Otherwise
«Tanzt, tanzt sonst sind wir verloren»
(Dance, dance, otherwise we’re lost)
– Pina Bausch –
I
Se a dança nos salvasse, mesmo assim
dançaríamos mal e deus algum
receberia o nosso movimento.
Pois nem se a terra nos prendesse pelas mãos
como se prende um filho, de maneira
a fazê-lo voar em rotação,
com um pouco de perigo, o que subtrai
ainda mais o corpo à gravidade,
confiávamos nela.
Já perdemos
a ligação?
Podia algum de nós,
os politicamente corrigidos,
tornar-se outra vez fera,
estar na fera,
cravar na jugular da fera os dentes
em corpo a corpo, ventas contra ventas,
cheiro dentro de cheiro, exactamente
como na fúria da reprodução, apenas
indo mais longe nela,
devorando?
A dança:
o pé batia contra o solo
e, de algum modo, enraizava ali
e, de algum outro modo, se elevava
no ar sonoro, tendo de comum
isso com as aves,
como dizem que Nijinsky
tinha delas a arcada plantar.
A pele dos animais esventrados, isso
que, de sensíveis, não podemos
conceber,
colava-se nos ombros
das mulheres, colava-se a poder
de sangue seco,
parecendo, com elas, respirar.
Sacudindo a cabeça para trás,
sacudindo a cabeça, estranha coisa,
perdendo as bailarinas
o equilíbrio
que fazia o orgulho das donzelas.
Perdendo o equilíbrio indesejável.
II
«Tudo o que a dança grega nos ensina
é a nudez
nas posições terrenas,
é quebrarmos
pelo plexo solar
onde o vigor
de toda a criatura
permanece».
Isadora não disse tudo isto
mas disse parte.
Eu vejo-a a subir
com Raymond, o irmão, pelo monte Himeto,
a carregarem água e instrumentos
para a construção da casa,
que eles queriam
semelhante ao palácio de Micenas.
Raymond e Isadora, tão esmagados
pela subida, o calor e até mesmo
pelo canto das cigarras
que era dança o que deles saía
e os outros confundiam com suor.
Era essa dança de deixar bater
o joelho no chão,
de resvalar
nos torrões ressequidos, no tomilho
que feria e perfumava.
Raymond Duncan,
cunhado de Angelos Sikelianos,
por sua vez marido de Eva Palmer,
gente de consequência todos eles,
gente capaz de recriar, em Delfos,
não apenas os ritos teatrais
mas inclusivamente a confecção
do vestuário duro e vegetal
que usavam sem pudor.
Eva, Penélope,
mulheres com um tal excesso de beleza
que isso as tornava intransigentes e as punha
a salvo de ternuras comezinhas,
atacando o trabalho de tear
não por fidelidade, como a outra,
mas numa guerra à Belle Époque e ao século
que estava a começar.
Um pouco menos de dinheiro na família
e tê-los-iam internado a todos.
III
Eu, que amei Pina Bausch muito antes
do português comum,
e ouvi depois
os novos-ricos a gritarem «bravo»
contra o seu rosto onde passava tudo
o que eles não entendiam,
gostava de pedir em alemão
«Tanzt», como ela pediu.
Estive uma vez
com uma rapariga da Holanda
que fez uma audição em Wuppertal.
«Make me laugh», eis o que Pina disse.
A rapariga,
é claro,
não entrou.
Mas não falava disso com despeito.
Brilhava, tarde fora, e não devido
à chuva que caía em Amsterdão.
Brilhava e eu não sei se, como os outros,
se esqueceu, entretanto,
de dançar.
Hélia Correia, in revista Telhados de Vidro nº 18, Maio de 2013