a clubes, sejam populares ou chiques. Tudo isto é um pouco sobre-humano, mas não superámos nós, há muito tempo, a velocidade da corrida pedestre? Não voamos?

Eu cito muita vez Matthew Arnold que, sobre a excitação que o comboio levara às cidades inglesas, comentou: «Não percebo este entusiasmo de sair de um lugar sem graça alguma e apanhar o comboio só para chegar mais depressa a outro lugar sem graça alguma».

A entrevista aqui.


 

correligionário

 1.

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
Dois séculos corridos sobre a hora
Em que foi escrita esta meia linha,
Não a hora do anjo, não: a hora
Em que o luar, no monte emudecido,
Fulgurou tão desesperadamente
Que uma antiga substância, essa beleza
Que podia tocar-se num recesso
Da poeirenta estrada, no terror
Das cadelas nocturnas, na contínua
Perturbação, morada da alegria;

7.
Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizavam
Olhando para cima, para as torres,
Supondo que as podiam habitar,
Glória das águias que nem águias tem,
Sofremos, sim, de idêntica indigência,
Da ruína da Grécia.

23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.


Hélia Correia in A Terceira Miséria, Relógio d’Água, 2012

''O Ocidente, coitado, tem os ossos fracos e os ouvidos gastos, lê-se a si mesmo, fecha-se ao diferente.''

Hélia Correia

''a língua portuguesa está ameaçada de morte''

 Hélia Correia


 


rojar-se no pó
humilhar-se servilmente

 

ESMOLA

I

Lançai me
uma palavra, como alguns
atiram côdea aos cães.
Uma palavra
que, embrulhada nesse cuspo
que vos escorre pelos queixos,
brilha
e desconcerta a própria
repugnância.
Sacudi a
de vós, tal como alguém
sacode a lama seca do sapato
sem perceber sequer que lama é
porque não tira os pés
do alcatrão.
Essa palavra abandonada à porta,
eu a recolherei, como se houvesse
nela um pedido,
a súplica de um órfão,
de uma cria deixada para
morrer.
Eu pegarei nessa palavra ao colo
e, não sabendo onde encontrar abrigo
nem alimento,
dormirei com ela,
ouvindo a
murmurar,
enquanto os bosques
vão crepitando e a cinza
nos recobre.

II

Mas entregai uma qualquer palavra,
dessas que tanto desprezais,
ao meu cuidado.
Uma palavra, por exemplo,
sobre a qual
ninguém se incline já
porque a confunde
com uma pedra do caminho
ou um excremento,
tão insignificante
se tornou.
Oh, que estranho é pensar que elas tiveram,
até, reis como servos, as palavras.
Pensar que elas passavam pelos séculos
com o seu corpo musical, tão frágil
e tão convocador de tempestades.
Essas pequenas criaturas transparentes,
sem peso, com alguma vocação
para a malignidade, pois não têm
nem sombra nem reflexo,
e dos seus dedos
desce a grande beleza do terrível
e a grande redenção
que há no poema.

III

Pequenas, misteriosas criaturas
que não nascem do mundo natural,
que são obra dos homens,
sendo os homens a obra delas,
vejo as
hoje mais do que escorraçadas:
submetidas.
Elas que eram solenes e risonhas,
tanto mais necessárias quanto inúteis,
e tanto mais inúteis quanto pura
exaltação do texto, essas palavras
rolam humildemente pelo chão.
Deixai, deixai cair uma palavra,
e outra, e outra,
os ossos do banquete,
para que me roje e as apanhe com a boca,
sendo eu menos
do que mendiga,
menos do que cadela,
sendo eu menos do que um bicho
com fome:
sendo a fome.


Hélia Correia, in Acidentes, Relógio d’Água, 2020


“Estamos doentes de abundância”

 ''sA  A Hélia afirmou numa entrevista: “Estamos doentes de abundância”. Refere-se à Europa pós-Auschwitz e ao mundo Ocidental em geral? E estamos doentes, porque na verdade essa abundância é de certa forma oca ou falsa faz algumas décadas?

HC —   A abundância é isso mesmo: o excesso. O furor de adquirir e deitar fora, o vício dos objetos, a compulsão do gasto, a ânsia das viagens em que não se conhece senão hotéis e lojas, tudo é doença do insaciável, tudo é dependência e entorpecimento. Quem pára? Poucos param. O sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina. Não há maior pobreza.''


Entrevista aqui.

«Para que servem os poetas em tempo de indigência?»

  Hölderlin

Katrien De Blauwer
 

'' sA — O que é que nunca aprendemos de verdade, ou pelo contrário, aprendemos demasiado bem, no que concerne aos valores da Pólis? Com essa predestinação dos Gregos e da cultura helénica, com a qual tem mantido, mais do que um diálogo íntimo e continuado, um autêntico enamoramento?

HC — A grande perda com o fim da Grécia foi essa perda da diversidade de onde provinham o horror e a alegria, a dança e o flagelo, a liberdade e a superstição, a arrogância e o controlo da arrogância, a música e a fala, o espaço inteiro cheio de narrativas num constante devir. Perdeu-se, está perdido. E, no entanto, ainda amo essa Grécia, sem luto e sem distância. Ainda a tenho como Conselheira e Mestre. Vou lá todos os dias tal como os emigrantes voltam, no Verão, a casa.''


Entrevista aqui.

 

alexetério

 /cs/
nome masculino
FARMÁCIA substância usada para diminuir ou anular os efeitos de um venenoalexifármacoantídoto
“O que faz o poeta? Mostra aquilo que o olho nu não vê. Seja a beleza, seja a crueldade, ou seja a crueldade da beleza. O resto, ainda que venha do poeta, é do domínio da cidadania”.

Hélia Correia

 

Otherwise

«Tanzt, tanzt sonst sind wir verloren»
(Dance, dance, otherwise we’re lost)


– Pina Bausch –
I

Se a dança nos salvasse, mesmo assim
dançaríamos mal e deus algum
receberia o nosso movimento.
Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãos
como se prende um filho, de maneira
a fazê-lo voar em rotação,
com um pouco de perigo, o que subtrai
ainda mais o corpo à gravidade,
confiávamos nela.
Já perdemos
a ligação?

Podia algum de nós,
os politicamente corrigidos,
tornar-se outra vez fera,
estar na fera,
cravar na jugular da fera os dentes
em corpo a corpo, ventas contra ventas,
cheiro dentro de cheiro, exactamente
como na fúria da reprodução, apenas
indo mais longe nela,
devorando?

A dança:
o pé batia contra o solo
e, de algum modo, enraizava ali
e, de algum outro modo, se elevava
no ar sonoro, tendo de comum
isso com as aves,
como dizem que Nijinsky
tinha delas a arcada plantar.
A pele dos animais esventrados, isso
que, de sensíveis, não podemos
conceber,
colava-se nos ombros
das mulheres, colava-se a poder
de sangue seco,
parecendo, com elas, respirar.
Sacudindo a cabeça para trás,
sacudindo a cabeça, estranha coisa,
perdendo as bailarinas
o equilíbrio
que fazia o orgulho das donzelas.
Perdendo o equilíbrio indesejável.

II

«Tudo o que a dança grega nos ensina
é a nudez
nas posições terrenas,
é quebrarmos
pelo plexo solar
onde o vigor
de toda a criatura
permanece».
Isadora não disse tudo isto
mas disse parte.
Eu vejo-a a subir
com Raymond, o irmão, pelo monte Himeto,
a carregarem água e instrumentos
para a construção da casa,
que eles queriam
semelhante ao palácio de Micenas.
Raymond e Isadora, tão esmagados
pela subida, o calor e até mesmo
pelo canto das cigarras
que era dança o que deles saía
e os outros confundiam com suor.
Era essa dança de deixar bater
o joelho no chão,
de resvalar
nos torrões ressequidos, no tomilho
que feria e perfumava.

Raymond Duncan,
cunhado de Angelos Sikelianos,
por sua vez marido de Eva Palmer,
gente de consequência todos eles,
gente capaz de recriar, em Delfos,
não apenas os ritos teatrais
mas inclusivamente a confecção
do vestuário duro e vegetal
que usavam sem pudor.
Eva, Penélope,
mulheres com um tal excesso de beleza
que isso as tornava intransigentes e as punha
a salvo de ternuras comezinhas,
atacando o trabalho de tear
não por fidelidade, como a outra,
mas numa guerra à Belle Époque e ao século
que estava a começar.
Um pouco menos de dinheiro na família
e tê-los-iam internado a todos.

III

Eu, que amei Pina Bausch muito antes
do português comum,
e ouvi depois
os novos-ricos a gritarem «bravo»
contra o seu rosto onde passava tudo
o que eles não entendiam,
gostava de pedir em alemão
«Tanzt», como ela pediu.
Estive uma vez
com uma rapariga da Holanda
que fez uma audição em Wuppertal.
«Make me laugh», eis o que Pina disse.

A rapariga,
é claro,
não entrou.
Mas não falava disso com despeito.
Brilhava, tarde fora, e não devido
à chuva que caía em Amsterdão.

Brilhava e eu não sei se, como os outros,
se esqueceu, entretanto,
de dançar.


Hélia Correia, in revista Telhados de Vidro nº 18, Maio de 2013

''Não tenho motivações criativas. Tenho frases que surgem. Algumas vezes, sigo-as. Elas sabem da minha preguiça estrutural, por isso trazem tudo pronto já: género, tamanho, sobretudo música. São uns duendes que me saltam ao caminho.''

Hélia Correia

Entrevista






''Uns escrevem, outros vão para o matadouro.''

 Hélia Correia

“A terceira miséria” (Poesia, 2012)

“Um bailarino na batalha” (Romance, 2018)

“Acidentes” (Poesia, 2020)

Hélia Correia


Hélia Correia. Fotografia de Gonçalo Rosa da Silva


 ''sinalAberto — O mundo de hoje, soberbo pela ilusão da tecnologia e pela confusão do ruído, ainda tem lugar para o indizível compasso da literatura? Porquê?

Hélia Correia — Há lugar para tudo. Isso a que chamam comunicação tecnológica não passa de um avanço na massificação dos media de registo das linguagens. Quando apareceu o livro tal como o conhecemos, os alfabetizados retiraram-se da roda da lareira onde alguém transmitia as histórias orais, curvaram-se, calados, sobre as páginas e o ambiente emudeceu bastante.

Agora todos leem, e escrevem, e encurtam as palavras, coisa que já fazíamos na linguagem oral. É uma nova imprensa, acessível ao vulgo, com as duas direções verbais escancaradas: a da produção e a da receção. Ocupam muito espaço, mas, como não existe a fisicalidade, são bolas de sabão que se desfazem à pressão do botão de desligar. Pois é ainda o humano quem detém o último poder. Ninguém se queixe. A literatura não tem nada a ver com isto. O rumor que ela faz é subaquático, é preciso correr um risco para o ouvir.''


Entrevista aqui.

 Hélia Correia:

“hoje já não se morre de civilização”, e que não há maior pobreza” quando “o sonho de uma vida é tomar um cocktail dentro de uma piscina”.

 ''O escritor pode, apenas, processar o real através do seu corpo e dar-lhe a forma de ficção, ou pensamento, poema ou crónica, para o entregar, como quem estende a mão”

Hélia Correia

Hélia Correia: “sem palavras voltamos para a pré-história”

sidonismo (1918)

“Fiz da poesia o meu refúgio e com ela mascaro a minha dor”.

 Florbela Espanca

sexta-feira, 14 de maio de 2021


 

Nina Simone - I Put A Spell On You (Full Album)

 

monossitia


nome feminino
hábito ou prática de fazer apenas uma refeição por dia

''Inverno Demográfico''

 O cuidado é, então, um modo de ser no mundo, uma forma de existir e de coexistir, de estar presente, de navegar pela realidade e de se relacionar com todas as coisas do mundo (Boff, 1999).

Powered By Blogger